quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Carla Rejane Silva (Dói?… E como dói!...)


Hoje, olhando para dentro de mim, numa introspecção  silenciosa e repentina,  escavada e profunda, percebi o meu ‘eu’ interior sangrando alquebrado. Desventurosamente triste e feiamente sórdido e sobretudo, enfraquecido, me senti ao rés do chão. Diante deste quadro desolador, parei, pensei, analisei e, por fim, não me restou outra alternativa, senão chorar... Me debulhei, então, em gotas amargas de uma plangência sentida. Muitos queixumes botei para fora de uma só vez. Não porque meu todo estava partido, estilhaçado, mas por me sentir uma tola, uma idiota, uma Maria Ninguém. Cada vez que me lembro de como me entreguei a um sentimento sincero e puro, generoso e sem as contradições da malícia, mais e mais me sinto totalmente culpada de ter sido, além de desinteligente e ingênua, tão necessariamente ignorante e fraca, e para variar, com um enorme desejo... De arranjar frustrações mais complexas para aperrear a minha existência...  


Meu Deus, como fui tola em pensar que havia reciprocidade de sua parte. Não havia nada, agora sei. Como uma pessoa como eu poderia querer alguém como você, ou disputar, com um cara de concepção mais jovem -, se em verdade não tenho mais ao alcance das mãos essa mocidade elegante que finjo possuir? Como, meu Pai, me questiono, perplexa -, como, se meu corpo  já não é mais o mesmo -, tampouco a minha beleza externa não brilha com a intensidade de alguns anos atrás?  Apenas a formosura meio desgastada do meu céu interior restou intacta, o que, para muitos, tal item não tem nenhum valor legal.  Se as rugas e as dobras insistem, em cada dia, me mostrarem de forma  contundente que o tempo não para nunca, que ele segue sempre... Sempre... Qual a porta da realidade careço abrir?

No mesmo interregno, quantas mentiras ditas, quantas decepções se formaram... E eu que só queria amar e ser amada. Ser correspondida, reconhecida, identificada, proclamada, acolhida.  Você apenas me usou, e não só isto, se sentiu no direito de brincar comigo. Penso, com meus botões, como deve ter dado boas e sonoras gargalhadas desse meu amor que nutro, como uma doença incurável por você! Ah... Como dói, no fundo do mais profundo do ‘dentro de mim’, como dói sentir na carne, na pele, a dor do amor que foi pisoteado, esmagado e triturado sem piedade. Hoje, sei, para você, fui apenas mais um troféu, uma relíquia que você ganhou e da qual se cansou e jogou em um canto qualquer.

Dói e como dói, todavia, essa dor vai passar. Tem que passar. E vai passar. Sei que vai demorar um pouco, talvez anos, porém, nada melhor que o tempo inexorável para curar um mal de amor. Que a minha desgraça seja a sua felicidade. Que você nunca venha a sofrer dessa fraqueza que me causou. Sempre fui sincera e fiel, e nem todo o mal que me fez, acredite, apesar dos pesares, mudará meu jeito de ser. Serei sempre a mesma, como muitas  foram por ai, que ainda acreditam no amor, na sinceridade, na confiança e na verdade, sobretudo, na verdade.

Porque eu sei que, em algum lugar, tem alguém escondido, oculto em algum cantinho que  quem sabe, hoje, amanhã, ou depois, quererá juntar todos os pedaços do meu coração ferido. E  esse alguém  fará minha vida sorrir novamente. A beleza de uma pessoa, o corpo, e as rugas, os contratempos do cotidiano, são coisas naturais da vida. Um dia tudo passa, tudo acaba, tudo finda, mas o coração, o coração... Esse, meu caro, esse  nunca envelhece.

Fonte:
Texto enviado por Aparecido Raimundo de Souza

terça-feira, 29 de setembro de 2020

Varal de Trovas n. 392

 


Silmar Böhrer (Croniquinha) 9

Nas noitinhas frias de outono, estrelas cintilando, corujas piando, um novo ingrediente chega para aquecer os ambientes. As chaminés dos fogões a lenha mandam para os ares a fumacinha em tempos de geadas nas plagas do sul.

O outono, como as outras estações, tem suas características. Nesta época a culinária regional tem o pinhão como iguaria sazonal. Semente de várias espécies de pinaceas e araucárias, o pinhão é apreciado em todo sul do país, sendo alimento rico em carboidratos e calorias. Nas casas da cidade ou nos ranchos com fogo de chão no interior, os odores caseiros destes tempos parecem ter pinhão - grimpas de pinheiro, achas para a sapecada, brasas estalando, a fumacinha, o pinhão... Ingredientes das calendas de então. VERDELÍCIAS DO OUTONO !

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Fábulas (A Raposa Renard)


O gato Tibert foi enviado pelo Rei Leão para avisar a raposa Renard que ela deveria comparecer ao tribunal dos animais para ser julgada.

De início, o gato ficou meio indeciso, pois não sabia qual seria a reação da raposa, mas foi cumprir a ordem enviada pelo Leão. Chegou ao castelo dela e disse-lhe:

- Você deve me acompanhar.

- Claro, o acompanharei, mas esta noite você fica em minha casa e amanhã, logo cedo, partiremos.

A raposa logo preparou a mesa para comer, mas só tinha mel para oferecer ao gato.

- Não gosto muito de mel - disse o gato - você não teria um rato?

- É verdade - disse a raposa - vamos até o celeiro e lá você encontrará quantos ratos quiser.

Saíram e foram ao celeiro.

- Entre, senhor gato, e divirta-se.

O dono do celeiro havia colocado uma armadilha e assim que o gato entrou, caiu na armadilha, que era uma ratoeira.

O dono do celeiro era um padre e imaginando que fosse a raposa começou a bater-lhe com um pau. O gato, então, cravou-lhe as unhas nas pernas, conseguiu destruir a corda e fugir. A raposa começou a rir.

