quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Cláudio de Cápua (Discurso da Voinha)

Certa noite na década de 70, eu, novato na profissão de jornalista, retornara das Oficinas da Imprensa Alemã, onde fazia bicos de revisor. Já estava prestes a me deitar, quando bateram à porta. Era Gerson Filho e seu irmão Adauto, ambos potiguares radicados em São Paulo desde bebês, e meus amigos de infância.

Gerson informou-me que seu pai, militar aposentado e proprietário do maior jornal de Botucanhanha, havia falecido e gostaria que eu o acompanhasse até o velório.

No velório grande era a movimentação, pois na cidade havia uma base da Aeronáutica, corporação a que o falecido pertencera. Não estavam presentes só militares, mas muitos políticos e representantes da sociedade, uma vez que o jornal era importante na cidade.

O clima, obviamente, era solene e triste. Lá pelas tantas da madrugada, pediu a palavra a sogra do falecido, dona Gervásia, cearense e crente um tanto fanática e também algo destrambelhada:

- Senhor Deus, por Jesus, tenha piedade deste desgraçado, que só deu desgostos para minha pobre filha.

Por Deus, por Jesus, perdoa este infeliz, que nunca desempenhou a paternidade de meus netos, porque sempre foi um pai irresponsável e ausente.

Piedade Pai, para este homem que se passava por Major, quando era apenas um 2o  sargento.

Deus perdoa ele, por ser amante da bebida e da boêmia etc...etc...


A esta altura, a maioria dos presentes estava de olhos arregalados de espanto e uns fazendo força para não rir, inclusive eu.

Foi quando Adauto deu três passos para o lado e falou, entredentes, para o irmão Gerson, com humildade fransciscana:

- Será que não dá pra fazer a voinha parar de esculhambar o papai?!

(Revista Santos Arte e Cultura - Fevereiro 2017)

Fonte:
Cláudio de Cápua. Retalhos de Imprensa. São Paulo: EditorAção, 2020.
Livro enviado pelo escritor.

Silmar Böhrer (Gamela de Versos) 9


Nota:
Zarelho = metediço, travesso, doidivanas.
 
Fonte:
Silmar Bohrer. Gamela de Versos. Caçador/SC: Ed. do Autor, 2004.
Livro enviado pelo autor.

Graça Graúna (Haicais)


1
De alma lavada
percorro os caminhos
A minha aldeia resiste
2
Mais uma viagem:
nesse vai e vem a utopia
me faz andarilha
3
Dias de sol
distendo as velhas asas
meu haicai latino.
4
Em volta da fogueira
memória, história
O mundo se recria
5
Entre o sono e a vigília
o canto da cigarra
inunda o sertão
6
Água, terra, fogo e ar
labirintos do ser
em todos os tempos
7
Tempo de estio
sobre a carcaça do boi
um cão faminto
8
  Apesar dos pesares,
resta-nos sonhar:
a Mãe Terra nos anima
9
Do mar a palavra
a pulsão mais forte:
solidão atávica
10
Frêmito de asas,
e a poesia se alastrando
na minha aldeia é assim
11
      Tarde novembreira:
o ipê-rosa anuncia
a chegada de Nina*
12
No cerrado à tardinha
cantigas de rosa
de mãe pra filha
13
 Tempo de primavera
na casa da serra
o riso de Nina
14
  Branca flor d'água
espelha a face da lua
vitória-régia
15
Em meio a chuva de estrelas
a lua de fogo
desalojou a neblina
16
Uns cavaleiros sonham
mas só sonham só
com a mais-valia
17
O tempo de chegada
transborda o olhar
no tempo de partida
18
Os sonhos não se foram
Eles retornam
tais e quais ovelhas negras
19
Utopia é cantar
uma trajetória possível:
Pindorama*
20
  Dia ensolarado:
no alto-mar de concreto,
barcos de papel
21
Bem-te-vi não vê
o arranha-céu espelhado:
estilhaços voam
22
 Dia de São José;
debulhar a esperança
pra chover no roçado
23
Velho pote de barro;
um coaxar noturno,
cheiro de terra molhada
24
 Folhas de outono
maiores abandonados
nas ruas, nas praças
25
Formiga com asa
é sinal que vem chuva
Fartura na aldeia
26
Esperança não morre:
tem verde brotando
no arubatã* decepado
27
Ipê-amarelo,
sonho de primavera
o sol espelha
28
No muro lilás,
a buganvília roxa:
casa materna
29
No quintal pequeno
um caquizeiro se curva
carregado de pássaros
30
 Pícaros, ícaros:
crias de um homem submerso
Brasil, Brazil, brasis
31
Noctívago dor-em-dor
pouso na árvore do mundo
clandestina
32
Porque és pedra
o que dirá a poesia
sem a tua presença?
33
Dançar o toré
perto da gameleira
entre os encantados
34
Brancos para o infinito
o espantalho subverte
a ferocidade do mundo
35
Todos emigram
Na imensidão do tempo
um ser avuante
- - - - - –
Notas:
Nina: é o nome da minha neta mais nova
Pindorama: em tupi, significa 'terra das palmeiras'
Arubata: significa pau-brasil.

Fonte:
Graça Graúna. Flor da Mata. Belo Horizonte/MG: Penninha Edições, 2014.

Aparecido Raimundo de Souza (Parte Vinte e Quatro) Imprevisto inesperado


(*)Texto integrante do livro Comédias da Vida na Privada.
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APERTEI O BOTÃO E ACIONEI o elevador social. Pelo painel dos andares, percebi que ele estava no sétimo e em descenso. Esperei até que a porta se abrisse no hall principal e ingressei. Meu destino final, o vigésimo. Antes que a porta se fechasse totalmente, uma jovem dos cabelos compridos e um sorriso elegante num rosto encantador chegou correndo.

Segurei o mecanismo no botão de impedir o fechamento, para que ela conseguisse embarcar. Me agradeceu e apertou o décimo sétimo. Porta fechada, nos colocamos à caminho. Algo inusitado ocorreu neste momento. Apesar de termos comprimido de forma correta os botões de nossos andares correspondentes, por algum motivo inexplicável a geringonça passou direito indo finalizar seu itinerário no trigésimo, sem escala.

No topo da torre, resolvemos não abandonar a cabine. Reprogramamos novamente os nossos pisos, e a porta, ato contínuo, se fechou. De novo, na revinda, idêntico fato se repetiu. A cabine desceu direta, como um avião em queda livre, sem se deter no meu andar e no dela, pontofinalizando a nossa viagem, no térreo.

Apesar deste inusitado, não apeamos no saguão. Resolvemos tentar a sorte, clicando de novo o dezessete e o vinte. A porta se fechou e, desta vez, um novo incidente entrou em cena. Em todos os pavimentos, do térreo ao dezesseis, o elevador fez a gentileza de se abrir igual mala velha, sem que ninguém tivesse solicitado.

Fechada a porta no dezesseis, obviamente ele se catrafilaria* no próximo. Qual o quê! Ledo engano. Do dezesseis, ele seguiu direto para o trigésimo. Lá nas alturas, eu e a garota, os rostos além de cansados e descontentes, achamos por bem trocar de cabine. Passamos para o de serviço. Incrivelmente, a mesma história se sucedeu.

O elevador desembestou direto, sem obedecer aos entraves por nós pleiteados. Desta forma, fomos, de novo, rebaixados ao nível inferior e a darmos de nariz com o vestíbulo. Procuramos pelo funcionário, um tal de Gregório, que nos informou estarem ambos os aparelhos funcionando normalmente. Confiantes em sua palavra, reingressamos no social.

Desta feita, entretanto, com o porteiro fazendo a gentileza de apertar os andares nos quais pretendíamos desfrutar do aconchego de nossos lares.  ‘Se não parar no dezessete, nem no vinte, me chamem pelo telefone. De qualquer forma, nem será preciso. Estarei  monitorando vocês pela câmera interna’. Lá fomos nós de novo, prédio acima.

