terça-feira, 28 de abril de 2020

Ruth Guimarães (Os Três Desejos)


Um velho e uma velha, numa noite de frio, de muito frio mesmo, quando os animais se extanguiam em suas tocas, e o vento descabelava as árvores, sentaram-se diante de um bom fogo de lenha, na taipa do fogão.

Sentaram-se e ficaram. Não conversavam, pois não tinham assunto. Pouco saíam de casa, não trabalhavam, a não ser na sua rocinha, não frequentavam a casa dos outros, não liam jornais, nem livros, nem iam ao cinema, nem a teatro, não viajavam. Portanto, não tinham assunto. Deixaram-se estar muito calados, espiando as alegres labaredas, e esfregando de vez em quando as mãos engelhadas (envelhecidas). Foi ficando tarde, e eles não se animavam a ir para a cama, onde não se aqueceriam os seus velhos ossos, por falta de cobertores. Havia mais: a cabana tinha frinchas por todos os lados. Somente diante do fogo estavam bem. E assim foram ficando.

Já fazia muitas horas que estavam calados, olhando o fogo. A lenha se consumiu, no lugar das chamas ficou um brasido (grande quantidade de brasas) vermelho, alegre, com uns estalidos frequentes, o ar acima dele cintilava, relumeava, parecia vivo, o fogo era como um duendezinho que segredava coisas.

Sentiram fome. O velho olhava desconsolado do brasido para o fumeiro, onde não se pendurava nem um triste pedaço de chouriço. A velha seguiu-lhe o olhar e pôs em palavras o pensamento de ambos:

- Que bom, se caísse nesse brasido um pedaço bem grande de linguiça de carne de porco, temperada com uma pimentinha do reino e alho e cebola. E caindo, começasse a chiar, estalando, o cheiro se espalhando pela casa inteira. Ai, como havia de ser delicioso comê-la!

Nessa hora, os anjos do céu estavam dizendo amém. No mesmo instante caiu na brasa, tal como a velha dissera, um pedaço bem grande de linguiça de porco. Grossa, gordurenta, os pedaços de toucinho aparecendo, através da tripa fina, transparente, bem curada e seca. A linguiça se retorcia, assando, e o cheiro se espalhou, de bom tempero e de vianda (carne) curtida como se deve. Engoliam os velhos em seco, antegozando o momento de manducar (comer) o bom-bocado, quando o velho se lembrou de uma coisa em que ainda não pensara. Com efeito, se o pedido de linguiça fora tão prontamente atendido, um outro pedido, de dinheiro, por exemplo, seria atendido no momento, do mesmo modo.

– Estúpida – rosnou para a mulher. – Pedir linguiça. Bem se vê que você nasceu pobre, num monte de lixo. Por que não pediu riqueza, não pediu joias, não pediu dinheiro? Por que?

A velha se encolheu:

- Que sabia eu de pedidos? Como podia adivinhar que… que…

- Estúpida – tornou a gritar o velho, exasperado. - Sabe o que eu queria?

E antes de raciocinar, levado pela raiva, formulou o segundo desejo:

- Que essa linguiça saísse das brasas e se pendurasse no seu nariz!

O pedaço de linguiça deu um volteio, subiu e, diante do velho estupefato, grudou-se ao nariz da mulher.

– Uai! – berrou a mulher.

Agarrou-se à linguiça com as duas mãos, puxou, o velho foi ajudá-la.

– Aiaiaiaiaiai! Ai ai!

Puxa que puxa, a linguiça nada de sair.

A velha, desesperada, gritou:

- Eu quero já já, que essa linguiça…

- Não! – gritou o marido, tapando-lhe a boca com a mão. – Não. Vamos pedir uma coisa mais valiosa. Mulherzinha do meu coração! Deixa a linguiça aí, que não está incomodando tanto. Vamos pedir uma bonita casa.

– Não! – berrava a velha.

– Então um terreno com um formoso lago no centro.

– Não.

– Então uma arca cheia de moedas de ouro.

– Não e não.

Aproveitando-se de um momento em que o marido se distraiu e não teve tempo de lhe tapar a boca, ela falou, depressa:

- Quero que se desprenda do meu nariz essa linguiça.

E assim, viram eles satisfeitos os seus três desejos.

Fonte:
Ruth Guimarães. Lendas e Fábulas do Brasil. 1964.

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Varal de Trovas n. 252


Aparecido Raimundo de Souza (Infinita às Latitudes)


(Obs. do Blog: As palavras com asteriscos, o significado está no vocabulário ao final do texto)
 
Para Ellen, minha neta, com uma dúzia de velinhas esta noite...

ELLEN TEM UM SORRISO VEROSSÍMIL que me encanta mais que qualquer joia preciosa de altíssimo valor. Quando estou a seu lado, traço caminhos incógnitos, dentro de sendas que ainda não foram percorridas. Embora velho na idade, com o acúmulo de décadas sobre os costados, me hipnotizo diante de pequenas coisas corriqueiras, e volto a ser menino embalado na energia das suas primaveras. Às vezes, me assemelho a folhas soltas ao vento, espalhadas como meses de um ano anfigúrico* e assombrado.

Apesar desse incidente, o destino cansado dos meus janeiros passados, se endireitou e se aprumou. Criou vida nova dentro das picadas que percorremos mundo afora. Belezas insuspeitáveis desfraldaram formas eloquentes e afloraram, espavoridas, rugindo como feras circunspectas me fazendo esquecer a fadiga dos dias tristes e enfadonhos, me desmemorizando completamente dos momentos lúgubres e consternados e à espera de um milagre que parecia impossível. Um insólito que não se fez esperar e se iniciou prodigioso quando ela nem pensava em ser concebida na barriga da mãe. 

A vozinha dela... Só o sussurro da sua fala chegando suave em meus ouvidos se faz bastante para me inebriar, dando a impressão de perceber, ao longe, uma espécie de cantar melodioso como um viveiro de pássaros.  Me lembro como se fosse hoje... Num dado instante tresloucando plenitudes, ela nasceu. Coroou choramingando e se faz milagre e se expandiu como partículas desprendidas de brechas taciturnas. Com o passar do tempo, abriu novos desvãos, fazendo surgir, magnânimes, entre receios e mistérios, uma nova e cálida esperança, esperança até então destituída de brilho e cor. 

Nesse carrossel girando em meio a um parque das emoções, mais de uma década se consumiu. A minha princesa, num cotidiano que se renovou a cada minuto, seguiu faceira, ilustrando, com a sua meiguice, o quadro do meu agora, fazendo, ao deslizar meticuloso de sua mão sobre o mágico pincel, que a paisagem entojada* do meu porvir fosse mais sutil, elegante e meticulosamente sonhadora. Talvez até mais branda... Como chuva benfazeja lavando e iludindo meu cansaço de pés descalços e claudicantes, ela quem sabe mais à frente, mais à depois, me arranje, junto às benignidades do Eterno, a chave-chance, para que o meu anfêmero*, por aqui, seja mais gostoso de ser vivido.

Doze anos atrás, Ellen chegou arrebentando fadigas e rabugices. Preencheu espaços vagos dentro da solidão que me sufocava o direito de ser feliz. Num passe de suntuosa galardia, coagulou as minhas dores, solidificou as angústias, sarou meus machucados abertos e renovou, com forte dose de adrenalina a alma espuriada*, ao tempo em que tendenciou o meu agora-hoje envolto em grossas camadas de tristezas e dissabores, num grandiloquente estado novo, como se eu tivesse renascido, inteiro e intocável, noutra encarnação espiritual.

A danadinha não parou por aí. Viajou mais longe. Soube agitar com gestos imperceptíveis as minhas particularidades. Desbancou as dependências carentes que me acorrentavam. Modificou, num piscar de gestos ternos, meus domínios e habitações, colocando,  em  lugar (do que até então se fazia negrura, treva e sombra), uma luminosidade resplandescente, contagiosa, imensurável e perene. De súbito, meu corpo compungidamente escravizado e prisioneiro, se  safou do recluso em que se achava encarcerado.

Um ser forte e remoçado dentro de mim se avivou, se agigantou e se desprendeu, sobretudo se desagarrou da subjugação, do amarrado, do tolhido de movimentos.  Em razão disso, de inopinado, como bomba de pavio aceso, explodi.  Revivi, renasci, me reformei dos pés à cabeça, investido nas brasas incandescentes dessas horas pungentes que se multiplicaram dentro do comprazimento que passou a fluir intermitentemente no interior de minha pequena e agora imensa alma e,  de roldão,  se  abriu e se alargou em clima de festa.

Na mesma agulha da bússola do tempo, a aura dos meus percalços, até então obscurecida e adoentada por uma insatisfacão esquisita, igualmente se livrou do horror, e reacendeu como estrela de primeira grandeza no absoluto do meu olhar. Deixei de ser um palhaço obumbrado* com o incêndio do circo, um qualquer, sem eira nem beira, peso morto e cativado, pomo das desavenças que eu mesmo criei em meu próprio derredor chumbado aos grilhões de uma espécie rara de filariose galopante. Estou, pois, graças a ela, vivendo num gozar de sopros livres. Abandonei, num desvio insulado, as elocubrações desnecessárias que me apoquentavam os  sentidos. 

Mudei o curso dos meus horizontes. Ellen me fez liberto. Deixei de ser pedra atada a cânhamo no pescoço das minhas imbecilidades. Percebi, a tempo, que não valia a pena morrer num mar revolto em solidariedade a um afogado intransigente. Eu precisava seguir em frente, viver. Viver por mim, por ela. Viver intensamente. Afinal de contas, a minha mocinha se tornou meu objetivo maior, a parcela viril das minhas alacridades*, meu respirar de alento, meu resistir fervoroso, enfim, meu  minuto imperceptível. Ellen versejou a solmização* do meu novo canto de paz, e nesse momento ocupa o lugar mor do meu irrepetitível nesse corre-corre que às vezes ainda tenta me tirar do sério.

Tem essa linda e encantada garotinha, o dom, o condão  mavioso de multiplicar meus pensamentos acima da gravidade de qualquer instante que pense em me fazer desanimar. Por ela, agora e sempre, viajarei dentro de meus devaneios a mil por hora. Transpassarei abismos verticais sem limites, ao derradeiro em que sentirei, no coração, o desejar irrequieto e palpitante da minha felicidade se agitando, fremente, frenética, excitada, ebulitiva, tempestuosa e arteira, como bandeira ao sabor do conflagrado. Ellen, doze anos atrás, germinou de Érica, a minha primeira filha e, além de um pedacinho do meu delicioso presente de Deus, se fez neta também e mais que isso, virou filha e neta. Neta e filha.