Renard finalmente foi conduzida ao julgamento. Apareceram contra ela tantos crimes e várias testemunhas que acabou sendo condenada à morte.

Quando estava para ser executada, pediu licença para fazer uma confissão de todas as suas culpas, das quais estava arrependida, e, no discurso, suas palavras comoveram o rei Leão.

- Senhor rei - disse a raposa - em Flandres há um bosque enorme e lá, bem próximo a um rio, eu tenho um grande tesouro escondido com dinheiro e joias. Sinto-me como se fosse obrigada a doa-lo a Vossa Majestade, pois dessa maneira, com certeza, o senhor sempre há de se lembrar desta fiel súdita.

Os animais começaram a ficar preocupados, pois além de o rei Leão perdoar a raposa, deu-lhe um título de nobreza.

- A partir de hoje a raposa Renard é uma das minhas funcionárias oficiais e deverá ser respeitada - anunciou o rei.

A raposa agradeceu ao Leão e pediu licença para fazer uma peregrinação a Roma. Seguiu viagem e levou, embora contrariados, a lebre e o carneiro como seus servos.

A comitiva não tardou a chegar à casa de Renard que, em seguida, pediu que o carneiro Bellin esperasse ao lado de fora e a lebre entrasse para assistir ao encontro dela com a família. Assim que a lebre entrou, foi morta e devorada; a raposa saiu e deu um saco ao carneiro para que ele levasse ao rei.

- Onde está a lebre? - perguntou Bellin.

- Ah! Ela ficou conversando com a minha tia, mas pediu para você que fosse andando, pois não tardará em alcançá-lo.

O carneiro seguiu viagem e entregou o saco ao rei e disse-lhe:

- Senhor aqui está um presente da raposa Renard.

- Abra o embrulho! - o rei ordenou ao carneiro.

E qual foi a surpresa do rei ao ver no pacote a cabeça da lebre.

No dia seguinte, o coelho Laprel chegou chorando e dando gritos de dor:

- Oh! Meu rei, livre-nos dos ataques da raposa! Passei horas diante do seu castelo, depois ela veio falar comigo e eu a cumprimentei amavelmente, em vez de sair correndo; mas, assim que ela conseguiu se aproximar, de minha pessoa, me arranhou e quase me matou.

Em seguida entrou a gralha macho chamada Corbant, muito agitada, contando sua história:

- Oh! Senhor, ouça-me. Estava esta manhã no campo, quando vi Renard escondida de costas, aparentemente estava morta. Minha mulher foi até ela e meteu a cabeça dentro da boca da raposa para ver se ela respirava, quando a malvada deu-lhe uma dentada e cortou-lhe a cabeça. tentou investir contra minha pessoa, mas eu consegui voar, porém presenciei a morte de minha companheira - lamentou Corbant.

O rei enfureceu-se e mandou novamente chamar a raposa para um novo julgamento e de novo ela foi condenada à morte, mas conseguiu escapar, contando à sua majestade, o Leão, novamente sobre o tesouro que gostaria de doar-lhe, antes de morrer.

Depois de o rei ter perdoado Renard pela segunda vez, apareceu o lobo Insegrim, acusando-a de todas as espécies de crimes, e o rei decidiu que os dois tivessem um duelo para decidir qual deles tinha razão.

A raposa logo percebeu que para vencer aquele inimigo era necessário astúcia e lembrou-se de sua amiga a esposa do macaco, que lhe deu a sugestão de raspar o corpo todo e untá-lo com azeite. E Renard assim o fez.

A luta começou com a presença do rei e cada vez que o lobo queria agarrá-la, não conseguia, pois esta escapava-lhe das garras. Então, a raposa, com a cauda, batia fortemente no inimigo o mais que podia e atirava-lhe poeira nos olhos. O pobre lobo quase ficou cego. Renard tentou o quanto pôde, por fim deu-lhe uma patada que foi fatal e o lobo caiu. A raposa deu uma volta triunfante na arena.

Então, o rei perdoou a raposa e nomeou-a Ministra do Reino, ordenando que todos os seus súditos lhe prestassem as maiores homenagens.

Moral da Estória:
Ah! Infeliz rei que acreditou na astúcia da raposa.

Fonte:
Universo das Fábulas

Rubens Luiz Sartori (2 Inquéritos em Versos)



TUBAÍNA E QUENTÃO

Autos de Inquérito nº 285/94 - 1ª Vara Criminal

Meritíssima Julgadora:

Contém neste relatório,
a notícia furtadora
de garrafas de bebida,
cujo valor é irrisório
e não merece guarida.

O pouco valor constatado
nem de longe o incriminou,
vez que o indiciado é enteado
da pessoa que o denunciou.

Fala-se num botijão de gás
que também fora furtado,
mas nada tinha o rapaz
e nada com ele encontrado.

Dois quentões, duas tubaínas,
não permitem acusar,
pois são bebidas baratas
de consumo popular.

Não há como denunciar
e movimentar esse poder,
por míseros cinco reais
não vale a pena escrever.

O fato de ter sido preso,
num flagrante desrespeito,
demonstrou muito desprezo
e já humilhou o sujeito.

A polícia, infelizmente,
tomou tudo por escrito,
fez subir aqui pra gente
esse dossiê esquisito.

O certo pra esses casos,
num juizado arbitrário,
seria uma advertência na hora,
num julgamento sumário.

O que nos reserva a vida:
vinte anos de função,
ver um sujeito indiciado,
por tubaína e quentão.

