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quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

J. G. De Araújo Jorge (O Primeiro Amor)


Somos simples metades: biológica e sentimentalmente. Como as moedas, temos duas faces: cara e coroa. No singular, não existimos, não podemos continuar. Até porque, surgimos de dois,trazendo o destino de "Ser", no plural: não "sou", não "és" Somos. Ora, a vida.

"Matemática esquisita
que das suas sempre faz,
ao final de nove meses
somando dois, multiplica,
e ao invés de dois, às vezes,
são três, são quatro, e até mais."


Estou pensando estas coisas, quando me perguntam o que acho do primeiro amor. É uma entrevista com colegiais. Sim, eu já escrevi sobre o primeiro amor. Também já acreditei que existia, ou que existiu. Ficou naquela visão trêmula como as imagens no espelho dos igarapés da infância. Sobreviveu em lembranças concêntricas, que se ampliam e diluem infinítamente no coração, quando a pedrinha de um fato cai sobre a superfície das águas do igapó da memória.

"Onde está o meu primeira amor
a menina morena de cabelos negros
e de olhos da cor do rio
que nunca será esquecida?

O tempo ladrão roubou
de parceria com a vida."


Sim, acreditei nele, como toda gente. E porque apascento versos desde menino, como um nômade pastor, lembrei-o muitas vezes:

"O meu amor primeiro, o meu primeiro amor
foi anseio, e viveu a incerteza de uma ânsia;
botão que não se abriu, que não chegou a flor
um pedaço de céu quase limpo e sem cor
perdido nos senfins azuis da minha infância..."

Andei com ele por aí:

"Braços dados, nós dois vamos sozinhos,
o teu olhar de encantamento espraias
pelas curvas e sombras dos caminhos,
debruados de jasmins e samambaias. . ."


E por isso, também identifiquei-me com os casais em tempo de sonho:

"Nada tolda os seus olhos, nem um véu...
Andam sem ver os lados, vendo o fim,
e o fim que vêem é o azul do céu...

Ah, se a gente, tal como os namorados
pudesse eternamente andar assim
pela vida, a sonhar de braços dados..."


Mas fui vivendo, como toda gente, ou como quase toda gente. E um dia, quando relia as provas dos meus versos, comecei a perceber que me enganara, como toda gente, ou como quase toda gente. O primeiro amor não é o primeiro amor.

Ou pelo menos o que chamamos de primeiro amor. Deviam ter outro nome aquelas emoções que esvoaçaram sem deixar pegadas, quase e apenas como nuvens brancas no limbo do coração; aquelas lembranças de mãos dadas, assexuadas, beijando só com os olhos, olhando sem nada ver. Se, na realidade, nós nem nos apercebemos dele ! E só o encontramos quando o tivemos perdido, e há tanto tempo que é quase impossível reconstituí-lo!

E então a pergunta: afinal que é o primeiro amor? E a conclusão que só a vida nos pode dar: é aquele amor completo em todas as direções, dos pés a cabeça, não apenas no céu, mas na terra, nas nuvens e nos ventos, nas raizes e na solidão. Quando se beija não apenas com os lábios, mas com todos os sentidos, quando tudo se vê, mesmo de olhos fechados, e se sofre, até com o pensamento. Para que possa ser perfeito, Buda aconselhou: não deves pecar. Os cristãos repetiram como um eco: guarda a castidade. Tolice, porque estamos sempre puros diante do amor, e quando ele chega, é sempre novo, é sempre o primeiro.

Há infinitos primeiros amores. Ama-se tantas vezes a primeira vez! Renascemos em suas ânsias e toda vez que o perdemos, ficamos à deriva em nosso destino. Felizes, ou infelizes - que importa? - os que encontram o primeiro amor. Porque há homens também que passam a vida inteira amando, de amor em amor, e não amam nunca a primeira vez. Bom é amar a primeira vez muitas vezes, tantas quantas a vida inventar, e o coração puder! Há tanta coisa por aí se chamando de amor que de amor nada tem, não justifica a dor e a alegria, não revela nenhum mistério; de nenhum milagre é capaz !

Ah, o primeiro amor! Às vezes não nos chega propriamente num dia, mas durante a vida toda, em que o vamos construindo de tantas e insignificantes grandezas, sem mesmo tomarmos conhecimento de sua importância. E entretanto, é tudo. Basta que, de repente, vacile, nos ameace, e falta-nos a luz, o ar!

Outras vezes, irrompe como um pé-de-vento abrindo uma janela, abrindo-a ou fechando-a instantaneamente, e nos aparece como algo que emergiu da sombra em que o velávamos, subitamente belo e iluminado.

Ou, ainda, pode explodir como uma granada, e nos cegar até, e nos atordoar. E caímos nele, feridos mortalmente, sentindo-o escorrer quente no corpo, doendo de tanta alegria!

Muitas ocasiões, pensamos encontrá-lo, quando na realidade saltamos sobre ele, e caímos adiante, em duro leito de pó, onde se espoja. Não era amor, mas sua filha bastarda: a paixão. Como surge desaparece, em disparada - potro selvagem em pasto aberto. Mas, então, que é o amor, esse que é sempre o primeiro, múltiplo e infinito como o mar? Dele tentei dizer:

"E de repente. . . (parece incrível)
o tudo de antes não existe mais
não interessa . . .

Um novo amor, amor
é sempre um mundo novo
que começa.

Não importa o percorrido
o conquistado,
ou o que antes foi desejado
por teu marinheiro coração:
um novo amor
começa tudo de chão.

É como se abrisses os olhos para a vida
naquele instante,
como se para trás nada tivesse havido.
Nasces com um novo amor! E então reviverás
o mistério, deslumbrante
do que há de acontecer, como se nunca tivesse
acontecido. . ."


Talvez seja aquela força indômita do coração que levou o poeta a penitencias como esta:

"Chegas. E de repente me pergunto
que amor é esse que existiu sem ti?
Que flores? Se não houve primavera. . .
Ah, nascemos agora, um para o outro,
e antes, não fomos mais que vã espera. . ."


Ou a esta confissão final:

"Éramos apenas dois bichos...
(ou deuses?)
...Nem podia ser mesmo humana
tão louca felicidade..."


Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

J. G. de Araújo Jorge (Poesia, De Longe)


Ana Amélia (Ana Amélia Queiroz Carneiro de Mendonça) é uma das mais ricas sensibilidades que conheço. Sua obra, de feição clássica, neo-romântica, a coloca entre os maiores nomes femininos de nossa poesia, ao lado de Gilka machado, Adalgisa Nery, Benedicta de Melo, Beatrix dos Reis Carvalho, Ilka Sanches, Seleneh de Medeiros, Maria José Giglio, e tantas outras. Seu soneto “Mau de Amor” tornou-se peça natológica. Incluí-o em minha antologia “Os mais belos sonetos que o amor inspirou”, volume I, dedicado à poesia brasileira.

Minha admiração por Ana Amélia vem de longe, de meus tempos de estudante secundarista do Pedro II. Ela era nossa “rainha dos estudantes”, e me lembro de que participou da festa que escolheu os “príncipes da poesia e da prosa” do velho colégio. Festa memorável a que compareceram muitos acadêmicos, e entre eles Coelho Neto e Alberto de Oliveira, então os “príncipes da prosa e poesia” brasileiras.

Mas, além de sua própria poesia, Ana Amélia é uma excelente tradutora. Talvez nenhum outro poeta tenha conseguido passar para o nosso idioma, com tanta facilidade, os versos de Shakespeare, mas de outros poetas ingleses e norte-americanos.

Nesta pequena nota quero destacar uma das traduções de Ana Amélia, em que sua capacidade de transferir para o nosso idioma, intactas, todas as belezas do original, acabou por nos oferecer uma obra-prima, de lirismo inigualável. Trata-se de sua tradução do soneto XIX da poetisa norte-americana Edna St. Vincent Millay, que, com outros trabalhos de Ana Amélia, figuram no volume III de “Os mais belos sonetos que o amor inspirou”. Não me poupo a alegria de oferecê-lo aos leitores.

SONETO XIX

Tu também morrerás, cinza adorada.
Essa beleza é certo que pereça,
essa mão, essa esplêndida cabeça,
esse corpo de argila iluminada.

Sob o gume da morte, ou sob a geada,
serás mais uma folha que estremeça
e com as outras te vás, verde e travessa,
depois morta, sem cor, desintegrada.

De nada o meu amor terá valido,
apesar deste amor, tu chegarás
ao fim do dia e tombarás vencido,

obscuro como a flor que cai, por mais
que tenhas sido belo, e tenhas sido
mais amado que todos os mortais.

Edna St. Vincent Millay


* * *

A maior sonetista contemporânea de Portugal desapareceu há apenas dois anos: Virgínia Victorino. Depois de Florbela Espanca, e ao lado de Maria Helena, forma a trindade das grandes vozes do lirismo português de nossos dias. É a poetisa de maior público em sua terra, e seus livros esgotam edições sucessivas. Perfeita na forma, simples e comunicativa na linguagem, despida de quaisquer artificialismo, a poesia de Virgínia Victorino é uma flechada no coração. Dos três livros que deixou: “Namorados”, “Apaixonadamente” e “Renúncia”, possuo os dois primeiros.

Quando selecionava sonetos portugueses para o volume II de “Os mais belos sonetos que o amor inspirou” vi-me em dificuldades diante da obra de Virgínia Victorino: Tinha vontade de incluir todos os seus trabalhos. Como Guilherme de Almeida, que foi nosso “príncipe dos poetas”, seus sonetos são pequenas jóias, inconfundíveis, singulares, e não se pode tentar escolher uns poucos sem se correr o risco de cometer injustiças. E, por isso mesmo, excepcionalmente, Virgínia Victorino figura na antologia com o maior número de trabalhos: onze sonetos.

Ao preparar estas notas, estou atendendo a uma leitora que me pediu para que citasse algumas poesias de poetisas estrangeiras, das que mais gosto, tal como fiz aqui com as poetisas brasileiras.

Eis, portanto, um soneto de Virgínia Victorino, talvez o de minha preferência:

MÁGOA

Eu que cheguei a ter essa alegria
de junto ao meu possuir teu coração,
eu que julgara eterna a duração
do voluptuoso amor que nos unia,

sou,- apagada a última ilusão,
morto o deslumbramento em que vivia,
- um cego que ao lembrar a luz do dia
sente mais negra ainda a escuridão.