Se estivesse sozinho, qualquer um que ouvisse o meu relato, diria que eu estaria mentindo. Não estava. O bendito dispositivo que trafega sem fazer curvas (seja subindo ou descendo), só poderia estar de gozação com a minha cara e com a da minha companheira de infortúnio. O desgraçado subiu direto, literalmente. Passou pelo dezessete, em seguida pelo vinte, sem obedecer ao nosso comando de nos deixar onde desejávamos.

De novo no trigésimo, à solicitação do porteiro, pelo telefone, convocando que mudássemos para o de serviço. Obedecemos. Dentro dele, regredimos mais uma vez aos pés do átrio, sem lograrmos encerrar o cansaço do dia estafante, onde tínhamos nossos apartamentos. Gregório, desta feita, resolveu nos acompanhar.

Ele mesmo fez questão de calcar o dedo indicador no dezessete, da moradora, seguido do meu vigésimo. Apesar disto, nada mudou nesse ping-pong estranho. O bicho se invocou e subiu com força e direto. Atendendo agora, ao convite do porteiro, não desembarcamos e ele, gentilmente beirou o vigésimo e o décimo sétimo. Conclusão: aportamos como três babacas na portaria, pela terceira vez.

Sentenciamos, eu e a chateada e furiosa  inquilina  romper as nossas necessidades pelas escadas de emergência. Com este pensamento à baila, demos inicio na peregrinação penosa, que demoraria um tempo considerável: ‘A gente vai conversando — disse ela quando passávamos pelo terceiro — e o tempo se esvairá mais rápido’. Concordei, e sem mais delongas, iniciamos a   enervante caminhada. Neste interregno, fiquei sabendo que a linda se chamava Rosana e morava  no 1701 há seis meses.

De degrau em degrau, à medida em que ganhávamos suor e altura, trocávamos impressões, as mais variadas. Falamos de músicas, de filmes, de novelas, de comidas, de nossas vidas e até de política. Gravamos nossos telefones em nossos celulares para contatos futuros, via WhatsApp.

Rosana se formara advogada. Era divorciada e mãe de uma filhinha de seis anos que ficava com a empregada. Prestava serviços jurídicos à uma empresa famosa no mercado de produtos importados. Tinha trinta anos e adorava Fernando Pessoa. Quando me dispunha a falar de mim, quase a galgarmos o nono, um novo imprevisto pintou na nossa suada e prostrante jornada: as escadas estavam bloqueadas.  

____________________
* Catrafilaria - ficaria prisioneiro.
 
Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: Editora MC Guedes, 2020.
Texto enviado pelo autor

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 414

 


Carolina Ramos (A Toalha de Natal)


Depois de cansativos dias de caça intensa a presentes e guloseimas, nesse ir e vir à beira da exaustão, enfrentando supermercados repletos de gente prenhe das mesmas intenções, Yolanda retirou da gaveta aquela toalha de linho, imaculada, que apenas emergia do seu imperturbável sono de doze meses, por ocasião das festas natalinas. Era então estendê-la sobre a mesa, adornada para a ceia do Natal e retirá-la, uma semana depois, findo o almoço do Ano Novo. Muito raramente tornava-se necessário interromper o ciclo, entremeando-o com um mergulho rápido na máquina de lavar roupas, donde a toalha rapidamente voltava, impecável, a reassumir o posto. Na maioria das vezes, bastava uma sacudidela e a fidalguia do linho estava pronta para receber as baixelas e louças especiais, os copos de cristal e os talheres reservados à época — tudo à espera do momento especial de exibir os exageros culinários, doces e iguarias a serem consumidas pela ruidosa família, reunida graças à ternura da data.

Naquela noite, porém, ao desdobrar a toalha, Yolanda não gostou da surpresa. A alvura do linho, magistralmente trabalhado com motivos natalinos, não se apresentava impecável como das outras vezes.

Na verdade, a cada ano, uma nova nodoazinha insignificante vinha somar-se às demais, que resistiam aos esforços das esfregadelas e à moderada ação dos alvejantes, sempre  empregados com muitíssima cautela. Não era difícil disfarçar essas pequeninas imperfeições, inevitáveis, adquiridas no decorrer do tempo. Bastava a oportuna providência de cobri-las, manhosamente, com um prato qualquer ou usar da cumplicidade elegante e insuspeita dos dois majestosos candelabros de prata que, além de iluminar e encantar os olhos, assumiam a nova função de disfarçar senões.

Desta vez, entretanto, era diferente. Como mascarar aquela feia mancha de vinho, fruto da taça partida por ocasião das núpcias da filha, no ano anterior?! Apesar de toda a persistência, a nódoa rosada insistia em derrotar esforços do afã de removê-la. E dizer-se que aquelas bodas — até pareciam mau agouro! — não haviam durado sequer um ano! Em dez meses, tudo consumado; casamento, viagem de núpcias pela Europa, desentendimentos, brigas, separação e divórcio! Dez meses apenas! Gente jovem não atura o que se aturava antigamente! Intolerância maior do que o amor? Ou amor menor do que o mútuo egoísmo? Sabe-se lá! A questão é que a mancha rosada ali estava a estigmatizar a alvura filial da toalha, jogando sombras sobre os brilhos natalinos.

Sem melhor solução, Yolanda mudou de lugar a bandeja de prata, que foi camuflar, satisfatoriamente a nódoa de triste memória.

Um suspiro doído veio-lhe do fundo da alma, traduzido num protesto; — Ah! filha... filha... por que tivera de escolher justamente a véspera do Natal para casar-se?! Um dia tão sublime, agora maculado pelo rompimento!

Desgostosa, empurrou para longe os maus pensamentos. Águas passadas não devem perturbar o fluxo do presente. Más lembranças devem ser enterradas, se possível, definitivamente.

Quanto à toalha, uma boa lavanderia resolveria a questão.

Assim que os ecos do "reveillon" se diluíram, cedendo espaço à euforia das novas esperanças, a toalha festiva veio de volta da lavanderia, outra vez imaculada, alva como alma de criança, passada e levemente engomada, dentro do maior requinte.

Yolanda não resistiu à tentação de comprovar a eficiência da tecnologia humana. Desdobrou cuidadosamente o linho, deslumbrada com o que via. Nem uma ínfima nodoazinha! Nem uma só mácula! Ninguém diria que aquela brancura de lírio já recebera desastroso banho de vinho, em não menos desastrosa noite de festa!

Testemunha das alegrias de tantos natais, a preciosa toalha parecia mais alva do que nunca! Até mesmo os bordados de tons vibrantes, estavam atenuados, o que já era um desperdício.

E foi aí que começou a tragédia: — Como num filme de terror, o linho rompia-se, esgarçado pela pressão dos dedos. A ação, nada criteriosa dos alvejantes, evidenciava-se.

Yolanda não acreditava no que estava acontecendo. A queridíssima toalha de Natal desfazia-se em trapos em suas próprias mãos!

Após o instante de perplexidade, o desapontamento e a raiva transformaram a estima em profundo desapego.

Vilipendiada, a toalha, tão querida, foi atirada ao lixo, sem a menor consideração! Fim de um ciclo tradicional de alegrias, esperanças e anseios. Tudo indelevelmente enrustido na página branca da velha toalha, agora descartada como imprestável.

Naquela mesma noite de janeiro, sem sinos, sem quitutes, sem magias natalinas, duas pequeninas mãos, ao vasculharem as latas de lixo adormecidas às portas dos casarões, encontraram a velha toalha rasgada, jogada fora com tanto desamor.

Chovia fino. Embora o verão fosse dono da noite, os braços do garoto pediam calor e aconchego. Aconchego de braços maternos, que desconhecia. Aconchego de calor diferente do calor da febre que o fazia tiritar.