Se faz, se fez, mais que a soma de duas. Se tornou múltipla, tátil, dentro do meu espírito de avô coruja, de pai bobão, avô babão, adulador, derretido, que voltou a ser criança grande diante da sua irrequietabilidade moleca. Ellen é proprietária de visões que cingem o mundo. É dona de sorrisos que fazem renascer o amor a cada tocar de pele na sua melhor forma de expressão. Essa pétala de flor rara e maviosa, vai um pouco além do impossível: generosamente benevolente, a minha Ellen enfeita meus dias pósteros.

Tornou mais coeso esse segredo lacrado às minhas horas. Aqueceu como se o astro-rei lá do divorciado firmamento decorasse, cá embaixo, um novo céu à minha imaginação de avô. Nesse fundir de fortes emoções, eu pai, avô, avô, pai... Posterguei  e ainda agora, adio, abjuro, denego. Me perco sem saber como não ser Feliz e Realizado. De fato, sou realizado e feliz. Na verdade, embora prosperamente entrelaçado e irmanado a um Ser Superior que me vigia dia e noite, confesso, NUNCA PODEREI SER EU, COMPLETAMENTE, SEM ESSE AMOR EM MIM…
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Vocabulário (Dicionário Houaiss):
Alacridade – grande alegria, animação intensa; vivacidade.
Anfêmero – cotidiano, diário.
Anfigúrico – desordenado e sem nexo.
Entojada – presunçosa, vaidosa.
Espuriada – ilegítima, adulterada.
Obumbrado – obscuredio, sombreado.
Solmização – solfejo.


Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Silvia Araújo Motta (Cordel Coletivo: As Gigantes Lições do Coronavírus) II


Mote do Poeta-Cordelista Marconi Araújo.
Presidente da Academia de Cordel da Paraíba.

“A lição do corona é tão gigante
que é marcante pra toda geração.”


Cordel Coletivo Virtual nº 7.147

[Quarentena é normal] poeta diz...
Acredite! Lô Borges faz cantar
Quem chegar à janela vai olhar
infinita esperança! Fé bendiz:
Medicina promete ver raiz ...
Pandemia aqui, cresce mais agora;
O Grupo Hermes Pardini, a arte enflora:
Ser humano quer ver o sol brilhante.
“A lição do corona é tão gigante
que é marcante pra toda geração.”
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Cordel Coletivo Virtual nº 7.149


A mudança no mundo vai chegar;
A quarentena vem trazer também
além da dor, saudade de um alguém
que já está em segundo plano,agora.
Sem abraço e sem beijo foi embora.
Vida mais leve muda o foco nato
na elevação do ser, entendo o fato.
Todos somos um; sigo o sextante.
“A lição do corona é tão gigante
que é marcante pra toda geração.”
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Cordel Coletivo Virtual nº 7.150


Precisamos ter paz em nossa vida;
em tudo ver o lado bom que existe.
Deus tem poder de cura, mas persiste:
É preciso cuidado, pois partida
vai depender saber que o mal insiste.
Raiz do Bem encontra seu lugar:
ao meditar o som do mantra, ao dar:
esperança e buscar  força; avante.
“A lição do corona é tão gigante
que é marcante pra toda geração.”
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Cordel Coletivo Virtual nº 7.151

Hospitais de Campanha vem criar
urgente ação que ajuda quer trazer.
Profissionais atendem, fazem crer
que a vocação que salva vida é mar:
a maré alta, aos olhos faz amar ...
Ondas de paz que estão no próprio ser
em Deus  Supremo; acolhe o bem-querer,
mas  o livre-arbítrio põe estrela errante ...
“A lição do corona é tão gigante
que é marcante pra toda geração.”
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Cordel Coletivo Virtual nº 7.152


Os curados são poucos, mas com alta,
voltam ao lar! Festejam, vão cantar .
Tudo enfrentaram! Crise fez chorar.
Família, amigos fazem muita falta.
Agradecer a Deus está na pauta.
A pandemia espalha dor e parte ...
O contágio é que assusta ver encarte.
Contaminados? Vida não garante.
“A lição do corona é tão gigante
que é marcante pra toda geração.”

Fonte:
Recanto das Letras

Malba Tahan (A Lenda do Lago de Szira)



Das profundezas a ti clamo, ó Senhor!
Davi, Salmos, 130, 1.


Nas imensas planícies geladas da Sibéria, muitas léguas distante da pitoresca Korelinsk, existe um lago — Szira-Kul —, reservatório imenso de águas salgadas, no fundo do qual o professor Iezhov, geólogo russo, descobriu as ruínas de antiquíssima cidade.

Como explicar a existência daqueles palácios e templos sepultados nas profundezas do lago de Szira?

Interessante e sugestiva lenda tártara explica a origem das misteriosas ruínas que dormem sob o tranquilo lençol das águas do famoso lago siberiano.

Ouçamos a curiosa fantasia.

Reza a lenda que no vale estreito, que as águas do Szira cobrem atualmente, existia, outrora, próspera e rica cidade habitada pelos tártaros Ouigur — povo guerreiro que chegou a dominar grande parte da Ásia Central. Em suntuoso templo dessa rica metrópole encontrava-se, sob grande laje, sepultado o corpo de Almagor, o último rei Ouigur.

Quis o destino que os mongóis de Gengis Khan invadissem os domínios de Almagor. Atacada pelo poderoso inimigo, a cidade foi facilmente vencida e saqueada. Os bárbaros conquistadores massacraram os homens e escravizaram as mulheres.

No dia em que a cidade caiu em poder dos mongóis, rompeu-se, como por encanto, a pedra que cobria o túmulo do rei Almagor. A sombra imponente desse monarca surgiu e fez-se ouvir, lúgubre, impressionante a sua voz:

— Chorai, ó mulheres tártaras! Chorai lágrimas salgadas de aflição e desespero! Chegou o último dia do povo Ouigur!

Sensibilizadas com as palavras do rei tão querido, que o amor à pátria fizera erguer da tumba, as mulheres puseram-se a chorar. E prantearam suas amarguras, dia e noite, sem descanso. Ordenaram os vencedores que elas dessem fim àquelas lamentações aflitivas. As mulheres de Ouigur, porém, não atenderam à intimação dos tiranos e continuaram com seus gemidos e soluços. Era ordem do rei Almagor, e que faziam elas senão obedecer ao rei?

Os guerreiros de Gengis Khan, exasperados com aquelas lamúrias intermináveis e impelidos por indomável furor sanguinário, degolaram, sem piedade, todas as prisioneiras. As infelizes escravas, porém, mesmo depois de mortas, continuaram a chorar incessantemente, e as suas lágrimas ardentes e abundantes, em gotas e gotas sem fim, formaram caudalosa corrente. Esse rio de prantos invadiu o vale, submergindo jardins, palácios e mesquitas luxuosas.

Surgiu, assim, formado pelas lágrimas das inditosas esposas tártaras, o lago de Szira, em cujo seio dorme, para sempre, a cidade de Almagor.

E ainda hoje (afirmam os menos incrédulos) o viajante que se aproxima, no silêncio da noite, das margens do famoso lago ouve o eco de estranho clamor, longínquo e misterioso, que se perde pelas estepes geladas. É a voz do rei Almagor no seu último e desesperado apelo:

— Chorai, ó mulheres tártaras, chorai!

Asseguram os sábios pesquisadores, é mais fácil, talvez, acreditar nessa lenda do que descobrir, dentro dos ditames, postulados e princípios da ciência, uma hipótese capaz de explicar a origem daquelas ruínas misteriosas que repousam no fundo de um lago gelado em meio da planície siberiana.

Fonte:
Malba Tahan. Novas Lendas Orientais.

Agatha Christie (Resenha de Livros) 9


A MORTE DA SRA. MCGINTY
Mrs. McGinty’s Dead


James Bentley estava desempregado, sem dinheiro e devia dois meses de aluguel à Sra. McGinty. Assim, o assassinato dela parecia um caso muito simples, já que Bentley tinha todos os motivos para cometer o crime. Levado a julgamento, ele é considerado culpado e condenado à morte. Mas o superintendente Spence duvida do veredicto e pede a Hercule Poirot que investigue o crime. Poirot se depara com um assassino impiedoso e sabe que precisa trabalhar depressa para evitar que um homem inocente seja enforcado e, também, para salvar sua própria vida.
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UM PASSE DE MÁGICA
They Do It with Mirrors


Uma atmosfera estranha ronda a velha mansão de Stonygates. Assustada, a proprietária Carrie Louise - uma mulher gentil, rica e bondosa que trabalha com jovens delinquentes e é incapaz de cometer qualquer injustiça - recorre à velha amiga Miss Marple. Três dias depois da chegada da simpática velhinha de St. Mary Mead, um dos funcionários da casa é assassinado, e ela começa a suspeitar que a amiga está sendo lentamente envenenada.
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CEM GRAMAS DE CENTEIO
A Pocket Full of Rye


Na Vila do Tejo tinha acontecido três assassinatos, quando uma velha senhorita - “encantadora, inocente, branca e risonha” - chegou à porta da luxuosa e sinistra mansão. O elegante e eficiente inspetor Neele, encarregado da investigação dos três homicídios, não imaginava que essa doce velhinha, a senhorita Marple, possuía um olfato especial para o crime, um profundo conhecimento das paixões humanas e uma mente extraordinariamente lúcida. Poucos minutos depois da chegada, Marple descobre a relação e a coerência de alguns detalhes, aparentemente absurdos e incongruentes, que o assassino deixou nos corpos das suas vítimas: um punhado de grãos de centeio, num bolsinho da primeira, e um pregador de roupa preso ao nariz da terceira. Baseando-se na letra de uma antiga canção infantil, Marple emprega sua infalível lógica para revelar ao inspetor Neele a identidade de um criminoso aparentemente livre de qualquer suspeita.
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DEPOIS DO FUNERAL
After the Funeral

Considerada desequilibrada e tola pelos parentes. Cora Albernethie tem o estranho costume de sempre acertar em seus inusitados palpites. Se este “hábito” muitas vezes lhe traz pequenos problemas e inimizades, um dia ocorre o pior: ela acaba tendo que enfrentar a própria família quando decide afirmar, após o enterro de seu irmão Richard, que ele foi assassinado. Todas as evidências estão contra esta nova “intuição” de Cora, mas o incansável detetive Hercule Poirot sabe que os fatos mais evidentes podem às vezes funcionar como uma cortina de fumaça, por trás da qual a verdade costuma se esconder.
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UM DESTINO IGNORADO
Destination Unknown


Um a um, os maiores gênios da ciência somem misteriosamente. O último é Thomas Betterton, um jovem pesquisador, responsável pela descoberta de um novo processo de fissão nuclear. Intrigada com o caso, a Scotland Yard convoca o agente Jessop para investigar a motivação por trás dos desaparecimentos. Mas isso não seria suficiente. O serviço secreto inglês também recorre à bela Hilary Craven, enviada para uma missão suicida: assumir a identidade da esposa de Betterton, partindo para um destino ignorado…
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MORTE NA RUA HICKORY
Hickory, Dickory, Dock


