quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Versejando 26

 

Varal de Trovas 468

 


Fernando Sabino (Ocasiões de ficar calado)


— Como vai indo seu marido, que há tanto tempo não vejo?

— Meu marido morreu há dois anos, o senhor não sabia?

Cumprida a primeira parte da gafe, saio impávido para a segunda:

— Que coisa terrível, eu não sabia! Me desculpe, mas andei viajando...

E não tendo mais o que dizer, repito para o cavalheiro que a acompanha:

— Terrível, não acha?

Mas ele não pensa assim:

— Não acho não: sou o atual marido dela.

A consciência de que a gafe em geral se compõe de duas partes distintas. Ficar sempre na primeira, jamais tentar consertar. Ao contrário da Loteria Federal, não insista, desista! Eis o que eu, empedernido praticante, tenho a aconselhar aos meus companheiros de infortúnio. A gafe é vertiginosa e se faz anteceder de uma espécie de aviso, antecipa-se na sensação de que caminhamos no ar, como num desenho animado:

— Como foi bom encontrar você! Eu já estava achando esta festa chatíssima. Vamos embora daqui?

— Não posso, sou a dona da casa.

Ou esta outra, mais comum ainda:

— Com aquela mulher ali eu não dormia nem de graça.

— Aquela mulher ali é a minha esposa.

Se o infeliz acrescentar que neste caso dormia sim, não estará apenas caindo de quatro: estará se precipitando no abismo da mais imperdoável inconveniência, que vem a ser a repetição literal de uma velha anedota.

São gafes tradicionais, decorrentes em geral das relações de parentesco ou dos encontros de circunstância, a que os mais insensatos como eu raramente escapam. Não há como resistir ao poder magnético dos assuntos traiçoeiros, que vão espalhando armadilhas a cada passo, e nos levam sempre a falar em corda justamente na casa do enforcado.

Se sabemos que a gafe é irreversível, por que tentamos teimosamente remendá-la, afundando-nos cada vez mais?

É que ela nem ao menos é sincera. Fôssemos autênticos e verazes na convivência, a gafe se desarmaria ao peso de sua própria legitimidade. E deixaria de ser gafe.

Foi essa, pelo menos, a solução encontrada por um amigo meu, vítima também dessa maldita sina, e que ontem me dizia ter-se conformado, passando a praticá-la deliberadamente.

— Você é parente dele? Que horror!

— Morreu? Meus parabéns.

— Não sei como você, tão simpática, pode ter um marido tão chato.

— Fui cair logo ao seu lado neste banquete, mas veja só que azar o meu.

— Aliás, pelo que eu soube, a senhora não é tão velha quanto parece.

— Não aguentei ler até o fim. Ah, foi o senhor que escreveu? E ainda tem coragem de confessar?

Com isso, ele passou a ser considerado homem do mais fino espírito — excêntrico, desconcertante, é verdade — mas de esmerada educação. Apesar de tudo, outro dia recebeu o troco que lhe era devido, funcionando desta vez como receptor de uma gafe, ao dizer a uma jovem, que está escrevendo um romance: a história de um mau-caráter. 
 
E ela, inocentemente:

— Autobiográfico?

Fonte:
Fernando Sabino. Deixa o Alfredo falar. Publicado em 1976.

Professor Garcia (Poemas do Meu Cantar) Trovas – 4 –


A mão do bem que nos rege,
mostra-nos gestos de amor,
até na mão que protege
a inocência de uma flor!
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Amor de mãe, que esplendor,
ó, que divino mister...
Deus pôs a essência do amor
no coração da mulher!
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À noite, o que me conduz,
me acompanha e me rastreia,
é o tênue raio de luz
da solidão da candeia!
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Cantas preso, canarinho
consolando a tua dor!
Eu também canto sozinho
preso às redomas do amor!
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Contra o Sol, não há censura
e, ao bom pintor se assemelha,
quando pinta com ternura
a aurora, de cor vermelha!
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Daquele amor tão risonho
que moldou nosso roteiro...
Guardo o derradeiro sonho
como se fosse o primeiro!
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De volta à tapera antiga,
ouço uma voz que à distância,
era a mesma voz amiga
que eternizou minha infância!
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Feliz, não dá passos vãos
a lua, era seu caminhar,
enquanto, entrelaça as mãos
na barba branca do mar!
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Minha fronte encanecida,
já, pelo tempo, aos borralhos,
põe as auroras da vida
nos meus cabelos grisalhos!
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Não há estação perdida
para quem no amor se esmera!
Quem ama o outono da vida,
vive a eterna primavera!
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No aceno das horas mansas,
vejo na humilde casinha,
da infância, as ricas lembranças
da pobre mansão que eu tinha!
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O amor, em seus embaraços,
e às vezes, com seus desvãos...
Entrelaçou nossos braços
e amordaçou nossas mãos!
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O mar, de fatos e lendas
quando se zanga e se alteia,
se joga em lençóis de rendas
e espicha os braços na areia!
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O poeta, em suas cantigas,
em noites calmas, dá provas
de esquecer queixas antigas,
cantando as mágoas mais novas!
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O poeta e o passarinho,
são parecidos demais:
Quanto mais longe do ninho
mais cantam tristes seus ais!
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O sino desperta o sono
da tarde que silencia,
enquanto a lua sem dono
enche a noite de poesia!
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O tempo é roda fremente
num parque de diversões,
moendo os sonhos da gente
nessa roda de ilusões!
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Que ingratidão tão mesquinha,
que ausência de amor e brilho,
viver a mãe tão sozinha
ao lado do próprio filho!
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Quem contempla o amor, percebe
e, a todo instante, deduz...
Que, em tudo quanto recebe,
há uma centelha de luz!
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Quem crê na fé, na alegria,
não torna seus sonhos vãos.
Pois, cada mão que nos guia,
tem digitais de outras mãos!
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Se a cruz pesar mais, descreve
o que dela se deduz:
Que tudo quanto se deve,
Deus põe nos braços da cruz!
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Se for falta de agasalho,
ou porque não tenho escolha,
a escolha do meu trabalho
se agasalha em qualquer folha!
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Se o amor é cego e reclama,
reclama sem sentir dor;
quando um cego acende a chama,
é um feliz cego de amor!
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Tuas juras, sempre vãs,
compromissos de ninguém,
são velhas juras pagãs
ferindo o orgulho de alguém!
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Vejo que teus velhos braços
mantém a mesma medida,
com que mediste os meus passos
na primavera da vida!

Fonte:
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.

Monteiro Lobato (Toque outra)


— ORA TOQUE, Sinhazinha, toque!

— Mas eu não sei...

— Não faz mal, toque assim mesmo, não se faça de rogada. Aquela valsinha...

A pálida menina geme novos luxinhos faceiros, torce os pingentes da almofada e por fim levanta-se, toda dengues, a desculpar-se.

— Vou errar tudo, não tenho estudado há muitos dias, estou esquecida...

— Não faz mal, toque!...

Sinhazinha senta-se ao piano, folheia a maçaroca de músicas e preguiçosamente abre diante de si uma valsa de Aurélio Cavalcanti. E toca: blem, blem, belelém...

A sala então, que só por aquilo esperava, afunda na conversa. O barulho do piano, abafando o tom geral da palestra, dá azo à delícia dos duos, em que cada um pega de cochicho com quem mais o atende. As matronas, donas de casa, caem no assunto dileto — os criados!

— Ai, os criados! Que gente, prima! Que pestes! Não fazem “isto” sem uma pessoa estar em cima; se vão a compras, roubam no troco... E não se lhes diga uma palavrinha! Pedem a conta e dizem desaforos, os demônios...

As meninas rodeiam o moço, que impa como um galo e desdobra o farnel da banalidade tão cara às mulheres; todas ouvem-no atentas, bebem-lhe os ditos, riem das suas pilhérias, acham-no “levado”.

Titinha diz, sorvendo-o com os olhos:

— Este seu Raul é mesmo da pele!

Num desvão da janela cochicha-se um namoro; a das Dores conta à do Carmo que não gosta mais do Luisinho por umas certas coisas que viu no último baile. Do Carmo comenta, sentenciosa:

— Os homens! Os homens!...

Duas em outro canto riem perdidamente, em casquinadas argentinas. Nisto Sinhazinha acaba a valsa. A sala dá pela coisa, interrompe a tagarelice e pede mais:

— Muito bem, Sinhazinha, muito bem! Toque outra!...

Sinhazinha ataca uma scottish.

A sala retoma os temas interrompidos.

— Mas... como eu ia contando...

Impossível negar as vantagens sociais da música.

Fonte:
Monteiro Lobato. Cidades mortas. s/d.

Estante de Livros (O Calor das Coisas, de Nélida Piñon) – 13. Conto – O Revólver da Paixão

Foco Narrativo

Narrado em 1ª pessoa.
Uso constante do modo imperativo.
 
Espaço
A alma de uma mulher, com sentimentos apaixonados e contraditórios.

Personagens
Narradora – mulher apaixonada e o homem que a deixou. Personagem relata em uma carta seu amor doentio – dominadora. Ela lhe pede que volte e reconhece que não é capaz de controlar seu ciúme.