Naquela toalha, tão desprezada quanto ele, o menino embrulhou a fome, embrulhou o corpo mirrado e, aninhado nos braços macios do linho que se esgarçava, dormiu o mais gostoso sono de toda a sua vida!

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
Livro enviado pela autora.

Daniel Maurício (Poética) 6

 

Professor Garcia (Sonetos Avulsos) II


A MÚSICA NO TEMPO

Se a música no tempo é fascinante,
tem porquês, de uma língua natural,
a música, linguagem dominante,
onde quer que ela exista, é sempre igual.

Uma raça qualquer, por mais errante,
escutando uma nota musical,
ela sente o poder alucinante
dessa força sonora, universal.

Quem compôs essa sábia partitura,
teve a glória total dessa ventura,
e escreveu para sempre em seus anais;

Todo o encanto, das auras do infinito,
numa escala, de um jeito tão bonito,
tendo só, sete notas musicais!

(3. lugar na Espanha em 2017)
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BRISAS DE OUTONO


Quando as brisas do outono sopram mansas,
trazem sonhos de amor ao ser humano,
refazendo as perdidas esperanças
e afastando o temor do desengano.

Sou um amante das brisas, das mudanças,
da estação que me faz mudar de plano,
brisas soltas de outono são andanças
que me causam prazer, ano após ano.

Quando, à noite, não vejo os pirilampos,
a tristeza da treva invade os campos
e um cenário de dor, me faz tristonho…

Os murmúrios das folhas pelo chão,
são as vozes do outono, que se vão,
recitando os poemas do meu sonho!

(1. lugar na Argentina em 2017)
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CANTARES


Hoje a tarde morreu sem nostalgia,
na moldura do céu, que linda tela:
Era a noite bebendo a luz do dia
e as estrelas pintando outra aquarela.

A pestana do sol, já não se via,
mas a lua no céu era tão bela...
Que a cortina da noite se escondia,
para a lua brilhar na passarela.

Neste terno cenário, sobre um monte,
vislumbrava Delcy, lá no horizonte,
dando exemplo de tudo que se ufana...

Era a mestra dos Pampas, gargalhando,
sobre as nuvens, sentada, recitando
um dos lindos sonetos de Quintana!

(Homenagem aos 80 anos da poetisa Delcy Canalles – 2011)
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CREPÚSCULO E AURORA

Quando a luz do arrebol rasga a cortina,
e o clarão da manhã, o céu decora,
todo o orvalho respinga da campina
matizando de prata a luz da aurora!

A tristeza do sol se descortina,
ante a tarde que chega, e se apavora;
o crepúsculo triste na retina,
diz que um velho gigante também chora!

Ao nascer chega ungido de esplendor,
traz na luz, esperança, paz e amor,
mas à tarde começa a entristecer;

desse jeito caminha o sol do esteta;
De manhã, é feliz por ser poeta,
e à tardinha, é a luz do entardecer!

(1° lugar em Portugal em 2016)
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GEOMETRIA DO LABOR

Se esta vida é, de fato, uma disputa
de uma guerra sem trégua e, sem medida,
é o trabalho, uma regra de conduta,
que nos leva ao prazer, por toda a vida.

Cada passo é uma marca dessa luta,
pela trilha da estrada percorrida...
Muitos vivem felizes, sem labuta,
e outros morrem na luta mais sofrida.

Há uma regra esquisita e muito estranha,
pois quem muito trabalha, pouco ganha,
mas com o pouco que ganha, também ama,

e eu conheço ricaço e mais ricaço,
que acumula fortuna a cada passo-
e por tudo que tem, ainda reclama!

Fonte:
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) O Parque (quase não) do Ingá

 

A primeira vez em que lá entrei foi em 1967, em companhia do prefeito Luiz de Carvalho. O local era ainda conhecido como “Bosque 1” – um pedacinho da antiga floresta em meio à qual a população pioneira construiu a garbosa urbe onde hoje a gente orgulhosamente mora.

Havia apenas uma trilha rústica, pela qual caminhamos até o miolo da matinha. Durante o percurso, Doutor Luiz foi chamando a atenção para alguns detalhes: o cheiro das plantas, o canto dos bem-te-vis e sabiás, uns macaquinhos saltando de galho em galho. Que pena aquele tesouro todo estar ali desaproveitado. Pior: um lugar tão bonito sujeito a incêndios e depredações, servindo até como esconderijo de malfeitores. Ele gostaria muito de transformar a área num ponto de encontro e recreio. Porém não teve tempo nem recursos. Deixaria o sonho em pauta para ser realizado pelo sucessor.

Por sorte o sucessor foi outro homem de forte sensibilidade e visão de futuro, o Doutor Adriano José Valente, que logo no início do mandato (1969) convidou o Doutor Aníbal Bianchini da Rocha para trocar ideias sobre a urbanização do bosque. Chamou depois os engenheiros e arquitetos da prefeitura e de imediato autorizou a elaboração do projeto.

Aproveitando o valãozinho que passava dentro da reserva, formou-se um lago. Ao lado construiu-se uma gruta, novas trilhas foram abertas, organizou-se um pequeno zoológico e se instalaram os equipamentos necessários. No dia 10 de outubro de 1971, pronto e lindo, o parque foi inaugurado e entregue à comunidade. Um festão. Vieram famílias inteiras de todos os bairros e até das cidades vizinhas. A criançada fez o maior alvoroço. Namorados disputando a vez para passear nos pedalinhos. Era o que faltava em Maringá – um clube do povo. Beleza.

Antes disso, todavia, enquanto se realizavam as obras, um problema provocara longa discussão: a escolha do nome. Estava quase certo que seria Parque Doutor Etelvino de Oliveira, tributo à memória de um médico ilustre e muito querido, que de fato merecia a honra. Mas para o parque se achou que seria mais adequado um nome lírico, telúrico.

Daí que num certo dia esteve na redação da “Folha do Norte” o então vereador e futuro deputado Antônio Facci. Estávamos na sala um grupo de jornalistas. Provoquei o Facci: “Vamos começar uma campanha para dar ao bosque o nome de Parque do Ingá. Você topa se aliar à gente e apresentar o projeto à Câmara?”.

Argumentamos que parques e jardins ganham muito mais charme quando têm poesia no nome – Quinta da Boa Vista, Parque do Ibirapuera... Além disso, seria uma justa e carinhosa homenagem à cabocla Maria do Ingá, inspiradora da canção que batizou a cidade.

Facci, que mais do que político era um poeta, assumiu na hora a causa. Fez um belíssimo discurso na Câmara e aprovou o projeto por unanimidade. Doutor Adriano sancionou feliz da vida. E em ata assim se inscreveu: o nome é Parque do Ingá.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 27-8-2020)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

terça-feira, 20 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 413

 


Rubem Braga (Viúva na Praia)


Ivo viu a uva, eu vi a viúva. Ia passando na praia, vi a viúva, a viúva na praia me fascinou. Deitei-me na areia, fiquei a contemplar a viúva.

0 enterro passara sob a minha janela. O morto eu o conhecera vagamente. No café da esquina, a gente se cumprimentava às vezes, murmurando “bom dia”. Era um homem forte, de cara vermelha. As poucas vezes que o encontrei com a mulher ele não me cumprimentou, fazia que não me via; e eu também. Lembro-me de que uma vez perguntei as horas ao garçom, e foi aquele homem que respondeu, agradeci. Este foi nosso maior diálogo. Só ia à praia aos domingos, mas ia de carro, um “Citroen”, com a mulher, o filho e a barraca, para outra praia mais longe. A mulher ia às vezes à praia com o menino, em frente à minha esquina, mas só no verão. Eu passava de longe. Sabia quem era, que era casada, que talvez me conhecesse de vista. Eu não a olhava de frente.

A morte do homem foi comentada no café. Eu soube, assim, que ele passara muitos meses doente, sofrera muito, morrera muito magro e sem cor. Eu não dera por sua falta, nem soubera de sua doença.