Por isso eu peço à senhora,
me entende e evite a demora,
processar sem fundamento.
Compreenda que foi desforra,
do padrasto com tormento,
e como não há justa causa,
remeta ao arquivamento.
****************************************

TIRAIADA

Autos de Inquérito nº 225/96 - 1ª Vara Criminal

Os fatos:
O indiciado dirigiu-se na tarde de 18 de outubro do corrente ano (1995) até a propriedade do deputado Nelson Turéck, às margens da Usina Mourão (local de acesso público - área de lazer e habitada), nesta comarca, em visível estado de embriaguez, disparando para o alto dois tiros de espingarda e proferindo palavras de baixo calão contra o deputado, de quem é desafeto por razões políticas.


MM. Juiz:

O fato foi dia dezoito
de outubro, mês de eleição;
numa tarde bem brejeira,
descansar era a intenção.

Pescava o nobre deputado,
em seu barco, com os amigos,
no lago da Usina Mourão,
tranquilos e sem alaridos.

Eis que chega o desafeto,
seu amigo companheiro,
já bem alto do boteco,
gritando e arruaceiro.

Parando sua caminhonete,
o denunciado bradou:
"... venha aqui seu desgraçado...",
e dois tiros disparou.

Como disse Nelson Turéck,
foi pra cima a tiraiada,
e ele feito moleque
ficou torcendo por mais nada.

Tão logo que disparou,
o denunciado fugiu;
bem borracho ele voltou
pro lugar onde saiu.

Tomadas as providências,
o inquérito se iniciou,
mas o acusado, prudente,
a tentativa negou.

Aliás, há de se registrar
um inquérito bem montado,
com fotos e bom relatório,
pois a vítima é deputado.

Na tentativa de morte,
não posso aqui acusar,
pois atirar para o alto
não pode ninguém matar.

Portanto, a coisa é ladina,
mas nada de comoção;
o procedimento de rotina
é o tipo: contravenção.

Contravenção de disparo,
em habitado lugar,
no art. 28, equiparo
o ato de detonar.

Então o que se há de fazer,
com os tiros do vagal?
Se não este remeter
ao Juizado Especial!

A Lei é a 9.099,
que surgiu para abreviar
os casos de pouca monta
pra rapidinho julgar.

Assim descrito, Excelência,
só vejo um itinerário,
seguir este à ciência
ao Juizado sumário.

Fonte:
Blog de Roberta Carrilho

Lima Barreto (Clô)

 


A Alexandre Valentim Magalhães

Devia ser já a terceira pessoa que lhe sentava à mesa. Não lhe era agradável aquela sociedade com desconhecidos; mas que fazer naquela segunda-feira de Carnaval, quando as confeitarias têm todas as mesas ocupadas e as cerimônias dos outros dias desfazem-se, dissolvem-se?

Se as duas primeiras pessoas eram desajeitados sujeitos sem atrativos, o terceiro conviva resgatava todo o desgosto causado pelos outros. Uma mulher formosa e bem tratada é sempre bom ter-se à vista, embora sendo desconhecida, ou, talvez, por isso mesmo...

Estava ali o velho Maximiliano esquecido, só moendo cismas, bebendo cerveja, obediente ao seu velho hábito. Se fosse um dia comum, estaria cercado de amigos; mas, os homens populares, como ele, nunca o são nas festas populares. São populares a seu jeito, para os frequentadores das ruas célebres, cafés e confeitarias, nos dias comuns; mas nunca para a multidão que desce dos arrabaldes, dos subúrbios, das províncias vizinhas, abafa aqueles e como que os afugenta. Contudo não se sentia deslocado...

A quinta garrafa já se esvaziara e a sala continuava a encher-se e a esvaziar-se, a esvaziar-se e a encher-se. Lá fora, o falsete dos mascarados em trote, as longas cantilenas dos cordões, os risos e as músicas lascivas enchiam a rua de sons e ruídos desencontrados e, dela, vinha à sala uma satisfação de viver, um frêmito de vida e de luxúria que convidava o velho professor a ficar durante mais tempo bebendo, afastando o momento de entrar em casa. E esse frêmito de vida e luxúria que faz estremecer a cidade nos três dias de sua festa clássica, naquele momento, diminuía-lhe muito as grandes mágoas de sempre e, sobretudo, aquela teimosia e pequenina de hoje. Ela o pusera assim macambúzio e isolado, embora mergulhado no turbilhão de riso, de alegria, de rumor, de embriaguez e luxúria dos outros, em segunda-feira gorda.

O "jacaré" não dera e muito menos a centena. Esse capricho da sorte tirava-lhe a esperança de um conto e pouco — doce esperança que se esvaía amarguradaamente naquele crepúsculo de galhofa e prazer. E que trabalho não tivera ele, doutor Maximiliano, para fazê-la brotar no seu peito, logo nas primeiras horas do dia! Que chusmas de interpretações, de palpites, de exames cabalísticos! Ele bem parecia um áugure romano que vem dizer ao cônsul se deve ou não oferecer batalha...

Logo que ela lhe assomou aos olhos, como não lhe pareceu certo aquele navegar precavido dentro do nevoento mar do Mistério, marcando rumo para aquele ponto — o "jacaré" — onde encontraria sossego, abrigo, durante alguns dias!

E agora, passado o nevoeiro, onde estava?... Estava ainda em mar alto, já sem provisões quase, e com débeis energias para levar o barco a salvamento... Como havia de comprar bisnagas, confetes, serpentinas, alugar automóvel? E — o que era mais grave — como havia de pagar o vestido de que a filha andava precisada, para se mostrar sábado próximo, na rua do Ouvidor, em toda a plenitude de sua beleza, feita (e ele não sabia como) da rija camadura de Itália e de uma forte e exótica exalação sexual... Como havia de dar-lhe o vestido?

Com aquele seu olhar calmo em que não havia mais nem espanto, nem reprovação, nem esperança, o velho professor olhou ainda a sala tão cheia, por aquelas horas, tão povoada e animada de mocidade, de talento e de beleza. Ele viu alguns poetas conhecidos, quis chamá-los, mas, pensando melhor, resolveu continuar só.

