segunda-feira, 16 de outubro de 2023

Contos e lendas da África (O cachorro e a língua dos homens)


(por Robert Hamill Nassau)


Personagens
Mbwa (cachorro) e sua mãe
Um homem chamado Njambo e sua filha Eyâle


PREFÁCIO
Este conto se passa em tempos pré-históricos, quando todos os animais, inclusive os de organismos inferiores, podiam se unir a homens, até mesmo em casamento. Mbwa era o animal, tanto em forma como em linguagem, hoje chamado de cachorro, mas que também tinha a capacidade de comunicar-se como um humano. Esta é a história de como esse ancestral dos cães deixou a nação dos animais. Embora cachorros vivam junto aos seres humanos hoje em dia, não têm mais a capacidade que seus ancestrais possuíam, de falar como gente. Só o que conseguem dizer é “Au-au!”.

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O cachorro Mbwa e sua mãe eram os únicos habitantes de sua aldeia.

Mbwa era capaz de falar tanto com animais como com humanos.

— Você já é adulto e forte — disse um dia sua mãe. — Está na hora de se casar. Vá e peça Eyâle, filha de Njambo, em casamento.

— Irei amanhã — respondeu o cachorro.

O dia escureceu e foram dormir. Logo a madrugada veio e um novo dia começava a despontar.

— Chegou a hora de eu partir. — disse Mbwa.

Amanhecia quando ele começou sua jornada. Percorreu cerca de treze quilômetros e chegou ao seu destino antes do meio-dia. Foi à casa de Njambo, pai de Eyâle. Lá, foi cumprimentado pelo anfitrião e sua esposa.

— Olá, Mbwa!

— Olá!

— Qual a razão de sua visita, meu amigo? — perguntou Njambo.

— Vim para me casar com sua filha Eyâle — respondeu o cão em linguagem humana.

Njambo consentiu e a mãe da garota também ficou satisfeita com a união. Chamaram a pretendida para saber o que ela pensava da proposta.

— Aceito! De todo o meu coração! — disse.

A jovem era bela tanto de rosto como de corpo. E todos estavam de acordo quanto ao casamento.

Ao cair da noite reuniram-se para jantar. Sem saber o motivo, o cachorro não conseguiu comer.

O dia escureceu e foram dormir. Mbwa costumava acordar sempre uma hora antes do amanhecer, mas naquele dia dormiu até mais tarde.

A mãe da noiva disse à sua filha:

— Prepare um pouco de água para que seu noivo lave o rosto quando acordar. Vou à plantação que fica na floresta buscar comida para ele, já que ainda não comeu nada desde que chegou.

E acrescentou:

— Peça aos criados que matem uma galinha para o almoço. E você, triture sementes de cabaça e faça um pudim de sobremesa.

Entregou o prato com as sementes para Eyâle e saiu para a floresta. Njambo a acompanhou, pois também tinha seus afazeres. A jovem sentou-se com as sementes e começou a descascá-las. Jogava os miolos limpos no chão e colocava as cascas em um prato.

Mbwa acordou pouco tempo depois de os donos da casa terem saído. Levantou-se e foi procurar sua noiva. Ficou ao lado dela, observando-a descascar as sementes. Em silêncio, notou que ela descartava o miolo, que era a parte boa, e guardava as cascas em um prato.

— Não é assim que se faz, mulher! — disse em linguagem humana. — Por que joga a parte boa no chão e guarda essas cascas inúteis?

Enquanto o cachorro falava, Eyâle subitamente caiu no chão. Estava morta. Mbwa curvou-se para tentar levantá-la, mas foi inútil. Já não havia o que fazer.

Pouco depois o pai e mãe da jovem retornaram de suas tarefas, encontraram a filha morta e gritaram:

— Mbwa! O que aconteceu?

— Não sei dizer. — respondeu em linguagem canina.

— Diga-nos o que houve! — insistiram os pais.

Mbwa então lhes falou na língua dos humanos:

— Você, mulher, foi à floresta enquanto eu dormia. E você, homem, também saiu, acompanhando sua esposa, antes que eu acordasse. Quando me levantei, encontrei minha noiva descascando sementes. Ela jogava os miolos limpos ao chão e guardava as cascas. Eu disse a ela que o que comemos são os grãos que ela estava descartando, e não as cascas. Enquanto ele deva essa explicação, os dois também caíram ao chão, mortos sem motivo aparente.

Quando as pessoas da cidade souberam do caso, disseram:

— O cachorro tem uma poção maligna para matar pessoas. Deve ser capturado e morto!

Mbwa rapidamente fugiu pela floresta e voltou para a aldeia onde vivia com sua mãe. Seu corpo estava cheio de cortes e arranhões causados pelos arbustos espinhosos que atravessara em sua fuga.

— Mbwa! O que aconteceu? Por que está assim tão esbaforido? E todo machucado! — exclamou sua mãe ao vê-lo.

— Não! Não vou contar! Não direi mais nada!

— Por favor, meu filho! Conte-me! — implorou sua mãe.

Finalmente Mbwa concordou e, usando a linguagem dos humanos, começou a explicar:

— Contarei o que houve, minha mãe. Njambo e sua esposa me aceitaram como genro, e Eyâle também gostou muito de mim. Enquanto eu dormia, o casal foi à floresta. Quando acordei, encontrei minha noiva descascando sementes de cabaça, só que ela jogava os grãos no chão e guardava as cascas. Então disse a ela que estava desperdiçando a parte boa da semente. E ela morreu de repente.

Enquanto falava com sua mãe, ela também caiu morta ao chão. As notícias de seu falecimento chegaram até a cidade do tio de Mbwa, e muitas pessoas vieram para o funeral.

— Mbwa! O que aconteceu? — perguntou seu tio.

O cachorro não respondeu. Apenas disse:

— Não!

Imploraram por uma explicação.

— Por favor, conte-nos o que houve.

— Não! Não falarei mais nada. — respondeu Mbwa.

Como insistiram muito, Mbwa concordou em falar com dois deles. Pediu que o restante ficasse onde estavam e observassem a conversa de longe. Então falou com os dois usando o mesmo idioma que usara com sua mãe. E da mesma forma, ambos caíram fulminados.

— Não! — exclamou Mbwa. — As pessoas morrem quando eu falo em linguagem humana!

— Sim, Mbwa. — concordaram os outros. — O idioma dos homens mata as pessoas. Não fale mais.

E Mbwa partiu para viver junto dos homens.

Fonte: Elphinstone Dayrell, George W. Bateman e Robert Hamill Nassau. Contos Folclóricos Africanos vol. 2. (trad. Gabriel Naldi). Edição Bilingue. SESC. Distribuição gratuita.

Artur* de Azevedo (O sócio)

(contos maranhenses)

Frequentava o Liceu o Arnaldo, e havia feito
Exame de francês, inglês e geografia,
Quando seu pai um dia,
Pilhando-o bem a jeito,
Chamou-o ao gabinete e disse-lhe: — Meu filho,
Tu vais agora entrar no verdadeiro trilho!
Tu já sabes inglês e francês; o Tibério,
Teu mestre, um homem sério,
Me disse ultimamente
Que podes dar lições de geografia à gente —
E, depois de tomar o velho uma pitada,
— Não quero, prosseguiu, que tu saibas mais nada,
Pois sabes muito mais do que teu pai, e, como
Fortuna ele não tem para te dar mesada,
Deus, que me ouvindo está, por testemunha tomo!
Não hás de ser doutor! E para que o serias?
Em breve, filho meu, tu te arrependerias.
Pois não vês por aí tantos, tantos doutores,
Que não tomam caminho,
Sofrem mil dissabores,
Sem ter o que fazer do inútil pergaminho? —
Nisto o velho assoou-se ao lenço de Alcobaça,
E a trompa fez tremer os vidros na vidraça.
— Tu vais para o comércio. Arranjei-te um emprego
Em casa de Saraiva, Almeida & Companhia.
Acredita, rapaz, que o teu e o meu sossego
Farás, se me disseres
Que não te contraria
Esta resolução. Tua mãe, que é bem boa,
Mas os defeitos tem de todas as mulheres,
Quer que sejas praí um bacharel à toa;
Pois olha que teu pai tem prática do mundo
E a máquina social conhece bem a fundo;
Para o comércio vai. Se tiveres juízo,
Em dez anos... nem tanto até será preciso...
Serás sócio da casa. A casa é muito forte,
Meu filho, e todos lá têm tido muita sorte.

O Arnaldo quis em vão protestar. O bom velho
Fez-o chegar-se ao relho,
E a ambiciosa mãe capacitou-se, em suma,
Que, na casa Saraiva, Almeida & Companhia,
Teria mais futuro o seu rapaz, que numa
Réles academia.