O conto trata de uma carta em que uma mulher comunica seus sentimentos, ora ameaçadores, ora ternos, contraditórios sempre. Desculpa-se, faz exigências para de novo desculpar-se, de novo exigir. Ela se comunica através da dor que sente de ter sido preterida, de ter perdido aquele a quem ainda ama e sem o qual julga não poder viver.

Conforme o sociólogo italiano Francesco Alberoni (1986), “o enamoramento é um processo no qual a outra pessoa, aquela que encontramos e que nos correspondeu, se nos impõe como o objeto pleno do desejo”, e é esse processo que ocorre com a protagonista do conto “O revólver da paixão”, que é obcecada pelo homem que a abandona. Ainda conforme Alberoni, “a relação de enamoramento é um processo, um achar e perder. A pessoa amada é, ao mesmo tempo, constante e precária, única e diversa, ser empírico e ser ideal”.

De acordo com Roland Barthes (2003), a carta de amor é ao mesmo tempo vazia (codificada) e expressiva (carregada da vontade de significar o desejo). Esse “conto-carta”, que se encaixa nessa descrição de Barthes, começa da seguinte forma: “Eu sei que errei, mas não me deixe agora. Eu protestei contra o que me parecia sua culpa”.

Percebe-se, que ela está ressentida e não aceita o término do relacionamento, não aceita que o homem viva longe de sua presença, de seu amor. Para pedir perdão e se queixar, ela se reporta diretamente ao sujeito amado – talvez por isso a escolha, por parte de Nélida, do gênero carta, que permite a genuína expressão em primeira pessoa, a expressão da voz do sujeito enamorado, que nesse caso é a mulher.

Ao afirmar que se perdeu nas palavras que o homem lhe disse, a narradora também atribui a ele a responsabilidade por seu estado: ela não apenas se enamorou, sozinha, mas foi conquistada; e por isso o amado é, para a mulher, covarde e culpável, por despertar seu amor e abandoná-la. Nesse conto, no qual o amor cortês também se deixa entrever, é a mulher quem assume o papel de vassalo no relacionamento: é quem se submete ao objeto amado, quem está sedenta de (mais) dependência . Assim, a narradora-personagem de “O revólver da paixão” sente medo de perder o homem a quem ama. Isso seria, para ela, a morte:

“A verdade é que a tua perda me ameaça. A tua perda é uma sentença de morte. Morte que não suporto, não permito. Teu dever é amar-me, é continuar na minha cama, na minha vida, na minha memória. Na memória que projeta teus mil retratos tirados ao longo da vida que nos atou com cordas e arame”.

Os sentimentos da protagonista em relação ao amado são, como podemos perceber, paradoxais, tendo em vista que ela o ama ao mesmo tempo em que o odeia e sente raiva dele, deseja sua morte ao mesmo tempo em que tem medo de perder seu amor, além de afirmar que não quer vê-lo, enquanto anseia por sua presença. Esses sentimentos paradoxais são próprios do desejo e do sentimento amorosos, que nos impelem a idealizar o outro e a querê-lo mais que tudo, mesmo sabendo que ele é humano e falho, como nós. Por mais que nos decepcionemos com o ser amado, o amor e o prazer de amar nos levam a ansiar por ele, a perdoar e esquecer os erros e ofensas cometidas contra nós, contanto que essa pessoa esteja disposta a continuar conosco e retribuir o que sentimos por ela. Por isso a narradora pede que o homem volte:

Ah, amado, volte depressa, antes que outras cartas te persigam, e fique a vida difícil para nós

Logo, perto ou longe do ser amado, o sujeito amoroso nunca está completamente satisfeito ou pleno. Ainda assim, a narradora-personagem continua a pedir o retorno do homem:

Volte, porque te espero. E se voltares, que fiques sempre comigo. Não prometo comportar-me a ponto de que vivas o amor com suavidade. [...] Amanhã te escreverei, de novo capitulo ante o meu amor.

Ela admite, então, que cede, transige ante seu amor, pois não tem forças para lutar contra esse sentimento. Como esse amor é mais forte do que ela, não há nada que possa fazer para apagá-lo ou mitigá-lo, por isso a narradora-personagem para de escrever, para que possa apenas sentir o amor, em toda a sua intensidade. Talvez o que ela ame, de fato, não seja o homem, mas o sentimento que ele causa nela, que faz com que se sinta viva, uma vez que o amor pode ser também uma expressão da vida, um modo de sentir e estar no mundo.

Fontes:
– Profa. Sônia Targa. in OBRAS DA UEM- 2012-2013
– Joyce Glenda Barros Amorim. Amor, Poder e Violência em Contos de Nélida Piñon. Dissertação de Mestrado. 88 p. Belo Horizonte:UFMG, 2015. (excertos)

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

José Feldman (Versejando) – 25 –

 


Mario Quintana em Prosa e Verso 13


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Não existe no mundo tanta gente como o número de ordem que me deram no cartão de identidade, que não vou te mostrar porque não poderias lê-lo antes de o ter dividido da direita para a esquerda em grupos de três, para depois o pronunciares cuidadosamente da esquerda para a direita. Sei que o mesmo acontece contigo, mas que te importa, que nos importa isso — antes que um dia nos identifiquem a ferro em brasa, como fazem os estancieiros com o seu gado amado?

Esse número, de quintilhões ou quatrilhões, não me lembro mais, me faz recordar que venho desde o princípio do mundo, lá do fundo das cavernas, depois de pintar nas suas paredes, com uma habilidade hoje perdida, aqueles animais que vejo nos álbuns, milagre de movimento e síntese. Agora sou analítico, expresso-me em símbolos abstratos e preciso da colaboração do leitor para que ele “veja” as minhas imagens escritas.

Olho em redor do bar em que escrevo estas linhas. Aquele homem ali no balcão, caninha após caninha, nem desconfia que se acha conosco desde o início das eras. Pensa que está somente afogando os problemas dele, João Silva... Ele está é bebendo a milenar inquietação do mundo!
* * * * * * * * * * * * * * * *  

AH! ESSAS PRECAUÇÕES...

Para desespero de seus parentes, o velho rei Mitridates, como todo mundo sabe, conseguiu tornar-se imune a todos os venenos... até que um bom tijolaço na cabeça liquidou o assunto.
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HISTÓRIA URBANA

Dona Glorinha lê o convite de enterro de João, cujo sobrenome não declaro aqui, para evitar essas divertidas e constrangedoras explicações e declarações de nome igual, mera coincidência etc. Dona Glorinha conhecera João “no seu tempo” de ambos e depois nunca mais o tinha visto — pois constitui um dos mistérios labirínticos das cidades grandes isso de conhecidos e namorados se perderem definitivamente de vista. Dona Glorinha, pensando isto mesmo com outras palavras, vai ao velório de João, encaminha-se direto a ele, ergue-lhe o lenço da face, exclama: “Mas como ele está bem conservado!”

Fonte:
Mário Quintana. A Vaca e o Hipogrifo. Publicado em 1977, pela editora Garatuja (Porto Alegre).

Álvares de Azevedo (Poemas Escolhidos) – 2 –

I


Para cantar de amor tenros cuidados,
Tomo entre vós, ó montes, o instrumento;
Ouvi pois o meu fúnebre lamento;
Se é, que de compaixão sois animados:

Já vós vistes, que aos ecos magoados
Do trácio Orfeu parava o mesmo vento;
Da lira de Anfião ao doce acento
Se viram os rochedos abalados.        

Bem sei, que de outros gênios o Destino,
Para cingir de Apolo a verde rama,
Lhes influiu na lira estro divino:

O canto, pois, que a minha voz derrama,
Porque ao menos o entoa um peregrino,
Se faz digno entre vós também de fama.                
* * * * * * * * * * * * * * * *  

II

Leia a posteridade, ó pátrio Rio,
Em meus versos teu nome celebrado;
Por que vejas uma hora despertado
O sono vil do esquecimento frio:

Não vês nas tuas margens o sombrio,
Fresco assento de um álamo copado;
Não vês ninfa cantar, pastar o gado
Na tarde clara do calmoso estio.

Turvo banhando as pálidas areias
Nas porções do riquíssimo tesouro
O vasto campo da ambição recreias.

Que de seus raios o planeta louro
Enriquecendo o influxo em tuas veias,
Quanto em chamas fecunda, brota em ouro.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

III

Pastores, que levais ao monte o gado,
Vêde lá como andais por essa serra;
Que para dar contágio a toda a terra,
Basta ver se o meu rosto magoado:

Eu ando (vós me vêdes) tão pesado;
E a pastora infiel, que me faz guerra,
É a mesma, que em seu semblante encerra
A causa de um martírio tão cansado.

Se a quereis conhecer, vinde comigo,
Vereis a formosura, que eu adoro;
Mas não; tanto não sou vosso inimigo:

Deixai, não a vejais; eu vo-lo imploro;
Que se seguir quiserdes, o que eu sigo,
Chorareis, ó pastores, o que eu choro.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

IV

Sou pastor; não te nego; os meus montados
São esses, que aí vês; vivo contente
Ao trazer entre a relva florescente
A doce companhia dos meus gados;

Ali me ouvem os troncos namorados,
Em que se transformou a antiga gente;
Qualquer deles o seu estrago sente;
Como eu sinto também os meus cuidados.