Três erros de datilografia numa carta, escrita pela eficiente secretária Srta. Lemon, chamam a atenção do perfeccionista patrão Hercule Poirot. Uma série de pequenos furtos cometidos em uma pensão de estudantes atormentam a supervisora. Dois fatos aparentemente sem ligação são as peças principais de um quebra-cabeça, que vai sendo montado por Poirot. Aos poucos, o jogo vai tomando forma e o detetive percebe que está na trilha de um perigoso assassino.
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A EXTRAVAGÂNCIA DO MORTO
Dead Man’s Folly


Tão perigoso quanto brincar com fogo é brincar de assassinato, uma vez que esse tipo de brincadeira pode se transformar em uma trágica realidade. A personagem Ariadne Oliver, autora de romances policiais, organiza um jogo na mansão do milionário George Sttubs, uma variante do Caça ao Tesouro, então transformado em Caça ao Assassino. Mas, logo, ela tem a intuição de que um assassino de verdade poderia se aproveitar do jogo para matar alguém. Por isso, convida Hercule Poirot para fazer a entrega dos prêmios. Confirmando as suspeitas de Ariadne, uma vítima de mentira torna-se um cadáver de verdade. Quem terá estrangulado a pobre menina? O infalível Poirot acaba encontrando a resposta para esta e outras perguntas, embora não possa impedir que o assassino mate outras vezes. Afinal, como diz o grande detetive, “o assassinato é um hábito”.
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TESTEMUNHA OCULAR DO CRIME
4.50 from Paddington


Os criminosos deveriam tomar cuidado com as velhas senhoras, cujos olhos cansados tudo veem, e cujas mentes, conhecedoras da natureza humana, podem supor as piores intenções por trás da mais inocente aparência. O assassino deste romance cai na besteira de estrangular uma mulher em um trem enquanto é observado discretamente pela velha senhora Macgillicuddy. Mas o azar do estrangulador não termina aí, porque a senhora Macgillicuddy é amiga da solteirona Miss Marple, uma simpática Poirot de saias, tão sagaz quanto o grande detetive belga.
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PUNIÇÃO PARA A INOCÊNCIA
Ordeal by Innocence


Um incidente inesperado impede Jacko Argyle de cumprir pena de prisão perpétua pelo assassinato de sua mãe adotiva, a milionária Rachel Argyle: ele morre de pneumonia na cadeia, poucos meses depois da condenação. Mas algum tempo depois o caso, que já parecia encerrado, sofre uma súbita reviravolta com a chegada de um desconhecido, o estranho Dr. Calgary, que afirma a inocência de Jacko. Quem seria então o culpado? Caberá a Calgary desvendar o mistério, que a própria família Argyle insiste agora em esconder.
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UM GATO ENTRE OS POMBOS
Cat Among the Pigeons


O famoso e mundialmente conhecido colégio Meadowbank, um símbolo da tradição britânica pode ficar com sua reputação arrasada após uma série de assassinatos que poderiam parecer impossíveis aos olhos das professoras e alunas. Três assassinatos inexplicáveis no pavilhão de esportes da instituição. A polícia local não consegue explicar os crimes e nem encontra uma pista que possa ajudar a solucionar o enigma. Até que entra em ação o detetive belga Hercule Poirot. Ele põe as suas “pequenas células cinzentas” para funcionar e segue uma trilha de sangue e espionagem que começa em Ramat, no Oriente Médio, e vai até os muros de Meadowbank.
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A AVENTURA DO PUDIM DE NATAL
The Adventure of the Christmas Pudding


Durante um Natal que prometia ser monótono e aborrecido, Hercule Poirot lança mão de sua inteligência e seu senso de humor para impedir o roubo de um valiosíssimo rubi… Com seu faro inconfundível, Miss Marple investiga o cruel assassinato de uma mulher… No interior de um baú espanhol, um cadáver desafia as autoridades e o talento do genial detetive belga… Estas e outras aventuras integram a nova coletânea de contos que trazem a marca registrada da “velha dama” Agatha Christie, e que os leitores certamente hão de saborear com indiscutível prazer.

A Aventura do Pudim de Natal
Para tentar resolver o caso do roubo de um rubi, Poirot é convidado a passar o Natal em uma casa que celebra a festa da forma tradicional inglesa. No dia de Natal ele recebe um bilhete avisando a não comer o pudim de passas. Analisando o comportamento das pessoas da casa Poirot tenta descobrir onde está o rubi desaparecido e quem o roubou.

O Mistério do Baú Espanhol
Na manhã seguinte à uma reunião informal na casa do Major Rich, seu mordomo William Burgess encontra o Sr. Clayton morto dentro do baú espanhol da sala de estar. O Major Rich é preso por suspeita do assassinato. A Sra Clayton pede a Poirot que descubra quem realmente matou seu marido, pois não acredita na culpa de seu amigo.

O Reprimido
O Sr Reuben Astwell é encontrado morto no seu escritório. Antes de sua morte, ele tinha discutido com seu irmão, sua mulher e seu secretário. Mas quem acaba sendo incriminado é o seu sobrinho, pois o mordomo o ouviu chegar em casa antes da morte do tio. Hercule Poirot é chamado para descobrir se o sobrinho realmente matou o Sr Astwell ou se foi outra pessoa.

O Caso das Amoras Pretas
Durante um jantar com o seu amigo Henry Bonnignton, Hercule Poirot conversa com a garçonete e descobre que um cliente sempre vai ao restaurante nos mesmos dias e horários e sempre pede os mesmos pratos há 10 anos. Quando fica sabendo que o cliente mudou seus hábitos repentinamente fica desconfiado e resolve investigar o motivo da mudança.

O Sonho
Hercule Poirot é chamado à casa do Sr. Benedict Farley para um encontro. Lá ele diz a Poirot que sempre sonha que se mata com um tiro. Pouco tempo depois o sonho se torna realidade e o detetive investiga essa morte para tentar confirmar se foi um suicídio ou se alguém se aproveitou desse sonho para assassinar o Sr. Farley.

A Extravagância de Greenshaw
A estranha moradora de uma casa mais estranha ainda é assassinada com uma flecha no pescoço, e nenhuma das pessoas que moram na casa tiveram a oportunidade de matá-la. Ninguém sabe quem ficará com sua herança. Felizmente Miss Marple está por perto para desvendar esse mistério.

Fonte:
http://users.hotlink.com.br/pmgi/agatha/index.html

domingo, 26 de abril de 2020

Varal de Trovas n. 251


Hélio Serejo (Porque é Triste o Jaburu)


Nessa hora dúbia que ainda é dia e ainda não é noite, uma imensa tristeza se apodera dessa ave esquisita. É o jaburu, num dormitar profundo, nem sequer agita o longo pescoço, parecendo então um empalhado espécime de museu.

Nas grandes noites da cheia, move as asas poderosas e caminha de um lado para outro, lento e meditativo, como a montar guarda naquela lagoa que é, desde há muito tempo, o seu pouso, a sua morada.

Vive sempre só e quando acontece aparecer um intruso abre-lhe guerra e luta ferozmente.

Na hora crepuscular o seu voo nos faz lembrar velhas imagens de contos de fadas.

Quem viajar pelos sertões de Mato Grosso, mormente pela zona sul, há de encontrar à margem dos rios, ou à beira das lagoas, uma ave cinzento escura, pernas grossas, triste e esquisita, que tem, constantemente a cabeça voltada para a terra...

É o jaburu...

Todas as tardes, ali escorado ele está numa perna só, tristonho e cabisbaixo.

Sobre a tristeza mística dessa ave há a seguinte versão:


Mandi, indiozinho guerreiro, quebrando os preceitos sagrados da sua religião, deixou-se um dia apaixonar perdidamente por Ituna a mais formosa mulher da tribo de Morembi.

O pai queria fazê-lo cacique, mas para isso era preciso, conforme dizia o pajé, que o filho não se casasse enquanto não passassem cinco luas, depois de ter recebido do pai o tacape de guerreiro e o diadema de morubixaba. Mas Mandi, que já havia consultado as águas da lagoa sagrada, sabia perfeitamente que a primeira lua muito longe estava ainda. Por isso não podia esperar. Antes perder a soberania de cacique do que ficar sem o amor daquela que Tupã mandara do céu, para alegria de seu coração na terra.

E Mandi não esperou, nem tampouco ouviu as súplicas angustiosas do pai velhinho e doente...

Karin revoltou-se e, num momento de ódio, rogou uma praga terrível contra o filho.

Todas as tardes, inevitavelmente, Mandi ia encontrar-se com Ituna à beira da lagoa sagrada e ali ficavam, horas a fio, a contemplar a majestade de Phoébus, que se ocultava aos poucos, na curva ensanguentada do horizonte.

Mas nunca estavam sós.

Uma ave de plumagem cinzento-escura, pescoço encolhido, descansando sobre uma das pernas, vinha fazer-lhes companhia. E os dois se divertiam a jogar migalhas de frutas adocicadas ou miolo saboroso do "quipiá" para aquela ave mansa e esquisita apanhar com o seu bico grosso e forte. E em pouco tempo eram três que todas as tardes vinham admirar, à beira da lagoa, a sublimidade da luta do dia contra as trevas...

Ficara tão manso o jaburu que vinha tirar-lhes da palma da mão a fruta adocicada ou o miolo saboroso.

Uma tarde, porém, umas nuvens densas e pesadas englobavam-se para os lados do poente, com prenúncio de borrasca iminente.

Na tribo dos Araés ia uma balbúrdia medonha.

Karin, o valente e destemido guerreiro cacique, estava agonizante. As sombras daquela noite sem alvorada começavam a cair lentamente, sobre sua cabeça.

De quando em quando, pavoroso e medonho, um relâmpago rasgava o céu. O pajé, mãos cruzadas, cabeça caída sobre o peito, rezava baixinho. Mulheres e crianças imitavam-no.

Quando percebeu que era chegada a hora, Karin chamou Mandi e entregou-lhe o tacape de guerreiro e o diadema de morubixaba.

Lá fora "coroando", o novo tuchaua, um grupo de Araés dançava ao som de uma música fúnebre...

Mandi beijou a fronte bronzeada do pai e retirou-se. Na frente da palafita, mãos em conchas, sem dar atenção aos que o saudavam, olhou em baixo e viu, por entre o clarão de um relâmpago, o vulto de Ituna que o esperava.

Não pôde conter-se. Atirou para um lados os troféus sagrados que há pouco o pai lhe dera, e desceu a encosta em desabalada carreira. Lá estava Ituna, a formosa virgem que Tupã mandara do céu para a alegria do seu coração na terra.