Pobre Arnaldo! O lugar que lhe foi reservado
Não era de caixeiro,
Mas de simples criado:
Às cinco da manhã despertava, e ligeiro
Descia aos armazéns, pegava na vassoura,
E tinha que varrer o chão. Não me desdoura
O trabalhar (o moço aos seus botões dizia).
Mas não valia a pena
Ter aprendido inglês, francês e geografia,
Se a uma eterna vassoura a sorte me condena!

O pobre rapazinho andava o dia inteiro
Recados a fazer, levípede, lampeiro,
E, à noite, fatigado,
Atirava-se à rede e um sono só dormia
Até pela manhã, quando a vassoura esguia
O esperava num canto. Ele tinha licença
De ir à casa dos pais de quinze em quinze dias!...
Sentia pela mãe uma saudade intensa!

Vida estúpida e má! Vida sem alegrias!...
Saraiva, o principal sócio daquela firma,
Tipo honrado, conforme inda hoje a praça afirma,
Andava pela Europa a viajar, e o sócio,
O Almeida, estava então à testa do negócio.
Era o Almeida casado, e tinha uma sujeita...
No intuito de evitar toda e qualquer suspeita,
Não quis o maganão que ela morasse perto
Da casa de negócio, onde estava a família:
Em S. Pantaleão, bairro sempre deserto,
Pôs-lhe casa e mobília.

O Arnaldo lamentava o seu mesquinho fado,
E andava sempre triste e sempre amargurado,
Quando o senhor Almeida, o patrão, de uma feita,
Se lembrou de o mandar à casa da sujeita,
Levar uma fazenda
De que ela lhe fizera há dias encomenda.

Lá foi o Arnaldo, e, ao dar co’a moça, boquiaberto
Ficou por não ter visto ainda tão de perto
Senhora tão formosa,
Nem tão apetitosa;
E, a julgar pelo olhar que lhe lançou a bela,
Ela dele gostou tanto como ele dela.

Era bem raro o dia em que o negociante
Não tinha que mandar o Arnaldo à sua amante
Qualquer coisa levar. Por isso, de repente,
O triste varredor mostrara-se contente,
Sagaz, ativo, esperto,
E ao pai e à mãe dizia
Que na casa Saraiva, Almeida & Companhia
Achara um céu aberto.
Pudera! O capadócio
Em dois meses passou de caixeirinho a sócio.

Fonte: Artur de Azevedo. Contos em verso (contos maranhenses). Publicado originalmente em 1909. Disponível em Domínio Público . Convertido para o português atual por J. Feldman
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* Obs. do Blog: Têm livros que Artur tem h e outros não, quando este livro me chegou às mãos eu tinha criado a imagem como escrito em outro (com h).

Clarisse da Costa [Trabalho doméstico (Vida Roubada)]

Você que é a minha mãe de verdade. Claro, a empregada que dá banho, que dá o de comer, que ensina as tarefas de casa, que brinca e ainda por cima cuida da casa inteira. Não o bastante, não podia usar o banheiro da casa, tinha o seu próprio banheiro fora de casa, muitas vezes o banheiro ficava longe.

Enquanto a empregada fazia o trabalho pesado, a patroa fazia o papel de boa esposa e patroa para toda a sociedade. À tarde ia ao chá das cinco para ficar falando da vida dos outros com as madames do bairro.

O filme "Histórias Cruzadas" retrata bem essa realidade, uma realidade cruel que persistiu por séculos. Algumas dessas mulheres, na sua maioria mulheres negras, nos dias atuais, ainda permanecem naquela casa se sentindo parte daquela família. Não percebendo que são apenas um objeto para aquela família. Ou melhor dizendo, alguém a serviço da família, sem horário para viver a sua própria vida.

Muitas viveram ao longo de suas vidas cuidando dos filhos dos outros sem poder muitas vezes cuidar de seus filhos. Mas esses absurdos não aconteciam somente com as mulheres e sim com todos os empregados da casa.

O meu pai contou que o seu patrão sabia o número exato de bananas que estavam na fruteira de prata, se faltasse uma banana ele ia cobrar de seus empregados. Os pratos dos empregados não eram os mesmos que os donos da casa usavam para comer, tal como o banheiro. O acesso à casa era restrito.

E nos dias atuais sempre vamos encontrar quem nos diga o contrário, querendo ocultar o preconceito existente. Porque não querem assumir a crueldade feita, roubando a vida de pessoas negras.

Fonte: Enviado por Samuel da Costa

domingo, 15 de outubro de 2023

Carolina Ramos (Trovando) “05”

 

Mensagem na garrafa – 10 –


Fabiane Braga Lima
Rio Claro/SP

TUDO É AMOR...

Seja uma boa ouvinte, aprenda a escutar falácias, de terceiros e lições de autoestima (entre aspas). Às vezes, se esconder na insensatez, para entender a realidade é algo que nos gera confiança, nos nossos dia-a-dia. Lógico, podemos cair em golpes e armadilhas cotidianas, diversas e diversas vezes, ao longo de perdidas horas ao longo da vida. Mas pense! A insensatez nos autointitula, como seres humanos, cada vez mais, digno de viver a verdade e a realidade.

Entrar em outros mundos, é não ter medo de tempestades, nem carregar nas costas navios em mares bravios. Entrar em outros mundos é poder nos reinventar, diante da nossa própria embriaguez, servindo-a numa taça. Todos os dias nós somos assaltados por um alguém com uma faca em punho, enquanto em intervalos, bebemos os nossos cafés com as nossas paranoias.

A arte existe para quem produz, cultivando-a, assim, o amor! A mentira, sempre é como uma miséria poética, inventada e roubada, pois somos imperfeitos. Tudo é arte, ciclos e fases, seja um bom ouvinte, ouça: Tudo é amor! Momentos bons sempre serão eternizados. Ame-se ao extremo, devemos ter esperança nos dias de hoje. Precisamos.
Fonte: enviado por Samuel da Costa

Leandro Bertoldo Silva (Vamos acordar os sonhos?)

De fato, acordei sobressaltado com aquela pergunta estranha e me sentei na cama. Ufa! Estava dormindo… Será? Ainda era madrugada e, seja como for, não mais preguei os olhos, pois aquela pergunta também não mais saía da minha cabeça. Corri para o computador e comecei a escrever… Foi assim que Oswaldo e o palhacinho de chapéu de guizos, que você está prestes a conhecer, ganharam vida e foram parar nas páginas de uma conceituada revista de educação.

O interessante é que, por algum tempo, Oswaldo, incentivado pelo brilhante amiguinho, pegou um livro que ganhara de presente, sentou no tapete de seu quarto e, pela primeira vez, abriu e começou a ler as histórias… Mas que histórias eram essas? Eu não sabia. Curioso como sou, perguntava a Oswaldo e ele falava que ainda não era hora de saber. Coisa estranha… E o tempo passou. Entrei para uma escola e fui dar aulas de Português, conheci muitas pessoas, fiz muitas outras coisas e criei o meu próprio trabalho que é hoje a Árvore das Letras, escrevi e publiquei os meus primeiros livros, entrei para a Academia de Letras de Teófilo Otoni, em Minas Gerais, e fiz amizade com muitos escritores e escritoras, criei a minha própria produção sob demanda e o selo Alforria Literária através de prensa de madeira, a “Paula Brito”, onde os meus livros são feitos.

Até que um belo dia estava cortando alguns papeis para as capas de um livro, quando Oswaldo e seu amigo entraram sala adentro dizendo:

“Quer mesmo saber quais eram as histórias que eu lia? Elas estão aqui!”

Ao me refazer do baita susto que levei, olhei ao redor e só via os meus livros, os papeis, a “Paula Brito”, a Árvore das Letras. Aí perguntei:

“Aqui onde?”

E a resposta veio:

“Assim como os escritores nascem de outros escritores, as histórias nascem de outras histórias! E mais… Nascem das nossas experiências e dos nossos sonhos. Você já devia saber… Tudo o que tem a fazer é dar forma aos seus pensamentos, emendar um no outro, colocar os ‘pingos nos is’. Faça isso e irá se surpreender!”

Bem, foi assim que o livro surgiu. Das minhas lembranças de infância, das minhas leituras, fui juntando palavras, fatos, ideias, nomes daqui e dali como numa gostosa e divertida brincadeira. Dessa brincadeira juntei peças, troquei personagens de lugar, tornei a trocar, misturei um com o outro e consegui algo extraordinário: não apenas uma, mas várias histórias!

Ao término desse trabalho, Oswaldo e o palhacinho viraram para mim e disseram:

“Agora está pronto!”

Aí foi a minha vez de falar:

“Não está! Ainda falta uma coisa…”

E assim nasceu o epílogo do livro ao contar o que aconteceu após Oswaldo ter lido as histórias que seguiam…

Agora é com você! Leia-as e abra-se para o mundo dos sonhos e da imaginação, pois, tenha certeza, todas as possibilidades vivem guardadas lá…

Cecy Barbosa Campos (Passarinhada)

Por volta das quatro horas da manhã, um pássaro amenizou a minha insônia. O seu alegre chilrear transformou a minha vigília numa espera prazerosa. Queria ouvi-lo outra vez. Passados alguns minutos, chegou um seu companheiro, depois outro, talvez dezenas de pássaros, que se juntaram em coro numa sinfonia matinal.