Tu me deste a ventura mais perfeita,
perdi-a, e dei-te a chama insatisfeita
dessa imensa paixão com que te quis...

Hoje, o que sinto, inútil, revoltada,
não é mágoa de ser tão desgraçada,
é pena, de ter sido tão feliz.

Virgínia Victorino


Ela é cognominada Joana da América, pela projeção literária de seu nome em todo o continente, e até no Brasil.Nasceu na pequena vila de Melo, em Cerro Largo, no Uruguai, e tem hoje mais de 70 anos. Poetisa de grande expressão lírica, seus primeiros livros são de versos exaltados, sensoriais, apaixonados, em linguagem clássica e pura. Ultimamente sua poesia ganhou certa expressão mística e até religiosa. A panteísta, algo pagã, de “Cântaro fresco” e “Raiz salvage”, hoje pinta vitrais em “Estampas de la Bíblia”.

Minha velha e grande admiradora pela sua poesia levou-me a procurá-la em Montevidéu, quando, ainda estudante, participei de uma caravana, e fui a Buenos Aires e ao Chile. Infelizmente ela estava em visita à sua terra natal, e não a encontrei.

Ao selecionar os sonetos de poetas latino-americanos para o volume II de “Os mais belos sonetos que o amor inspirou”, apesar de contar com traduções de trabalhos seus, feitas por Murilo Araújo, Melo Nóbrega e Othon Costa, fiz questão de transladar para nosso idioma algumas de suas páginas. E, sem nenhum favor, um dos seus mais lindos sonetos é este:

A PROMESSA

...E todo o ouro do mundo parecia
diluído na tarde luminosa.
Apenas um crepúsculo de rosa
a alta copa das árvores tingia.

Súbito amor a minha mão unia
à tua mão morena, carinhosa.
Éramos Booz e Ruth, ante a formosa
terra que aos nossos olhos se estendia.

-- Me amarás? Perguntaste. Lenta e grave
veio-me aos lábios a promessa suave
da amante moabita, tão querida;

e foi como um “Amem!” que nesse instante
se ouviu, num toque de oração, vibrante
bater o sino da pequena ermida!


Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969

Dora Dimolitsas


Nascida no Acre em Sena Madureira, criada em colégio de freiras.

Trabalhou e se preparou profissionalmente no 5º Batalhão de Engenharia e Construção em Porto Velho, Rondônia.

Atuando na área de Saúde, estando presente na construção da cidade de Vilhena ,indo para São Paulo em 69, prestando concurso para o governo federal ( hoje aposentada.)

Prestando serviço no Hospital Brigadeiro, em São Paulo, Laboratorista com vários cursos de especialização em hematologia ,bioquímica, hemoterapia, citologia e citoquimica, bacteriologia.

Também com curso de puericultura e educação sanitária, participou de varias atividades nacionais de vacinas contra a poliomielite, membro da CIPA, com estagio em Analises Clinicas na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de São Paulo. Trabalhou também no Hospital Ipiranga no período de epidemia de meningite, atuando ativamente na elaboração de exames para definição da meningite.

Tem diversos cursos de Poesia e Teatro cursados na Casa das Rosas, Espaço Haroldo de Campos.

Escritora,poetisa,atriz,escritora,produtora Cultural, e Jornalista.

Representante dos Projetos Culturais: Poemas a Flor da Pele, Proyecto Cultural /Sur/Paulista, com eventos dentro dos hospitais públicos, para pacientes, funcionários, e crianças leucêmicas, e hemofílicas.

Cônsul de Poetas Delmundo.

Colunista do Jornal o Rebate e o São José

Produtora de eventos no Centro Cultural de São Paulo e na Biblioteca Alceu Amoroso Lima pela Prefeitura.

É poeta Prata da Casa das Rosas

Membro da
Academia de Letras da Mantigueira
Academia de Letras Itapirense de Letras e Artes
Academia de Cabo Frio,
Academia de Arte de Cabo Frio-ArtPop
Academia Cabista de Letras, Artes ,
Academia de Letras de Niteroiense de Belas Artes, Letras e Ciencias,

Membro da Literarte com o Premio Literarte de Cultura de 2012
Guardiã do Cinquecentenário:
Premio da Academia Brasileira de Honrarias ao Merito
varias medalhas e Premios do Proyecto Cultural Sur
varios Premios da Companhia de Teatro Loucos do Taró, e CICESP

Autora das peças: Dama de Vermelho Por intenção, e Cortejo de Baco, além do Roteiro do filme: Os Druidas e o Segredo da Pedra da Luz (em parceria)

Auitora de dois livros Solos

- Coruja Mitologica
– Poesias e Fractais.

Mais 120 antologias, Entre elas:
- Destaques na Poesia em 2011
– de Raimundo Nonato, Delicatta,
– Poemas A Flor Da Pele,Varias Cronicas,
– Mais 20 Plaquetes

Fonte:
Rebra

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

J. G. de Araújo Jorge (Os Últimos Reflexos de Uma Época)


A minha geração também poderia falar de uma belle époque. Nossa formação literária vinha de escritores que vivem ou participaram desse período. Julio Verne, Pierre Loti, Rostand, Zola, Heredia, Maupassant, Anatole France, Proust, cada um contriuiu com seu traço pessoal para aquela paisagem do espírito batizada com o nome vago de art nouveau.

Ainda agora leio nos jornais que Carlos Maul vai publicar um novo livro: O Rio da Bela Época. Ele próprio esclarece o título da obra:

“Era assim que na Europa, no princípio do século, se denominava o período entre 1898 e 1914, quando a humanidade parecia feliz e despreocupada, e não pressentia que a guerra a surpreenderia. O Brasil também pagou seu quinhão à calamidade, mas não tanto como os países devastados. Por isso, nossa “bela época” durou de 1900 a 1930.”

Eu prolongaria essa data por mais alguns anos. Minha geração ainda vislumbrou as suas últimas claridades. Em que pese as agitações políticas que refletiram posteriormente as lutas dos extremismos na Europa, vivíamos aqui, literariamente, como se fossemos uma longínqua província onde não tinham chegado as perturbações da metrópole.

Adolescentes, acordando para as letras, pertencemos ao tempo dos “cafés sentados”, os “cafés literários”, quando se tinha mais tempo para perder. Ainda se fará um dia a crônica dessa fugaz belle époque dos cafés do Rio de Janeiro. Primeiro, o velho Belas-Artes, na esquina da Avenida com a Rua Almirante Barroso. Lá nos reuníamos -a novíssima geração-, em longos “papos”, nos fins das tardes, a propósito de tudo.

Joaquim Ribeiro, que ampliou, no tempo, a inteligência e a obra do pai, João Ribeiro, Joaquim, talvez a maior cultura de nossa geração; Guilherme Figueiredo, então ainda e apenas o poeta de “um violino na sombra”; Edmundo Moniz, também poeta, engolfado sempre em estudos políticos e sociólogos; Odilo Costa Filho, recém-chegado do Norte; Henrique Carstens, poeta desaparecido; Augusto Rodrigues, que apenas começava seus desenhos, seus primeiros bonecos; Jair, figura exótica, com seus estranhos bigodes, extraordinário desenhista, autodidata, o penúltimo boêmio autentico que conheci (o último foi Antônio Maria, o pastor das madrugadas); Garibaldi, então pintando interiores do Mosteiro de São Bento, em fase mística, e que se perderia durante anos por Paris.

Lembro-me de uma tarde, ao chegar ao grupo que rodeava a mesa, repleta de xícaras vazias, transformadas em cinzeiros, Joaquim Ribeiro, antes que me sentasse, me apresentou a um novo companheiro:

- Araujo Jorge, este aqui é o Josué Montelo. Acaba de chegar do Maranhã Reverente, sacudindo ainda o pó das sandálias, Josué levantou-se, humilde e cordial:

- Araujo Jorge? J.G.? Admiro-o muito. Seu nome é muito conhecido em minha terra, não só pelos seus livros como pela colaboração no Correio da Manhã.

E enquanto me sentava a seu lado, foi logo retirando do bolso um trabalho:

- Gostaria de ouvir sua opinião.

Era um artigo sobre Celso Vieira. Um belo artigo, por sinal.
Disse-lhe minha impressão e me referi à sua letra, miúda, muito certa, que me lembrava a de Coelho Neto, que eu conhecia de vários manuscritos.

Alguns momentos depois, levantou-se e se despediu.

Quando Josué saiu, Joaquim voltou-se para nós da mesa, e com aquele espírito e senso de humor que o caracterizava, sem nenhuma maldade:

- O Josué trouxe quarenta artigos prontos, um sobre cada acadêmico. Vocês vão ver, enquanto nós vamos continuar aqui na “academia” do Belas-Artes, ele acaba na Academia.

O Café Belas-Artes foi realmente nossa “academia” durante alguns anos. Na esquina seguinte, frente para a antiga Galeria Cruzeiro, era o Café Nice, ponto de reunião de cantores, músicos, compositores da velha-guarda.

Eram dois mundos que não se misturavam. Quando instalaram a Caixa Econômica no local do Belas-Artes, levantamos vôo e fomos pousar na Cinelândia. Iniciava-se a fase do Café Amarelinho. O café existe até hoje, mas p erdeu definitivamente aquelas características de QG literário.

O mesmo grupo do Belas-Artes estava agora acrescido de outros elementos, alguns mais velhos, de outras gerações. Era comum, nas cadeiras de palhinha, na calçada, encontrarmos Murilo Araújo, Álvaro Moreira, Mário de Andrade, (quando de passagem pelo Rio), Raquel de Queirós, José Lins do Rego, Portinari, Graciliano Ramos, Jorge de Lima. Uma tarde fui apresentado a Julio Salusse, o poeta de Os Cisnes.

Jorge de Lima tinha consultório no mesmo edifício do café e era o médico dos escritores e artistas do Amarelinho. Hoje, depois de tantos anos, só lastimo não ter me aproximado do Jorge, participado mais de sua convivência. O grande poeta me pareceu sempre esquivo, silencioso, distante.

No mesmo edifício ficava também a redação de Dom Casmurro, o jornal literário de Brício de Abreu. Quem desejar escrever a história dessa época terá que consultar as coleções de Dom Casmurro. Lembro-me que, na ocasião, um nome novo se projetava ? Joel Silveira, que acabara também de chegar do Norte, e que à maneira de Sergio Porto, depois lírico e satírico, tirava do dia-a-dia da vida da cidade a substância de suas crônicas.