Mandi contornou-lhe o corpinho delgado com seus braços longos e vigorosos e ia forçá-la para satisfação do seu incontido e lúbrico desejo, quando um raio, rasgando as trevas, veio cair-lhe em plena cabeça, fulminando-o juntamente com a índia virgem. No outro dia já muito tarde, o pajé encontrou-os caídos sobre a relva úmida, os corpos estreitamente unidos, num abraços impressionante — o abraço da morte.

Lá estava também, meio idiotizado, o cismarento jaburu. Nessa mesma tarde um grupo de Araés abria duas tíbis nas terras de Pendejan, o heróico tuchaua, pai de Karin, que ali tombara um dia, em defesa da tribo varado pelas balas dos guerreiros brancos. Uma delas para receber o corpo do bravo cacique; a outra aberta ao lado da lagoa sagrada para sepultar os dois jovens que tombaram fulminados, ante os olhos irados de Tupã, na hora da consumação do pecado...

O jaburu, tristonho e imóvel tudo presenciara sem nada compreender.

E quando a última pá de terra caiu sobre a tíbi dos dois pecadores, ele voou e partiu.

Mas todas as tardes voltava, vinha esperar como de costume que alguém lhe atirasse a fruta adocicada ou o miolo saboroso. Mas em vão. Nunca mais os viu voltar, alegres como dantes!

Dai por diante o jaburu tornou-se mais triste ainda; as penas foram caindo aos poucos e a cabeça vergou sob o peso tremendo da dor... Mas ele não desanimava. Todas as tardes, ali estava descansando sobre uma das pernas, em cima daquele amontoado de terra, os olhos cravados no chão, na esperança de ver surgir, debaixo dos seus pés, aquelas duas almas amigas.

E é por isso que o jaburu é uma ave assim tão triste e esquisita e vive à margem dos rios ou à beira das lagoas, tendo sempre os olhos amargurados voltados para a terra.

Fonte:
Hélio Serejo. in Jornal do Folclore. São Paulo. janeiro de 1960.

Filemon F. Martins (Poemas Escolhidos) VII


A TERRA PROMETIDA

Parti buscando a Terra Prometida,
a Terra da fartura e da bonança
e procurei, sofrendo, pela vida,
a Canaã do Amor e da Esperança.

Transpus montanhas, vales e na lida
meu coração exausto sempre avança.
Jamais fiquei no chão e de vencida
minha busca não para e nem descansa.

Disposto a desvendar qualquer segredo,
venci mares, penhascos sem ter medo
de garranchos, juremas e cipós...

Mas quando chego ao fim desta corrida,
percebo que esta Terra tão querida,
está aqui, Brasil de todos nós!
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A VELHICE


A velhice chegou? Tudo termina?
Assim imaginei logo em seguida,
mas vejo que à distância descortina
uma esperança nova não vivida.

A idade traz canseira que domina,
o corpo fica lento e sem guarida,
não há força capaz, tudo se inclina
e se encaminha para o fim da vida.

Meu cérebro, porem, nunca se abate
e busca a primavera neste embate
que a vida experiente me legou.

E ao constatar que a vida continua
vibrante na paixão que se cultua,
parece que a velhice não chegou!
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A VOZ DO TEMPO

O tempo vai levando cruelmente
vidas, amores, glórias e venturas.
Dissabores espreitam lá na frente
e os sonhos viram pó e desventuras.

Ao procurar motivo que contente
um coração cansado das agruras,
minha oração se eleva docemente
e busca a paz que desce das alturas.

Mas o tempo não para e nem descansa,
não permite sequer uma esperança
que me deixe mudar o itinerário...

Impossível fugir do meu destino
já traçado, talvez, desde menino:
- levar sozinho a cruz do meu calvário!
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BUSCA

Quando a noite chegou apresentando a lua,
uma brisa soprou trazendo o teu perfume,
meu coração buscou, feliz, a imagem tua,
mas não estavas lá, daí o meu queixume.

E desde então, tristonha a vida continua
à procura de luz, buscando novo lume
que possa conduzir a nau que já flutua
no tenebroso mar que a vida se resume.

Eu já perdi o rumo e não sou mais criança
para viver submisso em troca da esperança
de te reencontrar, quem sabe, qualquer hora.

Tarde demais. O tempo passa cruelmente
levando a vida, o amor, a paz, deixando a gente
nesse vazio pesado e triste que apavora!
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CONFIDENTE

Velho mar, meu eterno confidente,
quantas vezes chorei ao confessar:
esta mágoa que fere, inconsequente,
e o tempo que não pode mais voltar.

E me dizes, então, naturalmente;
só o amor é capaz de me curar,
enquanto tuas ondas, mansamente,
os meus pés, com carinho, vem beijar,

Exerces sobre mim grande fascínio,
porque tens sobre todos o domínio
e és tão frio nas tuas mutações.

Ao contrário de ti, eu sofro tanto,
e fico aqui a derramar meu pranto,
onde sepulto as minhas ilusões!
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NA PRAIA

Caminho, sem destino, pela praia,
— por que me fere a solidão assim?
Percebo que à distância o sol desmaia
talvez, para esconder o amor de mim.

O mar, aos prantos, seu furor ensaia
mostrando seu poder quase sem-fim,
mas vou partindo sem que a noite caia
enquanto as ondas fazem seu motim.

Minhas marcas se perdem lá na areia,
porque depois com força a maré-cheia
vem e apaga as pegadas que deixei...

Também a minha sorte me maltrata
como a maré que passa, a vida ingrata
vai apagando tudo o que sonhei!
****************************************

O GRITO DO POETA

No meu viver de cidadão, proscrito,
carrego a dor imensa do Universo.
Meu canto desolado traz, aflito,
as tristezas do mundo controverso.

De desespero clamo, sofro e grito,
tudo em vão, pois o povo está imerso
na inércia poética do mito,
— não compreende mais o que é perverso.

A Esperança se esvai a cada aurora,
o poder corrompido se agiganta,
parece não haver outra saída...

Meu protesto, em verdade, não tem hora,
minha voz, do poeta ainda espanta
os vendilhões da Pátria adormecida!

Fonte:
Filemon Francisco Martins. Anseios do coração. São Paulo: Scortecci, 2011.
Livro enviado pelo poeta.

Monteiro Lobato (O Romance do Chupim)


Ouvíamos no cine a música precursora da primeira fita, quando entrou na sala um curioso casal. Ela, feiarona, na idade em que a natureza começa a recolher uma a uma todas as graças da mocidade, como a lavadeira recolhe as roupas do varal. Tirara-lhe já a frescura da pele e o viço da cor, deixando-lhe em troca as sardas e os primeiros pés de galinha. Tirara-lhe também os flexuosos meneios de corpo, a garridice amável, os tiques todos que, somados, formam essa teia de sedução feminina onde se enreda o homem para proveito multiplicativo da espécie. Quase gorda, as linhas do rosto entravam a perder-se num empaste balofo. Certa pinta da face, mimo que aos dezoito anos inspiraria sonetos, virara verruga, com um sórdido fio de cabelo no píncaro. No nariz amarelecido o pince-nez clássico da professora que se preza. Em matéria de vestuário, suas roupas escuriças, mais atentas à comodidade do que à elegância, denunciavam a transição do “moda” para “fora da moda”.

Ele, bem mais moço, tinha um ar vexado e submisso de “coisa humana”, em singular contraste com o ar mandão da companheira. O estranho do casal residia sobretudo nisso, no ar de cada um, senhoril do lado fraco, servil do lado forte. Inquilino e senhorio; quem manda e quem obedece; quem dá e quem recebe. Ela falava do alto; ele ouvia de baixo e mansinho; caso evidente em que cantava a galinha e o galo chocava os pintos.

Meu amigo apontou o homem com o beiço e murmurou:

— Um chupim.

— Chupim? — repeti interrogativamente, estranhando a palavra que ouvia pela primeira vez.

— Quer dizer, marido de professora. O povo alcunha-os desse modo por analogia com o passarinho-preto que vive à custa do tico-tico. Conheces?

Lembrei-me da cena tão comum em nossos campos do tico-tico a pajear um graúdo filho de chupim, e pus-me a observar o casal com maior interesse, mormente depois de começada a fita, relíssima salgalhada francesa. Já eles não tiravam os olhos da tela, salvo o marido, que para melhor ouvir algum comentário da esposa não se limitava a dar-lhe ouvidos, dava-lhe olhos também.

— Os chupins — prosseguiu o meu cicerone — são homens falhos, ratés da virilidade — a moral, está claro, que a outra lhes é indispensável para o bom desempenho do cargo.

— Cargo?

— Cargo, sim. Eles desempenham o cargo importantíssimo de maridos. Em troca as esposas ganham-lhes a vida e dirigem os negócios do casal, desempenhando todos os papéis normalmente atribuídos aos machos. Tais mulheres apenas fazem aos maridos a concessão suprema de engravidarem por obra e graça deles, já que é impossível a revogação de certas leis naturais.

“Quando a mulher vai à escola, fica o chupim em casa cocando os filhos, arrumando a sala ou mexendo a marmelada. Há sempre para eles uma
recomendaçãozinha à hora da saída para a aula.

“— As vidraças da frente estão muito feias. Você hoje, quando as Moreiras saírem, passe um pano com gesso. (As Moreiras são as vizinhas da frente.)

“O chupim acostuma-se à submissão e acaba usando em casa as saias velhas da mulher, para economia de calças.”

— Para aí, homem de Deus! Do contrário acabas contando a história de um que chegou a dar à luz um crianço!...

A fita chegara ao fim. Surgiu o galo vermelho da Pathé, que boleou o pescoço num coricocó mudo e sumiu-se para dar lugar ao reacender das lâmpadas.

A mulher ergueu-se, espanejou-se e saiu, seguida do chupim solícito. Acompanhamo-los de perto, estudando o caso, e na rua, depois que os perdemos de vista, o meu amigo retomou o assunto.

— Em matéria de chupins conheço um caso interessante. Que segui desde os primórdios.

“Eduardinho Tavares, filho de tio e sobrinha, nascera sem tara aparente, a não ser extrema dubiedade de caráter, uma timidez de menina do tempo em que a timidez nas meninas era moda. Espécie de criatura intermediária entre os dois sexos.