Lembrei-me do poema de Emily Dickinson que anuncia a chegada da manhã pelo cantar dos passarinhos, que bem cedo se unem para saudar o nascer do sol.

Achava bela, porém, exagerada a descrição poética em que os pássaros começavam tão cedo a sua celebração diária. Todavia, é fato. Ali estão eles, na pracinha, antes do alvorecer, cumprimentando efusivamente, a estrela maior. E eu, do meu quarto, sou presenteada com aquela melodia que recebo como sendo para mim.

Percebo então que, apesar de todas as desgraças divulgadas pelos jornais, de todas as falcatruas noticiadas, diariamente, pelos meios de comunicação, de toda a maldade e violência que, dificilmente, acreditamos geradas pelo ser humano, não podemos nos sentir como vítimas desamparadas em um mundo-cão.

Por certo, há esperanças e elas permanecerão enquanto conseguirmos manter os ouvidos abertos aos sons do bem e formos capazes de absorver as belezas da natureza que nos envolve.

Fonte: Cecy Barbosa Campos. Recortes de Vida. Varginha/MG: Ed. Alba, 2009. Enviado pela autora.

Luiz Damo (Trovas do Sul) XLIX


Às vezes, nos deparamos
com barreiras nos caminhos,
porque aquilo que esperamos
são flores e nunca espinhos.
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A vida, na finitude,
o seu fim é Deus quem sabe,
mas o homem, querendo mude,
antes que o tempo se acabe.
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Cessa à tarde, a luz e invade,
sobre a relva, um denso véu,
encobrindo toda a herdade,
com sombras vindas do céu.
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Deus deixou sua mensagem,
que os povos não vivam sós,
fez o homem à sua imagem
para ser seu porta-voz.
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Distinga o joio do trigo,
deixe a justiça ser feita,
jamais impute um castigo
antes que ocorra a colheita.
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Enquanto avanças e fores
plantando com persistência,
porás no lugar das flores
os frutos da experiência.
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Equivoca-se ao julgar
quem seguir as aparências,
pode a evidência enganar
e instar novas diligências.
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Escuto, em tom de respeito,
preito que à paz corrobora,
porém, se eu não for aceito,
peço vênia e vou-me embora.
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Impedir que o tempo passe
não passa de uma utopia,
mesmo havendo quem tentasse
num crasso engodo, estaria.
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Não mude a topografia
que à natureza se encrava,
nem por luxo ou covardia
explore-a tornando-a escrava.
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Não tem igual sofrimento
que estar sem a liberdade,
a prisão dura um momento
e a dor, toda a eternidade.
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Nenhuma pedra atravanque
teus passos, na caminhada
e nenhum espinho estanque
a esperança da chegada.
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Ninguém tem maior amor
do quem dá a vida aos irmãos,
seja na alegria ou dor
bem sabe estender as mãos.
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O amargo do chimarrão
faz parte de uma cultura,
que o Gaúcho, à tradição,
toma-o com garbo e doçura.
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O ano passa e pede espaço
para entrar seu sucessor
num adeus, o mesmo abraço
dado pelo antecessor.
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O embate, quando se acirra,
nos campos do antagonismo,
torna o combate uma pira
que arde no fundo do abismo.
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O falso brilho conspira
contra as luzes da verdade,
pois, na verdade, a mentira,
é sombra da falsidade.
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Passam as horas dos dias
e os dias do mês, também,
muitas, cheias de alegrias,
outras, vazias no além.
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Quem buscar na natureza
a flor que o tempo levou,
sente, na brisa, a leveza,
do aroma que ela deixou.
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Quem não decifra o lugar
que represente a chegada,
se longe, ou for devagar,
pode acabar pela estrada.
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Quem não tem pressa a chegar
no destino ou fim da estrada,
não cansa, mas devagar,
há de tardar a chegada.
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Se a fonte d'água estiver
longe do alcance da mão
e a sede, tréguas não der,
busque outra na imediação.
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Se a semente não morrer
num solo bem preparado,
não tem como florescer,
nem ter o fruto esperado,
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Se a vida não for aquela
que sonhei nunca ter fim,
para torná-la mais bela,
depende apenas de mim.
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Se o fim do poço alcançares
e entrares na estreita fenda,
menor chance tens de içares
ao topo, em árdua contenda.
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Se, por cepo entendo um toco,
de um velho tronco tombado,
quiçá, esteja tendo o troco,
de um comportamento errado.
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Fonte: Luiz Damo. As faces da trova. Caxias do Sul/RS: Ed. do Autor, 2021. Enviado pelo autor.

Lima Barreto (Com o "binóculo")

Ontem, domingo, o calor e a mania ambulatória não me permitiram ficar em casa. Saí e vim aos lugares em que um "homem das multidões" pode andar aos domingos. Julgava que essa história de piqueniques não fosse mais binocular; o meu engano, porém, ficou demonstrado.

No Largo da Carioca havia dois ou três bondes especiais e damas e cavalheiros, das mais chiques rodas, esvoaçavam pela Galeria Cruzeiro, à espera da hora. Elas, as damas, vinham todas vestidas com as mais caras confecções ali do Ferreira, do Palais, ou do nobre Ramalho Ortigão, do Pare, e ensaiavam sorrisos como se fossem para Versalhes nos bons tempos da realeza francesa.

Eu pensei que uma pasmosa riqueza tinha abatido sobre o Ameno Resedá ou sobre a "Corbeille des Fleurs" do nosso camarada Lourenço Cunha; mas estudei melhor as fisionomias e recebi a confirmação de que se tratava de damas binoculares, que iam a uma festa hípica, ou quer que seja, no Jardim Botânico.

Não é de estranhar que as pessoas binoculares vão a festas e piqueniques, mas assim, charanga à porta, a puxar o cortejo com um dobrado saltitante, julgo eu que não é da mais refinada elegância.

O Binóculo deve olhar para esse fato; deve procurar por um pouco mais de proporção, de discrição nessas manifestações festivas da nossa grande roda aos cavalos de corridas; e ele tem tanto trabalho para o refinamento da nossa sociedade que não pode esquecer esse ponto.

Imagino que em Paris ou Londres os dez mil de cima não dão aos "rotos" esse espetáculo de tão flagrante mau gosto.

Não posso compreender como a elegante Mme. Bulhões Sylvá, toda lida e saída nas revistas, jornais e livros do bom tom, que tem o “Don’t” de cor, como o Senhor Aurelino o Código Penal, saia de manhã de casa, meta-se num bonde em companhia de pessoas mais ou menos desconhecidas e vá pelas ruas do Rio de Janeiro afora, ao som de uma charanga que repinica uma polca chorosa de muito rancho carnavalesco.

Fonte: Originalmente no Correio da Noite, 11 de janeiro de 1915. Disponível em Domínio Público.

Nilto Maciel (A noite das garrafadas)

A hora talvez fosse tarde. A janta, nem lembrávamos mais dela. Baião-de-dois, ovos, com tempero de coentro e cebola. Ou cuscuz com leite. Depois rezamos o terço, ave-maria cheia de graça, padre-nosso que estais nos céus, kyrie, eleison, atos de fé, esperança, caridade e contrição. Ajoelhados, cansados, eu pensei o tempo todo nas meninas da nossa rua. Só queríamos que aquilo terminasse logo e pudéssemos jogar damas, dominó, baralho.

O rádio velho chiava no canto da parede, falava do mundo, cantava amores. Nosso pai ainda não havia voltado do trabalho, nossa mãe enchia os potes, lavava os pratos, espantava os ratos. E nós três pintávamos o sete na sala.

Súbito uma garrafa se espatifou no meio da rua, e gritavam, discutiam, sapateavam dez ou mais rapazes na calçada defronte. Da janela assistíamos a tudo, e ríamos dos que cambaleavam e levantavam-se sujos e amarrotados.

Uma voz fanhosa chorava dentro da caixa do rádio, bem mais triste do que aquelas noites. As mariposas voluteavam ao redor da lâmpada pendurada no meio da sala.

Os cacos de vidro brilhavam entre as pedras do calçamento, verdes, pontiagudos, inúmeros. E os rapazes pulavam, corriam, esmurravam-se, chutavam-se, feridos, alguns cobertos de sangue, outros a chorar. Das janelas, mulheres e homens gritavam. E já outras mulheres gordas e velhas misturavam-se aos brigões, aos gritos e lamentos.

Os soldados chegaram muito tempo depois, armados de cassetetes, e mais garrafas se quebraram, mais socos e pontapés se deram, mais gritos desesperados, uns caídos, outros fugidos. Meus dois olhos já não viam tudo, ora no braço erguido de um, ora no grito infindável de outro, aqui, ali, acolá.