No Amarelinho, reuniam-se ao nosso grupo jovens músicos cheios de idealismo e de planos. Eleazar de Carvalho e José Siqueira são velhos amigos, com quem troquei muitas vezes idéias. Eu estivera na Alemanha, freqüentara a Filarmônica de Berlim, então sob a regência de Furtwaengler, fora a Bayreuth, assistira a Wagner em seu teatro, e muitas vezes lhes sugeri a criação de nossa Orquestra Sinfônica Brasileira, da qual Álvaro Ladeira, cronista de arte, outro amigo, foi secretário por muitos anos.

Falar do Amarelinho é recordar nomes e amigos, poetas, romancistas, jornalistas, pintores, compositores, caricaturistas, cuja convivência, nessa época, enriqueceu de lembranças minha memória: Armando Pacheco, eram dois, o pintor e o jornalista; os Condes, Mendes, Alvarus, Wilson W. Rodrigues, D’Almeida Victor, Cursino Rapôso, Paulo Mac-Dowell, Nélio Reis, Nélson Ferreira, alguns desaparecidos, como Osório Borba, Augusto de Almeida Filho, Amadeu Amaral Júnior, Martins Castelo. Era a minha geração. Não ficou marcada cronologicamente: de 35 ou de 40 -Mas teve seu tempo, foi bem um prolongamento do que se poderia chamar a belle époque.

Como poetas, apenas dois nos fixamos: eu e Vinicius de Morais. Os outros perderam-se na vida, e, distraídos da poesia, enveredaram por múltiplos atalhos. Que sejam felizes!

Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969

domingo, 19 de fevereiro de 2012

J. G. de Araujo Jorge (O Mundo da Poesia)


Eu diria que nos encontramos como que diante de um novo "humanismo". Os acontecimentos sociais impondo alterações na velhas estruturas. A própria Igreja faz a sua revolução, liberta-se.

Deixa de vir a reboque do capitalismo para reintegrar-se nos Evangelhos, aproximar-se dos pequenos, transformar-se em defensora do espoliados, restaurando a mensagem de Cristo. "É mais fácil passar um camelo pelo furo de uma agulha do que um rico entrar no reino do céu".

E este paradoxo se acentua quando, ao mesmo tempo, se procura atender aos problemas coletivos, reconhecendo-se que se deve salvar o homem, para que ele não seja levado de roldão, e desapareça. Descobrimos que, se por um lado, não pode haver humanidade feliz somando-se homens infelizes, por outro lado, não pode haver homem feliz numa humanidade acarneirada.

Neste mundo de paradoxos, tecnicista e convulsionado, a poesia deve responder presente. Se é verdade que o poeta é o "vate", o que antevê, o que faz vaticínios, então deve colocar-se na vanguarda dos acontecimentos, desdobrando sua mensagem de beleza e direção.

Não é à toa que alguns líderes libertários do mundo são grandes poetas, e poetas líricos. Os poetas são os "radares" de seu povos. Mílton, no "Paraíso Perdido", comparou a sua pátria a uma nau (imagem que o nosso Castro Alves repetiria: "A Inglaterra um navio que Deus na Mancha ancorou!"), e distribuiu pela embarcação as mais diversas profissões e atividades. Esqueceu-se dos poetas. Interpelado, completou: "Os poetas, olham as estrelas, e dão rumo ao navio".

De certa forma, este continua a ser o destino dos poetas. São os pilotos. Por isso não podem faltar à sua missão. Desdobrarem seu canto segundo as múltiplas faces do homem. E, como disse no poema:

Acima de tudo cantarei o amor.

O de Cristo e Confúcio, o de Romeu e D. Juan,
acima de tudo cantarei o Amor.
Em todos os seus momentos, lascivos ou gloriosos,
mansos ou eróticos,
unindo dois ou arrastando milhões,
nascido da ternura ou da revolta
procriando seres ou idéias
acima de tudo cantarei o Amor.

O Amor
- cimento e força
que constrói e ilumina,
que convoca e conquista,
-bola de neve do Bem inevitável -
acima de tudo cantarei o Amor.

E o tirarei do coração
como a hóstia, do cálice,
ou o sol, da manhã,
ou a espada, da bainha,
- fulcro para a alavanca do meu verso
mover o mundo. -

Acima de tudo cantarei o Amor.

(O Poder de Flor)

Há uns homens por aí com falsos pudores, envergonhados de falar de amor. Como se só o amor não fosse capaz de identificar os realmente fortes, os destinados ao canto e à construção. E há uma palavra que precisa ser reconceituada : romantismo. Românticos foram os grandes clássicos, os gregos, desde Safo e Anacreonte, aos poetas renascentistas. Dante, Petrarca, Shakespeare, Cervantes, Camões, Ronsard. Românticos, antes deles, foram os orientais, os hindus, os chineses.

O romantismo, antes de ser uma simples escola literária, classificada a partir de Goethe, é um estado de espírito. Os grandes poetas do nosso tempo são românticos, e dramáticos: Auden, Spendler, Lorca, Evtuchenko, Neruda, Malacovski, Langston Hughes, Nicolás Guillén Vínícius de Morais. O poeta é um ser que pensa, sentindo. Nela a emoção é mais forte que o pensamento, ou o pensamento nasce de uma tensão emotiva. É o processo natural de sua criação. O que não quer dizer que não haja poetas em que a emoção e o pensamento se equilibram ou que, excepcionalmente, o pensamento se manifeste livre, sem comprometimento do coração. Mas devemos destinguir o romântico de hoje do romântico de ontem. Os excessos do velho romantismo do século XIX, levaram o homem a enclausurar-se dentro de si mesmo, desligando-se das realidades do mundo exterior . Ao invés de o libertarem, acabaram por aprisioná-lo. Daí o sentimento de libertação desse novo "humanismo", na linguagem desabrida e emocional de nosso tempo.

Os parnasianos, foram irrealistas e formais. Calçaram "sapatinhos chineses" na inspiração. Transformaram artesanato em mutilação. Os simbolistas são os homens da banda. "Estavam à-toa na vida" e ficaram apenas ouvindo música, distraindo-se com as palavras, num jogo de sonoridades, inconseqüente.

Paralelamente, há arruaças literárias, tipo concretismo, poesia praxis, poesia processo etc. Jogam pedras, rasgam livros, e, com gritos, querem negar as palavras. Como se nossa arte não fosse um eterno "catch-as-catch-can" com as palavras. Não chegam a movimentos, são simples arruaças. Mas têm uma função histórica: alertam os que trabalham a sério, para que façam uma permanente revisão em seus processos de criação e atualizem a sua mensagem.

Em todas as épocas, houve, ao lado dos movimentos, as agitações, necessárias também à evolução e ao aperfeiçoamento das mais diversas artes. Aí estão, ainda recentes, o dadaísmo, o cubismo ou o esquecido "futurismo".

Poeta moderno é o que se comunica com o seu tempo, e se transforma em intérprete dos sentimentos, anseios e idéias, do seu povo. O sentido da poesia contemporânea, tinha que ser, portanto, realista. Eu diria: um realismo idealista. Não aquele "realismo" da poesia espanhola, pós-guerra civil, "La nuestra guerra", como a ela se referem orgulhosamente os seus poetas, Damaso Alonso o definiria depois num verso brutal:

"Madrid é uma cidade de mais de um milhão de cadáveres".

Para eles, tudo tinha que ser reconstruído. Não é o nosso caso: aqui tudo tem que ser criado ainda. Refiro-me a nós, poetas americanos.

Os poetas modernos europeus são, na sua grande totalidade, vozes trágicas, pessimistas, traduzem o esfacelamento do homem e da poesia depois de duas grandes hecatombes. Ou introvertem-se, em fugas impossíveis, como Rilke e Eliot, ou tentam evadir-se, misturando-se às multidões, e fazendo-se seu porta-vozes, como Spendler, Masefield, Damaso Alonso, Auden, Brecht. De qualquer forma, poetas de "fugas".

Os poetas não podem ser mais aqueles seres fantásticos que viviam no "outro mundo". Não se dirá mais quando alguém tiver um ar de abstração e de sonho:

"É um poeta!". Mas sim, quando tiver os olhos brilhantes, aquela aura dos líderes, aquele ar de integração com o espetáculo, do maestro empunhando a batuta.

Os poetas têm os pés no chão. O amor continua a ser o estandarte imortal, com sua infinitas variações. Não negar as asas, mas ter consciência de que estão presas ao corpo e que, só por isto, podem mover-se, e voar. Poesia - um vôo paradoxal em que a altura não elimina um permanente e íntimo contato com a realidade do chão.

Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969

sábado, 18 de fevereiro de 2012

J. G. De Araujo Jorge (O Carnaval de Cada Um)


No fundo mesmo, não gosto de carnaval. (Nunca me encontro no palco: sou sempre espectador). Como não gosto também de todas as grandes festas coletivas, antecipadamente estabelecidas pelo calendário. Ninguém nos pergunta se estamos felizes ou desesperados. É dia de felicidade, então, toca a pular e a cantar!

Como se fosse possível estabelecer por decreto: hoje é dia de ficar triste; amanhã, é dia de amar; depois é dia de ficar só; e no Natal, e no último dia do ano, e nos dias de carnaval, a ordem é rir, brincar, ninguém tem direito de estragar a festa dos outros.

E obedecendo a esta ordem, possuída por imprevista e repentina loucura, toda uma multidão se agita num transe incontrolável, numa explosão instintiva, sonora e colorida como uma mostra de fogos de artifício.

Vocês me desculpem esta conversa desmancha-prazer. Sei que o defeito é meu. Ninguém tem nada com minha tristeza, com o meu cansaço, com as minhas frustrações. Ó benditos os felizes, os realizados, os que conquistaram essa cômoda e sonhada felicidade horizontal!

Paro no meio do caminho, ao cair da tarde, com os olhos e o coração cheios de noite, e vejo que estou perdido. Cada vez mais insatisfeito, cada vez mais, partindo...