O velho doutor Maximiliano não cansou de observar, um por um, aqueles homens e aquelas mulheres, homens e mulheres cheios de vícios e aleijões morais; e ficou um instante a pensar se a nossa vida total, geral, seria possível sem os vícios que a estimulavam, embora a degradem também.

Por esse tempo, então, notou ele a curiosidade e a inveja com que um grupo, de modestas meninas dos arrabaldes, examinava a toilette e os ademanes das mundanas presentes. Na sua mesa, atraindo-lhes os olhares, lá estava aquela formosa e famosa Eponina, a mais linda mulher pública da cidade, produto combinado das imigrações italiana e espanhola, extraordinariamente estúpida, mas com um olhar de abismo, cheio de atrações, de promessas e de volúpia.

E o velho lente olhava tudo aquilo pausadamente, com a sua indulgência de infeliz, quando lhe veio o pensar na casa, naquele seu lar, onde o luxo era uma agrura, uma dor, amaciada pela música, pelo canto, pelo riso e pelo álcool.

Pensou, então, em sua filha, Clôdia — a Clô, em família — em cujo temperamento e feitio de espírito havia estofo de uma grande hetaira. Lembrou-se com casta admiração de sua carne veludosa e palpitante, do seu amor às danças lúbricas, do seu culto á toilette e ao perfume, do seu fraco senso moral, do seu gosto pelos licores fortes; e, de repente e por instantes, ele a viu coroada de hera, cobrindo mal a sua magnifica nudez, com uma pele mosqueada, o ramo de tirso erguido, dançando, religiosamente bêbeda, cheia de fúria sagrada de hacante: "Evoé! Baco!"

E essa visão antiga lhe passou pelos olhos, quando a Eponina ergueu-se da mesa, tilintando as pulseiras e berloques caros, chamando muito a atenção de Mme. Rego da Silva que, em companhia do marido e da sua extremosa amiga Dulce, amante de ambos, no dizer da cidade, tomavam sorvetes, numa mesa ao longe. O doutor Maximiliano, ao ver aquelas jóias e aquele vestido, voltou a lembrar-se de que o "jacaré" não dera; e refletiu, talvez com profundeza, mas certo com muita amargura, sobre a má organização da nossa sociedade. Mas não foi adiante e procurou decifrar o problema da sua multiplicação em Clô, tão maravilhosa e tão rara. Como é que ele tinha posto no mundo um exemplar de mulher assaz vicioso e delicado como era a filha? De que misteriosa célula sua saíra aquela floração exuberante de fêmea humana? Vinha dele ou da mulher? De ambos? Ou de sua mulher só, daquela sua carne apaixonada e sedenta que trepidava quando lhe recebia as lições de piano, na casa dos pais?

Não pôde, porém, resolver o caso. Aproximava-se o doutor André, com o seu rosto de ídolo peruano, duro, sem mobilidade alguma na fisionomia, acobreada, onde o ouro do aro do pince-nez reluzia fortemente e iluminava a barba cerdosa. Era um homem forte, de largos ombros, musculoso, tórax saliente, saltando; e, se bem tivesse as pernas arqueadas, era assim mesmo um belo exemplar da raça humana.

Lamentava-se que ele fosse um bacharel vulgar e um deputado obscuro. A sua falta de agilidade intelectual, de maleabilidade, de ductílidade, a sua fraca capacidade de abstração e débil poder de associar ideias não impediam fosse ele deputado e bacharel. Ele seria rei, estaria no seu quadro natural, não na câmara, mas remando em ubás ou igaras nos nossos grandes rios ou distendendo aqueles fortes arcos de iris que despejam flechas ervadas com curare.

Era o seu último amigo, entretanto o mais constante comensal de sua mesa luculesca. Deputado, como já ficou dito, e rico, representava, com muita galhardia e liberalidade, uma feitoria mansa do Norte, nas salas burguesas; e, apesar de casado, a filha do antigo professor, a lasciva Clô, esperava casar-se com ele, pela religião do Sol, um novo culto recentemente fundado por um agrimensor ilustrado e sem emprego.

O velho Maximiliano nada de definitivo pensava sobre tais projetos; não os aprovava, nem os reprovava. Limitava-se a pequenas reprimendas sem convicção, para que o casamento não fosse efetuado sem a bênção do sacerdote do Sol ou de outro qualquer. E se isto fazia, era para não precipitar as coisas; ele gostava dos desdobramentos naturais e encadeados, das passagens suaves, das inflexões doces, e detestava os saltos bruscos de um estado para o outro.

— Então, doutor, ainda por aqui? fez o rico parlamentar sentando-se.

— É verdade, respondeu-lhe o velho. Estou fazendo o meu sacrifício, rezando a minha missa... É a quinta... Que toma, doutor?

— Um "madeira"... Que tal o Carnaval?

— Como sempre.

E, depois, voltando-se para o caixeiro:

— Outra cerveja e um "madeira", aqui, para o doutor. Olha: leva a garrafa.

O caixeiro afastou-se, levando a garrafa vazia e o doutor André perguntou:

— Dona Isabel não veio?

— Não. Minha mulher não gosta das segundas-feiras de Carnaval. Acha-as desenxabidas... Ficaram, ela e a Clô, em casa a se prepararem para o baile á fantasia na casa dos Silvas... Quer ir?

— O senhor vai?

— Não, meu caro senhor; do Carnaval, eu só gosto dessa barulhada da rua, dessa música selvagem e sincopada de recos-recos, de pandeiros, de bombos, desse estridulo de fanhosos instrumentos de metais... Até do bombo gosto, mais nada! Essa barulhada faz-me bem à alma. Não irei... Agora, se o doutor quer ir... Clô vai de preta mina.