Alguns pequeninos pedaços de vidro às vezes salpicavam nossos rostos, saltavam para o interior da sala, retiniam no parapeito da janela, confundiam-se com as mariposas.

Muito tempo durou a noite. Nosso pai, quando chegou, passou-nos um carão medonho. Aquilo não eram horas de menino estar acordado.

Ainda mais olhando briga de vagabundo.

Caímos nas redes e passei a noite sonhando com brigas e garrafadas.

Fonte: Nilto Maciel. Babel. Brasília/DF: Editora Códice, 1997. Enviado pelo autor.

sábado, 14 de outubro de 2023

Daniel Maurício (Poética) 59

 

Mensagem na Garrafa – 9 -

Paulo Mendes Campos

Belo Horizonte/MG, 1922–1991, Rio de Janeiro/RJ

MENINA NO JARDIM

Em seus 14 meses de permanência neste mundo, a garotinha não tinha tomado o menor conhecimento das leis que governam a nação. Isso se deu agora na praça, logo na chamada República Livre de Ipanema.

Até ontem ela se comprazia em brincar com a terra. Hoje, de repente, deu-lhe um tédio enorme do barro de que somos feitos: atirou o punhado de pó ao chão, ergueu o rosto, ficou pensativa, investigando com ar aborrecido o mundo exterior. Por um momento seus olhos buscaram o jardim à procura de qualquer novidade. E aí ela descobriu o verde extraordinário: a grama.

Determinada, levantou-se do chão e correu para a relva, que era, vá lá, bonita, mas já bastante chamuscada pela estiagem. Não durou mais que três minutos seu deslumbramento. Da esquina, um senhor de bigodes, representante dos Poderes da República, marchou até ela, buscando convencê-la de que estava desrespeitando uma lei nacional, um regulamento estadual, uma postura municipal, ela ia lá saber o quê.

Diga-se, em nome da verdade, que no diálogo que se travou em seguida, maior violência se registrou por parte da infratora do que por parte da Lei, um guarda civil feio, mas invulgarmente urbano.

– Desce da grama, garotinha – disse a Lei.

– Blá blé bli bá – protestou a garotinha.

– É proibido pisar na grama – explicou o guarda.

– Bá bá bá – retrucou a garotinha com veemência.

– Vamos, desce, vem para a sombra, que é melhor.

– Buh buh – afirmou a garotinha, com toda razão, pois o sol estava mais agradável do que a sombra.

A insubmissão da garotinha atingiu o clímax quando o guarda estendeu-lhe a mão com a intenção de ajudá-la a abandonar o gramado. A gentileza foi revidada com um safanão. “Dura lex sed lex” (a lei é dura, mas é a lei).

– Onde está sua mamãe?

A garotinha virou as costas ao guarda com desprezo. A essa altura levantou-se do banco, de onde assistia à cena, o pai da garota, que a reconduziu sob chorosos protestos à terra seca dos homens, ao mundo sem relva que o Estado faculta ao ir e vir dos cidadãos.

A própria Lei, meio encabulada com o seu rigor, tudo fez para que o pai da garotinha se persuadisse de que, se não há mal para que uma brasileira tão pequenininha pise na grama, isso de qualquer forma poderia ser um péssimo exemplo para os brasileiros maiores.

– Aberto o precedente os outros fariam o mesmo – disse o guarda com imponência.

– Que fizessem, deveriam fazê-lo – disse o pai.

– Como? – perguntou o guarda confuso e vexado.

– A grama só podia ter sido feita, por Deus ou pelo Estado, para ser pisada. Não há sentido em uma relva na qual não se pode pisar.

– Mas isso estraga a grama, cavalheiro!

– E daí? Que tem isso?

– Se a grama morrer, ninguém mais pode ver ela – raciocinou a Lei.

– E o senhor deixa de matar a sua galinha só porque o senhor não pode mais ver ela?

O guarda ficou perplexo e mudo. O pai, indignado, chegou à peroração:

– É evidente que a relva só pode ter sido feita para ser pisada. Se morre, é porque não cuidam dela. Ou porque não presta. Que morra. Que seja plantado em nossos parques o bom capim do trópico. Ou que não se plante nada. Que se aumente pelo menos o pouco espaço dos nossos poucos jardins. O que é preciso plantar, seu guarda, é uma semente de bom-senso nos sujeitos que fazem os regulamentos.

– Buh bah – concordou a menina, correndo em disparada para a grama.

– O senhor entende o que ela diz? – perguntou o guarda.

– Claro – respondeu o pai.

– Que foi que ela disse agora?

– Não a leve a mal, mas ela mandou o regulamento para o diabo que o carregue.

Fonte: Sales, Herberto (org.).Antologia Escolar de Crônicas. Rio de Janeiro, Tecnoprint, 1971. 
p. 213-16.

Contos do Paraná ("Ao pé das letras", de Wilson Silva)

Dezembro de 1953. A greve na aviação comercial forçava os pilotos de táxi-aéreo a um sobre-esforço para suprir as faltas dos Douglas, Convair e Scandia das companhias. Voavamos desde o nascer até o por-do-sol. A maioria das viagens era de Londrina para Curitiba e vice-versa.

Eu já estava pilotando no limite da resistência. Quase me transformara, como os outros companheiros, num piloto-automático, decolando, ganhando altura, nivelando, baixando, aproximando, pousando... e repetindo tudo logo em seguida.

Naquela tarde eu taxiei o Bonanza PT-AHO até a cabeceira 17 do Bacacheri, com três passageiros. Dos que estavam no assento traseiro não me lembro. Mas à minha direita, na frente, ia o Michel Dib, chefe do Serviço de Trânsito de Cornélio Procópio, devidamente fardado (brim cáqui) e com seu quepe branco. Já conhecia Dib de outros voos. Magro, traços bem marcados de árabe, fala mansa, jeito tranquilo. Decolei e aproei Londrina, ganhando altura.

Fazia um calor sufocante, o sol parecia querer nos fritar dentro do avião. No ar quente e pesado, o Bonanza se arrastava como num pote de geleia, pesado e com má vontade aerodinâmica.

De súbito eu - que pilotava librado em pensamentos extra-aeronave - ouço o rechinar (ranger) das engrenagens do trem-de-pouso baixando. Levo um susto, corto a manete (acelerador do motor) de aceleração, puxo o manche para trás, "matando" a velocidade e procuro, num átimo, localizar a "pane".

Um trem-de-pouso jamais pode ser baixado em linha-de-voo, em velocidade de cruzeiro. Checo o painel e vejo a chave de comando do trem na posição de "down" (baixo). Não entendi, eu não havia comandado trem baixo!

Dib, encostado na porta, braços cruzados e quepe com a pala sobre os olhos, estava quieto, como um anjinho:

- Dib, ô Dib! Você mexeu aqui? - Perguntei quase gritando.

- Eu? Ué! - pensou alguns segundos - Mexi sim!

- Mas, como? Essa é a chave de trem-de-pouso, tem uma trava de segurança por baixo! Por que fez isso?

A inocência da resposta do Dib me fez rir:

- Wilson, é que estava muito quente aqui dentro. Aí, comecei a olhar, olhar e vi escrito "Landing Gear". Gear, pensei, é frio. Aí, empurrei essa chavinha pra baixo, ué!...
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Wilson Silva, ex-aviador no Norte do Paraná, jornalista.

Fonte: 300 Histórias do Paraná: coletânea. Curitiba: Artes e Textos, 2004.

Márcia Wayna Kambeba (Poemas “Tana Tuiuca*”)

(Tana Tuiuca = “Nossa Terra”, no idioma Kambeba)


Márcia Wayna Kambeba é indígena, do povo Omágua/Kambeba do Alto Solimões (AM). Nasceu na aldeia Belém do Solimões, do povo Tikuna. Mora hoje em Belém (PA) e é mestra em Geografia pela Universidade Federal do Amazonas. Atualmente, está cursando doutorado em Linguística na UFPA. Escritora, poeta, compositora, fotógrafa e ativista. Em sua luta na literatura e na música, aborda, sobretudo, a identidade dos povos indígenas, territorialidade e a questão da mulher nas aldeias. Em 2013, lançou o seu primeiro livro "Ay Kakyri Tama", que reúne textos poéticos e fotografias da vivência do seu povo dentro das cidades.

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ÁRVORE DA VIDA

Vem água, banha nossa alma Kambeba!

No despertar da aurora,
No mito de criação,
Na gota que traz a vida,
De um povo, de uma nação.

Batendo na samaumeira
Caindo feito algodão,
Pro colo do grande rio
Que num sopro de criação,
Dá vida ao “índio” guerreiro,
E a mulher, sua paixão.