Há os que têm a coragem de uma felicidade dopada, artificial. Para se misturarem com a alegria alheia, e não destoarem, embebedam-se. Fogem de si mesmos, pela porta dos fundos. Covardia? Sei lá! Mas não é de meu feitio. Sempre vivi o pouco que colhi, plenamente. Foram migalhas, que importa? Mas saboreei-as, lentamente, com todos os sentidos, como um provador de vinhos. Embriaguez, só com amor verdadeiro, com a própria vida. Por isso já confessei:

Temo as grandes alegrias,
o carnaval quando explode,
pois minha alma nesses dias
quer ser feliz e não pode...”


Não sou de carnaval. Nunca fui. Mais moço, muitas vezes, confesso que me deixei levar pelo arrastão. Mas meu fígado - um velho policial - sempre barrou minhas fugas para a alegria. Naquele poemeto de “Harpa Submersa” já o denunciei:

“O fígado - esse infame policial - não me entrega o passaporte/ para as viagens que eu realizaria.../ e me obriga, como um condenado, a escutar, dia após dia,/ meus entediados passos sem saída no pátio do presídio./ Apenas, vez em quando, uma espiadela sobre os altos muros/ um rápido olhar para a vida distante/ onde homens e mulheres sonham e se confundem./ Em vão tenho tentado a fuga, ele está sempre presente/ e me derruba como um policial a cada nova tentativa.../ Ah! Não ter fígado! Ter o mundo ao alcance do sonho, em seis doses de uísque...”

Já se foi o tempo em que tentava escalar o muro de minha tristeza, e escapar por três dias e noites, mesmo com o velho “tira” violento, a desancar-me com suas borrachas, deixando-me imprestável na quarta-feira de cinzas...

O carnaval sempre me amedrontou, não como a uma criança. Muito mais por ele próprio que pelas máscaras de seus foliões, que, estas, afinal, até me distraem.

Não sei porquê. Quem sabe a resposta esteja na minha trovinha:

“Por certo a solidão
é aquela que a gente sente
sem ninguém no coração
no meio de muita gente...”


Mas, sentindo-me à margem, consigo às vezes, distrair-me com a alegria dos outros. Afinal, no carnaval, ela não faz tanto mal como em outras ocasiões. Talvez porque não nos pareça autêntica, encerre algo de teatral, de representada. Me deixo, por isso, ficar na calçada, a ver a rua humana que passa como um rio de euforias e esquecimentos.

Tenho assistido a muitos carnavais. E o que realmente me agrada no carnaval não é tanto a expressão coletiva, a apresentação dos grandes blocos, ranchos, sociedades, escolas de samba, estas, por si só, um espetáculo à parte. Mas o carnaval individual, pequeno, o carnaval no singular, de cada um. Dos foliões que não bebem, que são centelhas de pura e lúcida alegria, e que antes de divertirem os outros estão realmente se divertindo a si próprios. E é observando esses tipos de rua que quase me convenço de que o brasileiro é um povo alegre, de música alegre, em que pesem as palavras do poeta que viu a nossa música “a flor amorosa de três raças tristes”.

A grande festa não é apenas uma válvula de escape para seus impulsos recalcados, para suas tristezas irremediáveis, suas preocupações de todo dia. É também a oportunidade para que se reencontre a si mesmo, para que tire a máscara que é obrigado a usar durante trezentos e poucos dias no coração.

Nisto resumo meu carnaval: observar o carnaval dos autênticos foliões, cuja presença vale por uma festa! E que inveja dessa alegria acesa como uma chama colorida, a consumir-se numa emoção verdadeira! Que inveja desse mascarado que não precisa de se mascarar (qualquer que seja a sua fantasia) porque traz em si a alma do próprio carnaval.

Em sua homenagem, aqui fica uma lembrança (um poemeto do livro “Amo!”), justamente uma lembrança de

CARNAVAL

Ela passou na minha vida vazia
de boêmio e sentimental,
como passa num ano de tristezas
o relâmpago de alegria do carnaval...

Seus braços me envolveram como serpentinas
frágeis, de papel,
e se romperam, como as serpentinas
que se arrebentam quando o vento passa
e se soltam no céu...

Ela passou na minha vida, assim
como passa, na monotonia
de uma existência banal,
e furtiva beleza e a loucura de um dia
de carnaval...

Nossa história - o romance desse dia -
sem ódio, sem despeito, sem rancor, sem ciúme,
nem podemos lembrar,

teve o destino irreal de toda fantasia
e a existência de um jato de lança-perfume
atravessando o ar...

O nome dela, não sei;
ela não sabe o meu, - que importa ?- não faz mal...
Não fossemos nós dois apenas fantasias
não fosse a nossa história apenas carnaval!


Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

J. G. de Araújo Jorge (Nunca Se Chega a Paris a Primeira Vez)


“Ton souvenir em moi luit comme um ostensoir!”
(Baudelaire)


Como homem e como poeta vou carregando um pequeno drama: conheci Paris muito cedo, com dezoito anos, e receio revê-la tarde demais. Há idade para se conhecer Paris, como há idade, por exemplo, para se beber. Muito jovens, não bebemos: apenas nos embriagamos; muito velhos, o fígado, “esse infame policial”, nos mantém temerosos, e já não podemos escalar os muros ao redor, ou tentar fugas ao encontro da vida e do sonho.

Na verdade, não conheci Paris; olhei-a apenas nos olhos. E, como é natural, a Paris que encontrei foi a do Folies Bergère, do Maison dês Nudistes, do velho Moulin Rouge, dos bares alegres, dos cafés mundanos se espraiando pelas largas calçadas dos boulevards.

Era uma mocidade em férias, um adolescente poeta brasileiro que fora a Portugal numa caravana de estudantes, e que, depois, se perdera pela Europa enquanto os seus colegas voltavam ao Brasil.

Lembro-me daquela noite em que saltei na Gare du Nord, vindo do Havre. De maleta em punho, antes de ir para o hotel, eu só pensava numa coisa: ver a Torre Eiffel. Queria me convencer de que aquilo era Paris, que não estava sonhando. E só quando descortinei do alto do Trocadero, no Champs de Mars, a sobra do seu vulto sobre o fundo iluminado da noite parisiense, me dei por satisfeito.

Mas operou-se, então, em mim, uma repentina transformação, A ânsia da expectativa, do encantamento, transmudou-se numa tranqüila emoção de reconhecimento. De repente, percebi que nunca se chega a Paris pela primeira vez. Eu já tinha estado ali, certamente - quando, não sabia, - e aquelas ruas, aqueles monumentos, aquela paisagem, tudo me era familiar. Não conseguia olhar com olhos de inédito, nem experimentar a emoção do forasteiro diante de um lugar desconhecido. E a impressão iria confirmar-se depois, com mais vagar, enquanto sobrevoava Paris, seus boulevards, seus teatros, cabarés e lugares pitorescos. Era como se estivesse retornando a uma cidade de onde partira na infância, talvez. Estava revendo Paris.

De repente, retocava a paisagem esbatida com nova presença. Eu já passara antes por aqueles vendedores de livros e gravuras, com seus mostruários debruçados sobre o Sena; aquela pesada Notre Dame, povoada de história e de lendas, com seus nichos de pedra e seus apóstolos, com seu pequeno jardim e seus pombos, me parecia tão reconhecida como a igrejinha de S. Sebastião, se pudesse revê-la, nas barrancas do rio Acre; aquelas ruas do Quartier Latin, pululando de estudantes, e Montmartre, e Pigale, com seus cabarés, seus bares e cafés literários, eram um mundo que vinha à tona de regiões imponderáveis.

Poderia cruzar em Montmartre por La Goulue ou por Jane Avril, vindas do Can-Can, ou das pinturas de Toulouse Lautrec; encontrar no Quartier Latin os estudantes pobres e as costureiras românticas de La Bohème...

Ninguém chega a Paris pela primeira vez. É impossível. Todos nós nascemos, vivemos, amamos, morremos em Paris em infinitas encarnações. Nélson Rodrigues diria que o abominável Homem das Neves, o mais branco zulu africano, ou o mais frígido esquimó da Groelândia morreu de amores por Paris sem saber. Como o mar, como o céu, como o sol, Paris está em toda parte: não é apenas uma referencia geográfica, ou mais uma cidade. Amá-la não desnacionaliza, antes, amplia o nosso amor até os limites do universal. O mais ferrenho patriota, ao lado do Hino Nacional de sua terra, entoa, no coração, a sua Marselhesa. Paris está em nosso sangue, no nosso espírito, na infância, na adolescência, em todas as idades. É História, nos livros escolares - Joana dÁrc, Maria Antonieta, Napoleão,- romance e ficção, em Júlio Verne, Alexandre Dumas, Victor Hugo.

Literariamente, moramos em Paris. Clássicos, românticos, parnasianos, simbolistas, foram vizinhos e companheiros de seus mestres: Ronsard, Musset, Verlaine, Baudelaire. Somos, por isso, o Petit Trianon.

É como se o salão de Nodier abrisse suas janelas, não para a rua Sully e a ilha de Louvier, mas para a Rua do Ouvidor, ou para a Glória... E já que o curso destas considerações me levou aos Nodier, lembro-me daquela que foi a namorada de três poetas, a musa do romantismo francês, e a quem foram dedicadas as mais belas poesias de amor: Marie Nodier.

Uma dessas poesias, um soneto, escreveu-o um poeta menor, então quase desconhecido, Félix Arvers, no mesmo álbum em que figuram originais autografados de Musset, Victor Hugo, Vigny, Lamartine, Saint-Beuve. A França vivia seu apogeu romântico.

A melhor homenagem a Paris -a cidade luz dos turistas - a capital do amor e da poesia, para os amantes e poetas de todo mundo, será fechar esta página com o mais célebre soneto de amor de todas as literaturas. Traduzi-o, ainda agora, para a coletânea “Os mais belos sonetos que o Amor inspirou”, volume III:

SONETO DE ARVERS

Na alma tenho um segredo e na vida um mistério
um grande e eterno amor, num momento irrompido;
é um mal sem esperança, e assim, profundo e sério,
aquela que o causou nem sabe que é nascido.
Azar! Passo a seu lado, em vão, despercebido,
portanto, sempre só, sem nenhum refrigério,
e hei de chegar ao fim, à campa, ao cemitério,
nada ousando pedir ou tendo recebido.

E ela que o céu criou boa e terna, hei de ver
seu caminho a seguir, e a ouvir, sem entender,
o murmúrio de amor que a seus pés se erguerá;

a um austero dever, piedosa, se desvela,
e dirá quando ler meus versos cheios dela:
- “Que mulher será essa?”... e não compreenderá.

Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

J. G. de Araújo Jorge (Lembranças Sem Natal)


Foi uma infância sem Natal. Até onde posso ver, olhando para trás, na pequena e distante Rio Branco, agarrada às barrancas do rio Acre, numa vida que nem sei mais se foi minha, não havia Natal.

Lembro-me, vagamente, de umas compridas meias de filó que minha mãe enchia com insignificantes brinquedos.

Era o Natal?

Muitas vezes me perguntei depois, sem compreender, porque o menino Jesus não “nascia” também naquelas longínquas paragens. Até que havia uma igrejinha, de S. Sebastião, “toda branquinha com um lírio branco”,com seu bimbalhar festivo de sinos para saudá-lo.

E árvores, muitas e belas árvores! Lá estavam as esguias seringueiras, os farfalhantes castanheiros, as imensas mangueiras, os alegres cajueiros, as resistentes goiabeiras, e ah ! Aquele alto cajazeiro da orla da floresta -todos estenderiam certamente seus galhos para que os enfeitassem com bolas coloridas e velinhas acesas.

Nem faltariam os boizinhos: havia dois, presos ao varal da moenda na engenhoca, dois boizinhos de presépio, que só muito mais tarde reconheceria. E outros que puxavam carros de rodas sanfônicas, e os que mugiam ao entardecer, nas pastagens ou nos currais.

E crianças, crianças, como em toda parte, que se juntariam em torno ao presépio, ou se postariam no barranco, à espera de Papai Noel, quando ele chegasse de “ chata ” ou de “ gaiola ”, que apitaria na curva do rio, lá junto da antiga cadeia...

Mas não havia Natal. Nunca tive Natal. A casa em festa, a árvore iluminada, aquela ânsia incontida, aquela expectativa que empolga a imaginação e que precede os grandes espetáculos.

Não que me queixe da minha infância: eu a tive intensa, viva, rica de acontecimentos. Fui capitão de moleques. De olhos abertos, pés no chão, eu me perdia pelos caminhos ainda molhados pela madrugada, lendo mais que nos livros, nas coisas, nos bichos, nas árvores, no rio.

Manhãzinha fugia de casa, de baladeira na cintura, procurando sanhaçus, eu me perdia pelos varadouros da floresta comendo cacau maduro e ingá. Vadiava o dia inteiro pelas praias, cavando na areia, para encontrar ovos de tartaruga, como centenas de úmidas bolas de pingue-pongue, ou pescava mandis nos igarapés,com minhocas no anzol.

Barafustava-me pelo mercado, misturando açúcar preto com farinha grossa, nas bocas abertas das sacas, rindo à-toa. Subindo nos toros de madeira que os bois arrastavam para serraria; tomava banho de chuva nas barricas debaixo das calhas do telhado ou nos frios igarapés, entre canaranas, alheio ao risco das cobras de picadas mortais.

Cavalguei minha infância, como um menino feliz, tal como fazia com meu carneirinho branco, presente de aniversário, -passeando com companheiros, pela cidade. Quantas vezes, bem que sabia a surra que me esperava, mas valia a pena!

Seguia a banda até a praça, e assistia aos domingos a retreta, trepando no gradil do coreto, deslumbrado sempre com o trombone metálico, cornucópia mágica e brilhante, a borbulhar sons guturais e roufenhos. E um dia, pedi aos presos da Cadeia Pública para gravarem o nome dela na pulseira feita de chifre de boi. Como disse no poema: primeira algema de amor.

Cresci livre, como o mundo ao meu redor, aprendendo igualdade e amor.

Carregava molhos de bagaço de cana, com a molecada, na engenhoca, para ter direito depois de beber garapa, comer rapadura, ou “tirar alfinin”. Subia pelos cajueiros ou pelas altas e copadas mangueiras, a devassar os horizontes, a mexer nos ninhos dos passarinhos, ou a me esconder do professor.

Participava das festas do Grupo Escolar, e representava nas festas de fim-de-ano. Guardei os nomes das professoras: Da. Olga, Da. Risoleta. Eram filhas do Governador que tinha um apelido assustador: Surucucu. E fiz a minha primeira comunhão... duas vezes! Porque na primeira vez, saí de casa, e não cheguei à igreja. Entrei num jogo de futebol, na rua.

Mas, um dia voltamos. Viemos todos para o Rio. Fomos morar em Botafogo, visinhos do velho casarão, onde residiu por quase meio século, o meu avô Tinoco, na antiga rua da Piedade.

E só então aconteceu o Natal. Natal com festa, árvore de brinquedos, mesa farta de doces. Nunca mais reencontrei o gosto daquele bolo de nozes, daqueles canudinhos de côco, daquelas ameixas recheadas com ovo e açúcar cristalizado.

São como o gosto da infância, que nunca mais se recobra, apenas se relembra.

Ainda ouço minhas tias avisando:

- Se você disser aos outros que Papai Noel não existe, seu avô não lhe dá a bicicleta.

Ah, minha bicicleta! Foi meu primeiro e verdadeiro amor. Esperei-a, com uma sofreguidão de Cinderela ao seu príncipe encantado.

Mas só muitos anos mais tarde, me poria a pensar naquele estranho aviso das tias, aos meus irmãos e aos primos menores:

- Escolham o sapato mais velhinho pra colocar na janela. Assim Papai Noel pensará que vocês são pobrezinhos e deixará muitos brinquedos.

Quanta ironia no aviso despropositado.

Sim, fui uma infância sem Natal. Mas não me queixo. Resta-me um consolo: ao menos não me desencantei como tantas crianças, descobrindo um dia a ingênua mentira, ao reconhecerem Papai Noel por trás de sua barba branca, ao vê-lo tirar a encantada máscara, no seu feliz e efêmero carnaval...

Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

J. G. de Araújo Jorge (Garimpando Sonetos)


A imortalidade de um poema não é decretada pela crítica mas pelo “referendum” popular. Só o tempo e a memória do povo - fichário de seu coração - consagram realmente um poema.

Homero foi declamado durante séculos pelos aedos gregos, antes que escribas de Psitrato recebessem a incumbência de fixar pela forma gráfica os seus dois poemas imortais.

Mas com os poemas e sonetos acontece às vezes o mesmo que com as trovinhas. À proporção que se popularizam, ou justamente por isso, vão sendo envolvidos pelo anonimato. Das trovas, quase se poderia dizer, talvez pela facilidade com que podem ser decoradas ou transcritas, que muitas, das mais belas, correm na “ boca do povo ”, esquecidas dos seus autores. Uma delas, que todos nós sabemos de cor, tem sido atribuída não só a poetas brasileiros como a portugueses. Leio agora, entretanto, no número 25 do jornalzinho “ Trovas e Trovadores ”, órgão oficial da União Brasileira de Trovadores, num artigo de Luiz Otávio, e com documentação irrefutável, que pertence a um trovador pernambucano Barreto Coutinho. É aquela quadrinha:

Eu vi minha mãe rezando
aos pés da Virgem Maria.
Era uma santa escutando
o que outra santa dizia.”


Numa crônica anterior, “ Sonetos Imortais”, referindo-nos aos poetas que se imortalizaram apenas por um soneto, citamos “Romance” de Octávio Rocha, que retiramos de velho recorte do “Correio da Manhã” de mais de vinte anos, com um comentário em que o redator Aédo de Carvoliva informa que o transcrevia de uma revista, e estranhava não conhecer o poeta.

Este soneto, que agora incluímos em nova edição de nossa antologia “Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou”, volume I, (Poesia Brasileira), já se encontra identificado. Recebemos uma carta do poeta, que vive atualmente em Campinas, é jornalista, colabora no jornal “Correio Popular”, nasceu em Mogi-Mirim, e conta 76 anos. Teve conhecimento de nossa c rônica por intermédio de uma filha, residente em S. Paulo, leitora da revista. Trata-se realmente de um belo soneto lírico, cuja idéia é um verdadeiro “achado”, uma novidade, dentro do mais velho e do mais difícil dos temas: o Amor.

Como sugeri ao seu autor uma pequena modificação, simples apara, em dois versos, para que o soneto ganhasse em inteireza, sugestão que ele recebeu de bom grado, vou transcreve-lo novamente, para quem não o recortou:

ROMANCE

“- Venha me ver sem falta, estou velhinha.
Iremos recordar nosso passado.
A sua mão quero apertar na minha,
quero sonhar ternuras ao seu lado...

Respondi, pressuroso, numa linha:
“ - Perdoa-me não ir... ando ocupado...”
Amei-a tanto, quando foi mocinha,
e de tal modo, também fui amado.

Passou a mocidade, num relance...
Hoje, estou velho, velha está... Suponho
que perdeu da beleza os vivos traços...

Não quero ver morrer nosso romance:
“ - prefiro tê-la, jovem, no meu sonho,
do que, velha, aperta-la nos meus braços!”


Quando eu apresentava, pela Rádio nacional, o programa “Encontro com a poesia”, solicitei aos meus ouvintes que, se conhecessem qualquer belo soneto me enviassem sem compromisso, e por isso, eu lhes ficaria muito grato, já que não pertenço (nem pretendo) a grupos literários.

Pois bem em meio à correspondência, chegaram-me, inclusive, cadernos inteiros de poesia. De dois destes cadernos recolhi quase cinqüenta novos trabalhos, que acrescentei a 3.a edição de “ Os Mais Belos Sonetos que o Amor Inspirou ”. Do caderno enviado pela Prof.a Maria José de Menezes, organizado ao tempo em que era normalista, e onde, para minha alegria, encontrei uma grande quantidade de meus sonetos, retirei entre outros, um intitulado “Mente Mais”, de Raul Giudicelli. Não conhecia o poeta de nome, e julguei até pudesse ser a t radução de algum soneto de autor italiano.

Pesquisando, entretanto, acabei por localizar o escritor que mora no Rio, é carioca, da Ilha do Governador, não tem livro publicado, e faz parte da direção da revista “O Cruzeiro”. Eis o soneto:

MENTE MAIS

Sei que os carinhos teus sempre serão
carinhos mentirosos, aparentes,
mas não sei se é vaidade ou compaixão
o secreto motivo por que mente...

Sei que não falas pelo coração
quando falas do amor que por mim sentes,
mas tens finuras tais de sedução
que das próprias mentiras te desmentes...