— Deve-lhe ficar muito bem... Não posso ir; entretanto, irei á sua casa para ver a sua senhora e a sua filha fantasiadas. O senhor devia também ir...

— Fantasiado?

— Que tinha?

— Ora, doutor! eu ando sempre com a máscara no rosto.

E sorriu leve com amargura; o deputado pareceu não compreender e observou:

— Mas, a sua fisionomia não é tão decrépita assim...

Maximiliano ia objetar qualquer coisa quando o caixeiro chegou com as bebidas, ao tempo em que Mme. Rego da Silva e o marido levantaram-se com a pequena Dulce, amante de ambos, no dizer da cidade em peso.

O parlamentar olhou-os bastante com o seu seguro ar de quem tudo pode. Ouviu que ao lado diziam — à passagem dos três: ménage à trois. A sua simplicidade provinciana não compreendeu a maldade e logo dirigiu-se ao velho professor:

—Jantam em casa?

—Jantamos; e o doutor não quer jantar conosco?

— Obrigado. Não me é possível ir hoje... Tenho um compromisso sério... Mas fique certo que, antes de saírem, lá irei tomar um uisquezinho... Se me permite?

— Oh! doutor! O senhor é nosso melhor amigo. Não imagina como todos lá falam no senhor. Isabel levanta-se a pensar no doutor André; Clô, essa, nem se fala! Até o Caçula quando o vê, não late; faz-lhe festas, não é?

— Como isso me cumula de...

— Ainda há dias, Isabel me disse: Maximiliano, eu nunca bebi um Chambertin como esse que o doutor André nos mandou... O meu filho, o Fred, sabe até um dos seus discursos de cor; e, de tanto repeti-lo, creio que sei de memória vários trechos dele.

A face rígida do ídolo, com grande esforço, abriu-se um pouco; e ele disse, ao jeito de quem quer o contrário:

— Não vá agora recitá-lo.

— Certo que não. Seria inconveniente; mas não estou impedido de dizer, aqui, que o senhor tem muita imaginação, belas imagens e uma forma magnífica.

— Sou principiante ainda, por isso não me fica mal aceitar o elogio e agradecer a animação.

Fez uma pausa, tomou um pouco de vinho e continuou em tom conveniente:

— O senhor sabe perfeitamente que espécie de força me prende aos seus... Um sentimento acima de mim, uma solicitação, alguma coisa a mais que os senhores puseram na minha vida...

— Pois então, interrompeu cheio de comoção o doutor Maximiliano: à nossa!

Ergueu o copo e ambos tocaram os seus, reatando o parlamentar a conversa desta maneira:

— Deu aula hoje?

— Não. Desci para espairecer e "cavar". É dura esta vida... "cavar"! Como é triste dizer-se isto! Mas que se há de fazer? Ganha-se uma miséria... Um professor com oitocentos mil-réis o que é? Tem-se a família, representação... uma miséria! Ainda agora, com tantas dificuldades, é que Clô deu em tomar banhos de leite...

— Que ideia! Onde aprendeu isso?

— Sei lá! Ela diz que tem não sei que propriedades, certas virtudes... O diabo é que tenho de pagar uma conta estupenda no leiteiro... São banhos de ouro, é que são! Jogo nos bichos... Hoje tinha tanta fé no "jacaré"...

O caixeiro passava e ele recomendou:

— Baldomero, outra cerveja. O doutor não toma mais um "madeira"?

— Vá lá. Ganhou, doutor?

— Qual! E não imagina que falta me fez!

— Se quer?...

— Por quem é, meu caro; deixe-se disso! Então há de ser assim todo o dia?

— Que tem!... Ora!... Nada de cerimônias; é como se recebesse de um filho...

— Nada disso... Nada disso...

Fingindo que não entendia a recusa, o doutor André foi retirando da carteira uma bela nota, cujo valor nas algibeiras do doutor Maximiliano fez-lhe esquecer em muito a sua desdita no "jacaré".

O deputado ainda esteve um pouco; em breve, porém, se despediu, reiterando a promessa de que iria até à casa do professor, para ver as duas senhoras fantasiadas.

O doutor Maximiliano bebeu ainda uma cerveja e, acabada que foi a cerveja, saiu vagarosamente um tanto trôpego.

A noite já tinha caído de há muito. Era já noite fechada. Os cordões e os bandos carnavalescos continuavam a passar, rufando, batendo, gritando desesperadamente. Homens e mulheres de todas as cores — os alicerces do país — vestidos de meia, canitares e enduapes de penas multicores, fingindo índios, dançavam na frente ao som de uma zabumbada africana, tangida com fúria em instrumentos selvagens, roufenhos, uns, estridentes, outros. As danças tinham luxuriosos requebros de quadris, uns caprichosos trocar de pernas, umas quedas imprevistas.

Aqueles fantasiados tinham guardado na memória muscular velhos gestos dos avoengos, mas não mais sabiam coordená-los nem a explicação deles. Eram restos de danças guerreiras ou religiosas dos selvagens de onde a maioria deles provinha, que o tempo e outras influências tinham transformado em palhaçadas carnavalescas...

Certamente, durante os séculos de escravidão, nas cidades, os seus antepassados só se podiam lembrar daquelas cerimônias de suas aringas ou tabas, pelo carnaval. A tradição passou aos filhos, aos netos, e estes estavam ali a observá-la com as inevitáveis deturpações.