Assim para o povo Omágua
A samaumeira tem a função,
De mãe das grandes árvores,
De cura e proteção,
E pelo indígena é cultuada,
Essa gigante, mãe amada,
Na dança nativa, dos povos irmãos.
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AY KAKUYRI TAMA
(Eu Moro na Cidade)


Eu moro na cidade
Esta cidade também é nossa aldeia,
Não apagamos nossa cultura ancestral,
Vem homem branco, vamos dançar nosso ritual.

Nasci na Uka* sagrada,
Na mata por tempos vivi,
Na terra dos povos indígenas,
Sou Wayna, filha da mãe Aracy.

Minha casa era feita de palha,
Simples, na aldeia cresci
Na lembrança que trago agora,
De um lugar que eu nunca esqueci.

Meu canto era bem diferente,
Cantava na língua Tupi,
Hoje, meu canto guerreiro,
Se une aos Kambeba, aos Tembé, aos Guarani.

Hoje, no mundo em que vivo,
Minha selva, em pedra se tornou,
Não tenho a calma de outrora,
Minha rotina também já mudou.

Em convívio com a sociedade,
Minha cara de “índia” não se transformou,
Posso ser quem tu és,
Sem perder a essência que sou,

Mantenho meu ser indígena,
Na minha identidade,
Falando da importância do meu povo,
Mesmo vivendo na cidade.
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CABOCLO RIBEIRINHO

Ao som do banzeiro do rio
As canoas vem, as canoas vão.

É o caboclo ribeirinho,
Que luta pelo seu sustento, pelo seu pão
Ele rema, joga a sua malhadeira
Esperando pegar um bom pirarucu
Ou um grande pirabutão.

Ao som da melodia dos pássaros,
Que voam em sua direção,
Ele segue o seu caminho,
Observando o horizonte,
que está além do alcance de sua mão.
Ao som do banzeiro do rio

As canoas vem, as canoas vão.

É o caboclo ribeirinho,
Que vive a vida com emoção,
Em meio ao verde e à margem do rio,
Cultiva a vida, sem muita preocupação.

Seu convívio em meio a natureza,
Fez dele um grande conhecedor,
Sabe os segredos da fauna e da flora,
Dom de Deus, o nosso criador,
Que se revela no entardecer da aurora.

Ao som do banzeiro do rio
As canoas vem, as canoas vão!
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NATUREZA EM CHAMA

Na terra sagrada
Que Tupã criou,
Do seio materno
Se ouve o clamor,
Da mãe natureza
Sofrendo de dor.

O fogo ardente,
Ao longe se vê,
Queimando a mata
Sem quê, nem porquê,
As folhas se torcem
Querendo viver.

No solo desnudo,
Os restos mortais,
Do verde da vida
E dos animais,
Queimados, sofridos
Em cinzas reais.

Dos gritos agudos
Se ouve o clamor,
Do fruto ardendo
Na chama, no calor,
Ceifado, perdido,
O fogo o calou.

Dos olhos tristes,
Uma lágrima cai,
O lamento de dor
Com o vento se vai,
Varrendo o chão,
Varrendo o chão!
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SER INDÍGENA – SER OMÁGUA

Sou filha da selva, minha fala é Tupi.
Trago em meu peito,
as dores e as alegrias do povo Kambeba
e na alma, a força de reafirmar a
nossa identidade
que há tempo fico esquecida,
diluída na história
Mas hoje, revivo e resgato a chama
ancestral de nossa memória.

Sou Kambeba e existo sim:
No toque de todos os tambores,
na força de todos os arcos,
no sangue derramado que ainda colore
essa terra que é nossa.
Nossa dança guerreira tem começo,
mas não tem fim!
Foi a partir de uma gota d’água
que o sopro da vida
gerou o povo Omágua.
E na dança dos tempos
pajés e curacas*
mantêm a palavra
dos espíritos da mata,
refúgio e morada
do povo cabeça-chata.

Que o nosso canto ecoe pelos ares
como um grito de clamor a Tupã,
em ritos sagrados,
em templos erguidos,
em todas as manhãs!
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TANA KANATA AYETU
(Nossa Luz Radiante)


Tuyuca com sua magia,
Um canto se faz ecoar,
Com a orquestra dos passarinhos
A música paira no ar,
Mas, é preciso sensibilidade,
Para a melodia escutar.

Nas escala musical
O rouxinol vem nos mostrar,
Sua voz graciosa,
Que unida ao sabiá,
Formam uma dupla harmoniosa,
E com suavidade, nossa vida vem alegrar.

E diante de tanta beleza,
Deste solo verde e marrom,
Convivem os povos indígenas
Dividindo os bens em comum,
E com a força da natureza,
Deus mostra sua realeza,
Na presença de Tana Kanata Ayetu.
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UNIÃO DOS POVOS

Nós, povos indígenas,
Habitantes do solo sagrado,
Mesmo sem nossa aldeia,
Somos herdeiros de um passado.

Buscamos manter a cultura,
Vivendo com dignidade,
Exigimos nosso respeito,
Mesmo vivendo na cidade.

Somos parte de uma história,
Temos uma missão a cumprir,
De garantir aos tanu muariry*,
Sua memória, seu porvir.

Vivendo na rytama* do branco,
Minha uka* se modificou,
Mas, a nossa luta pelo respeito,
Essa ainda não terminou.

Pela defesa do que é nosso,
Todos os povos devem se unir,
Relembrando a bravura,
Dos Kambeba, dos Macuxi,
Dos Tembé e dos Kocama,
Dos valentes Tupi Guarani

Assim, os povos da Amazônia,
Em uma grande celebração,
Dançam o orgulho de serem,
Representantes de uma nação,
Com seu canto vem dizer:
Formamos uma aldeia de irmãos.
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* Vocabulário:
Curacas = caciques;
Rytama = aldeia;
Tanu muariry = nossos netos;
Uka = casa.


Fonte: Márcia Kambeba. "Ay kakyri Tama - Eu moro na cidade". Manaus/AM: Grafisa Gráfica e Editora, 2013

Contos e Lendas do Mundo (Nicarágua: O barco negro)

Nota: Existem algumas versões em várias regiões da Nicarágua sobre barcos que navegam sem nunca encontrar o porto. Narrado por uma mulher do povoado de Zapatera, em 1930, este relato pertence a Pablo Antonio Cuadra, um dos escritores nicaraguenses mais conhecidos da atualidade. Tem uma vasta obra em verso, dirigiu várias publicações, como a revista El Pez y la Serpiente. Este conto foi publicado pela primeira vez em seu livro Esos Rostros Que Asoman en la Multitud (Esses rostos que aparecem na multidão).
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Contam que muito, mas muito tempo atrás, uma lancha estava cruzando de Granada a São Carlos e, quando contornava a Ilha Redonda, recebeu sinais de socorro feitos com um lençol.

Então dirigiu-se para lá.

Ao desembarcar, os tripulantes ouviram apenas lamentos de dor. As duas famílias que viviam na ilha, desde os idosos até as crianças, estavam morrendo envenenadas. Haviam comido uma rês que morrera picada por uma cobra venenosa.

– Levem-nos para Granada, pelo amor de Deus! – suplicaram.

– E quem paga a viagem? – perguntou o capitão.

– Não temos nem um centavo – responderam os envenenados –, mas pagamos com lenha, com bananas.

– E quem vai cortar a lenha? Quem vai colher as bananas? – indagaram os marinheiros.

– Estou levando uma vara de porcos a Los Chiles e, se não ficar atento, os animais morrerão sufocados – lembrou o capitão.

– Mas nós somos gente! – argumentaram os moribundos.

– Nós também! – replicaram os barqueiros – E ganhamos a vida com isso.

– Mas, meu Deus! – gritou então o mais antigo morador da ilha. – Não veem que, se nos deixarem aqui, nos entregarão à morte?

– Lamento, mas temos compromissos. – ponderou o capitão.

E voltou ao barco com os marinheiros, sem sentir a menor pena daquela gente, nem mesmo vendo como os coitados se contorciam.

E lá ficaram eles. Mas uma velhinha levantou-se imediatamente do catre e, gritando o mais que pôde, lançou-lhes uma maldição:

– Que se feche o lago para eles, assim como nos fecharam o seu coração!

A lancha partiu, afastou-se pelas altas águas do lago a caminho de São Carlos e se perdeu.

Assim contam. Nunca mais avistaram terra. Não podem ver as montanhas nem as estrelas. Há anos, dizem, séculos que estão perdidos. O barco já está negro, as velas podres, e o cordame arrebentado.

Muita gente do lago os tem visto. Topam nas altas águas com o barco negro, e os marinheiros, barbudos e esfarrapados, gritam:

– Onde fica São Carlos?

– Onde fica Granada?

...Mas o vento os leva e não conseguem avistar terra. Foram amaldiçoados.