Se puderes dizer-me sempre “sim”
com ternuras e olhares sempre iguais,
sem te cansares de mentir assim,

sem te esgotares de mentiras tais,
não te apartes, então, jamais de mim,
e eu te peço, querida, mente mais!


E já que estamos “ garimpando ” poesia, e que devo a revista “ Jóia ” a identificação de uma gema preciosa, vou aproveitar a oportunidade, e encerrar esta croniqueta com um soneto, retirado ao caderno de outra ouvinte, onde foi copiado sem o nome do autor.

Publicado, talvez os leitores me ajudem a descobrir o poeta. Escrevam-me enviando os dados biográficos, pois que o soneto figura também na nova edição da antologia, mas como anônimo.

RÉU DE AMOR

Sou réu de amor! Confesso o meu pecado
porém não me arrependo desse crime,
que amar alguém e ser também amado
é o crime mais gostoso e mais sublime!

A confissão por certo não redime
a quem quer continuar a ser culpado,
e seu for, por acaso, condenado,
não há razão para que desanime.

Pelo contrário. Altivo, embora fique
meu coração partido em mil pedaços,
eu quero que a justiça se pratique...

Sou réu de amor, e julgo-me indefeso!
Pela justiça, entrego-me a teus braços:
eternamente quero ficar preso...


Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969

domingo, 12 de fevereiro de 2012

J. G. de Araújo Jorge (Eternos Românticos)


Eis os verbetes da palavra romântico, no dicionário: “Diz-se dos escritores e artistas que, no começo do Século XIX, abandonaram as regras de composição e estilo dos autores clássicos. Caracterizam-se pela predominância da sensibilidade e da imaginação sobre a razão, pelo individualismo, pelo lirismo”.

De onde se conclui que, quase todos os artistas, quaisquer que sejam os tempos e as escolas, são ou foram românticos. Costumo afirmar, por isso, que o romantismo, não é apenas uma escola literária, mas um estado de espírito. Românticos foram, através dos tempos, e muito antes do Século XIX, as mais altas expressões das letras e das artes.

Aqui mesmo, em crônica anterior, falamos sobre o tema. O homem hoje parece que se envergonha de ser romântico, ou de ser tido como tal. Como se isto fosse um atestado de doença ou de fraqueza.

Continuaremos, no entanto, românticos, graças a Deus. Há alguns anos, alguém escrevendo sobre minha poesia disse que eu era o “último romântico de nossas letras”. Puro engano. O mundo continua, e seguirá povoado por essa espécie imortal para que a arte sobreviva.

Poderíamos parafrasear a expressão euclidiana, e dizer que “o romântico é antes de tudo um forte”. E por quê? Justamente porque fortes são os que têm a capacidade de sentir. E o romântico é o emotivo, o sentimental, o que expõe o coração. Só ele enriquece a vida com as perspectivas infinitas do sentimento e da fantasia. Os frios, os indiferentes, os “materialistas” num sentido puramente social, são os fracos, os temerosos, e, são, portanto, os que não vivem plenamente.

Os românticos são os que enfunam as velas do sonho e se atiram a todas as correntes. Certamente que sofrem. Mas para eles, vida e sofrimento são palavras que se equivalem, que se identificam. Sabem que o temor ao sofrimento só poderá levar a escapadas e enclausuramentos. São os que não têm medo, portanto, os que se aventuram. Os estóicos. Os que captam a vida em todas as direções, embora feridos, angustiados. Os que não se envergonham de chorar. Coisa engraçada é afirmar-se que o mundo de hoje é um mundo de homens de ferro, duros, insensíveis. Como se isto fosse vantagem, ou, que é mais importante, verdade. Se ontem, as armaduras de ferro dos cavaleiros medievais escondiam corações inflamados de ternura florais, de anseios cavalheirescos, hoje, as pesadas roupas dos astronautas protegem igualmente corações cheios de amor e poesia.

Todos nós lemos as declarações dos astronautas ao voltarem do espaço sideral. Eram falas de poetas, deslumbrados com o espetáculo novo de um universo imprevisto. Um deles, o primeiro, declarou de sua cápsula: o mundo é azul!

Que eles são, mesmo, os poetas do espaço. Hoje, eu diria que até a ciência é romântica: ainda à procura da lua dos poetas e dos namorados.

Os jogadores de futebol, que representam homens de um esporte viril, após as grandes vitórias, ou as fragosas derrotas, desmandam-se a chorar, como bebês. E que de estranho há nisso? São, e continuam sendo apenas homens, como os de todas as épocas, quando inflamados ou aterrados pelas emoções violentas. Choram políticos, choram generais, choram artistas. Na televisão, assistimos todos os dias ao espetáculo dos que desgovernam pelo coração, e são por isso sublimes ou heróicos.

Falsa, inteiramente ilusória, a afirmativa apresentada e superficial, de que deixamos de ser românticos.

Sim, o mundo gira, o mundo se transforma, mas o homem continua o mesmo: Macbeth, Otelo, Romeu ou D. Quixote. O coração continua a ser aquele ponto inevitável sobre o qual se apóia uma das pontas do compasso para traçar as figurações e planos.

E as gerações novas?

Os moços do iê-iê-iê, até na aparência são românticos. Restauram as formas de trajar, os exageros requintados de outras épocas. Quando os vemos, nos lembramos dos poetas do fim do século, de cabelos longos, roupas enfeitadas. Sua música, aparentemente “avançada”, trouxe apenas novidades rítmicas, mas o fundo melódico e as letras traem o eterno romantismo. E aí está o “slogan” dos “hippies”: “The Flower’s power”. Uma geração que faz da flor o seu símbolo, o seu estandarte, a sua mensagem de paz e amor, não é uma geração romântica? As desesperadas tentativas de fuga à realidade pelos entorpecentes, pelo LSD, não se assemelham aquela geração de Byron e Musset, dos cansados da vida aos 20 anos, e que tentavam uma última escalada pelo álcool, “fazendo-se” tuberculosos?

Que fale quem quiser. Posso, melhor que ninguém, dar meu testemunho. Desfraldei minha poesia há cerca de trinta anos, e ela aí está como bandeira no topo do mastro. Sabotada ou não, o povo faz ciranda com ela nas ruas. Dizer-se que não há leitores para a poesia é simples mentira. Não só eu vendo meus livros. Augusto dos Anjos, Raul de Leoni, Guilherme de Almeida, Cassiano Ricardo, Vinícius de Morais e tantos outros poetas esgotam edições. E são todos, cada um a seu modo, poetas românticos. Citaria centenas de cartas de meus leitores, e eu disse leitores, não apenas leitoras, que provam a ressonância da poesia, que me agradecem os versos, como alguém com fome agradeceria um pedaço de pão, ou um pouco de água, se tivesse sêde.

O dicionário completa o verbete: ser romântico é ser “devaneador, poético, apaixonado”. Então, somos todos nós. “Quem não for capaz de sonhar, de encontrar belezas, de amar”, “só passou pela vida, não viveu”, como diria o velho Otaviano Rosa.

Dentro do homem mais seco, e empedernido, do espírito mais cético e pragmático, do filosofo mais materialista, há um cérebro e um coração, para pensar e para sentir. E naqueles momentos de coração que salvam a nossa vida, somos todos românticos. O operário que bota tijolo em cima de tijolo, o dia todo, à noite vira poeta diante do mar, em companhia da namorada; a mocinha do balcão que vendeu qualquer coisa, ou o do escritório que bateu faturas, vai depois copiar poesias em seu caderno; o cronista engraçado que se compraz em ridicularizar boleros, vai cantar tangos na boate, depois da terceira dose de uísque; o motorista, que transporta cargas pelos caminhos, faz poesia e humor nos pára-choques do seu caminhão.

Por muitas razões, usamos máscara trezentos e sessenta dias, e só as tiramos às vezes, no carnaval. Há homens que se envergonham de ter coração, o que é grave; procuram esconde-lo, o que é tolo; tentem nega-lo, o que é absurdo. Salvam-se alguns poetas (façam versos ou não) que têm coragem de permanecer poetas, num mundo que pretende negar a poesia, e que tanto precisa dela. Alguns poetas, que, corajosamente não usam máscaras, continuam falando de amor, como os velhos cristãos ou como... os “hippies”...

Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969

sábado, 11 de fevereiro de 2012

J. G. de Araújo Jorge (Erupções de Harmonia)


Moacyr de Almeida, Raul de Leoni e Augusto dos Anjos, eis três dos meus poetas preferidos. Por uma estranha coincidência, são poetas de um único livro. Moacyr, publicou apenas “Gritos Bárbaros”.

Raul de Leoni, “Luz Mediterrânea”, e Augusto dos Anjos, (um dos poetas que mais se vendem no Brasil) é o autor de “Eu, e Outras Poesias”.

Moacyr morreu adolescente, pode-se dizer. Consumiu-o a tuberculose. Nasceu a 22 de abril de 1902 e faleceu a 30 de abril de 1925, com apenas 23 anos. Poderia estar hoje ainda, em nosso convívio, e seria um homem maduro na casa dos 60 anos.

Em 1926, tendo nascido em 1895 morria em Itaipava, perto de Petrópolis, outro extraordinário poeta, Raul de Leoni, vítima do mesmo mal. Raul de Leoni era sete anos mais velho que Moacyr de Almeida, e viveria uns anos mais, morrendo com 31 anos.

De certa forma, se identificavam.

Em Moacyr, o poder verbal era mais empolgante. Em Leoni, a introspeção filosófica, mais profunda. Ambos humanistas. Um, voltava-se mais para o céu, a natureza, os astros; há nos seus cantos ou gritos, qualquer coisa de anímico.

O outro, voltava-se mais para as criaturas, para a vida, a terra.

A “Ode A Um Poeta Morto”, que Raul de Leoni escreveu em memória de Bilac poderia ser repetida, e talvez com maior propriedade, diante do túmulo de Moacyr de Almeida:

“Semeador de harmonia e de beleza
que num glorioso túmulo repousas,
tua alma foi um cântico diverso
cheio de eterna música das coisas:
- uma voz superior da natureza
uma idéia sonora do Universo.”


Eis Moacyr: “Uma idéia sonora do Universo”. Mais do que isto, como ele próprio se definiu, ao referir-se a Wagner: “Erupções de harmonia!”