“Em criança brincava de boneca, de preferência às nossas touradas, ao jogo dos ‘caviúnas’, ao ‘pegador’ . Em meninote, enquanto os da sua idade descadeiravam gatos pela rua, lia Paulo e Virgínia à sombra das mangueiras, chorando sentidas lágrimas nos lances lacrimogêneos. Fomos colegas de escola, e lembro-me que um dia lá nos apareceu Eduardo com um pagagaio de miçanga verde, obra sua. Eu, estouvado de marca, ri-me daquilo e escangalhei com a prenda, enquanto o maricas, abrindo uma bocarra de urutau, rompia num choro descompassado, como choram mulheres. Irritado, dei-lhe valentes cachações. Eduardo não reagiu; acovardou-se, humilhou-se, feito o meu carneirinho. Só procurava a mim dentre cem companheiros. Acamaradamo-nos daí por diante, o que não me impediu de o fazer armazém de pancadas. Por qualquer coisinha, uma cacholeta. Ele ria-se, meigo, e cada vez mais me rentava. Pus-lhe o apelido de Maricota. Não se zangou, gostou até, confessando achar mais graça nesse nome do que no seu.

“Hoje eu estudaria esse tipo à luz de Freud, como caso deveras notável; naquele tempo feliz de sadia ingenuidade limitava-me a tirar partido da sua submissão, transformando-o em peteca, em escravo, em coisa de que a gente põe e dispõe.

“Saídos do colégio continuamos camaradas, de modo que pude acompanhá-lo por um bom pedaço da vida afora. Nunca perdeu a timidez donzelesca. Fugia às meninas, sobretudo se eram românticas, ou acentuadamente mulheris — o meu gênero.

“Fez-se misógino.

“Por essas alturas casei-me — casei-me com a moça mais feminina da época, uma romântica escapulida a Escrich, dessas que têm medo às baratas e caem de faniquito se um rato lhes corre pela sala — o meu gênero, enfim.

“Eduardo permaneceu solteiro, sempre às sopas do pai, até que este morreu e lhe deixou de herança uns prédios, mais uns títulos. Sem tino comercial, passaram-lhe a perna, comeram-lhe casas e apólices; quando o pobre rapaz abriu os olhos estava a nenhum. Recorrendo a mim para um bom conselho de arrumação de vida, vi que não dava para coisa nenhuma — e receitei-lhe a professora.

“— Casa-te. Incapaz de ação como és, tua saída única se resume em tirar partido da tua qualidade de macho. Casa com moça rica, ou, então, com mulher trabalhadeira.

“Nada valeu o conselho. Eduardo não tinha jeito para requestar mãos femininas, quer bem aneladas, quer muito calejadas. Embaraçava-o a irredutível timidez.

“Mas o diabo as arma.

“Um belo dia apareceu na terra uma professora nova, mais ou menos ao molde desta de há pouco. Tipo de mulheraça máscula, angulosa, ar enérgico, autoritária. Gostava de discutir política, entendia de cavalos, lia jornais, tinha ideias sobre a seca do Ceará e o saneamento dos sertões. Apesar de bem conservada, andava perto dos quarenta, não fazendo nenhum mistério disso. Se não se casara até então, não é que fosse infensa ao matrimônio: não achara ainda o seu tipo de homem, dizia.

“Pois não é que o raio da pedagoga vê Eduardo e se engraça dele? Examina-o fulminantemente, como quem examina um cavalo; mira-o de alto a baixo, interpela-o, dá-lhe balanço às ideias e aos sentimentos, pesa-lhe o valor monetário, pede-lhe, ou, antes, toma-lhe a mão, leva-o à igreja e casa-o consigo.

“Foi um relâmpago tudo aquilo. Em três tempos namorado, noivado, casado e metido no gineceu, o pobre moço, quando abriu os olhos, estava chupim para todo o sempre.

“Dona Zenóbia sabia avir-se com a vida. Ganhava-a folgadamente. Além da escola particular que dirigia, tinha a juros um pequeno capital que não cessava de crescer, colocado a quatro ou cinco por cento ao mês, sob garantias de toda ordem. Casada, continuou à testa dos negócios; o marido, se aparecia nominalmente nalguma transação, era pró-forma.

“Encaramujado em casa da professora, Eduardinho foi sonegado ao mundo e o mundo acabou esquecendo Eduardinho. Nunca mais o viram na rua, ou nas festas, sem ser pelo braço da mulher, na atitude encolhida daquele chupim do cinema.

“Um filho nasceu-lhes nesse entretempo, e começa aqui o mais engraçado da comédia.

“A tantas, dona Zenóbia deu de gabar as qualidades artísticas do esposo. Eduardo era um grande talento literário, capaz de obras deveras notáveis.

“— Vocês — dizia ela às professoras do colégio — não sabem que tesouro perderam. Eduardo saiu-me uma verdadeira revelação. É dessas criaturas privilegiadas que possuem o dom divino da arte, mas que às vezes passam a vida inteira sem se revelarem a si próprias. Aqueles seus modos, aquela timidez: gênio puro, minhas amigas! Vocês hão de vê-lo um dia aparecer qual meteoro, alcançar a glória e cair como um bólido dentro da Academia. Está escrevendo um romance que é um suquinho! Lindo, lindo!...

“Esse romance levou meses a compor-se. Todos os dias, no quarto de hora de folga que juntava as professoras na saleta de espera, dona Zenóbia vinha com notícias da obra.

“— Está ficando que dá gosto! O capítulo acabado esta manhã parece uma coisa do outro mundo!

“E desfiava o enredo. Era o caso dum moço loucamente apaixonado por uma donzela de cabelos loiros e olhos azuis. A primeira parte do romance ia toda na pintura desse amor, lindo como não havia outro, puro poema em prosa. E dona Zenóbia revirava os olhos, em êxtase.

“As outras professoras acabaram por interessar-se a fundo pelo romance de Eduardo — Núpcias fatais —, o qual virara folhetim vocalizado aos pedacinhos, dia a dia, pela pitoresca dona Zenóbia.

“A notícia correu pela cidade e isso acabou reabilitando Eduardo da sua fama de Zé-faz-formas, pax-vóbis e mais apelidos deprimentes de que é fértil o povo.

“— Como a gente se engana! — diziam; — Parecia uma lesma de pernas, ninguém dava nada por ele e no entanto é um romancista!...

“As professoras davam à trela e o enredo das Núpcias fatais corria de boca em boca pela cidade, os lances de efeito gabados, com citação das melhores tiradas. O Popular, noticiando o aniversário do moço, consagrou-o — ‘festejado homem de letras’.

“Dona Zenóbia sabia dosar a narração de modo a manter as professoras suspensas nos lances mais comoventes. Houve um trecho que as pôs pálidas de espanto. Era assim: Lúcia fora pedida pelo rival de Lauro, o galã infeliz. O pai de Lúcia e toda a família queriam o casamento, porque o monstro era riquíssimo, tinha casa em Paris, iate de recreio e um título de conde prometido pelo papa. Já o triste do Lauro, coitado, para cúmulo de desgraça, perdera uma demanda e estava mais pobre que Jó. As cartas em que ele contava isso a Lúcia eram de chorar! Todos contra o mísero e tudo a favor do monstro...

“O pai fizera uma cena horrível.

“— Antes ver-te morta do que ligada a esse miserável... poeta!

“E a coitadinha, alanceada no mais dolorido do coração, doida de amor, chorava noite e dia, encerrada no fundo de escura cela.

“— Pobre mártir! — exclamavam com um nó na garganta as compassivas professoras. — Por que não há de sair a sorte grande para um desditoso destes? Peça ao seu marido, dona Zenóbia, que lhe faça sair a sorte, sim?

“— Não pode. Prejudicaria o desfecho e, ademais, não é estético — respondeu preciosamente dona Zenóbia.

“E assim corria o tempo.

“O romance era à moda antiga, em vários volumes, sistema Rocambole. Já tinha acontecido o diabo. A moça fugira de casa, raptada em noite de tempestade pelo cavaleiro gentil; mas o dinheiro do monstro vencia tudo: foram presos e encarcerados, ela num convento, ele num calabouço infecto.

“Mas quem pode vencer o amor? O cavaleiro conseguira, iludindo os guardas, abrir um subterrâneo que ia ter ao convento. Que tarefa ingente! Como as professoras deliraram acompanhando a obra desesperada do homem toupeira, a escavar com as unhas em sangue a terra fria!

“Venceu, porém; alcançou o pavimento da cela onde Lúcia chorava de amor e conseguiu falar-lhe. Que lance este, quando Lúcia percebe o estranho murmúrio da voz subterrânea que a chamava! Era a redenção, afinal! “Entendem-se e combinam a fuga. Um barqueiro espera-los-ia em tal lugar, à meia-noite etc. etc.

“Dona Zenóbia parava nos trechos mais empolgantes, deixando a assembleia ora em lágrimas, ora em arroubos de indizível êxtase. Às vezes, quando estava de saia preta, em seus dias de azedume, não adiantava a novela um passo sequer.

“— Hoje, descanso. Eduardo está com um pouco de dor de cabeça e não escreveu uma linha...

“As professoras ficavam pensativas...

“Chegou por fim o dia da fuga, ponto culminante da obra. Dona Zenóbia, perita na arte de armar efeitos, anunciou-o de véspera.

“— É amanhã o grande dia!

“— Mas escapam, dona Zenóbia? — indagou uma torturada do romantismo, com a mão no seio palpitante.

“— Não sei...

“— Pelo amor de Deus, dona Zenóbia! Eu não posso mais! Se o monstro ganha a partida ainda esta vez, diga logo, porque eu tiro umas férias e vou para a roça esquecer este maldito romance que já me está deixando histérica.

“— Paciência, filha! Como posso saber o que lá se passa na imaginação do artista?

“— Mas peça a ele, peça por nós todas, que desta vez não deixe os espiões do monstro descobrirem os fugitivos. Pelo menos agora. Mais tarde vá, mas agora eles precisam de uns meses de recompensa. Arre, que também é demais!...

“No dia seguinte dona Zenóbia apareceu sorridente. As professoras em ânsias, ao vê-la assim, criaram alma nova.

“— Então? — exclamaram palpitantes.

“Dona Zenóbia fez um muxoxo.

“— Esperem lá. A coisa não vai a matar. Eduardo neste momento atinge o ponto culminante da obra. Deixei-o com o olhar em fogo — o fogo da inspiração! —, os cabelos revoltos, a cabeça febril. É o momento supremo do fiat! Toda obra depende deste fecho de abóbada. Como a solução do caso vem das profundas do subconsciente estético, e ainda não viera até a hora de eu sair, pedi-lhe que me comunicasse o resultado pelo telefone. Esperemos...

“As moças puseram os olhos no céu e as mãos no peito.

“— Meu Deus! — disse uma. — Estou com o coração aos pinotes! Se Lauro é preso, se os emboscados o matam... O monstro é capaz de tudo!

“Nisto vibrou a campainha do telefone. Dona Zenóbia piscou para as amigas estarrecidas e foi atender.