Fonte:
Ruth Guimarães e outros. Mitos, contos e lendas da América Latina e do Caribe. Ed. Melhoramentos.

sexta-feira, 13 de outubro de 2023

Therezinha D. Brisolla (Trov" Humor) 17

 

Mensagem na Garrafa – 8 -


Fernando Pessoa

Lisboa/Portugal,1888–1935

PALCO DA VIDA

Você pode ter defeitos,
viver ansioso e ficar irritado algumas vezes,
mas não se esqueça de que sua vida é a maior riqueza do mundo.
E somente você pode evitar que ela vá a falência.
Há muitas pessoas que precisam, admiram e torcem por você.
Gostaria que você sempre se lembrasse de que ser feliz não é ter um céu sem tempestade, caminhos sem acidentes, trabalhos sem fadigas, relacionamentos sem desilusões.
Ser feliz é encontrar força no perdão, esperança nas batalhas, segurança no palco do medo, amor nos desencontros.
Ser feliz não é apenas valorizar o sorriso, mas refletir sobre a tristeza.
Não é apenas comemorar o sucesso, mas aprender lições nos fracassos.
Não é apenas ter júbilo nos aplausos, mas encontrar alegria no anonimato.
Ser feliz é reconhecer que vale a pena viver, apesar de todos os desafios, incompreensões e períodos de crise.
Ser feliz é deixar de ser vítima dos problemas e se tornar um autor da própria história.
É atravessar desertos fora de si, mas ser capaz de encontrar um oásis no recôndito da sua alma.
É agradecer a Deus a cada manhã pelo milagre da vida.
Ser feliz é não ter medo dos próprios sentimentos.
É saber falar de si mesmo.
É ter coragem para ouvir um não.
É ter segurança para receber uma crítica, mesmo que injusta.
Ser feliz é deixar viver a criança livre, alegre e simples que mora dentro de cada um de nós.
É ter maturidade para falar eu errei.
É ter ousadia para dizer me perdoe.
É ter sensibilidade para expressar eu preciso de você.
É ter capacidade de dizer eu te amo.
É ter humildade da receptividade.
Desejo que a vida se torne um canteiro de oportunidades para você ser feliz . . .
E, quando você errar o caminho, recomece.
Pois assim você descobrirá que ser feliz não é ter uma vida perfeita.
Mas usar as lágrimas para irrigar a tolerância.
Usar as perdas para refinar a paciência.
Usar as falhas para lapidar o prazer.
Usar os obstáculos para abrir as janelas da inteligência.
Jamais desista de si mesmo.
Jamais desista das pessoas que você ama.
Jamais desista de ser feliz, pois a vida é um obstáculo imperdível ainda que se apresentem dezenas de fatores a demonstrarem o contrário.

Pedras no caminho?
Guarde todas,
um dia vai construir um castelo . . .

Carolina Ramos (Mudança...)

Tini morreu bem velhinho, mas sempre bonito, passeando a majestade da sua bela cauda arrastada solenemente pelo piso do sobradão da Ponta da Praia. Isto porque, quando cheguei à idade mágica dos dezoito anos, meu pai, que vendera os dois bangalôs da Alexandre Herculano, comprara o tal lindo sobrado, com seu torreão lateral, estilo mourisco, lá para os lados da Ponta da Praia - Rua Januário dos Santos, com amplo quintal arborizado a atrair pássaros, borboletas e crianças, que aos poucos chegariam.

O novo endereço tornou-se palco de um casamento, de início desajustado e sofrido, e que, embora se estendesse por vinte e um anos, chegou à inapelável separação, com saldo positivo de três filhos muito e muito queridos.

Lá, moramos por largo tempo, até que, naquele decisivo 1970, meu pai, ante o casamento desfeito da filha, adquiriu o apartamento, frente ao mar, palco de nossas novas vidas, onde ele e minha mãe residiram até o final de seus dias. Neste espaçoso apartamento, foram criados meus filhos até quando, cada um a seu tempo bateu asas, deixando o ninho, ao traçar os próprios rumos.

Nesse ninho ainda estou. E dele também partirei, num dia que só Deus conhece.

O condomínio "Núncio Malzoni", onde se localiza o apartamento em pauta, logo depois de construído, passou a apresentar os mesmos problemas de inclinação comuns aos demais da região, passando, com o tempo, a ser conhecido como - Torre de Pizza santista.

Durante muito tempo fez jus a esta citação, acabando por ser o primeiro a ser posto novamente a prumo. E isto, é preciso que se diga, aconteceu com tecnologia nacional, o que atraiu o interesse de engenheiros da Itália e Alemanha. Hoje, o nosso ex-Torto é referência das mais honrosas à tecnologia brasileira, sendo considerado um dos prédios mais sólidos da orla santista.

A narrativa aos poucos desvirtuou-se ao assumir, quase que de modo inevitável, um leve tom autobiográfico, absolutamente não pretendido. É hora do retorno ao enfoque inicial, fiel ao que pede o título: - "Bichos... bichinhos... e bichanos" - queridos amiguinhos que, em tempos distantes, deixaram suas pegadas ao lado dos meus passos.

Para retomar o fio das ideias, faz-se necessário, entretanto, outro retrocesso. Assim, retornemos àquele elegante sobrado da Rua Januário dos Santos que acabou por fazer com que a população felina crescesse, a partir das ninhadas abusivamente despejadas em seu amplo jardim, na certeza de que não seriam descartadas por quem provava ter coração mole, capaz de acolher cães, gatos e outros animaizinhos, desde que abandonados à sua porta.

Acredito que até mesmo São Francisco, sempre amigo dos animais, (a ponto de ser eleito Protetor deles), tenha dado a muitos dos seus protegidos o endereço daquela casa acolhedora, que tão bem os recebia, embora nem sempre de boa vontade por parte de minha mãe.

Contudo, é preciso que se diga - minha santa mãezinha, quase sempre acabava por integrar-se às tarefas assumidas pela filha. Mas... O dedinho solidário de São Francisco, indicador daquele endereço, deixa evidenciado que, pelo menos daquela vez, ele não estaria de todo ausente às circunstâncias.

E isto explica o telefonema recebido, numa tarde qualquer, de uma vizinha moradora na casa fronteira à nossa. Alertava-me ela que havia um cavalo, há muito tempo, com a cabeça enfiada por sobre o portão da nossa garagem... como a querer entrar.

Voei para o portão. Fato confirmado.

Lá estava o tal cavalo - longo pescoço a ultrapassar o portão da garagem, enquanto o dono daquele pescoço, impassível e sem demonstrar qualquer receio, parecia ciente, de sobejo, ser aquele o endereço absolutamente certo, que procurava.

Aproximei-me... Acarinhei-o, sem que me repelisse ou demonstrasse qualquer receio.

Foi quando, com desgosto, pude ver uma enorme chaga no dorso daquele pobre cavalo, provocada pelo roçar dos arreios... por algum excesso de carga, ou... sabe-se lá pelo que!

Imediatamente, fui à busca de medicamentos e, após limpeza do ferimento, cuidei da feia ferida sem que aquele pobre animal demonstrasse rebeldia ou a mínima vontade de afastar-se dali. E, também, sem esquivar-se à minha intervenção, que embora cuidadosa e bem intencionada, não deixaria de ser, inevitavelmente, dolorosa.

Quando terminei, acariciei-o em despedida. E ele, mesmo, sem que ninguém o mandasse embora, afastou-se lentamente, sem que jamais eu o tornasse a ver.

Naquele sobrado da Rua Januário, outros bichinhos se fizeram presentes, tais como dois jabutis, que tomaram para si o canteiro do lado esquerdo do casarão, nunca saindo dali - como se aquele território estivesse demarcado apenas para desfrute daquele pacato casal cascudo.

E, por lá, apareceu também o Barão - um cão com veleidades à raça policial, embora de menor porte. Meu pai o recolhera, após ser ele atropelado na praia por um dos bondes que, naquele tempo, por lá circulavam. Fora salvo por uma dessas plataformas embutidas e que eram baixadas em casos de emergência, para proteção da vítima, isolando-a das rodas e amenizando traumas do atropelamento. Barão safara-se, com a graça de Deus, embora com uma das pernas comprometida.

Cão pacato, dócil, embora estigmatizado pela aparência. Seu terror à pirotecnia era cada vez mais notório! Num festivo mês junino, tivemos que o ir buscar na casa de um vizinho, coronel do exército, que nos avisara estar o Barão, trêmulo e apavorado por conta do foguetório, escondido no andar superior, sob a cama do casal. Seus dentes agressivos não permitiam que ninguém o tirasse de lá. Pobre Barão! Bravo apenas na aparência. Pão casca dura, mas só por fora... Por dentro... apenas miolo dos mais macios!

Lembrou-me, recentemente, uma de minhas filhas, a Márcia, que chegamos a ter, ainda que só por alguns dias, um cão da raça Guaió. Muito vagamente lembro-me dele e sequer ouvi falar sobre a existência da tal raça que, segundo minha informante, foi iniciada aqui em Santos e que teria conotações com a raça fila (?) - única raça brasileira catalogada. Se assim for, o tal cãozinho de pelagem negra encaracolada, que passou conosco apenas alguns dias, teria relevante pedigree. Mesmo assim, sua vaga passagem não permite lembrar como chegou até nós e nem, quando se foi. Que fique o registro.