Vós, ó troncos, (lhes digo) que algum dia
Firmes vos contemplastes, e seguros
Nos braços de uma bela companhia;

Consolai-vos comigo, ó troncos duros;
Que eu alegre algum tempo assim me via;
E hoje os tratos de Amor choro perjuros.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

V

Se sou pobre pastor, se não governo
Reinos, nações, províncias, mundo, e gentes;
Se em frio, calma, e chuvas inclementes
Passo o verão, outono, estio, inverno;

Nem por isso trocara o abrigo terno
Desta choça, em que vivo, coas enchentes
Dessa grande fortuna: assaz presentes
Tenho as paixões desse tormento eterno.

Adorar as traições, amar o engano,
Ouvir dos lastimosos o gemido,
Passar aflito o dia, o mês, e o ano;

Seja embora prazer; que a meu ouvido
Soa melhor a voz do desengano,
Que da torpe lisonja o infame ruído.

Fonte:
Álvares de Azevedo. Sonetos. s/d.

Júlia Lopes de Almeida (A Boa Lua)


À Maria Clara da Cunha Santos


O milho caía em granulações de ouro, por entre os dedos rugosos, curtos, cor de fumo seco, do velho Samé.

Os bisnetos riam-se às escâncaras, acompanhando o andar vacilante do bisavô, que mal arrastava os pés doentes sobre os laivos azinhavrados do chão úmido. Chovera, e o campo abria-se por ali fora, nu, só com uns velhos tocos de madeira podre, onde zumbiam abelhas e despontavam róseas orelhas-de-pau pra lhes ouvir a música.

O tio Samé fizera cem anos pelo S. Miguel; dera de enfraquecer, pelos últimos tempos; estava a acabar todos os dias.

Nos seus olhinhos garços já havia a névoa da idiotia, a ausência da alma, que se lhe desprendia do corpo aos pedaços.

Caíam-lhe falripas brancas, ásperas e lisas, como pálida moldura às carquilhas do seu rostinho sumido, de maxilas salientes e pele azeitonada. Todo ele era miúdo e enrugado. O pobre tinha perdido a fé e a memória das coisas, menos do tempo das sementeiras e das colheitas. Contava as luas, sabia de cor o calendário. Não atinava com os nomes dos netos nem da criançada. Confundia todos: já nem sabia o número dos filhos nem a graça da sua defunta mulher, que o fora por longuíssimos anos, nem mesmo saberia responder pelo seu nome – Samuel, que lhe valera o doce apelido de Samé; contudo, aconselhava do seu canto quando se devia cortar a mandioca, bater o arroz, colher o feijão ou a batata, e o seu aviso era ouvido como de sábio, seguido como de Deus!

Inda assim, se morria alguma criança em casa, a mãe, desesperada, ressumava rancor contra esse velho, teimoso em viver e que bem poderia ter-se ido embora, em lugar do filhinho inocente. E nesses dias a comida era-lhe atirada como a um cão intruso, sem direito ao carinho de ninguém.

Com cem anos e cinco meses, ainda o Samé quis ajudar numa sementeira de milho. A lua era boa, grossas carradas haveriam de ranger por ali, atulhadas de espigas maduras, secas, aos montões.

Os netos enchiam a roça de barulho; uma gralhada! Ele media os passos, silencioso; de tempos a tempos entreabria os dedos e os grãos de milho caíam, um a um, como contas de um rosário de ouro partido por um santinho velho, das antigas lendas.

E foi andando assim, devagar, devagar, com as pernas em tesoura, os pés cada vez mais inchados, o olhar embebido no sol, que abria no fundo horizonte um enorme meio círculo vermelho.

Os netos cantavam alto, os bisnetos riam ao longe, ruidosamente; e aquela bulha era para ele como a do vento que passasse, arrastando folhas mortas, varrendo caminhos, abrindo ramadas, carregando sementes e fecundando a terra. Sorria o velhinho para o sol poente como a um amigo velho de quem se despedisse com um afago, quando os pés já dormentes lhe negaram outras passadas e ele caiu para a frente, sobre o peito chato.

Não lhe doeu a queda; a terra estava fofa, a carne amortecida; teve uma tontura, sumiu-se-lhe tudo da lembrança; mas a pouco e pouco voltou-lhe a ação e procurou levantar-se, tateando um velho tronco negro, cavernoso, que ali estava em frente, roído de bichos, mal ligado à terra.

Tio Samé não conseguiu mover-se, mas reparou que irrompia daquela ruína um galhito verde e tenro, macio ao tato, doce à vista, e quedou-se a olhá-lo espantado, com a boca aberta, a baba em fio, as falripas brancas caídas sobre as largas orelhas.

Julgara aquela árvore morta havia muito, e num relance fugitivo invejou as coisas que duram longo tempo, ou que não morrem nunca, como aquele sol vermelho sempre quente e aquele tronco que nas suas fibras despedaçadas ainda encontrava seiva para novas gerações! E o tio Samé beijou a terra, o seu único amor verdadeiro, beijou-a uma, duas, muitas vezes, com os braços abertos, as unhas fincadas no chão.

– Bisavô morreu! gritaram de longe; e vieram buscá-lo ao colo, como a uma criança.

Levaram-no para dentro, afirmando que ele estava no fim. Uma neta fez-lhe a cama de limpo, outra vazou-lhe o caldo pela boca, alagando-lhe o peito, com impaciência. A nora acendeu o oratório e baixou da parede o crucifixo de ébano.

Samé passeava os seus olhinhos de cem anos por tudo, como a perguntar – para quê?

Estavam feitos os preparativos para a morte.

Quando ela entrasse encontraria chamas de velas, toalhas de crivo, ramos de flores, imagens de santos e uma alma abençoada pelo padre, que um dos bisnetos fora chamar à pressa.

O padre veio e, perguntando ao Samuel pelos seus pecados, ouviu em resposta que as sementes germinariam depressa, porque a terra estava úmida e o sol ardente...

Riram-se uns, sorriam outros. O padre afastou-os e, tornando à cabeceira do velhinho, disse-lhe:

– Todo homem vive sujeito à tentação do inimigo; confessa sem pejo os teus pecados!

Samuel respondeu, sorrindo, que a lua ia ser propícia: os pescadores fariam boas pescas, os agricultores ótimas colheitas. A estação seria favorável aos pobres.

Caiu a absolvição sobre a cabeça branca do velho.

Filhos e netos rezaram uma ladainha arrastada e tristonha. Samé ouvia aquele ruído sem determinar-lhe o sentido, como se fora o de vento passando à noite fora das portas de sua casinha rústica. Depois da ladainha a ceia, depois da ceia o sono – todos adormeceram; só o tio Samé ficou abrindo para a lamparina os seus olhinhos de cem anos e foi assim que ele viu uma sombra esguia, longa, desenrolar-se das traves do teto e descer devagar, devagar, pela parede fronteira, sem barulho, com a cautela de um assassino...

Tio Samé tremeu. Uma das netas dormia ali mesmo, no chão, com o seio nu, os braços nus, o queixo erguido, a garganta bem iluminada. A cobra desceu e sumiu-se entre os lençóis, sem nem mesmo fazer rumor na esteira... Samé abanava os braços, mudo, inerte e espavorido, até que a rapariga, sacudida por uma convulsão tremenda, gritou alto, e o réptil fugiu, cascalhando, pela parede acima...

Na manhã seguinte morria a neta do velho Samé; mas ele ficou ainda, movendo os dedos trêmulos sobre o lençol branco, no gesto de semear a terra e aproveitar a boa lua…

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.

Estante de Livros (O Calor das Coisas, de Nélida Piñon) – 12. Conto – Disse um Campônio à Sua Amada

Ambiente

Interior de um coração perdidamente apaixonado.

Foco Narrativo
Narrado em 1ª pessoa

Personagens

Narrador – vivencia uma paixão incontrolável... que o leva a ser capaz de verdadeiros desatinos... como ofertar o próprio coração... ele era uma pedra mas, perto dela, perde a força, a resistência.
Amada – não corresponde com a mesma intensidade – está longe dele.
Ana – uma intermediária entre os 2

O título do texto é o primeiro verso de uma canção antiga de Vicente Celestino (Coração Materno), que foi gravada mais recentemente por Caetano Veloso. Como na letra da canção, trata de um amor não correspondido, aqui expresso através de carta. Trata-se de uma paixão tão Intensa que ele não consegue dominar, foge-lhe do controle. Não diminui apesar da indiferença dela, que é como uma pedra, um rochedo difícil de ser escalado. Como na canção, ele é capaz de fazer o impossível para conquistar seu amor, como fazer-se pássaro, navegar, partir-se em pedaços.