E agora estou deitado na areia, vendo a sua viúva. Deve uma viúva vir à praia? Nossa praia não é nenhuma festa, tem pouca gente. Além disso, vamos supor que ela precise trazer o menino, pois nunca a vi sozinha na praia. E seu maiô é preto. Não que o tenha comprado por luto, já era preto. E ela tem, como sempre, um ar decente. Não olha para ninguém, a não ser para o menino, que deve ter uns dois anos.

Se eu fosse casado, e morresse, gostaria de saber que alguns dias depois minha viúva iria à praia com meu filho — foi isso o que pensei, vendo a viúva. É bem bonita, a viúva. Não é dessas que chamam a atenção. É discreta, de curvas discretas, mas certas. Imagino que deve ter 27 anos, talvez menos, talvez mais, até 30. Os cabelos são bem negros, os olhos são um pouco amendoados, o nariz direito, a boca um pouco dentucinha, só um pouco, a linha do queixo muito nítida.

Ergueu-se, porque, contra suas ordens, o garoto voltou a entrar n’água. Se eu fosse casado, e morresse, talvez ficasse um pouco ressentido ao pensar que, alguns dias depois, um homem — um estranho, que mal conheço de vista, do café — estaria olhando o corpo de minha mulher na praia. Mesmo que olhasse sem impertinência, antes de maneira discreta, como que distraído.

Mas eu não morri, e eu sou o outro homem. E a ideia de que o defunto ficaria ressentido se acaso imaginasse que eu estaria aqui a reparar no corpo de sua viúva, essa ideia me faz achá-lo um tolo, embora, a rigor, eu não possa lhe imputar essa ideia, que é minha. Eu estou vivo, e isso me dá uma grande superioridade sobre ele.

Vivo! Vivo como esse menino que ri, jogando água no corpo da mãe que vai buscá-lo. Vivo como essa mulher que pisa a espuma e agora traz ao colo o garoto já bem crescido. 0 esforço faz-lhe tensos os músculos dos braços e das coxas. É bela assim, marchando com a sua carga querida.

Agora o garoto fica brincando junto à barraca e é ela que vai dar um mergulho rápido, para se limpar da areia. Volta. Não, a viúva não está de luto, a viúva está brilhando de sol, está vestida de água e de luz. Respira fundo o vento do mar, tão diferente daquele ar triste do quarto fechado do doente, em que viveu meses. Vendo seu homem se finar. Vendo-o decair de sua glória de homem fortão de cara vermelha e de seu império de homem da mulher e pai do filho, vendo-o fraco e lamentável, impertinente e lamurioso como um menino, às vezes até ridículo, às vezes até nojento…

Ah, não quero pensar nisso. Respiro também profundamente o ar limpo e livre. Ondas espoucam ao sol. O sol brilha nos cabelos e na curva de ombro da viúva. Ela está sentada, quieta, séria, uma perna estendida, outra em ângulo. 0 sol brilha também em seu joelho. O sol ama a viúva. Eu vejo a viúva.

Fonte:
Rubem Braga. Ai de ti, Copacabana. RJ: Ed. do Autor, 1960.

Arquivo Spina 22 (Tânia Maria Alves)

 


Cecy Barbosa Campos (Cristais Poéticos) IV


AFLIÇÃO

Deparo-me com a página em branco
à minha frente,
pedindo para ser utilizada
e receber a escrita.
Entretanto, as palavras
presas a minha mente
perdem-se num emaranhado
de caminhos confusos
e não conseguem
adquirir vida.
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DESMEMÓRIAS


Tudo passa na vida.
Caminhos sem volta
deixaram marcas na face
e espadas invisíveis
atravessadas no peito.
As mãos — com lentidão,
tentam escrever as lembranças
que se confundem,
interrompidas
por parênteses de tempo.
Perdido o fio da meada
cruzo os braços
e esqueço as palavras.
****************************************

FLUIDEZ


Eu sou a água
que corre em tua direção
disposta a saciar
a tua sede.
Acompanho a tua forma
amoldando-me a ti.
Suavemente fluida
sigo teus contornos
abraçando as margens,
refletindo imagens
no murmúrio tranquilo
de carícias inauditas.
Sem deixar marcas
para onde for,
serei sempre
imprescindível à tua vida.
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INÍCIO E FIM

Venho do barro,
a matéria prima da criação.
A ele retornarei,
filha da terra
que me vai cobrir.
Prova da insignificância
e do nada que somos,
apesar de tentativas vãs
para mostrar importância.
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POESIA


Encontro-me sem trilhas,
perdida em descaminhos
que me levam
a lugar nenhum.
Sigo por veredas perdidas
em meio a florestas ignotas
sem admitir interferências
na intimidade das minhas escolhas.
De repente, por entre galhos,
troncos partidos e folhas,
brilha a luz que transfigura a dor
e inunda o coração
de Poesia.
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SOLUÇÃO


Procuro esconder
o que não quero ver
no fundo dos meus pensamentos
perdidos em turbilhão.
Das tempestades
devastadoras
que anuviaram uma vida,
restam apenas esboços indistintos
permeados de sombras.

Fonte:
Cecy Barbosa Campos. Versos perplexos. Juiz de Fora/MG: Editar Editora Associada, 2019.
Livro enviado pela poetisa.

Malba Tahan (A Fantasia do Xeique)


A mulher louca é alvoroçada, é leviana, e não avalia o mal que pratica.
Davi, 9,13.

Há muito passava da meia-noite. A originalíssima noitada carnavalesca promovida pelo rico e nobre James Dudeney transcorria com um brilho incomparável. Nos quatro salões do palácio, luxuosamente ornamentados, reinava uma atmosfera de estonteante alegria e rara beleza. As orquestras vibravam sem cessar as saltitantes músicas americanas. De quando em vez eu sentia sob os pés, ao caminhar, um verdadeiro tapete de confetes e serpentinas. As fantasias mais custosas e mais exóticas desfilavam diante de meus olhos deslumbrados. Príncipes, rajás magníficos, duquesas com adereços de brilhantes e damas medievais (com seus chapéus vermelhos guarnecidos a ouro) faziam curioso contraste com piratas, espanholas, ciganas (com remendos em requinte de pura seda), camponesas turcas, gladiadores romanos e chineses. Havia ali figuras que evocavam todas as épocas da história e lembravam todos os climas do mundo.

Uma jovem, em esplêndida fantasia de Cleópatra, acercou-se de mim. Trazia os cabelos negros presos por fita prateada; as mangas de seu vestido eram listradas. Sob a gola, também listrada, de sua blusa, rebrilhavam fios de pérolas. Pompeava brincos de fantasia e pulseiras largas de ouro e esmalte. Fazia-se acompanhar, num requinte de luxo, por uma “escrava” de rosto bronzeado que agitava um grande leque de plumas brancas.

— Não danças? — perguntou-me, entreabrindo os lábios num sorriso encantador.

E rematou em tom brejeiro:

— Há pouco tive a impressão de que fugias de mim!

— Receio o ciúme de César! — respondi, tentando um galanteio de sabor histórico.

— Ora, ora — replicou amável, com seu belo e claro sorriso. — Pelo que vejo, estás esquecido das glórias de teu povo. Os árabes, sempre audaciosos e invencíveis, conquistaram e dominaram o Egito.

— Sim — concordei sem hesitar. — Bem sei que os árabes conquistaram o Egito. Mas essa incrível proeza só foi possível num século em que a irresistível Cleópatra não se achava mais no trono. Diante da graça e da beleza os árabes não vencem. São vencidos!

Aquele inofensivo diálogo com a rainha do Nilo foi interrompido com a súbita chegada do pecunioso James Dudeney, dono da casa. Ostentava modelar fantasia de Hamlet. A presença do milionário fez com que a sedutora Cleópatra se afastasse, seguida de sua não menos sedutora “escrava”.