“Ficaram todas no ar, imóveis, trocando olhares de interrogação, enquanto no compartimento vizinho dona Zenóbia conversava com o grande artista.

“— Ele não para de chorar, Zenóbia. A meu ver é cólica o que ele tem. Desde que você saiu que é um berro só. Já fiz tudo, dei chá de erva-doce, dei banho quente — nada! Berra que nem um bezerro!

“— Você já cantou o Guarani?

“— Cantei tudo, o Guarani, o ‘Tutu já lá vem’, o ‘Somos da pátria a guarda’... Mas é pior.

“— Deu camomila?

“— A camomila acabou. Quis mandar a negrinha buscar um pacote na botica, mas não achei o dinheiro...

“— Lerdo! E aqueles dois mil-réis de ontem? Não sobrou metade?

“— É que... é que comprei um maço de cigarros...

“— Sempre o maldito vício! Olhe, atrás do espelho, perto da saboneteira azul, está uma pratinha de quinhentos. Mande buscar a camomila, mas no Ferreira, que a do Brandão não presta, é falsificada. Ferva uma pitada numa xícara d’água e dê às colherinhas. Dê também um clister de polvilho. Mudou os paninhos?

“— Três vezes, já.

“— Verde?

“— Verde carregado, como espinafre.

“— Bem. Eu hoje volto mais cedo. Faça o que eu disse, e fique com ele na rede. Cante a ária da Mignon, mas não berre como daquela vez, que assusta o menino. Em surdina ouviu? Olhe: ponha já as fraldas sujas na barrela. Escute: veja se tem água no bebedouro dos pintos. A marmelada? Ora bolas! Deixe isso para amanhã. Bom, até logo!

“Dona Zenóbia largou o fone e voltou às companheiras, que continuavam suspensas.

“— Estes artistas!... — começou ela. — Que é que vocês pensam que Lauro fez?

“— Fugiu! — disse uma.

“— Deixou-se prender! — aventou outra.

“— Suicidou-se! — declarou a terceira.

“— Ninguém adivinha. Lauro rompeu o pavimento, entrou na cela e depois de uma grande cena resolveu fazer-se frade!...

“Foi um oh! geral de desapontamento. Aquele fim imprevisto decepcionara a todas. Protestaram, e dona Zenóbia, condoída, voltou atrás.

“— Estou brincando. Eduardo está hoje com uma dor de cabeça danada e eu o aconselhei a descansar um bocadinho. Ficou para outro dia o fim. Esperemos.

“O romance do chupim tem hoje onze anos. Já é menino de escola. Chamava-se Lauro e, para reabilitação do sexo barbado, puxou o caráter da mãe.”

Fonte:
Monteiro Lobato. Cidades Mortas.

sábado, 25 de abril de 2020

Varal de Trovas n. 250


Auta de Souza (Baú de Trovas)


Ama e serve, sofre e luta…
Sem lâmina que a sublima,
a pedra largada e bruta
nunca seria obra-prima.
- - - - - –

As rosas também cobriram
o lenho santo da Cruz
quando os espinhos cingiram
a cabeça de Jesus!
- - - - - –

Caridade verdadeira,
em todos os seus caminhos,
quando oferece uma rosa
sabe tirar os espinhos.
- - - - - –

Colhi, entre amigos meus,
este conceito profundo:
– Mãe é um sorriso de Deus
nos sofrimentos do mundo.
- - - - - –

Como dois botões pequenos,
duas flores orvalhadas,
teus olhos dormem serenos
sob as pálpebras cansadas.
- - - - - –

Embora desiludida,
alma cansada e sincera,
por muito te doa a vida,
não desanimes!… Espera!
- - - - - -

Eu quero bem às crianças
porque não sabem mentir:
são pombas lindas e mansas,
passam na vida a sorrir.
- - - - - –

Eu amo as minhas lembranças,
minhas saudades e dores,
assim como amo as crianças,
os passarinhos e as flores.
- - - - - -

Mãe de filhinhos dos outros,
mulher de mãos benfazejas…
Diz o Mundo : – “Deus te guarde!…”
Diz o Céu : – “Bendita sejas!…”
- - - - - –

Não acredito que seja
assim como dizem, não...
Ai daquele que deseja
viver sem uma ilusão...
- - - - - –

Não te maldigas, querida,
mesmo se a dor te magoa:
é sempre feliz na vida
a alma que é pura e boa.
- - - - - –

Ó alma triste, chorosa
como uma dália no inverno,
despe da mágoa trevosa
o negro cilício eterno!
- - - - - –

Obsessão de quem ama,
ninguém consegue entendê-la:
parece vaso de lama
encarcerando uma estrela.
- - - - - –

Quando eu morrer, quero um manto
como o de Nossa Senhora,
que seja feito de pranto
do Céu quando nasce a aurora.
- - - - - –

São flores azuis boiando
à tona d'água, de leve,
esses dois olhos beijando
o teu semblante de neve.
- - - - - –

Segue o ideal que te aquece,
serve ao bem, seja onde for;
trabalho que permanece
é o que se faz por amor.
- - - - - –

Se há noites frias, escuras,
também há noites formosas;
há riso nas amarguras,
entre espinhos nascem rosas.
- - - - - –

Tenho a luz dos dias meus
nesta sentença concisa:
coração entregue a Deus
tem tudo de que precisa.

Fontes:
– Aparício Fernandes (org.). Trovadores do Brasil. 2. Volume. RJ: Ed. Minerva,
– Auta de Souza. Psicografia de Francisco Cândido Xavier

Sílvio Romero (Os Três Coroados)


Foi um dia, havia três moças já órfãs de pai e mãe. Uma vez, elas estavam todas três na sacada do seu sobrado, quando viram passar o rei. A mais velha disse: “Se eu me casasse com aquele rei, fazia-lhe uma camisa como ele nunca viu”. A do meio disse: “Se eu me casasse com ele, lhe fazia uma ceroula como ele nunca teve”. A caçula disse: “E eu, se me casasse com ele, paria três coroados”.

O rei ouviu perfeitamente a conversa, e, quando foi no dia seguinte foi ter à casa das moças e lhes disse: “Apareça a moça que disse que se casasse comigo, paria três coroados”. A moça apareceu, e o rei levou-a e casou-se com ela. As irmãs ficaram com muita inveja, mas fingiram não ter.

Quando a moça apareceu grávida, as irmãs meteram-se dentro do palácio, com aparências de ajudá-la em seus trabalhos. Aproximando-se o tempo de dar a rainha à luz, as suas irmãs se ofereceram para servi-la e dispensar a parteira. Chegado o dia, elas muniram-se de um sapo, uma cobra e um gato. Quando nasceram os três coroados, elas os esconderam dentro de uma caixa, e mandaram largar no mar. Apresentaram então ao rei os três bichos, dizendo: “Aí estão os coroados que aquela impostora pariu.” O rei ficou muito desgostoso e mandou enterrar a mulher até aos peitos, perto da escada do palácio, dando ordem a quem por ali passasse para cuspir-lhe no rosto.

Assim se fez. Mas um velho pescador encontrou no mar a caixa, apanhou-a, abriu e encontrou os três meninos ainda vivos e muito lindinhos. Ficou muito alegre, e levou-os para casa para criar. A velha, sua mulher, se desvelou muito no trato das crianças. Quando estas cresceram, a ponto de poderem ir para a escola, foram e passavam sempre pelo palácio do rei.

As cunhadas dele viram, por vezes, passar os meninos e os conheceram. Um dia os chamaram, e se puseram com muitos agrados com eles, e lhes deram de presente três frutas envenenadas, a cada um a sua. Os meninos comeram as frutas, e viraram todos três em pedra. Os velhos ficaram muito aflitos com aquilo, e toda a cidade falou no caso.

Mas a velha, que era adivinha, disse ao marido: “Não tem nada; eu vou à casa do Sol buscar um remédio para as três pedras virarem outra vez em gente”. Partiu montada a cavalo.

Depois de andar muito tempo, encontrou um rio muito grande e bonito. O rio lhe disse: “Ó minha avó, aonde vai? “ A velha respondeu: “Vou à casa do Sol para ele me ensinar que remédio se deve dar a quem virou pedra para tornar a virar gente”. O rio lhe disse: “Pois então pergunte também a ele a razão por que, sendo eu um rio tão bonito, grande e fundo, nunca criei peixe”. A velha seguiu.

Adiante encontrou um pé de fruta muito copado e bonito; mas sem uma só fruta. Ao avistar a velha, a árvore disse: “Aonde vai, minha velhinha?” “Vou à casa do Sol buscar um remédio para gente que virou pedra”. “Pois pergunte a ele a razão por que, sendo eu tão grande, tão verde e tão copada, nunca dei uma só fruta...” A caminhante seguiu.

Depois de andar muito, passou pela casa de três moças, todas três solteiras e já passando da idade de casar. As moças lhe disseram: “Aonde vai, minha avó?” A velha contou aonde ia. Elas lhe pediram para indagar do Sol o motivo por que, sendo elas tão formosas, ainda não tinham casado. A velha saiu e continuou a caminhar.

Ainda depois de muito tempo é que chegou à casa da mãe do Sol. A dona da casa recebeu-a muito bem. Ouviu toda a sua história e encomendas que levava, e escondeu-a, em razão de seu filho não querer estranhos em sua casa, e quando vinha era muito zangado e queimando tudo. Quando o Sol chegou, vinha desesperado e estragando tudo o que achava: “Fum... aqui me fede a sangue real!... aqui me fede a sangue real...” “Não é nada, não, meu filho, é uma galinha que eu matei para nós jantarmos”.

Assim a mãe do Sol o foi enganando, até que ele se aquietou e foi jantar. Na mesa da janta sua mãe lhe perguntou: “Meu filho, um rio muito fundo e largo por que é que não dá peixe?” “É porque nunca matou gente”. Passou-se um pouco de tempo e a velha fez outra pergunta: “E uma árvore muito verde e copada, por que é que não dá fruta?” “Porque tem dinheiro enterrado embaixo.” Pouco tempo depois outra pergunta: “E umas moças bonitas e ricas por que não casam?” “Porque costumam urinar para o lado em que eu nasço”. Deixou passar mais um tempinho e perguntou: “E qual será o remédio para gente que tiver virado pedra?” Aí o Sol enfadou-se e disse: “O que querem dizer hoje estas perguntas?’ A mãe respondeu: “Vivo aqui sozinha, me ponho a imaginar estas tolices”. O Sol foi e respondeu: “O remédio é tirar da minha boca, quando eu estiver comendo, um bocado e botar em cima da pedra”.