Agripino Griecco que foi o primeiro, senão dos primeiros que apadrinharam com entusiasmo e ternura a obra do poeta adolescente, escreveu com uma acuidade singular:

“Moacyr tinha o gosto da natureza sobrenatural e a humanidade sobre-humana”

* * *

Moacyr era um mago das palavras. Embebedava-se com sua sonoridade, suas combinações, suas metáforas. E manejava-as com a habilidade de um esgrimista, comprazendo-se nesse “tinir de espadas contra espadas”, com seu tilintar de metais. Era “wagneriano”. Há na sua poesia um sentido orquestral, místico e mítico. Difícil será se precisar, para o poeta, os limites entre a realidade e a ficção. Vivia no seu mundo super imaginativo.

Como Beethoven, preferia às vezes o convívio das árvores ao dos homens. Foi ele que escreveu:

“A musica em um país de belezas estranhas” e para ele, com a música:
“Deus se desfaz em sons e torna-se visível!”.


Lembra às vezes Castro Alves, Augusto dos Anjos, outros que tiveram seu destino. Se para Raul de Leoni, as idéias eram seres, para Moacyr, eram seres as próprias palavras. Fazia-as cantar e dançar, e, seus poemas parecem-nos picadeiros mágicos onde as exibia, sonoras, coloridas, empolgantes. Movimentava-as, como marionetes, ao jogo de seus dedos.

O gosto da sonoridade lhe era inato. Ele não escrevia as palavras: gritava-as, exclamava-as, soluçava-as. Seu livro se chamou por isto: “Gritos Bárbaros”.

E dividiu-o em três partes:

Voz dos abismos
Soluços do deserto
Clamor dos séculos


A palavra em sua poesia, é voz, é grito, é soluço. Curioso: ninguém consegue ler Moacyr de Almeida em silêncio. Instintivamente começamos a balbuciar as palavras, aumentamos a voz, e de repente, quando nos apercebemos do fato, já estamos saboreando a beleza sonora dos versos declamando-os, arrebatados por suas cintilações de ouro e chamas.

Em seu soneto “Prece”, confessa que se inclui entre aqueles que

“sentindo o travo das angústias, vão
enchendo o mundo de um clamor infindo
rebentando num grito o coração.”


Este outro soneto dá idéia de sua força criadora, do seu processo de composição e da paixão pelas palavras musicais:

BEDUÍNO

Olha o imenso deserto em que vivo chorando...
Nunca a sombra do amor desceu sobre os meus dias!
Dorme o meu coração, cheio de um tédio infando
num túmulo de fogo e de areias bravias...

Tu, que eu amo, jamais com teu olhar tão brando
tornarás num vergel este areal de agonias,
com teus beijos florindo o áspero chão nefando,
com teus risos enchendo o espaço de harmonias!

Sofro em tédios de brasa e clarões de martírios...
Ah! Mas tu que és irmã das fontes e dos lírios
e que espero ajoelhado e de braços abertos,

não virás a este amor de beduíno e maldito,
em cuja fronte pesa a aflição do infinito,
em cujo beijo amarga a areia dos desertos...


Mago da palavra, manejava-a como um gladiador romano às adagas metálicas. Há faíscas e lampejos imortais em suas estrofes, em seus versos, em suas rimas. O tom é interjetivo, as imagens, condoreiras. Sua linguagem estala no ar como um chicote, e descobre diante de nós horizontes infinitos, oceânicos.

Sim, a idéia do mar nos ocorre muitas vezes ao ler os seus versos, ao se perceber a imensidade de seu espírito. Ele próprio num soneto de amor, antológico, deixa escapar o grito:

- “Sou oceano!”

E vale a pena relembrar o soneto todo, rico de força, de elan, de beleza.

DOMADORA DO OCEANO

Eis a teus pés o oceano... É teu o oceano!
Deusa do mar teu vulto aclara os mares,
esguio como um ciato romano
nervoso, como a chama dos altares...

A alma das vagas, no ímpeto vesano
ajoelha ante os teus olhos estelares...
Eis a teus pés o oceano... É teu o oceano!
Cobre-o, como verde sol dos teus olhares!

Sou o oceano!... És a aurora! Eis-me de joelhos
ainda ferido nos tufões adversos
lacerado em relâmpagos vermelhos!

Sou teu, divina! E em meus gritos medonhos,
lanço a teus pés a espuma de meus versos
e as pérolas de fogo de meus sonhos!


Como uma cigarra, Moacyr não morreu de tuberculose: morreu de cantar. Estourou. Sua tensão interior era demasiada para o arcabouço físico que a natureza lhe dera. Não pode resistir às altas pressões de seu próprio gênio.

É o que reconhece aliás, Pinheiro de Lemos, em artigo que lhe dedicou:

“Em seu invólucro frágil e precário de evidente candidato à consumação, turbilhonava um vórtice de violências.”

Eu diria: ele todo era uma sonora catedral, de altas torres e coloridos vitrais, a que Deus se esquecera de dar convenientes alicerces, e que se transformou por isso, em luz e canto.

Mas quem lhe traçou melhor, e incisivamente, o p erfil foi o velho Agripino Griecco, em, poucas frases.

“Mal distinguia entre a lenda e a história, o real e irreal, o abstrato e o concreto. Possuía uma imaginação de visionário e até de alucinado. Traia, não raro, algo de um vidente estático.”

Exato: um “vidente estático!” Moacyr de Almeida, era, não apenas o poeta, mas o vate, no sentido de possuir o dom da antevisão. Não apenas transfigurava a realidade, mas vaticinava profeticamente.

Assim como mergulhava no ontem, buscando temas para sua criação, projetava-se no amanhã, em antevisões.

O presente, não era o “estado” natural de sua imaginação. Sua poesia é intemporal.

Seu espírito fez viagens maravilhosas, e como um Sheerazade moderno, transformou em poesia todas as suas descobertas e impressões.

Andou pelo Velho Oriente, pela Índia, esteve na Palestina, na Arábia, no Egito. Chegou à longínqua Sibéria, e se condoeu da sorte dos escravos e perseguidos. Exaltou a América, sua terra. Entrou historia adentro: conviveu com os mais diversos personagens: Homero, Vercingetorix, Átila, Ésquilo, Aníbal, Napoleão. Visitou os Astecas pré-colombianos, e conheceu o país das lendárias Walkírias.

Em “Luta nas selvas” e “Incêndio na floresta” nos dá uma visão da floresta brasileira como só Vicente de Carvalho, antes conseguira, nas estrofes de “Fugindo ao cativeiro”.

Incrível é que, com apenas 23 anos, tenha realizado tanto.

No Brasil, como ele, só Álvares de Azevedo e Castro Alves, ou talvez aquele sergipano extraordinário, Tobias Barreto, tiveram também cintilações de gênio.

Sol que não chegou a amanhecer, que não explodiu em alvorada, iluminou, entretanto, todo o horizonte da poesia brasileira com a sua luz poderosa.

Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

J. G. de Araújo Jorge (Entrevista Comigo Mesmo)


- Que Pensa da arte?

Insopitável necessidade de emergir. Todos nós que vivemos soterrados em tantos "eus", sentimos ânsias de ar, de sol, de revelação, de comunicação. A arte ajuda o homem a se aceitar, a compreender o mundo que o cerca, a se aproximar de Deus. A alma humana, como as baleias, vive mas precisa vir à tona para respirar.

- E do poeta ?

É um tradutor de realidades subjetivas. Um transfigurador. Um mergulhador dos mares do espírito. É através de mensagem, que o homem comum consegue atingir "o outro lado" das coisas! Seu trabalho enriquece a todos. Já o poeta é um prestidigitador - faz mágicas com a Vida - transforma água em vinho, para a embriagues da beleza.
Mas há o reverso da medalha: quantos poetas tenho encontrado que apenas não fazem versos!

-E da poesia ?

É a ciência do coração. Os poetas são os sábios do sentimento. E quantas coisas revelam sem se aperceberem de suas descobertas.
Tenho dito muitas vezes: são seres que pensam, sentindo ou, pensam, porque sentem. Constróem seu mundo com emoções.
Quando pretendem filosofar, falam de amor. E falar de amor já é fazer poesia.
A poesia é criada pelo pensamento, mas seu material é o sentimento. Cobaias de si mesmos, os poetas, em experiências e pesquisas constantes, revelam a vida, são apenas homens que nasceram poetas.

- Então, o poeta não é um ser diferente?

É um ser diferente num homem comum. Sou um homem comum, apenas dispondo de recursos para realizar uma tarefa que não está ao alcance de todos. O poeta é como um alpinista, que já nascesse trazendo em si mesmo os instrumentos e apetrechos para poder realizar escaladas.
Sou um homem comum que anda na rua, canta no banheiro, vai ao futebol, toma porre , diz palavrão, faz versos para ela; que ama, briga, sonha, desespera, como qualquer um. Há um velho adágio latino: "primeiro viver, depois filosofar".
Bem se poderia parafrasear: primeiro viver, depois poetar.

- E por que acha que faz poesia?

Talvez porque a única coisa que sei, e sei mal, sou eu mesmo. Se ninguém gostasse de minha poesia ainda assim a faria. Pois nasci para isso. Não é tanto que eu goste de minha poesia, mas porque preciso dela, o que talvez venha a ser a mesma coisa.

Mas, o fato é que, sem minha poesia., ficaria doente, como um índio confinado numa cela, sem sua selva, seus rios, seus pássaros, sua liberdade. Me encontro nela como peixe no mar. Ela me dá a impressão de que não é só do meu espírito, mas do corpo também. Eu a sinto, quase fisicamente.
Os artistas são como as cigarras: estas, morrem de tanto cantar; nós, se não contarmos, morreremos.

- É fácil ou difícil fazer versos?

Fácil, ou impossível. Impossível, no sentido de ser.
Você pode se tornar um pianista, nunca um "virtuoso". Você pode aprender a fazer versos, nunca a ser poeta. Poesia não é só construção. Se não, poderíamos abrir uma escola para poetas, como há uma escola de Engenharia ou de Direito. E é preciso que se diga isto, quando há uns poetas por aí negando-se a si mesmos.

Quanto a mim, já respondi:
Eu faço versos assim,
como quem respira ou canta
a poesia nasce em mim,
como do chão nasce a planta.

- Gosta do que faz?

É como se me perguntasse se gosto de rir, ou de chorar. Gosto de cantar, de mataborrar minha alegria ou minha dor em versos. Poderia até responder numa quadrinha:
Eu faço versos assim
como quem ri, ou quem chora,
e ao arrancá-los de mim
fico nú e vou-me embora. .