Disse um Campônio à sua amada, é um conto que poderia ser definido como uma bela declaração de amor. Um homem do campo transmite a delicadeza dos seus sentimentos à mulher amada:  

Assim, eu faço discreto pedido, não me arraste contigo quando te  fores. Ou não me aceites, ainda que te peça para seguir o teu caminho. Não quero despojar-me de um coração que te ofereci com tanta opulência. (...) Do teu camponês que se despede sem saber que é para sempre.

Apesar da ausência de diálogos, a narrativa não é monótona pois cada personagem apresenta seus monólogos e o silêncio é preenchido pelas reflexões do próprio leitor.


Fonte:
Profa. Sônia Targa. in OBRAS DA UEM- 2012-2013

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Varal de Trovas 467

 


Leon Eliachar (Aulas práticas para alunos teóricos)


A humanidade divide o seu tempo em duas partes: guerra e paz. Durante a paz, vive discutindo a guerra e durante a guerra vive implorando a paz.

A  guerra foi inventada por um sujeito que morreu na guerra. A paz ainda não foi inventada.

Há vários tipos de guerra: a guerra fria, a guerra quente,  a guerra morna, a guerra requentada e a guerra propriamente dita: dessa  ninguém escapa, porque todo mundo é convocado antes mesmo de começar a guerra.

Antigamente, a guerra era feita a pé: quando os soldados chegavam no país inimigo a guerra já tinha acabado. Hoje, a guerra é mais ligeira: basta apertar um botão que ela começa e acaba ao mesmo tempo - e quando acaba não se encontra nem o botão.

Durante a paz, os homens se preparam para a guerra, construindo tanques, aviões, submarinos, foguetes, táxis e ônibus elétricos.

Quem foge da guerra se chama desertor, quem fica se chama herói. O desertor foge da guerra pra não morrer nas mãos do inimigo, mas acaba morrendo nas mãos do amigo: é fuzilado. O fuzilamento é um processo de matar o sujeito que escapa da guerra - ao invés de morrer distraído, morre prevenido.

Antes de ir pra guerra, os médicos submetem os soldados a um exame físico completo: quem tiver boa saúde, pode ir e morrer tranquilo. Quando o homem se matricula na guerra, recebe um uniforme: quando entra na guerra, pinta o uniforme todinho pra ninguém ver que ele está de uniforme.

Existem guerras famosas: a de 14, porque sobraram catorze; a dos Cem Anos, que quando acabou só tinha velhinho, e a de 39 - que todo mundo pensa que acabou.

Antigamente, se fazia a guerra com baioneta calada, mas isso foi no tempo do cinema mudo. Hoje, a baioneta não só fala mas também canta - como se pode ver nos musicais de Hollywood.

Muitos combatentes são considerados malucos porque voltam pra casa com psicose de guerra, mas os psiquiatras não se preocupam a mínima com a psicose de paz - que é muito pior. E por incrível que pareça, o soldado mais conhecido da guerra é o soldado desconhecido.

Fonte:
Leon Eliachar. O homem ao zero. Publicado em 1967.

Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa – 6 –


Antônio Sardinha
Monforte/Alentejo, 1888 – 1925, Elvas/Alentejo

VESPERAL

Se eu te pintasse, posta na tardinha,
pintava-te num fundo cor de olaia,
na mão suspensa, nessa mão que é minha,
o lenço fino acompanhando a saia!

Vejo-te assim, ó asa de andorinha,
em ar de infanta que perdeu a aia,
envolta numa luz que te acarinha,
na luz que desfalece e que desmaia!

Com teu encanto os dias me adamasques,
linda menina ingênua de Velásquez
a flutuar num mar de seda e renda.

Deixa cair dos lábios de medronho
a perfumada voz do nosso sonho,
mas tão baixinho que só eu entenda!
* * * * * * * * * * * * * * * *  

Fernando Pessoa
Lisboa, 1888 – 1935

QUANDO OLHO PARA MIM...


Quando olho para mim não me percebo.
Tenho tanto a mania de sentir
que me extravio às vezes ao sair
das próprias sensações que eu recebo.

O ar que respiro, este licor que bebo,
pertencem ao meu modo de existir,
e eu nunca sei como hei de concluir
as sensações que a meu pesar concebo.

Nem nunca, propriamente reparei,
se na verdade sinto o que sinto. Eu
serei tal qual pareço em mim? Serei

tal qual me julgo verdadeiramente?
Mesmo ante as sensações sou um pouco ateu,
nem sei bem se sou eu quem em mim sente.
* * * * * * * * * * * * * * * *  

Florbela Espanca
Vila Viçosa/Alentejo, 1894 –  1930, Matosinhos/Douro

AMAR

Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: aqui... além...
mais este e aquele, o outro e toda a gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!

Recordar? Esquecer? Indiferente!
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disse que se pode amar alguém
durante a vida inteira é porque mente.

Há uma primavera em cada vida:
é preciso cantá-la assim florida,
pois se Deus nos deu voz foi pra cantar.

E se um dia hei de ser pó, cinza e nada
que seja a minha noite uma alvorada,
que me saiba perder... pra me encontrar...
* * * * * * * * * * * * * * * *  

Marta de Mesquita da Câmara
Lisboa?, 1894 – ????

CONTRASENSO

Oh! meu amor, escuta, estou aqui.
Pois o teu coração bem me conhece:
eu sou aquela voz que, em tanta prece,
endoideceu, chorou, gemeu por ti!

Sou eu, sou eu que ainda não morri
– nem a morte me quer, ao que parece –
e vinha renovar, se inda pudesse,
as horas dolorosas que vivi.

Oh! que insensato e louco é quem se ilude!
Quis fugir, esquecer-te, mas não pude...
Vê lá do que os teus olhos são capazes!

Deitando a vista pelo mundo além,
desisto de encontrar na vida um bem
que valha todo o mal que tu me fazes!
* * * * * * * * * * * * * * * *  

Nunes Claro
Lisboa, 1878 – 1949

SONETO

Vieste tarde, meu amor. Começa
em mim caindo a neve devagar...
Morre o sol; o outono vem depressa,
e o inverno, finalmente, há de chegar.

E se hoje andamos juntos, na promessa
de caminharmos toda a vida a par,
daqui a pouco o teu amor tem pressa
e o meu, daqui a pouco, há de cansar.

Dentro em breve, por trás das velhas portas,
dando um ao outro só palavras mortas
que rolam mudas sobre nossas vidas,

ouviremos, nas noites desoladas,
tu, a canção das vozes desejadas,
eu, o chorar das vozes esquecidas.

Fonte:
Sergio Faraco (org.) Livro dos sonetos: 1500-1900. Porto Alegre/RS: L&PM, 2016.

Dílson Catarino (Como uma vírgula acabou com um namoro no dia dos namorados)


Conta-se que, em Palmeirinha do Vale, cidade de dezessete mil viventes, que se situa perto de Santana do Arrebol do Oeste, havia uma professora de português, extremamente rígida, de nome Austeresa de Jesus. Ela era de tal modo rigorosa para com os alunos que estes temiam encontrá-la mesmo no dia a dia, na praça central, na mercearia, na farmácia.

Dizem que ela interpelava seus pequenos educandos, estivessem onde estivessem, sobre as mais variadas regras gramaticais. Ai de quem não soubesse a resposta: ela sacava seu caderninho rosa, anotava o nome da vítima, a pergunta que lhe fizera, a resposta dada –ou a falta dela– e o quanto valia relativamente à nota escolar.

Dependendo do grau de dificuldade da pergunta, ela diminuía 0,1, 0,2 ou 0,5 da nota que o aluno tirasse na prova seguinte. Era um suplício para as pobres crianças palmeirinhenses.

Quando Austeresa era jovem, enamorou-se de um belo rapaz, também professor de português, de nome Telos Alonso. Ele, porém, não tinha a mesma capacidade intelectiva dela nem a mesma habilidade em sala de aula nem a mesma rigidez. Era um moleirão a bem dizer, que nem gostava muito de estudos aprofundados. As maldizentes até comentavam que ele não era homem para uma mulher como Austezinha, como a chamavam carinhosamente.

O namoro entre eles durou exatamente onze meses e vinte e sete dias. O estopim para o término do relacionamento foi um cartão que ele lhe mandara no dia dos namorados em que escrevera “Para a minha namorada Austereza de Jesus”. Ao ler esses dizeres, quase teve uma síncope; chegou a perder o juízo. Pegou de uma caneta e imediatamente escreveu-lhe uma pequena carta, em que dizia:

Telos Alonso, é de conhecimento geral em Palmeirinha que tolero os maiores sofrimentos, que suporto as maiores provações. É, no entanto, também comentário corrente que há duas situações que jamais enfrentarei: traição e erro gramatical. E você, meu ex-amado, acabou de cometer ambos: você, professor de português, sabe muito bem que os nomes próprios femininos formados pela posposição do sufixo -esa ao radical se escrevem com S, não com Z.