— Preciso de teu auxílio, meu amigo — disse-me Dudeney em voz baixa, com ar preocupado. — Tenho a impressão de que se acha em nosso baile de hoje um convidado indesejável. Estou na dúvida. Não sei como agir no caso.

— Aponta-me o folião sobre o qual recaíram as flechas de tuas suspeitas — retorqui.

— É o xeique da faixa azul!

Eu já havia, realmente, atentado na figura soberba e distinta daquele cavalheiro que se exibia, entre os convivas de Dudeney, sob o disfarce de impecáveis trajes orientais. Duas ou três vezes, inspirado pela voz do meu sangue, levara as lentes da minha atenção sobre o pseudo muçulmano.

— Ali está ele — acudiu Dudeney, já impaciente, meio nervoso. — Repara!

O suspeitoso xeque, cujo rosto a máscara preta velava, aproximara-se vagaroso e ficara imóvel ao lado de um grande espelho, os braços cruzados, numa atitude discreta e nobre. Um albornoz de seda clara repousava-lhe comodamente sobre os ombros fortes. Cobria-lhe a cabeça belo kafié (1) branco com listras azuis, preso na altura da testa por finíssimo agal trançado de ouro e prata. Apertava-lhe a cintura uma faixa azul de onde pendia riquíssima espada toda cravejada de marfim.

— Sinto-me indeciso — tornou Dudeney. — Não sei o que devo fazer. Aquele homem tem um ar misterioso. Pretende passar por um árabe autêntico, pois na lista dos convidados é indicado por um nome tipicamente islamita. Repara, meu caro Hank. O nosso hóspede não conversa, só fala o árabe; não bebe; não dança; caminha de um lado para o outro observando com cuidado especial as damas mais formosas. A presença de um aventureiro iria empanar o brilho desta festa. O xeique da faixa azul será um árabe de verdade?

— Ser ou não ser, meu caro Hamlet — respondi, parodiando Shakespeare —, ser ou não ser! Vou apurar a verdade e deslindar todo esse mistério.

Acerquei-me do xeique, saudei-o muito amável e disse-lhe em puro idioma árabe:

— Hal lazem lak chay? (Deseja alguma coisa?)

Respondeu-me em tom delicado com um sorriso fino, exprimindo-se com absoluta correção:

— Mannoum! Ma lazem li chay. (Obrigado! Nada desejo no momento.)

Convidei-o cordialmente a ir comigo até a biblioteca. Ficamos a sós, e o xeique, num gesto de apurada elegância, arrancou a máscara que lhe cobria o rosto. Notei que se tratava de um homem relativamente moço e simpático. E, sem preâmbulos, assim falou:

— Percebi que minha presença nesta reunião carnavalesca despertou suspeita em Mr. Dudeney. E com toda a razão. No meio da brilhante sociedade que aqui se recebe, sob este acolhedor palácio, sou eu o único, digo-o com certa vaidade, que não se acha fantasiado.

— Como assim?

— Nada mais claro. Estes trajes com que me apresento diante dos convivas de Mr. Dudeney são aqueles que eu costumo vestir, nos dias de gala, quando em minha tenda, para além de Dareyn, (2) recebo os xeiques amigos para festejar o aniversário do Profeta ou o término do Ramadã. A roupa que ostento não é, pois, uma fantasia como julgam. É uma realidade.

— O senhor é, então, um xeique de verdade?

— Até onde esse título pode honrar um homem. O meu nome é Hassan el-Bourini ibn-Taufiq. Sou natural de Cham, mas tenho propriedades até em Tell Abou Jezid, onde as tâmaras são menos abundantes do que as lendas.

Interroguei-o mais uma vez com intransitiva curiosidade:

— E veio a esta festa especialmente para admirar a alta sociedade de Londres?

— De forma alguma — discordou, em tom muito grave, o xeique. — A minha presença nesta encantadora reunião tem um fim todo especial, um objetivo bem estranho: descobrir o paradeiro de uma joia roubada. Cabe-me, neste baile, entre serpentinas e canções brejeiras, realizar uma tarefa de caráter rigorosamente policial.

A intempestiva declaração do xeique caiu sobre mim como uma bola de ferro sobre um copo de cristal. Sentia-me despedaçado. Observei muito sério:

— Sou amigo íntimo de Mr. James Dudeney. Peço-lhe, portanto, meu caro xeique Hassan el-Bourini ibn-Taufiq, que esclareça todos os pontos obscuros desse mistério. Asseguro-lhe, sob palavra, que se a justiça do caso estiver do seu lado, o senhor terá completo apoio neste palácio. A joia roubada será apreendida e o criminoso entregue à polícia.

Depois de acender lentamente o seu cigarro, o xeique, ao cabo de breve pausa, narrou-me o seguinte:

— Quando cheguei a esta capital, vindo de Damasco, fui apresentado a uma certa sra. Hopkins, esposa de opulento industrial de Manchester. Vendi a essa senhora, por solicitação de um joalheiro sírio, precioso colar de pérolas no valor de 1.500 libras. Recebi anteontem chamado urgente da sra. Hopkins. Fui procurá-la e encontrei-a enferma em consequência de um abalo cardíaco. Contou-me a boa senhora que o colar, por mim vendido duas semanas antes, havia sido roubado. Perguntei-lhe se havia levado o caso ao conhecimento das autoridades. “Nada fiz nesse sentido”, respondeu-me. “Meu marido, por motivos políticos, quer evitar o escândalo. O colar foi roubado a uma de minhas filhas.” E a sra. Hopkins inquiriu-me aflita: “O senhor seria capaz de reconhecer o colar roubado?” Declarei que poderia apontá-lo no meio de mil. Aquelas pérolas de um colorido especial, azul poente, eram inconfundíveis. Eu as tivera em minhas mãos durante mais de dez anos! “Pois bem”, tornou a sra. Hopkins. “Tenho certeza de que a pessoa autora do furto irá ao baile, no palácio de Mr. Dudeney, com o meu colar. Já fiz com que todas as pessoas de minhas relações fossem avisadas de que me encontro impossibilitada de sair. Obterei para o senhor um convite para essa reunião. É um grande favor que lhe peço. Compareça fantasiado a essa festa e investigue; observe tudo. O meu colar estará presente e será facilmente encontrado!”

O xeique fez ligeira pausa e logo retomou o fio da narrativa:

— Aqui vim, portanto, em atenção ao pedido da sra. Hopkins. Longa e cuidadosa foi a investigação a que procedi. A princípio temi fracassar. Revestido de muita força de ânimo, não me deixei envolver pela onda desta perdulária alegria. Aproximava-me das damas não para admirar a beleza dos olhos, a alvura dos braços bem torneados, mas sim para apurar a legitimidade dos colares e certificar-me do colorido das pérolas.

— E conseguiu descobrir o colar da sra. Hopkins? — indaguei num ímpeto.

— Sim — confirmou serenamente o xeique. — Já o encontrei. Enfeita o gracioso pescoço de uma das jovens mais bem fantasiadas…

— A bela Cleópatra?

— De forma alguma. Essa “egípcia” formosa apresenta-se com três colares, é verdade, mas todos três mais falsos do que os antigos deuses dos faraós. Certifiquei-me de que o colar da sra. Hopkins está com uma graciosa princesa hindu…

— A princesa do turbante cor-de-rosa?

— Precisamente. Deve ser esposa de riquíssimo marajá, pois carrega na testa uma estrela de rubis do Oriente.

A situação devia ser enfrentada com a maior serenidade. A dama (a princesa hindu, do turbante cor-de-rosa), acusada tão gravemente pelo xeique, era a própria esposa de meu amigo James Dudeney, o dono da festa.