Ele, o doutor Maximiliano, apaixonado amador de música, antigo professor de piano, para poder viver e formar-se, deteve-se um pouco, para ouvir aquelas bizarras e bárbaras cantorias, pensando na pobreza de invenção melódica daquela gente. A frase, mal desenhada, era curta, logo cortada, interrompida, sacudida pelos rufos, pelo ranger, pelos guinchos de instrumentos selvagens e ingênuos. Um instante, ele pensou em continuar uma daquelas cantigas, em completá-la; e a ária veio-lhe inteira, ao ouvido, provocando o antigo professor de música a fazer parar o 'Chuveiro de Ouro", a fim de ensinar-lhes, aos cantores, o que a imaginação lhe havia trazido à cabeça naquele momento.

Arrependeu-se que tivesse fito gostar daquela barulhada; porém, o amador de música vencia o homem desgostoso. Ele queria que aquela gente entoasse um hino, uma cantiga, um canto com qualquer nome, mas que tivesse regra e beleza. Mas — logo imaginou — para quê? Corresponderia a música mais ou menos artística aos pensamentos íntimos deles? Seria mesmo a expansão dos seus sonhos, fantasias e dores?

E, devagar, se foi indo pela rua em fora, cobrindo de simpatia toda a puerilidade aparente daqueles esgares e berros, que bem sentia profundos e próprios daquelas criaturas grosseiras e de raças tão várias, mas que encontravam naquele vozerio bárbaro e ensurdecedor meio de fazer porejar os seus sofrimentos de raça e de indivíduo e exprimir também as suas ânsias de felicidade. Encaminhou-se direto para a casa. Estava fechada; mas havia luzes na sala principal, onde tocavam e dançavam.

Atravessou o pequeno jardim, ouvindo o piano. Era sua mulher quem tocava; ele o adivinhava pelo seu velouté, pela maneira de ferir as notas, muito docemente, sem deixar quase perceber a impulsão que os dedos levavam. Como ela tocava aquele tango! Que paixão punha naquela música inferior!

Lembrou-se então dos "cordões", dos "ranchos", das suas cantilenas ingênuas e bárbaras, daquele ritmo especial a elas que também perturbava sua mulher e abrasava sua filha. Por que caminho lhes tinha chegado ao sangue e à carne aquele gosto, aquele pendor por tais músicas? Como havia correlação entre elas e as almas daquelas duas mulheres?

Não sabia ao certo; mas viu em toda a sociedade complicados movimentos de trocas e influências — trocas de idéias e sentimentos, de influências e paixões, de gostos e inclinações.

Quando entrou, o piano cessava e a filha descansava, no sofá, a fadiga da dança lúbrica que estivera ensaiando com o irmão. O velho ainda ouviu indulgentemente o filho dizer:

— É assim que se dança nos Democráticos.

Clô, logo que o viu, correu a abraçá-lo e, abraçada ao pai, perguntou:

— André não vem?

—Virá.

Mas, logo, em tom severo, acrescentou:

— Que tem você com André?

— Nada, papai; mas ele é tão bom...

Quis Maximiliano ser severo; quis apossar-se da sua respeitável autoridade de pai de família; quis exercer o velho sacerdócio de sacrificador aos deuses penates; mas era céptico demais, duvidava, não acreditava mais nem no seu sacerdócio nem no fundamento da sua autoridade. Ralhou, entretanto, frouxamente:

— Você precisa ter mais compostura, Clô. Veja que o doutor André é casado e isto não fica bem.

A isto, todos entraram em explicações. O respeitável professor foi vencido e convencido de que a afeição da filha pelo deputado era a coisa mais inocente e natural deste mundo. Foram jantar. A refeição foi tomada rapidamente. Fred, contudo, pôde dar algumas informações sobre os préstitos carnavalescos do dia seguinte. Os Fenianos perderiam na certa. Os Democráticos tinham gasto mais de sessenta contos e iriam pôr na rua uma cousa nunca vista. O carro do estandarte, que era um templo japonês, havia de  fazer um "bruto sucesso”. Demais, as mulheres eram as mais lindas, as mais bonitas... Estariam a Alice, a Charlotte, a Lolita, a Carmen...

— Ainda toma muito cloral? perguntou Clô.

— Ainda, retrucou o irmão; e emendou: vai ser uma lindeza, um triunfo, à noite, com luz elétrica, nas ruas largas...

E Clô, por instantes, mordeu os lábios, suspendeu um pouco o corpo e viu-se também, no alto de um daqueles carros, iluminada pelos fogos-de-bengala, recebida com palmas, pelos meninos, pelos rapazes, pelas moças, pelas burguesas e burgueses da cidade.

Era o seu triunfo a meta de sua vida; era a proliferação imponderável de sua beleza em sonhos, em anseios, em idéias, em violentos desejos naquelas almas pequenas, sujeitas ao império da convenção, da regra e da moral. Tomou a cerveja, todo o copo de um hausto, limpou a espuma dos lábios e o seu ligeiro buço surgiu lindo sobre os breves lábios vermelhos. Em seguida, perguntou ao irmão:

— E essas mulheres ganham?

— Qual! Você não vê que é uma honra? respondeu-lhe o irmão.

E o jantar acabou sério e familiar, embora a cerveja e o vinho não tivessem faltado aos devotos de cada uma das duas bebidas. Logo que a refeição acabou, talvez uns vinte minutos após, o doutor André se fazia anunciar. Desculpou-se com as senhoras; não pudera vir jantar, questões políticas, uma conferência...

Pedia licença para oferecer aquelas pequenas lembranças de Carnaval.

Deu uma pequena caixa a dona Isabel e uma maior à Clô. As joias saíram dos escrínios e faiscaram orgulhosamente para todos os presentes deslumbrados. Para a mãe, um anel; para a filha, um bracelete.

— Oh, doutor! fez dona Isabel. O senhora está a sacrificar-se e nós não podemos consentir nisto...

— Qual, dona Isabel! São falsas, nada valem... Sabia que dona Clôdia ia de "preta mina" e lembrei-me trazer-lhe este enfeite...