Como meu namorado há quase um ano ainda erra meu nome, trocando letras? Não me importo tanto pelo erro de meu nome, mas importo-me –e muito– com o trocar letras. Poderia ter-me chamado de Austerise; não me atenazaria tanto, pois teria usado as letras adequadas: nomes femininos terminados em -ise se escrevem com S, como Denise e Anelise; mas ignorar que se escrevem com -ês e -esa nomes de pessoas, como Inês, Teresa e o meu, logicamente, Austeresa, adjetivos pátrios, como português e portuguesa, e títulos sociais ou nobiliárquicos, como camponês e camponesa, marquês e marquesa e ainda princesa, a maneira como me tratava, é demais para mim.

Fico agora a pensar: cada vez que me chamava de princesa, sua mente produzia princeza? Não. É demais para mim. Não suporto tal provação. E a traição? Como a descobri? Você mesmo se delatou: ‘…minha namorada Austereza’. Assim escreveu você; sem vírgula. Assim escolheu me mostrar que tem outra namorada. Não teve coragem de me contar pessoalmente, contou-me por subterfúgio, e eu entendi.

Ao não colocar vírgula entre meu nome e o substantivo que ele especifica, mostrou-me que não sou a única. Se o fosse, ter-me-ia escrito ‘…minha namorada, Austeresa’, com vírgula. Muito perspicaz foi você, dar-me a conhecer uma situação por meios gramaticais: substantivo próprio que especifica substantivo comum, sem vírgula entre eles, restringe, ou seja, há mais de um: ‘Professora Austeresa’, sem vírgula, pois não sou a única professora, há muitas; mas substantivo próprio que especifica substantivo comum, com vírgula entre eles, explica, ou seja, só há um: ‘…minha namorada, Austeresa’, com vírgula; eu seria a única, mas não o sou; sei-o agora.

Aliás, nem me importo mais com o namoro. Mesmo não havendo a traição, não quero mais tê-lo como namorado, pois dois erros de português em uma única frase cometidos por um ‘professor de português’ é demais para mim. Adeus.


Fonte:
Língua Portuguesa

Estante de Livros (O Calor das Coisas, de Nélida Piñon) – 11. Conto – A Sombra da Caça

A SOMBRA DA CAÇA


Ambiente:
Vida de uma mulher: suas atitudes e consequências delas.

Foco narrativo
Narrado em 1ª pessoa

Estrutura
Carta

Personagens:
Mulher: emissora da carta – dura, exigente, insensível, como se auto define no texto.
Marido: doce, terno, carinhoso, como o define a mulher.
Filho: receptor – mediador de notícias entre a mãe e o pai, recolher a confissão de ambos.

A narradora (mãe) escreve a seu filho uma carta. Ela fala da tumultuada relação que tivera com o marido e quanto lutou para livrar-se dele e do amor incondicional que ele lhe oferecia. Ao expulsá-lo de casa, ela perdeu a chance de ser feliz. Ele foi embora para nunca mais voltar. No fim do conto, o filho envia à mãe um bilhete dizendo-lhe que o pai nunca deixara de amá-la.

O relacionamento da mãe com o pai. Ela reconhece que era dura, insensível, exigente criticando, questionando o Marido (sonhador, doce, carinhoso). Ela confessa seus conflitos mais íntimos de relação com o marido... chega a envergonhar-se de sua confissões... mas reconhece que amava o marido.

O conto fala de uma mulher solitária que escreve uma carta para o filho, não tendo mais ninguém para desabafar suas mágoas e seu remorso. Sente falta e saudade atroz do marido, que ela mesma expulsara de casa. Agora, ao recordar suas atitudes amorosas, quer tê-lo de volta. Mas o tempo é outro. O filho responde-lhe num bilhete: o pai morreu, falando do seu amor por ela.

Fonte:
Profa. Sônia Targa. in OBRAS DA UEM- 2012-2013

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

José Feldman (Versejando) – 24 –

 


Arthur de Azevedo (Uma Embaixada)


Minervino ouviu um toque de campainha, levantou-se do canapé, atirou para o lado o livro que estava lendo, e foi abrir a porta ao seu amigo Salema.

- Entra. Estava ansioso.

- Vim, mal recebi o teu bilhete. Que deseja de mim?

- Um grande serviço!

- Oh, diabo! Trata-se de algum duelo?

- Trata-se simplesmente de amor. Senta-te. Sentaram-se ambos.

Eram dois rapagões de vinte e cinco anos, oficiais da mesma Secretaria do Estado; dois colegas, dois companheiros, dois amigos, entre os quais nunca houvera a menor divergência de opinião ou sentimentos. Estimavam-se muito, estimavam-se deveras.

- Mandei-te chamar - continuou Minervino - porque aqui podemos falar mais à vontade; lá em tua casa seriamos interrompidos por teus sobrinhos. Ter-me-ia guardado para amanhã, na Secretaria, se não se tratasse de uma coisa inadiável. Há de ser hoje por força!

- Estou às tuas ordens.

– Bom. Lembras-te de um dia ter te falado de uma viúva bonita, minha vizinha, por quem andava muito apaixonado?

- Sim, lembro-me. Um namoro...

- Namoro que se converteu em amor, amor que se transformou em paixão!

- Quê! Tu estás apaixonado?!...

- Apaixonadíssimo... E é preciso acabar com isto!

- De que modo?

- Casando-me; és tu que hás de pedi-la!

- Eu?!...

- Sim, meu amigo. Bens sabes como sou tímido... Apenas me atrevo a fixá-la durante alguns momentos, quando chego à janela, ou a cumprimentá-la, quando entro ou saio. Se eu mesmo fosse falar-lhe, era capaz de não articular três palavras. Lembras-te daquela ocasião em que fui pedir ao ministro que me nomeasse para a vaga do Florêncio? Pus-me a tremer diante dele, e a muito custo consegui expor o que desejava. E quando o ministro me disse: - Vá descansado, hei de fazer justiça - eu respondi-lhe: - Vossa excelência, se me nomear, não chove no molhado! - Ora, se sou assim com os ministros, que fará com as viúvas.

- Mas tu a conheces?

- Estou perfeitamente informado: é uma senhora digna e respeitável, viúva do Senhor Perkins, negociante americano. Mora ali defronte, no número 37. Peço-te que a procures imediatamente e lhe faças o pedido da minha parte. És tão desembaraçado como eu sou tímido; estou certo que serás bem sucedido. Dize-lhe de mim o melhor que puderes dizer; advoga a minha causa com a tua eloquência habitual, e a gratidão do teu amigo será eterna.

- Mas que diabo! - observou Salema. - Isto não é sangria desatada! Por que há de ser hoje e não outro dia? Não vim preparado!

- Não pode deixar de ser hoje. A viúva Perkins vai amanhã para a fazenda da irmã, perto de Vassouras, e eu não queria que partisse sem deixar lavrada a minha sentença.

- Mas, se lhe não falas, como sabes que ela vai partir?

- Ah! Como todos os namorados, tenho a minha polícia... Mas vai, vai, não te demores; ela está em casa e está sozinha; mora com um irmão empregado no comércio, mas o irmão saiu... Deve estar também em casa a dama de companhia, uma americana velha, que naturalmente não aparecerá na sala, nem estorvará a conversa.

E Minervino empurrava Salema para a porta, repetindo sempre:

- Vai! Vai! Não te demores!

Salema, saiu, atravessou a rua, e entrou em casa da viúva Perkins.

No corredor pôs-se a pensar na esquisitice da embaixada que o amigo lhe confiara.

- Que diabo! - refletiu ele. - Não sei quem é esta senhora; vou falar-lhe pela primeira vez... Não seria mais natural que o Minervino procurasse alguém que a conhecesse e o apresentasse?... Mas, ora adeus!... Eles namoram-se; é de esperar que o embaixador seja recebido de braços abertos.

Alguns minutos depois, Salema achava-se na sala da viúva Perkins, uma sala mobiliada sem luxo, mas com um certo gosto, cheia de quadros e outros objetos de arte. Na parede, por cima do divã de repes, o retrato de um homem novo ainda, muito louro, barbado, de olhos azuis, lânguidos e tristes. Provavelmente o americano defunto.

Salema esperou uns dez minutos.

Quando a viúva Perkins entrou na sala, ele agarrou-se a um móvel para não cair; paralisaram-se os movimentos, e não pôde reter uma exclamação de surpresa.

Era ela! Ela!... A misteriosa mulher que encontrara, havia muitos meses, num bonde das Laranjeiras, e meigamente lhe sorrira, e o impressionara tanto, e desaparecera, deixando-lhe no coração um sentimento indizível, que nunca soubera classificar direito.

Durante muitos dias e muitas noites a imagem daquela mulher perseguiu-o obstinadamente, e ele debalde procurou tornar a vê-la nos bondes, na rua do Ouvidor, nos teatros, nos bailes, nos passeios, nas festas. Debalde!...

- Oh! - disse a viúva, estendendo-lhe a mão muito naturalmente, como se fizesse a um velho amigo. - Era o senhor?

- Conhece-me? - balbuciou Salema.

- Ora essa! Que mulher poderia esquecer-se de um homem a quem sorriu? Quando aquele dia nos encontramos no bonde das Laranjeiras, já eu o conhecia. Tinha-o visto uma noite no teatro e, não sei por quê... por simpatia, creio... perguntei quem o senhor era, não me lembro a quem... Lembra-me que o puseram nas nuvens. Porque nunca mais tornei a vê-lo?