Disse, pois, um tanto desconcertado, ao xeque Hassan ibn-Taufiq:

— Esse caso será esclarecido. Precisamos, porém, agir com a máxima delicadeza. Se a sua denúncia tiver o cunho da verdade, o colar será apreendido e, dentro de 24 horas, restituído à sua dona legítima. Peço-lhe mil desculpas.

Redarguiu o xeique:

— Diante de sua declaração, nada mais tenho a dizer. Dou por finda a minha espinhosa missão nessa casa tão alegre e acolhedora. Vou partir imediatamente. Queira apresentar a Mrs. e Mr. Dudeney as minhas homenagens e os meus agradecimentos. Uassalã! (3)

Conduzi o ilustre xeique até a porta do palácio e observei ainda quando ele tomou o carro que o devia levar até o hotel. Ao voltar, esbarrei, na escada, com o animadíssimo Dudeney.

— E então? — interrogou-me, tomando-me pelo braço. — Que pretendia o xeque?

— Nada — respondi, improvisando uma mentira qualquer. — Um sonhador! Queria descobrir aqui, no meio dos nossos convidados, uma odalisca que ele conhecera, casualmente, no palácio do sultão em Istambul!

Dudeney argumentou, agitando os punhos:

— Logo vi! Uma fantasia do xeique!

No dia seguinte, o colar foi entregue à sra. Hopkins e a verdade do caso até hoje ficou em segredo.

O nobre e generoso Dudeney, na sua boa fé, de nada desconfiou. Evitei que ele tivesse insanável desgosto ao saber do roubo do colar. Jamais poderia pairar sobre o meu bom amigo a menor sombra do ato delituoso.

Que culpa pode, realmente, cair sobre um homem digno e honrado que casa com uma jovem cleptomaníaca?

As palavras do sábio encerram a grande verdade: a mulher louca é alvoroçada, é leviana e não avalia o mal que pratica.
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NOTAS

1 kafié – peça de vestuário.
2 Dareyn – pequena povoação, na Síria.
3 Uassalã! – é uma forma de despedida usada pelos árabes.


Fonte:
Malba Tahan. Novas Lendas Orientais. RJ: Record, 2013.

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 412

 


Stanislaw Ponte Preta (O Diário de Muzema)


MUZEMA É UM bairrozinho pequeno e pacato, ali pelas bandas da Barra da Tijuca. Pertence à jurisdição da 32ª Delegacia Distrital e nunca dá bronca. Ou melhor, minto… não dava bronca porque esta que deu agora foi fogo. Diz que o delegado da 32ª estava em sua mesa de soneca tirando uma pestana, feliz com o sossego, quando um bando de perto de 200 pessoas invadiu a delegacia, carregando no ar um coitado, baixote e magrinho, com a cara mais amassada que para-choque de ônibus de subúrbio. E a turba fazia um barulho de acordar prontidão. O delegado, que era o Levi, deu um pulo da cadeira e berrou:

— Chamem a Polícia!!!

Mas aí percebeu que ele mesmo é que era a Polícia e perguntou que diabo era aquilo. Logo todo mundo começou a berrar ao mesmo tempo, o que obrigou o Dr. Levi a berrar mais alto ainda, ordenando:

— Um de cada vez, pombas!

Aí um dos que carregavam o pequenino, ordenou que os companheiros pusessem “aquele rato” no chão (a expressão é lá do cara) e começou a explicar:

— Nós somos moradores do bairro de Muzema, doutor Delegado.

— Sim. E esse pequenino aí?

— Pois é, doutor. Nós somos todos de lá e esse cretino aí também é. Imagine o senhor que ele tem um caderno grosso, que ele chama de “Meu Diário”, onde escreve as maiores sujeiras sobre a gente.

— Como é que é? — estranhou o delegado.

Começou todo mundo a berrar outra vez e, enquanto um guarda dava um copo de água para o diarista arrebentado, o delegado viu-se outra vez a berrar mais alto:

— Calem-se! Um só de cada vez!

Foi aí que deram a palavra pro dono do caderno:

— É o seguinte, doutor: eu tenho um diário. Ando muito lá pela Muzema e ninguém nunca repara em mim. Assim eu posso ver o que os outros fazem sem ser importunado. Mas acontece que eu não sou fofoqueiro. Eu vejo cada coisa de arrepiar. Ainda ontem eu vi a mulher daquele ali (e apontou para um sujeito do grupo) num escurinho da praça, abraçada com aquele lá (e apontou um outro sujeito no canto da delegacia, que, ao ser apontado, encolheu-se todo).

Esta informação bastou para que o assinalado marido partisse pra cima do encolhido e o tumulto se generalizasse. Coitado do delegado, já estava quase rouco, quando conseguiu reimplantar a ordem na 32a DD.

— Prossiga! — Disse pro pequenino.

O pequenino pigarreou e prosseguiu:

— Como eu dizia, eu tenho o meu diário e anoto nele tudo que vejo. Não faço fofoca com ninguém. Tudo que está escrito é verídico.

— Como é o seu nome? Onde você mora?

— Edson Soares. Moro lá mesmo na Muzema. Lote “A”, casa 18.

O Delegado Levi pediu o diário e folheou algumas páginas. Havia coisas mais ou menos assim, escritas nele. “Dona Jurema, do lote “B”, casa 75, estava saindo de madrugada da casa 67 do mesmo lote, onde mora o Sebastião, que tem um caso com ela há muito tempo”. Ou então: “Lilico continua fingindo que é noivo da filha de Dona Júlia, mas se aquilo é noivado eu sou girafa. Como eles mandam brasa, atrás do muro da casa dela”. O Delegado Levi tossiu, embaraçado, e quis saber como é que os personagens daquele diário tinham descoberto o que estava escrito ali.

O pequenino foi sincero:

— Eu dei azar, doutor. Eu esqueci o diário num banco da pracinha e fui jantar. Quando eu voltei estava todo mundo em volta desse garoto aí (e apontou um garoto sorridente, que se divertia com o bafafá), e o miserável do garoto lendo em voz alta:”… o seu Osooo… Osório. Não: Osório. O seu Osório quando sai pra o trai… tralba… para o trabalho, devia levar a muuu… a mulher dele. Ela é muito assada… assada não… muito assanhada”.

— Eu achei o diário dele — falou o garoto, mas calou-se logo ao levar um cascudo de um gordão que devia ser, na certa, o seu Osório.

Já ia saindo onda outra vez. O pessoal do bairro pacato estava mesmo disposto a beber o sangue de Edson Soares, o historiador da localidade. Sanada, todavia, mais esta tentativa o Delegado Levi perguntou ao dono do diário:

— O senhor também é poeta?

— Mais ou menos, né?

— Eu pergunto — esclareceu o delegado — porque este versinho aqui está interessante, e leu no diário: “Para o José Azevedo / O futebol não cola / Pois se for cabecear / Na certa ele fura a bola”.

Pimba… mais uma bolacha premiou a cara do poeta. Ninguém conseguia segurar José Azevedo, residente na Muzema, Lote “J”, casa 77. O pau roncou solto e só quando chegou reforço é que o delegado conseguiu botar em cana uns quatro ou cinco, inclusive o biógrafo muzemense. O resto mandou embora, aconselhando:

— Vocês vejam se não dão margem ao artista de se expandir tanto, em seu futuro diário, tá?

O pessoal prometeu.

Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Febeapá 1: Festival de Besteira que Assola o País. Publicado em 1966.