Clô agradeceu sorridente a lembrança e a suave boca quis fixar demoradamente o longo sorriso de alegria e agradecimento. E voltaram a tocar. Dona Isabel pôs-se ao piano e, como tocasse depois da sobremesa, hora da melancolia e das discussões transcendentes, como já foi observado, executou alguma coisa triste.

Chegava a ocasião de se prepararem para o baile à fantasia que os Silvas davam. As senhoras retiraram-se e só ficaram, na sala, os homens, bebendo uísque. André, impaciente e desatento; o velho lente, indiferente e compassivo, contando histórias brejeiras, com vagar e cuidado; o filho, sempre a procurar caminho para exibir o seu saber em coisas carnavalescas. A conversa ia caindo, quando o velho disse para o deputado:

— Já ouviu a Bamboula, de Gottschalk, doutor?

— Não... Não conheço.

— Vou tocá-la.

Sentou-se ao piano, abriu o álbum onde estava a peça e começou a executar aqueles compassos de uma música negra de Nova Orleans, que o famoso pianista tinha filtrado e civilizado.

A filha entrou, linda, fresca, veludosa, de pano da Costa ao ombro, trunfa, com o colo inteiramente nu, muito cheio e marmóreo, separado do pescoço modelado, por um colar de falsas turquesas.

Os braceletes e as miçangas tilintavam no peito e nos braços, a bem dizer totalmente despidos; e os bicos de crivo da camisa de linho rendavam as raízes dos seios duros que mal suportavam a alvíssima prisão onde estavam retidos. Ainda pôde requebrar, aos últimos compassos da Bamboula, sobre as chinelas que ocupavam a metade dos pés; e toda risonha sentou-se por fim, esperando que aquele Salomão de pince-nez de ouro lhe dissesse ao ouvido:

"Os teus lábios são como uma fita de escarlate; e o teu falar é doce. Assim como é o vermelho da romã partida, assim é o nácar das tuas faces; sem falar no que está escondido dentro".

O doutor Maximiliano deixou o tamborete do piano e o deputado, bem perto de Clôdia, se não falava como o rei Salomão à rainha de Sabá dilatava as narinas para sorver toda a exalação acre daquela moça, que mais capitosa se fazia dentro daquele vestuário de escrava desprezada.

A sala encheu-se de outros convidados e a sessão de música veio a cair na canção e na modinha. Fred cantou e Clô, instada pelo doutor André, cantou também. O automóvel não tinha chegado; ela tinha tempo...

Dona Isabel acompanhou; e a moça, pondo tudo o que havia de sedução na sua voz, nos seus olhos pequenos e castanhos, cantou a "Canção da Preta Mina":

Pimenta de cheiro, jiló, quibombô;
Eu vendo barato, mi compra ioiô!

Ao acabar, era com prazer especial, cheia de dengues nos olhos e na voz, com um longo gozo intimo que ela, sacudindo as ancas e pondo as mãos dobradas pelas costas na cintura, curvava-se para o doutor André e dizia vagamente:

Mi compra ioiô!

E repetia com mais volúpia, ainda uma vez:

Mi compra ioiô!

Fonte:
Lima Barreto. Histórias e sonhos. 1920.

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Varal de Trovas n. 391

 


Daniel Maurício (Poética) 3

 


Carolina Ramos (Um Pai Noel Diferente)


Camboriú exagerara nos requintes, cobrindo-se de canteiros floridos para receber trovadores vindos de vários estados do Brasil e da Argentina, estes, gente nova na Trova, nem tanto pela idade, mas pela recente adesão ao Movimento. Alguns completamente desconhecidos, porque estreantes.

Ele passou por nós, anonimamente, de braço com a esposa. Chegara no ônibus de Porto Alegre. Ao vê-lo, meu olhar e o de meu marido buscaram um ao outro, numa convergência de pensamentos traduzidos de imediato: — Você não vai chamá-lo de Papai Noel, não é? Nós nem o conhecemos e ele pode não gostar.

— Claro que não! — prometi ao marido preocupado, mas, interiormente, a intenção do cumprimento da promessa não era tão clara assim.

Voltei a analisar o casal que passara por nós e entrara na fila do teleférico, que nos levaria à Praia das Laranjeiras. Se Papai Noel vestisse jeans, certamente não precisaria de credenciais para provar a identidade. Jamais eu vira alguém tão perfeito como aquele Papai Noel, capaz de ser reconhecido, mesmo sem os trajes tradicionais! Barbas brancas, branquíssimas como flocos de neve! Cabelos levemente ondulados, cortados à Noel. Os olhos... bem, quanto aos olhos, se por acaso o Papai Noel verdadeiro andasse lá pela Lapônia, pelos países nórdicos ou por onde quer que fosse, certamente deveria estar absolutamente cego, porque aqueles olhos de azul cobalto, brilho cristalino e doçura de mel, só poderiam ser os olhos dele, porque únicos! E esses olhos, únicos, sem similares, ali estavam, sob as sobrancelhas alvas daquele homem que... senão era Papai Noel... pelo menos parecia ser!

Indaguei a meu marido: — Se você fosse criança e ele passasse por perto, o que você faria?

— Sei lá!…

— Não sabe? Pois lhe garanto que se eu fosse criança e este Papai Noel passasse por mim, não pensaria duas vezes, correria atrás dele e lhe pediria de presente a paz de continuar crendo que ele era aquele que parecia ser!

Um dos módulos do teleférico encostou. Cinco pessoas se acomodaram nele. Entre elas Papai Noel e sua companheira. Restava um lugar vago. Não disposto a enfrentar a travessia, meu marido liberou-me o passe. E foi quando ganhei um aceno do casal que me convidava para ocupar a vaga. Lotação completa.

Sentada ao lado do homem que parecia ser Papai Noel, mas não era, exultei quando ele gentilmente se apresentou: — Rinaldo, ou melhor... Papai Noel — que é como todo mundo me chama.