Diante do desembaraço da viúva Perkins, Salema sentiu-se ainda mais tímido que Minervino - mas cobrou ânimo, e respondeu:

- Não foi porque não a procurasse por toda a parte...

- Não sabia onde eu morava?

- Não, supus que nas Laranjeiras. Vi-a entrar naquele sobrado... e debalde passei por lá um milhão de vezes, na esperança de tornar a vê-la.

- Era impossível; aquela é a casa de minha irmã; só abre quando ela vem da fazenda. O sobrado está fechado há oito meses. Mas sente-se... aqui... mais perto de mim... Sente-se, e diga o motivo da sua visita.

De repente, e só então, Salema lembrou-se do Minervino.

- O motivo de minha visita é muito delicado; eu...

- Fale! Diga sem rebuço o que deseja! Seja franco! Imite-me!... Não vê como sou desembaraçada? Fui educada por meu marido...

E apontou para o retrato.

- Era americano; educou-me à americana. Não há, creia, não há educação como esta para salvaguardar uma senhora. Vamos fale!...

- Minha senhora, eu sou...

Ela interrompeu:

- É o Senhor Nuno Salema, órfão, solteiro, empregado público, literato nas horas vagas, que vem pedir a minha mão em casamento.

Ela estendeu-lhe a mão, que ele apertou.

- É sua! Sou a viúva Perkins, honesta como a mais honesta, senhora das suas ações, e quase rica. Não tenho filho nem outros parentes por meu marido, e uma irmã fazendeira, igualmente viúva. Não percamos tempo!

Salema quis dizer alguma coisa, ela não o deixou falar.

- Amanhã parto para a fazenda da minha irmã. Venha comigo, à americana, para lhe ser apresentado.

Nisto entrou na sala, vindo da rua, apressado, o irmão da viúva Perkins, um moço de vinte anos, muito correto, muito bem trajado.

- Mano, apresento-lhe o Senhor Nuno Salema, meu noivo.

O rapaz inclinou-se, apertou fortemente a mão do futuro cunhado, e disse:

- All rigth!...

Depois inclinou-se de novo e saiu da sala, sempre apressado.

- Mas, minha senhora - tartamudeou o noivo muito confundido - imagine que o meu colega Minervino, que mora ali defronte...

A viúva aproximou-se da janela. Minervino estava na dele, defronte, e, assim que a viu deu um pulo para trás e sumiu-se.

- Ah! Aquele moço?... Coitado! Não posso deixar de sorrir quando olho para ele... É tão ridículo com o seu namoro à brasileira!...

- Mas... ele... tinha-me encarregado de pedi-la em casamento, e eu entrei aqui sem saber quem vinha encontrar...

- Deveras?! - exclamou a viúva Perkins.

E ei-la acometida de um ataque de riso:

- Ah! Ah! Ah! Ah! Ah!...

E deixou-se cair no divã:

- Ah! Ah! Ah! Ah! Ah!...

Salema aproximou-se da viúva, tomou-lhe as mãozinhas, beijou-as, e perguntou:

- Que hei de dizer ao meu amigo?

Ela ficou muito séria, e respondeu:

- Diga-lhe que quem tem boca não manda soprar.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos Vários.

Baú de Trovas XXVI


– Não chores porque estou triste
nem te perturbes, Maria.
Se não fosse essa tristeza,
que versos eu te faria?
APARÍCIO FERNANDES
= = = = = = = = = = =
Você é mesmo um amor!
E compará-la, com quê?...
— Duvido que haja uma flor
mais linda do que você!
BARRETO COUTINHO
= = = = = = = = = = =
Ninguém julgue tão vazia
a vida que vou levando,
pois, se lhe falta alegria,
a saudade está sobrando...
CONCITA CÂMARA
= = = = = = = = = = =
Na copa dos arvoredos,
nas orvalhadas verduras,
há sonâmbulos segredos
e murmuradas ternuras.
CRUZ E SOUSA
= = = = = = = = = = =
Quando o amor é verdadeiro,
cria profundas raízes.
Se, porém, for traiçoeiro.
deixa apenas cicatrizes...
INÁCIO DIAS DE MEDEIROS
= = = = = = = = = = =
Se eu tivesse de morrer
nestes teus braços, querida,
eu o faria, sem ter
saudades de minha vida!
JOMAR RÊGO
= = = = = = = = = = =
Os amores mais felizes
são os que não deixam mágoas,
que não criaram raízes,
como a planta à flor das águas.
JOÃO CELSO FILHO
= = = = = = = = = = =
Se te visse adormecido,
eu me vingaria às cegas,
beijando muito, querido,
os lábios que tu me negas.
LÉA DE PAULA
= = = = = = = = = = =
Do "Coração de Maria",
se falo é por devoção.
Que eu amei muitas Marias,
mas todas sem coração...
NILO APARECIDA PINTO
= = = = = = = = = = =
Às vezes, tenho desejo,
de, vencendo a timidez,
extravasar no meu beijo
tudo o que sinto e não vês...
NYDIA lAGGI MARTINS
= = = = = = = = = = =
Beija-flor, se tu provasses
os lábios do meu amor,
nunca mais, tenho certeza,
beijarias outra flor!
NIDOVAL REIS
= = = = = = = = = = =
Ninguém há que não me aprove
esta façanha tão rara:
— um amor que não se move,
num coração que não para!
OCTÁVIO DE MEDEIROS
= = = = = = = = = = =
"Lembra!" — diz o coração.
"Esquece!" — a razão me diz.
E essa eterna indecisão
é que me torna Infeliz.
OLEGÁRIO MARIANO
= = = = = = = = = = =
Maria sem coração
encontra-se em demasia,
mas quase nunca se encontra
um coração sem Maria!
ONILDO DE CAMPOS
= = = = = = = = = = =
Passou... Bonita, de fato!
E o mar, ao vê-la tão bela,
sentiu não ser um regato,
para correr atrás dela...
ORLANDO BRITO
= = = = = = = = = = =
Ensina o teu coração
a ter mais pena de mim.
O tempo que leva um "não"
é o mesmo que leva um "sim".
ORLANDO CAVALCANTI
= = = = = = = = = = =
Sopra o vento, mansamente,
balançando a flor do ipê...
E esta brisa faz presente
a lembrança de você...
PADRE NEWTON PIMENTA
= = = = = = = = = = =
Foste minha um só instante
e a razão hoje me diz
que esse tempo foi bastante
para um homem ser feliz.
PAULO FÉNDER
= = = = = = = = = = =
Ai, amor, doce segredo
que não se vê, mas se sente...
razão de um eterno enredo
na vida de toda gente!
PEDRO MANHAES
= = = = = = = = = = =
Em nosso quarto deserto,
fico horas pensando assim:
– Por que te sinto tão perto,
se estás tão longe de mim?
QUINTILIANO JARDIM
= = = = = = = = = = =
Tudo tão fácil, tão justo,
tão perto o nosso desejo,
e, todavia, que custo
para a permuta de um beijo!
SERAFIM FRANÇA
= = = = = = = = = = =
Saudade! página lida
do livro dos dias meus,
guarda uma flor ressequida,
marcando a palavra adeus...
STELA WANDERLEY
= = = = = = = = = = =
O amor, disseste-me um dia,
maltrata, dói, faz sofrer,
sem saber — quanta ironia! —
que sofro por te querer...
VERA MARIA
= = = = = = = = = = =
Maria! Nome tão doce,
nome de santa... Parece
que o digo como se fosse
o resumo de uma prece.
VICENTE DE CARVALHO
= = = = = = = = = = =
Teus lábios, depondo beijos
na minha boca ansiosa,
lembram, no ardor dos desejos,
o entreabrir de uma rosa.
WALTER SIQUEIRA
= = = = = = = = = = =
Quis-te um dia... mas fugiste;
me quiseste... e o mesmo fiz.
Quando, enfim, nós nos quisemos,
foi a vida que não quis...
ZALKIND PIATIGORSKY

Fonte:
Aparício Fernandes. A Trova no Brasil: história e antologia. São Cristovão/RJ: Artenova, 1972.

Estante de Livros (O Calor das Coisas, de Nélida Piñon) – 10. Conto – O Calor das Coisas

O CALOR DAS COISAS


Ambiente:
Vida de um homem obeso, sua alma, seus sentimentos.

Foco narrativo:
Terceira Pessoa.

Personagens:
= Oscar: Homem obeso sofre os padecimentos que lhe advém da obesidade: falta de compreensão da própria mãe, discriminação dos amigos.
= Mãe de Oscar
= Amigos de Oscar

Conta a história do Oscar, um homem obeso que ganhou o apelido de “pastel” na infância por causa da gordura. Era um comedor de pastéis compulsivo. Existe uma relação estranha entre ele, a mãe e a comida. A mãe fingia não ver a gordura do filho, a comida para ela era sinônimo de amor. Oscar comia para agradar a mãe. A comida é uma forma de sequestro e chantagem, enquanto ele comia e engordava e se desfigurava, a mãe o mantinha junto a si.