Fonte: Carolina Ramos. Meus Bichos, Bichinhos e… Bichanos. Santos/SP: Ed. da Autora, 2023.
Enviado pela autora.

Daniel Maurício (Alma Lírica) – 2


No parque
Já é primavera.
Mas dentro de mim,
O outono insiste
A desfolhar
Lembranças.
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O amor é flor
Que não
Escolhe
A cor pra
Desabrochar.
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O sorriso virou saudades
No lugar vazio
Cheiro de lavanda
Com o tempo
Os olhos já não regam
As pálpebras entristecidas
Mas o coração,
Ah!
Este continua navegando
Encharcado de lembranças.
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Me fiz lua
Só pra
Ser tua
Todas
As noites.
= = = = = = = = =

Esqueci de combinar com o coração
Quando disse
Que não iria mais me apaixonar.
Ps.:
E a paixão ganhou nome, o teu.
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Quando
penso
em você
Balança
em mim
Uma árvore
de saudades
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Derrubando poesia
Tomara que um dia
Alguém encontre
E guarde alguma pra si.
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A saudade
Brincou de fazer colar de pérolas
No meu rosto
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Suavemente
Cai uma frutinha no rio.
Sem ondas,
Na calmaria das águas,
Encho o meu bolso de silêncio.
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Pensando
O
Futuro
Quando ela percebeu
Que a soma dos ontens
Era maior do que a soma
Dos amanhãs
Ela entendeu
A urgência do hoje
Dado como um pão sagrado
E começou a viver.
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ÍNDIO

Ao som dos gritos dos guerreiros
A natureza dança de corpo inteiro.
E nas asas dos pássaros ligeiros
Suas almas cantam livres e sem medos.
Mas nos olhos faiscantes
Escorrem os sonhos dos antepassados.
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Seu beijo
É a chave
Que abre meu apetite.
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No
Corpo
Da
índia
Destemida
A natureza sem ser reprimida
Brinca, pintando sonhos...
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Em meus lábios
Ficaram os desenhos
Dos teus beijos.
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Aquecida voarei.
Sou Fênix.
Teu fogo
Só alimenta as minhas cinzas.
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Quando passas por mim
Viro outono:
Me desapego
E caio aos teus pés.
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Na delicadeza
Dos teus traços
Pinto
No imaginário
Com as cores
Que eu
Te quero.
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Ah,
Essas mãos
Que me cuidam!
Cicatrizam
As minhas dores
E sem
Pedir favores
Massageiam
A minha alma.
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Hoje
A minha
saudade
criou asas
Partiu
da minha
janela
E foi até
a tua
Para
te procurar

Fonte: Daniel Maurício. Alma Lírica. Curitiba/PR: Ed. do Autor, 2021.
Enviado pelo poeta.

Alcântara Machado [Corinthians (2) vs. Palestra (1)]


Prrrrii!

- Aí, Heitor!

A bola foi parar na extrema esquerda. Melle desembestou com ela.

A arquibancada pôs-se em pé. Conteve a respiração. Suspirou:

- Aaaah!

Miquelina cravava as unhas no braço gordo da Iolanda. Em torno do trapézio verde a ânsia de vinte mi1 pessoas. De olhos ávidos. De nervos elétricos. De preto. De branco. De azul. De vermelho.

Delírio futebolístico no Parque Antártica.

Camisas verdes e calções negros corriam, pulavam, chocavam-se, embaralhavam-se, caíam, contorcionavam-se, esfalfavam-se, brigavam. Por causa da bola de couro amarelo que não parava, que não parava um minuto, um segundo. Não parava.

- Neco! Neco!

Parecia um louco. Driblou. Escorregou. Driblou. Correu. Parou. Chutou.

- Gooool! Gooool!

Miquelina ficou abobada com o olhar parado. Arquejando. Achando aquilo um desaforo, um absurdo.

Aleguá-guá-guá! Aleguá-guá-guá! Hurra! Hurra! Corinthians!

Palhetas subiram no ar. Com os gritos. Entusiasmos rugiam. Pulavam. Dançavam. E as mãos batendo nas bocas:

- Go-o-o-o-o-o-ol!

Miquelina fechou os olhos de ódio.

- Corinthians! Corinthians!

Tapou os ouvidos.

- Já me estou deixando ficar com raiva!

A exaltação decresceu como um trovão.

- O Rocco é que está garantindo o Palestra. Aí, Rocco! Quebra eles sem dó!

A Iolanda achou graça. Deu risada.

- Você está ficando maluca, Miquelina. Puxa! Que bruta paixão!

Era mesmo. Gostava do Rocco, pronto. Deu o fora no Biagio (o jovem e esperançoso esportista Biagio Panaiocchi, diligente auxiliar da firma desta praça G. Gasparoni & Filhos e denodado meia-direita do S. C. Corinthians Paulista, campeão do Centenário) só por causa dele.

- Juiz ladrão, indecente! Larga o apito, gatuno!

Na Sociedade Beneficente e Recreativa do Bexiga toda a gente sabia de sua história com o Biagio. Só porque ele era frequentador dos bailes dominicais da Sociedade não pôs mais os pés lá. E passou a torcer para o Palestra. E começou a namorar o Rocco.

- O Palestra não dá pro pulo!

- Fecha essa latrina, seu burro!

Miquelina ergueu-se na ponta dos pés. Ergueu os braços. Ergueu a voz:

- Centra, Matias! Centra, Matias!

Matias centrou. A assistência silenciou. Imparato emendou. A assistência berrou.

- Palestra! Palestra! Aleguá-guá! Palestra Aleguá! Aleguá!

O italianinho sem dentes com um soco furou a palheta Ramenzoni de contentamento. Miquelina nem podia falar. E o menino de ligas saiu de seu lugar. todo ofegante, todo vermelho, todo triunfante, e foi dizer para os primos corinthianos na última fileira da arquibancada:

- Conheceram, seus canjas?

O campo ficou vazio.

- Ó... lh'a gasosa!

Moças comiam amendoim torrado sentadas nas capotas dos automóveis. A sombra avançava no gramado maltratado. Mulatas de vestidos azuis ganham beliscões. E riam. Torcedores discutiam com gestos.

- Ó... lh'a gasosa!

Um aeroplano passeou sobre o campo.

Miquelina mandou pelo irmão um recado ao Rocco.

- Diga pra ele quebrar o Biagio que é o perigo do Corinthians.

Filipino mergulhou na multidão.

Palmas saudaram os jogadores de cabelos molhados.

Prrrrii!

- O Rocco disse pra você ficar sossegada.

Amilcar deu uma cabeçada. A bola foi bater em Tedesco que saiu correndo com ela. E a linha toda avançou.

- Costura, macacada.

Mas o juiz marcou um impedimento.

- Vendido! Bandido! Assassino!

Turumbamba na arquibancada. O refle do sargento subiu a escada.

- Não pode! Põe pra fora! Não pode!

Turumbamba na geral. A cavalaria movimentou-se.

Miquelina teve medo. O sargento prendeu o palestrino. Miquelina protestou baixinho:

- Nem torcer a gente pode mais! Nunca vi!

- Quantos minutos ainda?

- Oito.

Biagio alcançou a bola. Aí, Biagio! Foi levando, foi levando. Assim, Biagio! Driblou um. Isso! Fugiu de outro. Isso! Avançava para a vitória. Salame nele, Biagio! Arremeteu. Chute agora! Parou. Disparou. Parou. Aí! Reparou. Hesitou. Biagio Biagio! Calculou. Agora! Preparou-se. Olha o Rocco! É agora. Aí! Olha o Rocco! Caiu.

- CA-VA-LO!

Prrrrii!

- Pênalti!

Miquelina pôs a mão no coração. Depois fechou os olhos. Depois perguntou:

- Quem é que vai bater, Iolanda?

- O Biagio mesmo.

- Desgraçado.

O medo fez silêncio.

Prrrrii!

Pan!

- Go-o-o-o-ol! Corinthians!

- Quantos minutos ainda?

Pri-pri-pri!

- Acabou, Nossa Senhora!

Acabou.

As árvores da geral derrubaram gente.

- Abr'a porteira! Rá! Fech'a porteira! Prá!

O entusiasmo invadiu o campo e levantou o Biagio nos braços.

- Solt'o rojão! Fiu! Rebent'a bomba! Pum! CORINTHIANS!

O ruído dos automóveis festejava a vitória. O campo foi-se esvaziando como um tanque. Miquelina murchou dentro de sua tristeza.

- Que é - que é? É jacaré? Não é!

Miquelina nem sentia os empurrões.

- Que é - que é? É tubarão? Não é!

Miquelina não sentia nada.

- Então que é? CORINTHIANS!

Miquelina não vivia.