A velha, daí a pouco, fingiu um espanto, levou a mão à boca do Sol e tirou o bocado, dizendo: “Olha, meu filho, um cisquinho na comida!” E guardou o bocado. Daí a pedaço a mesma coisa: “Olha um cabelo, meu filho”! E escondeu mais um bocado. Numa terceira vez, ela fez o mesmo e o Sol se levantou aborrecido, falando: “Ora, minha mãe, o seu de comer hoje está muito porco; não quero mais”.

Deitou-se e no dia seguinte foi-se embora para o mundo. Sua mãe foi à velhinha que estava escondida, e lhe contou tudo, dando os três bocados. A velha pôs-se a caminho para trás. Passando por casa das moças, aí dormiu, sem querer dizer a razão por que elas não casavam.

No dia seguinte, bem cedo, ela levantou-se e as moças também. Elas correram logo para o lugar onde costumavam urinar, voltadas para o nascer do sol. A velha as repreendeu dizendo: “É esta a razão de vocês não casarem. Percam este costume de urinar para a banda de onde o sol nasce”. As moças assim fizeram e logo acharam casamento.

A caminhante tomou o seu caminho e foi-se embora a toda pressa. Chegando na fruteira, pôs-se debaixo dela a cavar sem dizer nada; quando puxou um grande caixão, então disse por que a fruteira não dava frutas. O pé de árvore começou logo a carregar que parecia praga. A velha seguiu.

Ao chegar ao rio, ele lhe indagou do seu recado: “Logo lhe digo”; e a velhinha foi passando depressa. Quando se viu bem longe, gritou: “É porque você nunca matou gente”. O rio botou logo uma enchente tão grande, que por um triz não matou a velha. Afinal foi ela ter em casa. Sem mais demora aplicou os três bocados em cima das três pedras, e os meninos se desencantaram.

A notícia destas coisas chegou aos ouvidos do rei. Ele mandou um dia convidar o velho com os três meninos para jantarem em palácio. O velho não quis ir, nem mandar os meninos. O rei o intimou, até que foram os meninos. Mas a velha ensinou aos meninos: “Quando vocês lá chegarem, meus filhinhos, ao passarem pela escada, se ponham de joelhos e tomem a bênção àquela mulher que lá está enterrada parecendo um cadáver, porque é a mãe de vocês. Na janta não queiram ir para a mesa sem que o rei mande desenterrá-la e botar também na mesa. Quando ele der a cada um o seu prato, não comam e deem todos três a ela, que os há de devorar num instante, pois está morta de fome. Aí as duas moças que lá têm, que são tias de vocês, hão de dizer: “Que barriga de monstro que cabe três pratos de uma vez!” A isto vocês respondam tirando os bonés e dizendo: “Não é de admirar que caibam três pratos de comida, quando coube três coroados!” e mostrem ao rei as cabeças.

Assim foi: os meninos executaram fielmente as recomendações da velha. (Todas as coisas se repetiram pela forma indicada pela velha adivinha, com grande surpresa para o rei e desapontamento para as duas infames malfeitoras). Tudo acabado, o rei, que ficou vivendo com sua mulher, que voltou à sua antiga beleza, e os seus filhinhos, em palácio, perguntou-lhes o que queriam que ele fizesse às duas danadas.

Os meninos responderam que “ele mandasse buscar quatro burros bravos e as amarrasse nos rabos.” Assim fizeram, e elas morreram lascadas ao meio.

Fonte:
Sílvio Romero. Contos Populares do Brasil. RJ: José Olympio, 1954.

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Varal de Trovas n. 249


Silmar Böhrer (Lampejos Poéticos) XXVIII


Rachel de Queiroz (Os Mitos da Época)


Fala-se muito em libertação feminina através da modernização dos lares com o uso de uma infinidade de aparelhos, elétricos ou manuais, que reduzem imensamente o tempo outrora gasto nas tarefas indispensáveis à manutenção do lar.

Bem, os aparelhos domésticos ajudam, é claro, e alguns divertem e consolam como a TV. Mas ainda lhes falta muito para serem o milagre que se anuncia por aí, e os fabricantes ainda terão que os aperfeiçoar imenso, até que o alívio por eles proporcionado seja realmente satisfatório.

Todas essas máquinas — de lavar roupa e louça, aspiradores, enceradeiras, liquidificadores batedeiras, churrasqueiras cafeteiras, etc., ainda estão a enorme distância da perfeição cibernética ou de qualquer outra perfeição. São como computadores que exigissem do usuário ficar de lado, completando as contas no lápis.

Vejamos em primeiro lugar todos os eletrodomésticos que lidam com alimentos: a sua performance é rápida e quase sempre eficiente — mas ninguém, nenhum fabricante jamais pensou no problema suscitado pela sua limpeza, infinitamente mais difícil que a das simples tigelas e colheres de pau da cozinha antiga. As máquinas fazem o trabalho, automaticamente, mas não se limpam também automaticamente. Experimente fazer uma maionese num liquidificador — são três minutos.

Mas depois há que desmontar o aparelho, limpar com o dedo (e quase sempre cortar-se) as lâminas e todas as demais peças, uma por uma, banhá-las no detergente, escaldar (para tirar o cheiro), enxugar, armar de novo. As vezes leva mais tempo do que bater a maionese na colher, à moda antiga.

O mesmo se diga da batedeira de bolo, das espremedeiras de suco, do aparelho de wafles, das churrasqueiras; isso sem falar dos confortos mais antigos — a máquina de moer carne, chatíssima de limpar, ou a tragédia que faz muita mãe de família pensar desesperada em abandono do lar, quando se vê diante do seu fogão esmaltado, literalmente coberto de gordura, após o simples preparo de um almoço de bifes com batatas fritas. (E olhe que existe o Nautilus para absorver a gordura, mas também há que limpar o Nautilus, o que não é nenhum doce). A enceradeira — veem-se anúncios de TV onde se mostra a mulher encerando a sala enquanto dança um balé. Mas ninguém fala na prévia limpeza do chão, na retirada da cera velha com Varsol (ou palha de aço!), na esfregação da cera nova... Aspirador também é ótimo — mas há que armar o bicho e, depois, aquela abominável operação que é esvaziar e limpar o saco do pó. Máquina de lavar louça, essa ainda é uma ilusão. Dá mais trabalho lavar louça com ela do que sem ela, é o que dirão todas que a usam. Já a máquina de lavar roupa é o mais aperfeiçoado aparelho do arsenal doméstico. Assim mesmo ainda exige o desagradável manuseio da roupa suja para pesagem e imersão das peças, o trabalho de estender no secador. Sem falar na sequência da tarefa, o passar a ferro, penosíssima ainda, apesar do ferro elétrico.

Resumindo, a automação do trabalho doméstico ainda é um ideal distante. Muitas das máquinas em uso acabam complicando mais do que ajudando. E isso no tempo em que já se mandam homens à Lua!

E depois, há muita gente que diz que mulher vai trabalhar na rua porque não acha mais o que fazer em casa!

Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

Célia Cerqueira Cavalcanti (Baú de Trovas)


A amizade verdadeira,
tem nobreza e galhardia,
pois sabe ser companheira
na tristeza e na alegria.
- - - - - –

A dor, ajuda e consola,
ao pobre dá tua mão,
que bondade é quando a esmola
nos provém do coração.
- - - - - –

Bandeira de minha terra,
tu retratas o Brasil,
a grandeza que se encerra
sob a luz de estrelas mil...
- - - - - –

Da terra à lua, a distância,
pelo astronauta vencida,
que nunca sirva à ganância,
nem à guerra fratricida...
- - - - - –

Ensinemos à criança
o verdadeiro civismo:
nunca lutar por vingança,
ser leal, ter patriotismo.
- - - - - –

Era a lua, antigamente,
fonte só de inspiração...
Hoje, o astronauta, inclemente,
diz que é pedra e solidão…
- - - - - –

Era de paz, tão-somente,
o mundo que Deus criou...
a humanidade, inclemente,
logo a maldade inventou.
- - - - - –

Gosto da trova, é singela
tradução do pensamento;
é pequenina aquarela
retratando um sentimento.
- - - - - -

Humilde seja o trabalho,
mas honesto, que o valor
não vem da forja ou do malho,
mas da alma do lutador…
- - - - - –

Jamais haveria guerra,
se um dia a fraternidade
unisse os povos da terra
na fé, no amor, na bondade.
- - - - - –

Não sei se tenho razão
de ter ciúmes de ti;
confiar desconfiando...
foi contigo que aprendi.
- - - - - –

Na vida, grande tormento,
por vezes terrível mar,
nau perdida é o pensamento
que não sabe onde aportar...
- - - - - –

Nossa infância é madrugada,
juventude é meio-dia;
a velhice, um quase nada
para o fim da nostalgia...
- - - - - –

O lar que tive em criança,
era um farol entre escolhos...
Berço de vida e esperança,
luz que refulge em meus olhos.
- - - - - –

Quando o amor é de verdade,
e puro, sem preconceito,
faz parecer qualidade
até mesmo o que é defeito.
- - - - - –

Que não seja a tua esmola,
vazia de coração.
– A esperança mais consola
do que um pedaço de pão…
- - - - - –

Saudade, tu representas
como se fosses atriz,
repetindo toda a história
do nosso tempo feliz.
- - - - - –

Seja de rico ou de pobre,
a honra é glória, é candor
que do plebeu faz um nobre,
e ao nobre dá mais valor.
- - - - - –

Senhor Deus, tornai unidas
as nações, todos irmãos;
as crianças protegidas,
o trabalho unindo as mãos!...
- - - - - –

Ser avó é, novamente,
ser mãe feliz; é viver,
na ternura do presente,
o passado... é renascer...
- - - - - –

Tão pequenino e, no entanto,
traduz o amor mais profundo!
Que nome existe, mais santo,
do que o teu, mãe, neste mundo?
- - - - - –

Vale mais a lealdade
de calar, tendo razão,
do que triste falsidade
de fingida opinião…
- - - - - –

Vida sem fé não é vida,
é somente escravidão,
é matéria consumida
em sete palmos de chão…
- - - - - –

Viver feliz não é ter
o mundo inteiro na mão;
felicidade é saber
amar, é ter coração.

Fontes:
– Aparício Fernandes. Poetas do Brasil. vol.4.
– Izo Goldman
- Aldhiyb Al'Abyad

Sammis Reachers (O Tempero Colombiano)


Nos ribombares da pandemônica década de 60, meu pai, Mário Pedro da Silva, chegou ao estado do Rio, vindo da doce e estacionária vida em Arapongas, no interior do Paraná. Vinha em busca de glória e fama: sonhava ser ator. Ou cantar no rádio. Ou uma ponte que o levasse à Hollywood. Ou você pensou que a parte carnavalesca de meu nome, “Sammis Reachers Cristence” Silva, veio de uma inspiração superior? Talvez descendente de abnegados missionários ingleses, ou colonos alemães avermelhados pelo sol e pelo solo paranaense? Que tal de Herbert Richers, o falido e antes onipresente empresário da dublagem televisa (“Versão brasileira: Herbert Richers”, lembra?). Veio dos nomes nos créditos finais dos filmes que ele, meu velho jovem pai, amava, na pacatitude da já citada Arapongas, onde o cinema era tudo o que havia, a bacia das almas.