O texto fala da infelicidade de ser obeso. A mãe quer ser carinhosa, mas não percebe que fere profundamente o filho quando o chama de "pastel". Então o filho desenvolve uma revolta surda contra a mãe. Mas afinal, é incapaz de ser agressivo com ela.

Fonte:
Profa. Sônia Targa. in OBRAS DA UEM- 2012-2013

domingo, 17 de janeiro de 2021

Varal de Trovas 466

 


Fabiane Braga Lima (Mãos que sangram)


No sobrado ao lado de minha casa, sempre escutava gritos, era um casal discutindo perto de seus filhos, a esposa estava numa cadeira de rodas, com as pernas amputadas, devido ao acidente de serviço.

Da janela de minha casa pude notar, assim que seu esposo saia puxava sua cadeira de rodas pela rua e entrava na casa de uma senhora.

E, as crianças ficavam sozinhas por um bom tempo, também não frequentavam escola, o pai não os deixavam estudar. Cheguei até ela, e perguntei: — Porque deixa seus filhos sozinhos em casa?

Assustada foi embora...

Certo dia, fiquei sabendo que aquela senhora, era uma professora aposentada, foi então, que descobri que estava estudando, e infelizmente as discussões com seu esposo não cessaram.

Era um homem rígido de pouco caráter! Podia ouvir seus gritos pelo quarteirão com sua esposa, que se encontrava numa cadeira de rodas, e não conseguia se defender. Descobri que ela estava tendo aulas com aquela senhora, na qual era uma professora, para que depois, pudesse ensinar seus filhos.

Suas mãos sangravam, pois, aquela cadeira de rodas era antiga! Havia tanto amor naquela mulher, seus filhos estavam alfabetizados e logo frequentariam a escola como toda criança.

E, ali estava uma guerreira, que nunca se deixou levar pela estupidez do esposo, com mãos ensanguentadas, mas com alma serena. Nada impediu aquela mãe de alfabetizar os filhos, nem mesmo suas pernas amputadas.

Um ano depois, fiquei sabendo que seus filhos, estavam estudando e vivendo como toda criança merece. Quanto ao homem, deixou a família, esposa em uma cadeira de rodas, debilitada, filhos ainda pequenos, pois nunca quis aceitar a verdade. Toda criança merece um estudo adequado!

Fonte:
Texto enviado por Samuel C. Da Costa

João Batista Xavier Oliveira (Poemas Recolhidos) 2


O BEM MAIOR


Entre nós uma lança em duas pontas
voltadas bem direto a nosso peito,
porém compreensão com o respeito
são atributos de insondáveis montas.

Na conta permanente do direito
espaços dão às asas, sempre prontas,
os ares das visões do preconceito
e afastam as algemas tão medrontas.

É assim que um grande amor entre pessoas
atrai as vibrações das almas boas
com a esperança de um mundo melhor.

Respeito o teu espaço em todo meio
assim como respeitas meu passeio.
Nosso trabalho ao bem é bem maior!!
* * * * * * * * * * * * * * * *  

O PEDESTAL DO HORIZONTE

Quando me vejo aqui, no pedestal
onde a lida acalenta e se faz luz,
a vitória cintila no portal
e desintegra a treva que seduz.

Conseguir algo mais, travar o mal,
vislumbrar no crepúsculo, conduz
sentimento de força sem igual
na vereda luzida por Jesus.

Volver à luz que brilha no horizonte
mostrando o caminhar em forte ponte
é a mesma luz que brilha a todos nós...

bastando simplesmente a coerência
na busca da lavoura em consistência.
Seremos então livres, jamais sós!!
* * * * * * * * * * * * * * * *  

S I L Ê N C I O

Quando eu pensei que tudo estava certo...
eis que você, na calma de serpente,
virou meu mundo assim tão de repente
numa miragem plena de um deserto.

Meu pensamento sóbrio, tão presente,
não alertou-me como estava perto
um coração fechado... e bem aberto
à pequenez de um sopro tão latente!

Me refazendo aos poucos, fui olhando
nas passarelas de um mundo nefando
desfiles frágeis, quem olha e não vê.

Hoje agradeço sua insensatez
silenciando o vazio de vez
feliz por mim e triste por você!
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SINAIS INVERTIDOS

Olhando a terra acima dos sentidos
um ar tristonho abate-me na entranha:
sermões abaixo aos ares da montanha
e súplicas em motes de alaridos.

Como esperar que rogação tamanha
venha a elevar as almas dos “ungidos”
pelos sinais, nas mentes, invertidos,
se trechos do alfarrábio mal arranha?

Verter em lágrimas na espera, inerte,
(açoite de cilício não reverte)
na frialdade do silêncio atroz...

é malograr-se às vestes endeusadas;
é recorrer às luzes apagadas
se Deus reside aqui... dentro de nós!!
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SUTIL OLHAR

A nova era agora tão veloz
atinge os ares lassos de metais;
a quântica figura não é mais
o mito que atordoa a todos nós.

Os olhos deslumbrados por fanais
que buscam horizontes, antes sós,
percebem muito além de nossa voz
as vibrações sutis de mil sinais.

Desperta criatura limitada!
Aguça a tua aura dos sentidos;
o mundo ao teu redor é quase nada!

A nova era agora tem ouvidos;
o espírito retarda evolução
se olhar de uma segunda dimensão!!

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T R O P E Ç O

Vejo-me agora no final da estrada
e as consequências de uma vida aflita
a procurar afoito a mais bonita
virtude altiva, joia lapidada.

As mãos vazias cheias de desdita
não afagaram outras sem ter nada.
E a consciência viva, tão pesada,
arrasta o fardo que a ambição incita.

Peço perdão para mim mesmo, eu sei
que para evoluir existe lei
da semeadura e sua consequência.

Queira ou não queira o fim faz o começo
para engendrar a escala sem tropeço;
ser mais humilde na nova existência!
* * * * * * * * * * * * * * * *  

V E L E J A N D O

Varanda, vales, verdes, primavera;
o ar envolto em meigas cantilenas...
Imagens tão serenas que eu quisera
perenes, tácitas em mim apenas.

Sonhar é o som sagrado da quimera
num canto enquanto as dores são amenas.
Descanso à rede a lágrima sincera
que luz na luz dos olhos dos mecenas.

A bordo de uma rede a velejar
eu sorvo a paz que a brisa faz ao mar
no vento que acarinha as mãos poetas.

Bendigo a natureza onde os estetas
descrevem a meiguice de um tormento
na voz que se enternece à voz do vento!!

Fonte:
http://jobaxaol.blogspot.com/

A. A. De Assis (Maringá Gota a Gota) As irmãs do Santa Cruz


Todos os nossos pioneiros são dignos de máximo respeito, além de credores de justa gratidão da parte de todos nós que deles herdamos esta encantadora cidade. Eram, em sua grande maioria, colonos ou pequenos proprietários em outras regiões do país, alguns em distantes rincões do mundo. Tiveram a coragem de trocar a tranquilidade do chão natal pela ousadia de abrir clareiras na mata para formar lavouras e plantar cidades. Movia-os, contudo, um motivo forte: a esperança de fazer aqui o pé-de-meia.

Dá então para entender o arrojo dos homens e mulheres que chegaram nas primeiras caravanas e em Maringá plantaram as primeiras sementes, ergueram os primeiros ranchos, instalaram as primeiras serrarias, montaram as primeiras vendinhas, as primeiras oficinas, as primeiras clínicas etc. etc.

Admiro demais o heroísmo dos nossos abridores de caminhos. Mas o que me fascina ainda mais nessa história de bravos é pensar no tipo de impulso que trouxe para cá os que vieram sem nenhum propósito em benefício próprio: os primeiros padres, irmãos, irmãs, pastores, pastoras, ou seja, os que vieram em missão de fé.

Relendo a obra-prima do padre Orivaldo Robles – “A igreja que brotou da mata”, vi lá uma foto da chegada das irmãs carmelitas (18.6.1952). Sete freirinhas espanholas, trazidas pelo então bispo de Jacarezinho, Dom Geraldo Sigaud, com a responsabilidade de instalar no Maringá Velho o Colégio Santa Cruz.

Lideradas pela Irmã Pilar, em pouco tempo mobilizaram as famílias pioneiras, construíram a capela e, logo após, as salinhas onde receberam as primeiras alunas.

Na cabeça delas jamais passara a mínima ideia de ganhar dinheiro ou angariar qualquer outro tipo de vantagem. Mas seu coração pipocava de alegria pela certeza de que estariam ajudando a semear cultura e espiritualidade num mundo novo.

Pensando nelas, penso também nos irmãos que vieram trabalhar na Santa Casa, no Colégio Marista, penso nas irmãs do Albergue, do Lar dos Velhinhos, do Lar Escola, dos Colégios Santo Inácio, São Francisco Xavier, Regina Mundi.

Só Deus sabe o que leva tantos moços e tantas moças, movidos pela misteriosa força de uma santa vocação, a deixarem família, pátria e qualquer projeto pessoal para servir de graça onde forem chamados.