- Que acha de sua obra?

Seria difícil responder, de dentro dela, onde me encontro.Faltam-me isenção e perspectiva. Mas sou um velho fazedor de versos, que em suas releituras muita vez não se reconhece em sua própria obra.
Somos tantos afinal, em nós mesmos, em mortes e renascimentos que nos acabam e nos multiplicam. Mas seria um pai desnaturado se não gostasse do que nasce de mim, com todas as qualidades e defeitos que são os meus.

- Julga-se um poeta moderno?

Um poeta moderno é o que se comunica com o seu tempo, e lhe traduz as esperanças, anseios, desesperos. Se os moços lêem os meus versos e os sabem de cor, e os escrevem em seus cadernos, e compram meus livros, então não sou apenas um poeta moderno, de hoje, mas um contemporâneo do futuro, porque já estou me dirigindo ao amanhã.

- Que acha do amor, como tema poético?

O mais importante. Veio explorado, mas inesgotável, só os verdadeiros poetas conseguem, encontrar-lhe novos "filões". Confessei em "Eterno Motivo": Não me envergonho nunca de falar de amor. E repeti, em "O Poder da Flor".

Acima de tudo cantarei o amor.
O de Cristo e Confúcio, o de Romeu e D. Juan,
o de Che Guevara,
acima de todo cantarei o amor.

- Então, o amor é o grande tema ?

Sim, o amor, a vida. Está no meu "Cantiga do Só" poesia sem vida, é como flor de papel, de matéria-plástica. Falta-lhe seiva, viço, perfume. Não será mel nem fruto. Não conhecerá pássaros nem abelhas. É uma imitação triste.

E a poesia tem que ser múltipla pelas próprias contingências da vida. Sem falar de minha poesia social e política (sou talvez o único poeta brasileiro com livros de poesia política: "Estrela da Terra", "Mensagem", a segunda parte de "O Poder da Flor), minha obra lírica evoluiu, como é natural, a cada livro. Hoje, nos meus últimos livros, meu lirismo é um canto dramático, em que o lírico é mais um fio melódico, à distância.

- Há lugar para a poesia em nossos tempos?

Em todos os tempos. E quanto mais árido o chão, mais sede de beleza sentirão os homens. Nas bicas, nos cantis, nas mãos, no coração, nas pedras, a poesia é água fresca sem a qual a vida morre. Por isso já escrevi: Alegria / é apanhar no chão,/ a água da minha poesia / a correr, / e dar a quem tem sede no coração / para beber.
Isto me dá a sensação também da constante utilidade da minha poesia, pois percebo que muitos precisam dela, como de um pedaço de pão, ou de um gole d'água.
A poesia é, além do mais, companhia e confidente. E quanta solidão anda por aí desarvorada, sem uma porta que se abra, um coração que a receba !

- Que acha da criação?

Não sei defini-Ia.
Sei que após ela, nos sentimos leves e felizes, como devem se sentir as mulheres após a maternidade, as crianças depois das aulas, a terra depois da chuva. Proust a definiu: decolar. . .

- Há inspiração?

Sim, é um toque de Deus no artista. Uma espécie de "mediunidade". Um transe, um "estado de graça" tão natural, como a manifestação do amor. O poeta não é apenas "o arquiteto, o engenheiro, o construtor, o operário" como diz Vinícius, mas o próprio morador do edifício, e sem sua presença, a sua construção é menos que uma ruína, será um edifício vazio, sem alma, sem sentido. Com o pensamento, o homem faz prosa, faz Filosofia, Direito, Teatro, Romance. Sem o sentimento, não há poesia, ou o que há de poesia, será àquela vaga emoção que o pensamento conseguiu perturbar ou despertar. Alguns, raros, poetas, pensando, se emocionam. O processo da criação poética é, entretanto, outro; sem trocadilho, inverso: porque se emocionam, os poetas pensam, e então criam.

E o ato de criar verdadeiro é imprevisível. O poeta, não diz: bem, vou fazer um poema. O poema é que vem, e diz: estou aqui, escreve-me. Tentei explicar todo um livro, "Harpa Submersa": sua linguagem escorreu como lava de vulcão, fixando todas as emoções e angústias interiores. Cristalizou-se muitas vezes, como os minerais que constroem ângulos e arestas sem conhecer as leis das cristalografia.

Assim é a poesia.

Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

J. G. de Araújo Jorge (Com Os Moços)


Imagine-se a notícia, em manchete, no jornal sensacionalista:

"Cabeludo pulava todas as noites a janela do apartamento da namorada!"

E a história: as famílias se odiavam, não queriam o namoro. Mas eles desobedeciam os pais, e resolviam a seu modo o romance proibido. Os comentários viriam unânimes: "Transviados!"

Se transferíssemos, cena e romance, para os fins da Idade Média, para uma pequena cidade italiana no sopé dos Alpes, teríamos o drama imortal. Quem não se emocionou com o idílio de Romeu e Julieta - o amor que acabou em tragédia pela rivalidade das famílias Montecchio e Capuleto?

E embora se negue a existência real dos dois amantes shakespearianos, eles ficaram como um símbolo dos arroubos e da paixão dos jovens, reagindo, e às vezes pagando caro a incompreensão e os preconceitos levantados pelas velhas gerações.

E que me conste, nunca chamaram a Romeu e Julieta de "transviados"...

Na verdade, quando penso na juventude, lembro-me do verso de Keats:

"A thing of beauthy is a joy for ever"

Não sei quem teria inventado a frase infeliz com que se procura ferretear indistintamente os moços: "juventude transviada".

Toda juventude é naturalmente explosiva, exuberante, excessiva, apresenta transbordamentos inevitáveis. Do contrário seria madureza, velhice precoce.

Não compreendo um moço comedido, meticuloso, voltado para dentro de si mesmo. Nessa idade, o mundo exterior é todo encantos, atrações, convites. Não há trilhos, nem trilhas, ou roteiros preestabelecidos. É a época das descobertas, da aventura, da ânsia por obstáculos que sejam desafios à coragem, à audácia, à necessidade de auto-afirmação.

E é, ao mesmo tempo, uma idade dramática, fase de transição, alvorada de contradições, de conflitos, de dúvidas, quando faz falta uma luz à frente, uma mão companheira, um guia.

E eis também, de certa forma, justamente, o que não têm encontrado os jovens de nossos dias.

Posso testemunhar: convivo com eles há muitos anos. Encontro-os todos os dias como professor. Nem está tão longe o meu tempo de moço que não possa lembrá-lo, ou tenha me esquecido de seus impulsos, seus " vôos cegos ", seus desregramentos e sonhos.

Se tivesse que diferenciar a juventude de hoje da minha, diria que nós éramos mais " acadêmicos ", mais " clássicos ", posávamos mais de sérios. E, de certa forma, mais ingênuos. Que de caminhos a realidade tinha que percorrer antes de nos encontrar. Os veículos de comunicação eram poucos e tardios.

Entre nossos mundos, o historiador de amanhã colocará certamente o marco que separa dois períodos históricos.

A juventude de hoje é mais dinâmica, inquieta, politizada.

Constato isto, por exemplo, por um caderno de recordações onde recolhi impressões de meus antigos companheiros de turma no Colégio Pedro II, e pelo nosso álbum de formatura - "Adeus", - onde, sob as fotografias, aparecem os lemas de cada um: todos ingênuos, românticos, jactanciosos.

Assim éramos nós, nas atitudes e nas palavras. Absorviam-nos preocupações literárias e esportivas. Fundávamos e dirigíamos jornais, grêmios culturais, academias. Poucos de nós espiavam sobre os altos muros que nos cercavam para descortinar outros horizontes. As lutas políticas nos esperavam mais adiante, no Curso Superior, nas Faculdades, onde nos engolfaríamos em agitações nacionalistas, em campanhas democráticas contra o fascismo e a ditadura.

A juventude de hoje ( e tinha que ser assim) é atraída, desde cedo, pelos grandes problemas.
As fronteiras secaram. O homem devassa o espaço. O mundo encolheu.

A história não, vem nos livros, acontece diante de seus olhos. É testemunha dos fatos. Os povos se debatem. Sucedem-se crises e guerras. A fantástica visão dos cogumelos atômicos é uma ameaça sinistra no ar! Os moços não podem fugir às contingências de seu tempo. Seria deserção e covardia.

Sou dos que pensam que, desde o curso secundário, a juventude pode e deve tomar conhecimento da realidade que a cerca, sem prejuízo de seus estudos. É um conhecimento necessário, uma aprendizagem humana e cívica que deveria ser considerada como uma atividade extra-escolar normal.

Não concebo um moço que não seja idealista, generoso. Mocidade é sinônimo de pureza de intenções, entusiasmo, lealdade.

Sua presença na política se constitui sempre num elemento decisivo para distinguir as boas e más causas, os bons e os maus propósitos. Só os que receiam ser desmascarados em seus objetivos escusos a temem.

Por isso escrevi "Posição", um poema de "Mensagem".

Parece haver uma atitude preconcebida dos mais velhos, de gerações frustradas, contra os jovens. Esta atitude deixa à mostra um complexo de inferioridade, ou um sentimento de culpa, diante de uma mocidade que caminha por si, e vai se realizando apesar de tudo, sem orientação, ajuda, e, o que é pior, compreensão.

Uma mocidade que não vê, portanto, porque tenha que seguir os mais velhos Afinal, por quê;? Para onde? E para quê? Para que o mundo continue como está.; Então, é preferível seguir só, denunciando inclusive os culpados pela herança que terão que receber.

A verdade é que a mocidade de hoje é uma mocidade que não se envergonha de pensar por si, de sentir, de se olhar no espelho sem qualquer hipocrisia.

Afirma-se tal como é, choque a quem chocar. E daí? Não terá ela também o direito de se sentir chocada com o mundo que seus pais lhe deram?

 Compreendo os moços. Sinto que poderia ser um deles, e que, de certa forma, continuo sendo. Que alegria quando escuto dizer que sou o " poeta do povo e da mocidade"! Eles querem apenas ser. Ser como são, e melhor que nós. Confio neles. Tenho a certeza de que podemos passar-lhes o bastão sem medo. Eles encontrarão o caminho que não lhes indicamos, e reconquistarão, por nós, não para nós, o tempo e o mundo perdidos.
Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969