Bem, após alguns meses desavisadamente fustigantes na efervescência da capital, a inadequação de nosso herói mambembe encontrou refrigério inesperado quando ele foi convidado para ver “aquela cidade ali, do outro lado da baía”. Atravessando as águas turvazuis da Guanabara, o jovem paranaense teve uma iluminação ao conhecer a cidade onde eu vim a nascer (epa, spoiler!). A calmaria da Niterói ainda em sua meia idade lhe lembrava de alguma forma o Paraná pacatizado, pacativante, e a paixão assomou aos olhos do aspirante a James Dean.

Em pouco tempo Mario estava de mala e calça boca de sino alugando quarto de pensão em Icaraí, naquela época o bairro (que já era nobre) que reunia o melhor consórcio de aprazibilidade e centralidade.

Estabelecido,  meu pai logo conseguiu emprego na cidade sorriso e pôs-se a fazer amigos. Na própria pensão em que se instalara, havia os mais diferentes tipos.

A tal pensão tinha sua legislação, como é (epa, ao menos era) de praxe em tais repúblicas. Nada de mulheres; nada de cozinhar nos quartos; divisão de quartos? No máximo entre dois homens.

A dona da pensão era o coração pulsante do lugar, e ela mesma uma figura da mais relevante singularidade. Bogotana, filha da Bogotá de nossa vizinha Colômbia, ninguém nunca soube o que ela viera fazer naqueles idos por aqui. A suspeita que liderava as pesquisas era que a agora velha Consuelo, jovem ainda havia se apaixonado por algum cafajeste viajor, que a trouxera para as paragens brasileñas, e aqui a abandonara à própria e mala sorte.

Era ela, a querida de todos na pensão, que proporcionava o momento mágico da vida daqueles senhores, homens e rapazes que ali habitavam, durante o jantar (a pensão servia apenas café da manhã, simplório, e jantar. O almoço cada um tinha que filar ou comprar em outras paragens). A comida, sempre exuberantemente saborosa, mesmo nos dias de maior frugalidade, entorpecia os ânimos e estômagos de todos aqueles que, felizardos, a provassem. Uma cozinha primorosa, cercada como convém de segredos (era terminantemente proibido que enxeridos penetrassem na casa de dona Consuelo durante a elaboração dos pratos) e com doces toques de exotismo era ali praticada; uma cozinha que merecia até estar aberta ao público, e mais, a um público mais seleto do que àquela coletânea de solteiros que se refastelava nas panelas. Solteiros que, cientes da bênção que era sorver aquela cozinha encantadora, segredavam entre si o privilégio que era morar naquele lugar, se por mais nada, ao menos pela comida fulminante. Contrariados, evitavam estender-se em elogios, embora os mesmos fossem algo inevitáveis: temiam que a boa senhora abrisse um restaurante, caso em que certamente faria imediata fortuna, e de uma única e mesma facada lhes fosse surrupiada a estalagem e a boa comida...

Após o repasto, a alegria descia sobre os agregados; as conversas se expandiam. Tímidos passavam a palrar como canários; os já faladores eram então insuflados a animadores de auditório. As cantorias tomavam o ar de torneios, de “Festivais da Canção” onde duelavam-se sorridentes convivas. Havia algo de mágico naquele ambiente, e era sempre após o jantar que aquela magia socializadora ou destimidizadora parecia explodir.

Certa feita o silencioso Abelardo, aprendiz de oculista, e que normalmente mal despachava um “bom dia, boa noite” aos companheiros de pensão, pôs-se a rodopiar em dança, solitário, olhos cerrados, como que arrebatado; seu bailar, aplaudido pelos demais, estendeu-se portão afora da república – e lá foi o Abelardo, antes tímido que só ele, dançarolando pela calçada, ao som de algum acompanhamento musical que só ele ouvia (pois não havia música a tocar), para espanto dos poucos transeuntes daquele trecho.

E o Fernando, policial turrão e engomado, príncipe da empáfia e da arrogância militaresca, que, sempre que tocado pelos benfazejos vapores do jantar, punha-se a pedir perdão aos companheiros por seu comportamento usualmente arrogante. Certa feita receitou, de improviso, um belo poemeto em honra da amizade, declamação que o levou embaraçosamente aos soluços lacrimais.

Mas o efeito mais bizarro daquela felicidade pós-banquetal se dava sobre o Rui, pernambucano cabo da Marinha de Guerra, varonil mulherista e mui cioso de sua elevada posição (cabo, como disse) na hierarquia militar. O brincalhão e pretensamente galanteador marujo, negro de média estatura, peitoral proeminente, belos olhos de um castanho claro que ele alegava serem os terrores do mulheril, quando de barriga cheia e engolfado pelo clima descontraído que se sucedia àqueles jantares, ganhava um brilho diferente no olhar. Primeiro era seu riso, que se alongava; em seguida suas gesticulações passavam a ganhar mais vida, mais curvas; a marcialidade de seus movimentos cambiava para uma leveza quase... quase feminina. E assim, sorrindo largamente até as gargalhadas, traquejando com inesperada malemolência, o Rui, agora levantado de sua cadeira, passava então a apertar e massagear os ombros dos amigos, alisando os cabelos de um aqui, ajeitando a gola de outro ali... O que no princípio inevitavelmente descambou em algumas confusões, mas rapidamente aquela “transformação” foi absorvida pela geleia geral daquele festim diário de pós-expedientes.

O desenlace de nossa historieta teve seu início com o aperto e a correspondente esperteza de meu pai: conhecedor da proibição de cozinhar nos quartos, o jovem paranaense, talvez contaminado pela mítica malandragem carioca, resolveu transgredir a lei em nome da economia: conseguindo um pequeno fogareiro de um bocal, movido à prosaico querosene, passou a cozinhar pequenas porções de macarrão ou outras basicalidades dentro do quarto; para isso, todos os dias na hora do almoço voltava para a pensão a título de descansar justamente o “almoço” que alegara já ter consumido no centro de Niterói...

Em pouco tempo nosso herói, tão inábil na cozinha quanto um cego, passou a ressentir-se de ter que comer seu macarrão ou arroz ou o que fosse sempre maculado pela mais insossa sem-saboria. Já não sabia cozinhar; “mal” acostumado que ali fora a uma cozinha dos deuses, amargava cada colherada de sua própria comida como um condenado.

Um dia o estudante autodidata de inglês, que ainda sonhava em conhecer Hollywood, teve um insight: e se ele conseguisse dar uma espiada na dona Consuelo enquanto ela cozinhava? A velha era irredutível nesse ponto, mas ele poderia bolar algum tipo de burla para conferir como aquela maga temperava suas comidas. Não deveria ser tão difícil. Nosso mais novo malandro já não suportava a tortura de almoçar sola de sapato e jantar manjares e ambrosias...

Um belo dia meu pai saiu um pouco mais cedo do trabalho (nesta época já trabalhava como contínuo na Facit, no centro de Niterói) e dirigiu-se para a pensão. Ali, esgueirou-se pela parte detrás daquele conjunto de quartos, já com um tamborete nas mãos, para dar altura à pequena janela que fundeava a cozinha da velha, e lá se espichou ele para observar qual o segredo dos temperos da dona Consuelo. Observou por um tempo considerável enquanto a velha picava carne para um ensopadinho, cozinhava uma formidável panela de arroz e remexia um feijão que estranhamente não levava alho, mas ficava sempre delicioso. A atenção do malandrete estava concentrada no momento das temperanças, pois ali ele esperava descobrir ao menos algo que pudesse replicar, ainda que porcamente, a fim de mitigar o gosto já intragável de sua comida.

Pendurado e atento em seu tamborete, o jovem viu a idosa estrangeira sacar de dentro de um armário uma chusma de matos diversos. A velhinha pôs-se a picar bem finas algumas folhagens; meu pai estava atento: pôde reconhecer cebolinha, aipo e talvez cardamomo. Mas então a matrona bogotense ou bogotana apanhou um grande pote plástico e dele sacou uma outra erva. A velha espremeu algumas das estranhas folhas nos dedos, e pareceu sorver seu aroma por alguns instantes; depois pôs-se a arrancar pedaços daquelas folhas estreladas e jogar dentro de todas as panelas que tremelicavam no fogão.

O ex-matuto de roça e aprendiz de haute cuisine já havia visto aquela erva fina, mas não fora nas pequenas roças de fundo de quintal naquela terra roxa e fértil do Paraná, nem nas vendas e armazéns, quando sua madrasta lhe mandava ir até lá comprar este ou aquele item; quem lhe mostrara aquele tipo de tempero fora Fernando, o policial ferrabrás, que certa feita exibia numa revista de sua corporação imagens daquela exótica planta, tão em moda naqueles idos da década de 60. O desconcerto da informação, sub-reptícia e algo dura de equalizar, derrubou meu jovem pai estatelado no chão.

Enquanto caia de sua banqueta, num daqueles fenômenos de slow motion que gostam de acontecer nos momentos dramáticos de nossas vidas, o jovem cinéfilo paranaense revira em flashback toda aquela espalhafatosa alegria pós-pasto; a música, as piadas, o gracejos e traquejos e a felicidade quase mágicas que assomavam a todos os republicanos da pensão de dona Consuelo. O motivo estava agora claro, pensava o magricela enquanto pranchava suas costelas contra alguns pedregulhos do chão.

Sabe-se lá por que cargas d’água (e a que custo, meu Deus, a que custo!), dona Consuelo temperava todos os seus pratos com frescas folhas de maconha...
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Deglutidos os embaraços, o jovem migrante paranaense não pensou uma segunda vez. Reuniu seus vinténs e avançou ainda mais mato adentro. Comprou uma caxanguinha em nossa São Gonçalo, longe dos exóticos temperos colombianos. Bem, nem tão longe assim, mas essa história todos conhecemos...
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Sammis Reachers (São Gonçalo - RJ) é poeta, escritor e editor, autor de sete livros de poesia e dois de contos. Professor de Geografia no tempo que lhe resta – ou vice-versa. Organizador de mais de 30 antologias, edita a Revista Amplitude (revista cristã de literatura e artes) e os blogs Poesia Evangélica (https://poesiaevanglica.blogspot.com/) e Mar Ocidental (https://marocidental.blogspot.com/). Pratica ainda poesia experimental no blog O Poema Sem Fim (https://opoemasemfim.blogspot.com/).

Fonte:
Texto e biografia enviados pelo autor.