Todos os pioneiros merecem, sim, máxima admiração. Porém ao lado deles, pelo muito que fizeram por todos nós, há de haver sempre um lugar mais do que especial para os pioneiros e pioneiras da fé. A bênção, Irmã Pilar.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 31-12-2020)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Estante de Livros (O Calor das Coisas, de Nélida Piñon) – 9. Conto – A Sereia Ulisses

A SEREIA ULISSES


Ambiente:
A história se passa entre Rio de Janeiro e a Europa, mas fala muito bem do ambiente interior da alma de PN.

Foco Narrativo:
Primeira Pessoa.

Personagens:
PN: Personagem principal que fala de sua vida.
Antônio: Amigo de PN.
Sílvia: Amiga de PN que se casa com Antônio.
1º Marido
2º Marido
3° Marido: Pedro de Alcântara Miggioro.
Amigas de PN

O texto conta a história de PN, narrada por ela mesma. Orgulhosa, ela não ouve opiniões de outros.

Prepotente, impõe suas próprias condições. PN se desfaz de pessoas com alpiste e migalhas de pão. Essa referência lembra a história de João e Maria que deixaram marcas para poder voltar. Mas as migalhas desapareceram e não puderam encontrar o caminho de volta. 0 fato de emocionar-se com as novelas de Janete Clair mostra que PN, no fundo, tem um coração sensível Suas atitudes são mecanismos de defesa. Ela mesma confessa que é “vulnerável cheia de labaredas". Quanto ao rapto, trata-se, sim, de mais uma de suas aventuras, um rapto consentido por ela, mas que não quer que dure muito. Por isso, determina quando devem resgatá-la.

Entre tantos Pedros de Alcântara, um tem sobrenome, isto é, distingue-se dos demais, chama a atenção dela. PN prossegue em sua "vida planejada até o dia em que as situações lhe fogem do controle e ela não mais consegue segurar junto de si, nem o homem que a amara, nem o que ela amou. Então vive de recordações.

Perde o ímpeto para a luta. Não consegue voltar atrás. Passou-se o tempo. Os passarinhos comeram o alpiste e as migalhas de pão. Não há como encontrar o caminho de volta. Enfim, ela percebe que sua voracidade não lhe rendera benefício algum. Não percebera quando o amor esteve com ela. 0 texto do bilhete demonstra o quanto ela se sentia segura de si mesma e dona de próprio-tempo, tanto que pode definir a data e hora para o resgate. As iniciais PN são as da autora em ordem invertida.

Fonte:
Profa. Sônia Targa. in OBRAS DA UEM- 2012-2013

sábado, 16 de janeiro de 2021

José Feldman (Versejando) – 23 –

 


Olivaldo Júnior (Três microcontos sobre a amizade)

A MOÇA


Era uma moça como inúmeras outras, cheia de sonhos, desejos e esperança. Um dia, conheceu um moço, com igual capacidade de amar e de acreditar na vida e nos outros.

Assim, a moça e o moço se tornaram os melhores amigos de sempre. Faziam tudo juntos, desde compras no mercado a idas regulares ao cinema. Adoravam filmes de comédia.

Tão linda, a moça conheceu outro moço, que, interessado em sossego, quis se casar. Aflita, contou logo a boa nova a seu amigo, que a apoiou muito. Nunca mais se viram.
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O SANTO

Havia se acostumado a ser santo aquela imagem no altar da igreja mais próxima. Não me lembro direito qual mesmo o santo que era, mas era um santo. Tinha os olhos nus.

Dia a dia, como se fosse um pastor, via as ovelhas, digo, os devotos, indo e voltando de lá, deixando aos pés dele uma carta, uma vela, ou um bocado do olhar que o encarava.

Amigo de todos, o santo no altar não podia muita coisa, senão escutar e fazer ele mesmo sua prece a Jesus, a Maria, a Deus Pai. Talvez aquela gente precisasse do santo só isso.
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O HERÓI

Era um homem jovem e muito bonito. Pelo mesmo era isso o que lhe diziam. Tanto que, depois de um tempo, passou a acreditar que era uma espécie de herói, Eros, Hércules!

Malhava bastante e se sentia com muitos amigos, pois quase nunca estava sozinho. “A vida é tão boa! Sou tão amado!”, pensava, sem saber que amigos são joias muito raras.

Com a crise no País, sofreu um revés financeiro, perdeu o emprego, ficou sem dinheiro, nem para a academia. Aliás, para os velhos “amigos”, aquele herói virara um bandido.

Fonte:
Textos enviados pelo autor.

Laurindo Rabelo (Poemas Escolhidos) II


A MINHA RESOLUÇÃO


O que fazes, ó minh’alma!
Coração, por que te agitas?
Coração, por que palpitas?
Por que palpitas em vão?
Se aquele que tanto adoras
Te despreza, como ingrato,
Coração, sê mais sensato,
Busca outro coração!

Corre o ribeiro suave
Pela terra brandamente,
Se o plano condescendente
Dele se deixa regar;
Mas, se encontra algum tropeço
Que o leve curso lhe prive,
Busca logo outro declive,
Vai correr noutro lugar.

Segue o exemplo das águas,
Coração, por que te agitas?
Coração, por que palpitas?
Por que palpitas em vão?
Se aquele que tanto adoras
Te despreza, como ingrato,
Coração, sê mais sensato,
Busca outro coração!

Nasce a planta, a planta cresce,
Vai contente vegetando,
Só por onde vai achando
Terra própria a seu viver;
Mas, se acaso a terra estéril
Às raízes lhe é veneno,
Ela vai noutro terreno
As raízes esconder.

Segue o exemplo da planta,
Coração, por que te agitas?
Coração, por que palpitas?
Por que palpitas em vão?
Se aquele que tanto adoras
Te despreza, como ingrato,
Coração, sê mais sensato,
Busca outro coração!

Saiba a ingrata que punir
Também sei tamanho agravo:
Se me trata como escravo,
Mostrarei que sou senhor;
Como as águas, como a planta,
Fugirei dessa homicida;
Quero dar a um’alma fida*
Minha vida e meu amor.
* * * * * * * * * * * * * * * *
* Alma fida – alma fiel
* * * * * * * * * * * * * * * *    

A LINGUAGEM DOS TRISTES

Se houver um ente, que sorvido tenha
Gota a gota o veneno da amargura;
Que nem nos horizontes da esperança
Veja raiar-lhe um dia de ventura;

Se houver um ente, que, dos homens certo,
Neles espere certa a falsidade;
Que veja um laço vil num rir de amores,
Uma traição nos mimos da amizade;

Se houver um ente, que, votado às dores,
Todo com a tristeza desposado,
De cruéis desenganos só nutrido,
Somente males a esperar do fado;

Que venha, acompanhar-me na agonia,
Qu’esta minh’alma, sem cessar, traspassa!
Venha, qu’há muito luto, a ver se encontro
Quem sinta, como eu, tanta desgraça

Venha, sim, que talvez por nosso trato
Uma nova linguagem seja urdida,
Em que possam falar-se os desgraçados,
Que do mundo não seja traduzida.

Por lei inexorável do destino,
Quem gemer à desgraça condenado,
Inda lidando no lidar do mundo,
Há de viver do mundo desterrado.

E em que desterro! Os outros só nos tiram
Os olhos do lugar do nascimento;
A desgraça, porém, do mundo inteiro
Desterra o coração e o pensamento.

Ao menos a linguagem deste exílio
Mais suportável torne a vida crua;
Tenha ao menos a terra da desgraça
Uma linguagem propriamente sua.

E quem tê-la melhor? Por mais que fale
O sedutor prazer em frase ardente,
Por mais que se perfume e se floreie,
Nunca é, como a dor, tão eloquente.

Nos fenômenos d’alma o corpo sempre
Do seu modo de obrar diversifica:
Pelas quebras da orgânica fraqueza
A força esp’ritual se multiplica.

Quando, livre, o esp’rito aos céus remonta,
Da Eternidade demandando o norte,
Toda força primeva recobrando —
Tomba a matéria, e cai nas mãos da morte!

Quando o gás do prazer dilata o seio,
A força do sentir dormente acalma;
Quando a pressa da dor o seio aperta,
A força do sentir se expande n’alma.

Assim novas palavras, novas frases,
Nova linguagem, pede o sofrimento;
Porque dobra o sentir, e duplas asas
Pra voos duplos colhe o pensamento:

Não, não pode em seus termos quase inertes,
Esse falar comum de cada dia,
Deste duplo sentir, d’ideias duplas,
Exprimir fielmente a valentia.

Enganai-vos, ditosos! Vossas falas,
Anos que falem, nunca dizem tanto,
Quanto num só momento dizer pode
Um suspiro, um soluço, um ai, um pranto.

Eia, pois, tristes! eia!... desde agora
Uma nova linguagem seja urdida,
Em que possam falar-se os desgraçados,
Que do mundo não seja traduzida.

Veja o mundo, de gozos egoísta,
Qu’os tristes nada têm de suas lavras:
Que, orgulhosos na pátria da desdita,
Nem dos ditosos querem as palavras.

Fonte:
Laurindo Ribeiro. Poesias Completas. Ministério da Cultura.