Luiz Damo (Trovas do Sul) XII


Ande sempre com amigos,
nunca no 'mundo da lua',
cuidado com os perigos
que circulam pela rua.
- - - - - -
Ao deixarmos escorrer
uma lágrima no rosto,
deixamos transparecer
a emoção, talvez desgosto.
- - - - - -
A saudade nunca nasce
dum fato pouco marcante,
mesmo que o tempo não passe
ficam marcas no semblante.
- - - - - –
Bastam poucas estocadas
de otimismo e confiança,
pra fazermos das pancadas
novos gestos de esperança.
- - - - - -
Belo presente, o ofertado,
na mesa do entardecer,
podendo ser resgatado
com juros no alvorecer.
- - - - - -
Com muito amor e coragem
bem saibamos escutar,
de Deus a sua mensagem
que tem a nos relatar.
- - - - - -
Conservemos os valores
e sejamos compassivos,
misto de conservadores
e um pouco de permissivos.
- - - - - -
Em fragmentos, folhas rolam,
pelos ventos enxotadas,
verdes campos se descoram
e esperam novas floradas.
- - - - - -
Iluminai-me, Senhor,
ao cair na enfermidade,
transformando cada dor
numa luz de sanidade.
- - - - - -
Mesmo no maior combate
muitos dizem que amariam,
porém no primeiro embate,
largam tudo e renunciam.
- - - - - -
Nossa primeira impressão
é a que sempre permanece,
gravada no coração
e jamais alguém esquece,
- - - - - -
O bem que não for cuidado
no tempo vai se perder,
se for algo inacabado
também deixará de ser.
- - - - - -
O canarinho amarelo
embora preso ele canta,
mas com seu cantar singelo,
sendo livre mais encanta.
- - - - - -
O incrível "João de Barro"
se orgulha de ser autor,
do projeto menos caro
na lida de construtor.
- - - - - -
O que todo o mundo espera
e ninguém questiona o meio,
é seguir quem mais prospera
mesmo olvidando onde veio.
- - - - - -
Os afoitos, na avenida,
nem olham pra atravessar,
outros, não ligam pra vida
e atravessam sem olhar.
- - - - - -
Os efeitos da omissão
são reflexos do egoísmo,
sinais da má formação,
ou do próprio pessimismo.
- - - - - -
Os passos que foram dados
na direção planejada,
são caminhos desbravados
rumo à meta desejada.
- - - - - -
Para chegar ao terraço
podemos usar a escada,
porém maior é o cansaço
e a subida demorada.
- - - - - -
Pra finalizar um texto
não basta um ponto final,
deve ter forma, contexto
e uma conclusão normal.
- - - - - -
Quando voltamos, dizemos:
um pouco de nós ficou
e aquilo que já fizemos
nos campos frutificou.
- - - - - -
São tantos os animais
que os livros fazem memória.
Dinossauros e outros mais
no cativeiro da história.
- - - - - -
Seja qual for o lugar
que algo aconteceu na vida,
a saudade faz voltar
sempre ao ponto de partida.
- - - - - -
Se melhor quiser chegar
ao destino desejado,
ande sempre devagar,
mas nem tanto demorado!
- - - - - -
Sendo fortes os pilares
que sustentam a mansão,
com certeza, muitos lares,
também têm sustentação.
- - - - - -
Somos fortes o bastante
pra podermos derrotar,
todo mal que a cada instante
vem tentando nos matar.
- - - - - -
Toda vez que o mar bravio
pelas costas nos ataca,
dizemos que "por um fio",
não tragou-nos na ressaca.
- - - - - –
Todo fruto, Deus conhece,
mesmo sem tê-lo almejado,
ao colhê-lo reconhece
quando está deteriorado.

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Livro enviado pelo trovador.

Aparecido Raimundo de Souza (Parte Vinte e Três) Entre Biscoitos e Pirâmides


Texto integrante do livro “Comédias da Vida na Privada”.
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MINHA FILHA BEATRIZ acabou de me dizer que não vai se casar, pelo menos por enquanto. Segundo explicações dela, ‘está fazendo estágio com o namorado’. Enfurecido e colérico, pedi um elucidário mais pormenorizado sobre esta história de estágio:

—  Seguinte, paizinho. A gente, pra tudo na vida, não faz estágio? O senhor mesmo, quando se formou em medicina não fez?

Fui grosso e curto, ou melhor dito: mais curto, que grosso:

—  Não, Beatriz. Fiz residência.

Ao que ela, em seguida, de nariz empinado e sem pestanejar, retrucou:

—  Então, paizinho. Antigamente a gente —, quero dizer, no seu tempo —, os doutores, como o senhor, faziam residência. Hoje, com a chegada da modernidade, a gente faz estágio. Nos seus idos, se amarrava linguiça com cachorro...

— Beatriz, cachorro com linguiça... Por tudo quanto é mais sagrado!

—  Desculpe, paizinho. Foi mal!

Depois deste ‘foi mal’, interrompi bruscamente, começando a espumar pela boca Logo teria um troço:

— Beatriz, está querendo me fazer de besta? Minha mãe, sua avó, escreveu aqui na minha cara que sou otário?

— Não, pai, de fato não. Raciocine comigo. Eu mais o Beto estamos fazendo uma espécie de preliminar... Um treino básico para ver se daremos certo, se as funções que estamos agregando no dia a dia contribuirão para que, num porvir não muito longe, conseguiremos chegar inteiros a uma velhice sadia e sem complicações. Se tudo correr como engendramos, no final da praticagem, reuniremos as famílias, marcaremos a igreja (quero subir no púlpito toda de branco e pleiteando, desde agora, que o senhor me leve até o padre), distribuiremos os convites, faremos uma festinha, e, por fim, trocaremos as alianças...

—  Beatriz, não me venha com esta conversa de cerca Lourenço*. Você está de namorico com este tal de Beto, há mais de dois anos. Podem se considerar, pelo tempo de uso, marido e mulher.

—  Que isto, paizinho. Papo mais careta! Tempo de uso? De jeito nenhum. O Beto tem lá as suas manias —, uma ou duas que odeio —, tipo ficar jogando a noite inteira, no celular, ou cantando, no banheiro, enquanto toma banho, por sinal, umas músicas chatas num inglês meia sola que faria Freddie Mercury perder seus quatro dentes nascidos a mais, dentro da boca numa única mastigada. Se fosse só esta droga de cantar e jogar... Na verdade, o cantoria até que dá para digerir, porém, durante as partidas, ele briga com os parceiros gritando... Gritando não, berrando: ‘vai pro lado, volta, volta, tem um inimigo atrás de você... Imbecil, olho no telhado... Cuidado, Mané, vai levar um tiro...’.

—  Meu Deus, minha filha que horror!

— Bota horror nisto paizinho... Sem mencionar o fato de que o Beto fica de luz acesa e fumando o tempo todo. Aliás, a noite inteira. Fiz a gentileza de marcar num caderninho. O infeliz consome três ou quatro maços de cigarros... Se não mais...

— Larga deste cara. Abandone esta digressão etílica que está consumindo a sua beleza. Manda o infeliz para os quintos do inferno. Você é jovem, tem presença... Logo aparecerá um rapaz direito, étimo* e sem vícios... Um homem que lhe dê valor e, sobretudo, que se eleve a si mesmo e pense à nível de futuro em construir uma família ordeira e na senda da retidão.

— Não posso, paizinho. Estamos, como disse, em fase de estágio. Temos um pré contrato antenupcial de... Como é mesmo a palavra?... Ah, lembrei. Tirocínio probatório.

— Rasga esta porcaria de documento, filha. Larga deste verme, volte para casa. Não eduquei você para viver com um sujeito que não deixa você dormir e, ainda, por ironia dos pecados, fuma e joga a noite toda. Ele, por acaso trabalha?

— Não, paizinho. Desde que começamos a dividir os mesmos espaços, ele, coitado... Tadinho, está esperando exatamente um estágio.

— E você pode me dizer quem mantém o vício deste picareta?

—  ...

— Fala filha, quem mantém a fumacinha viciante deste encosto?

—  Se o senhor não zangar, eu abro o jogo.

— Jogo, que jogo? Não me fala em jogo.

— A pedra, paizinho. Eu quis dizer a pedra.

— Canta logo. Quem mantém o pavio aceso deste canalha?

— Ta legal, paizinho, mas lhe peço, não se irrite. Eu falo. Quem mantém é o senhor.