Na Avenida Água Branca os bondes formando cordão esperavam campainhando o zé-pereira.

- Aqui, Miquelina.

Os três espremeram-se no banco onde já havia três. E gente no estribo. E gente na coberta. E gente nas plataformas. E gente do lado da entrevia.

A alegria dos vitoriosos demandou a cidade. Berrando, assobiando e cantando. O mulato com a mão no guindaste é quem puxava a ladainha:

- O Palestra levou na testa!

E o pessoal entoava:

- Ora pro nobis!

Ao lado de Miquelina o gordo de lenço no pescoço desabafou:

- Tudo culpa daquela besta do Rocco!

Ouviu, não é Miquelina? Você ouviu?

- Não liga pra esses trouxas, Miquelina.

Como não liga?

- O Palestra levou na testa!

Cretinos.

- Ora pro nobis!

Só a tiro.

- Diga uma coisa, Iolanda. Você vai hoje na Sociedade?

- Vou com o meu irmão.

- Então passa por casa que eu também vou.

- Não!

- Que bruta admiração! Por que não?

- E o Biagio?

- Não é de sua conta.

Os pingentes mexiam com as moças de braço dado nas calçadas.

Fonte: Alcântara Machado. Laranja-da-China. Publicado em 1928. Disponível em Domínio Público 

Jaqueline Machado (Devaneios Gauchescos)


SOU ARTE


Arte é magia que invadiu meu ser
desde o amanhecer dos meus primeiros dias...
Mas será ela, a dona arte, pura fantasia?

Sim! E não.
Sim, porque ela não depende de lógica para se expressar.
E não, porque ela é a realidade mais oculta do nosso ser...

Então, canto e me espanto com o cantar dos pássaros.
Por isso pinto, e me sinto borrar nas tintas vivas da existência.
Por isso danço, e não me canso de sorrir a bailar.
Por isso também escrevo.
E me transformo em uma poesia apaixonada!

Sou arte ilógica.
Não quero me explicar.
Sou abstrata em minha fé.
E Arte faço na luta constante de transformar
toda treva em luz!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =

EU SOU GAÚCHA, TCHÊ!

Sou gaúcha!
E gosto de pertencer a este pago querido.
Onde a tradição ainda tem o seu valor
e os campos são mais floridos...

Sou gaúcha!
E a força que me puxa,
vem do sangue bravio
dos heróis farroupilhas...

Eu sou gaúcha, tchê!
E gosto de ouvir as histórias
contadas por peões
da estância,
enquanto saboreio
o bom chimarrão.

Sou gaúcha!
E não nego a raça.
Sou uma flor de candura,
mas se vier
com injustiça,
o corpo esquenta,
falo umas boas verdades
e assim acabo com qualquer frescura!

Sou gaúcha!
Sou brava, sou forte,
mas também sou faceira.
Gosto de música fandangueira.
E de poetizar este belo lugar
onde o céu é mais azul...
"Onde tudo o que
se planta cresce
e o que mais floresce é o amor..." 
===========================
Jaqueline Machado é de Cachoeira do Sul/RS

Fonte:
Enviado pela poetisa.

Rubem Penz (Crônica ululante)

Nunca vou esquecer a tarde em que, no distante 1987, tive a insatisfação de ler uma resenha crítica de Coração Satânico (Angel Heart) na Revista Veja antes de ver o filme. Eu estava uns quinze anos distante de escrever minhas primeiras crônicas, e alguns anos antes de aventurar na leitura de Freud, mas já guardava alguma perspicácia em notar aquilo que, mesmo não escrito, pode ser captado por bons leitores. E maldisse toda a geração anterior e futura do articulista por ter estragado o encanto do filme ao sugerir um spoiler desnecessário. Não que tenha me arrependido de ver depois, adorei. O problema foi a fruição de um thriller de suspense quando se sabe o final.

Por isso que escrever sobre uma obra cinematográfica, ou a partir dela, demanda jeito, prudência, respeito com quem virá a ler. Finda a tarefa, é necessário voltar ao texto e, frase por frase, se perguntar: revelo aqui algo que me surpreendeu? Entrego aqui uma conexão capaz de estragar uma cena seguinte? Nesta altura, quem assiste tem consciência desta faceta da personagem? Vale a pena antecipar este detalhe, ou ele é relevante demais? E não adianta tentar esconder numa fumaça retórica! Ao bom leitor, meia frase basta.

Assim, por mais sedutor que seja, evito ler sobre um filme sem antes assisti-lo. Não confio nessa turma dos cadernos e blogues e sites de cinema. Ou, pior: creio que alguns têm um desejo sádico de colocar minúsculas armadilhas dentro de frases inocentes, só para colocar água no chope dos outros. E, se reclamarem, ainda dirão coisas como “mas isso estava na cara!” Ótimo, que seja! Ainda assim, deixe-me descobrir sem seu brilho. Isso: quem dá spoiler, quer brilhar ofuscando a experiência dos outros.

Ah, por que lembrei de Coração Satânico? Porque assisti O Poço evitando ler artigos e comentários sobre o filme, e vi que fiz bem. Teria amaldiçoado a geração anterior e futura de pessoas a quem nada devo ou me devem. Poupei-me de dissabores, e isso é maravilhoso nestes tempos de ódios fáceis. Li depois, concordei com umas coisas, discordei de outras, numa boa. Apenas lamentei por quem não tenha meu hábito! identifiquei imprudências as quais, fosse eu, evitaria. Óbvio.

Fonte:
Escrita Criativa
https://www.escritacriativa.com.br/?cid=5596&wd=Resenhas

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

José Feldman (Analecto de Trivões) 15

 

Mensagem na Garrafa – 7 -


Elisa Alderani

Ribeirão Preto/SP

As Quatro Estações


PRIMAVERA

Escutando a música de Vivaldi me situo no caminho inverso da vida. Volto ao tempo da primavera, quando tudo em minha volta estava florido, perfumado e belo. Vejo-me sentada na grama perto dum canteiro de gerânios vermelhos, construindo sonhos de criança. Poucos brinquedos, mas muita liberdade para brincar ao ar puro da montanha. Não havia ambições de ter, bastavam poucas coisas para ser feliz. Ouvia pássaros, me encantava olhando as cores das asas das borboletas; agradava-me o perfume da grama recém-cortada. A primavera de minha vida é inesquecível. Tantas lembranças preenchem de infinita harmonia o coração, como esta música, penetrando docemente meu ser de outrora.
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VERÃO

O tempo do dever chega repentinamente, o sol está alto no céu. Tudo arde, chegou o verão! Estudo e trabalho, juventude ativa, sem muitas diversões. O olhar fica atento às mudanças, os sonhos da juventude se multiplicam. A música muda o ritmo. Amores platônicos, lindos! Olhos que se encantam, sem saber o porquê. O coração explode a procura de algo, sem saber que é o amor. Arde o verão da vida. As tempestades, de repente, chegam. A chuva de verão passa rápida. Tudo se renova depois do temporal. A realidade pede uma escolha. O verão parece avançar lento, o ar mais quente, a fruta está madura. O encontro com o amor muda o ritmo da música, doa alegrias e lágrimas. A responsabilidade preenche o cesto das frutas para serem saboreadas, nem sempre doces, às vezes amargas. A vida parece parada nesta estação por mais tempo...
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OUTONO

Os dias encurtam o passo, e o outono chega sem pressa. Ocorrem mudanças.

Também as cores da natureza mudam. O bosque fica silencioso, devagar se despe das lindas cores outonais. O vento é culpado por isso, ele derruba as folhas uma a uma, cobrindo o chão árido; soprando uma música diferente. Tudo parece mudar. As flores murcharam, perderam o viço, como o amor, por falta de cuidados. Outono da vida! Somente quem sabe admirar com interesse um lindo por do sol, terá nos olhos o brilho do último raio, que esquentará o seu coração. Eu procurei fazer isso, mas as madrugadas frias já me anunciavam a chegada do inverno...

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INVERNO

Sim, o inverno chegou implacável e gelado com o toque de música, mudando o ritmo. Lentamente parece gelar o que restou, com seu branco manto. Tudo fica encoberto. Preciso me preparar com muito cuidado para esta estação. Decorar a alma e o coração com um amor diferente para cuidar de mim, sem desmaiar pelo frio que já está às portas. Ficar ao reparo das intempéries que surgem assim, do nada. A natureza não perdoa, ela tem que completar seu ciclo.

Uma vida bem equilibrada, promete um inverno tranquilo…

As sementes da primavera das lembranças germinarão novamente, perfumadas como flores de outrora, em meu coração.

Os frutos dos afetos do verão estarão presentes para preencher o vazio e colocar em meus lábios, apesar das marcas do tempo, o sorriso; os dias tristes do outono serão esquecidos com o calor do último raio de sol.

O inverno achará o abrigo quente do meu coração, escutando novamente a música que fala das estações de minha vida.