— Eu? Está me tirando, Beatriz?

— Não senhor.

— Você sabe que eu não fumo, não bebo, nem jogo. De mais a mais, você acabou de me revelar que sou eu quem sustenta o parasita. Onde é que eu entro neste circuito?

— Não é bem no circuito, mas na mesada que o senhor me dá todo mês. É com ela que o Beto compra as carteiras de cigarros.

Olhei bem dentro dos olhos da minha filha com uma suspicácia* apreensiva e desassossegada:

— Fala sério, minha filha. A que ponto você chegou! Vejo a sua jornada como um balde se debatendo, vazio, no fim de um poço cavo e sem água!

— Vou falar sério paizinho e a que ponto ‘esse você chegou...’. Estamos ambos, duros e sem nada. Sequer dispomos de um centavo para fazer um cego de esquina cantar Jesus Cristo, de Roberto Carlos. E é em razão deste pormenor que estou aqui agora e desculpe, este é o ponto em que ‘você chegou’, porque eu o coloquei... Me perdoe, paizinho. A culpa é toda minha.

— Acaso está me dizendo que não veio visitar seu velho pai e tomar o desjejum comigo?

— Sim e não.

— Como, sim e não?!

— Seguinte, paizinho... Eu e o Beto passamos a matar jacarés a beliscões. Um leão na hora do almoço e um tigre na janta.

— Seja mais clara...

— Paizinho, estou lhe pedindo que me adiante a mesada do mês que vem. É com ela que vou tentar despistar a nossa fome!
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GLOSSÁRIO
Cerca Lourenço – Papo fora de esquadro. Diálogo bobo, sem nexo.
Suspicácia – Qualidade do que é suspicaz; suspeita, desconfiança.
Étimo – Verdadeiro.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.
Texto enviado pelo autor.

domingo, 18 de outubro de 2020

Varal de Trovas n. 411

 


Barão de Itararé (Um Plano Genial)

Joaquim Rebolão estava desempregado e lutava com grandes dificuldades para se manter. A sua situação ainda mais se agravava pelo fato de ter que dar assistência a um filho, rapaz inexperiente que também estava no desvio.

Joaquim Rebolão, porém, defendia-se como um autêntico leão da Núbia, neste deserto de homens e ideias.

O seu cérebro, torturado pela miséria, era fértil e brilhante, engendrando planos verdadeiramente geniais, graças aos quais sempre se saía galhardamente das aperturas diárias com que o destino cruel o torturava.

Naquele dia, o seu grude já estava garantido. Recebera convite para um banquete de cerimônia, em homenagem a um alto figurão que estava necessitando de claque. Mas o nosso herói não estava satisfeito, porque não conseguira um convite para o filho.

À hora marcada, porém, Rebolão, acompanhado do rapaz, dirige-se para o salão, onde se celebraria a cerimônia. Antes de penetrar no recinto, diz a seu filho faminto:

— Fica firme aqui na porta um momento, porque preciso dar um jeito a fim de que tu também tomes parte no festim.

Já estavam todos os convidados sentados nos respectivos lugares, na grande mesa em forma de ferradura, quando, ao começar o bródio, Rebolão se levanta e exclama:

— Senhores, em vista da ausência do Sr. Vigário nesta festa, tomo a liberdade de benzer a mesa. Em nome do Padre e do Espírito Santo!

— E o filho? — perguntou-lhe um dos convivas.

— Está na porta — responde prontamente.

E, voltando-se para o rapaz, ordena, autoritário e enérgico:

— Entra de uma vez, menino! Não vês que estes senhores te estão chamando?

(Publicado em 1955)

Fonte:
Máximas e Mínimas do Barão de Itararé.

Isabel Furini (Poema 20) Redes Sociais

 


Contos e Lendas do Mundo (A Melodia e o Acorde)

A melodia e o acorde tinham uma velha rixa entre si.

A melodia falava como quem morde ou arranjava sempre um motivo para fazer gozação com o pobre do acorde. Dizia que o acorde não sabia fazer outra coisa além de um único e grande ruído, que ele não tinha a menor ideia da beleza de um solo melodioso, puro e sem alarido. Não conhecia a vida levada a sério, ao seu mais fundo sentido, vendo o futuro, a partir do passado, passo a passo construído.

O acorde fazia que nem ligava e em altos brados retrucava que aquela velha senhora continuava a viver à moda antiga, com saudades do passado e frases mofadas de intriga. Bem se via que não entendia nada do prazer de viver a vida. Eu não, dizia ele imponente, gosto mesmo é de estar presente, de viver livre cada segundo, de gozar o som inteiro, a voz intensa de todos os instrumentos, gritar que eu existo no mundo. Quero ser eu e horizonte, quero vibrar no clímax da poesia em vez de mofar passados em mirrados e melosos trilhos de melodia.

Era uma briga sem tréguas. Cada um na sua teimosia.

Se a melodia desafinava, o acorde entrava em atonia. Se o acorde falhava, quebrava-se a melodia.

A melodia vivia cantando sozinha, o acorde correndo atrás de novas alegrias. Era a vida que se repetia. Para um era uma monotonia, para outro era sempre a viagem em um grande momento, seguido de quase nenhuma poesia.

A melodia, por seu lado, não conseguia mais esconder sua tristeza. Só entendia de passados. Só sabia de futuros solitários. Era uma vida de sino de campanário. As linhas melódicas de cada instrumento, no seu isolamento, perdiam toda beleza. De grandes momentos, de vibrações de orquestra, de festas de fazer tremer o coreto quando tocavam as furiosas, sempre garbosas, disso ela quase nada entendia.

A melodia buscou durante muito tempo uma saída, até que começou a achar que o acorde tinha lá suas razões para se sentir feliz da vida.

O acorde, cheio de si, entre grandes parvonadas, começou também a descobrir seu lado escuro. Passou a sentir receio de viver grandes noitadas e acabar embriagado, caindo pelas escadas, sem ontem nem futuro. De que serviriam grandes acordes sem amanhã, sem sonhos nem história, viver um momento de glória e o resto da vida vazia? Isso, com certeza, não era o que ele queria.

Nessas praias, ele pensava, bem que podia lhe dar uma mãozinha a velha e previsível melodia. Com a decisão tomada e pronto para nova estrada, o acorde parou para ouvir a flauta da melodia. Procurava entrar em sintonia. Propôs à teimosa senhora criarem juntos uma sinfonia.

O acorde ensinaria à melodia o pulo do gato, a arte de criar encontros para a vida vazia de cada linha da pauta musical. As afilhadas da melodia viviam sempre isoladas e já era hora de acordar para o dia! Em contrapartida, ela, a melodia, ensinaria ao acorde a trilha para ligar à terra, a sua ilha.

A melodia, acostumada a monologar sobre a vida, achou atraente a proposta e respondeu que estava disposta a enfrentar tal ousadia. Finalmente ela passaria a dialogar com uma nova filosofia. O acorde, sem filosofar, poderia pôr os pés na terra e, desta forma, entre eles, acabaria a guerra.

Assim passaram a fazer e a mudança deu-se a olhos vistos. Entre tropeços, foram afinando seus instrumentos.

Para chegar ao céu é preciso subir à Terra. Amor sem prazer é amendoim sem sal. Nasceram, desse tratado, grandes valsas, cantigas, sonatas, cirandas, dobrados, cantatas e até, quem diria, temas de carnaval.

A melodia e o acorde descobriram que tanto paz e guerra como o bem e o mal são invenções do homem, contraditório animal. Viver é a poesia de transformar-se, aprender a criar alegria. Não há segredos na natureza. Quem sabe o segredo esteja em ser natural?

O interessante da história é que, na briga sonora entre melodia e acorde para melhorar seu próprio dia a dia, quem acaba sempre levando vantagem é a tranquila harmonia.

Fonte:
Universo das Fábulas.