Iluminada pela revelação e liberada da promessa feita, ainda tive tempo de apresentar meu vizinho de viagem a meu marido, mesmo de longe: — Ele é Papai Noel!... Papai Noel, sim!!!

Eva, a simpática esposa daquele clone do Bom Velhinho, era brasileira. Ele, não. Contudo, falava perfeitamente nosso idioma, sendo até autor de um livro em língua portuguesa. No seu sotaque, porém, havia qualquer coisa que me intrigava. Qualquer coisa indefinida, difícil de identificar. Que língua se esconderia por detrás daquele sotaque, que me soava pouco familiar?

— Italiano e gaúcho — explicou o homem que não era Papai Noel... mas parecia ser,

— Italiano e gaúcho? — repeti, não satisfeita. Algo ainda faltava ao molho. A resposta matou o mistério.

Aquele Papai Noel chegara ao Brasil, com quinze anos de idade, vindo do seu país natal, a Croácia — o tempero que faltava!

A travessia para a Praia das Laranjeiras foi belíssima! A princípio, morro acima. No topo, a paisagem magnífica, descortinada de chofre, como cortina de um palco que encobrisse um cenário soberbo e, de súbito, o revelasse. A praia, lá embaixo... e nós descendo, devagarinho, ao seu encontro e também ao encontro da água de côco, docinha, gelada, sorvida a canudo, diretamente do bojo verde.

O Papai Noel, que, se não era, parecia ser... regalou-se! Não só com a água do côco, mas também com a polpa deliciosa, que, segundo disse, nunca provara.

A tarde findava. Dezoito horas. Hora de voltar. Instalados no teleférico, tão logo engrenada a partida, mais uma surpresa. Voz bonita, de tenor, cortou o espaço. Era o nosso Papai Noel que entoava a Ave Maria de Gounod! A brisa, que balançava levemente o veículo, praticamente, deixou de soprar. A velocidade também diminuiu. Parecíamos flutuar, deslizando por sobre o abismo. Outras cinco vozes juntaram-se à primeira, entre elas a minha... Aquele módulo panorâmico do teleférico como que se transformou num trenó puxado a renas, transportando um coral de cinco "crianças" felizes e um Pai Noel cantante! Panis Angelicus... Volare ô ô... Cantare ô ô ô ô.,. As melodias se sucediam enquanto os ecos da tradicional Jingle Bells pairavam no ar. Um pouco mais de fantasia, e, até os guizos festivos das renas poderiam ser ouvidos!

Ao pousarmos, outra vez, em solo firme, a porta do teleférico abriu-se e a magia se foi!

O homem de jeans, de barba imaculadamente branca, deu o braço à companheira e voltou a ser o homem comum, que tanto parecia ser Papai Noel... mas, infelizmente, não era!...

No entanto, quem notasse, bem lá no fundo, o brilho especialíssimo daqueles instigantes olhos azuis, guardaria para sempre a desconfiança: — Será mesmo.., que não era?!!!...

Alguns anos depois, mais precisamente em 2010, chega de Porto Alegre, a triste notícia do falecimento de Rinaldi, conhecido advogado e trovador local, ou melhor — aquele Papai Noel que, embora não sendo, nos deixou a certeza de que... bem poderia ter sido!

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.
Livro enviado pela autora.

Baú de Trovas XVII, para descontrair mais


Mulheres que estão me olhando,
pensando no mesmo assunto,
são como freiras rezando
na Intenção de um só defunto.
ADAUTO GONDIM
- - - - - -
Olhares acusadores
vive o padre a me lançar,
desde o dia em que Dolores
cismou de se confessar...
ADOLFO MACEDO

- - - - - -
Distante de quem me ama,
vivo inquieto sofrendo,
pois em carta ela reclama:
— Vem quente que estou fervendo!..
ALMEIDA CORRÊA
- - - - - -
Certo político pulha
um só cuidado agasalha:
teme que a menor fagulha
lhe queime o rabo de palha!
ANTÔNIO TORTATO
- - - - - -

Do tanto falar asneira,
com franqueza, o Dr. Caio
mais parece uma toupeira
com ares de papagaio...
APARÍCIO FERNANDES
- - - - - -
Peço-lhe um beijo, matreiro,
sei que o pedido não pega;
mas conheço o meu isqueiro:
no principio, sempre nega...
BATISTA NUNES
- - - - - -
O Zequinha, volta e meia,
bebendo pela cidade,
é sempre de cara feia
que enfrenta a cara metade...
COLBERT RANGEL COELHO
- - - - - –
Um belo dia jantei
na casa de certo amigo,
mas, a fome que levei
veio de volta comigo…
DURVAL MENDONÇA
- - - - - -
Uma vez roubei-te um beijo,
e um tapa me deste então...
Conservo o mesmo desejo,
mas... respeito a tua mão!
FILHO DOS PAMPAS
- - - - - -
Ouvindo um dia um sujeito
gabar-se de ser ateu,
eu murmurei, satisfeito,
— Esse é mais burro do que eu.
FONTOURA COSTA
- - - - - -
Quase, quase me quiseste;
teu amor, quase consigo...
Não fosse esse quasa-quase,
quase me caso contigo!
GERALDO COSTA ALVES
- - - - - -
Bons tempos aqueles tempos
das eras já bem vividas,
em que as mulheres guardavam
as perninhas escondidas...
GUIMARÃES NETO
- - - - - -

Dizes que tua mulher
mora no mundo da lua.
 - Só agora me convenço
de que realmente ela é tua...
HECTOR DA COSTA FREITAS
- - - - - -
Patroa!!! — grita Maria,
num desespero profundo;
e, ante um ratinho que via:
“...0 maior rato do mundo!"
HENRIETTE
- - - - - -
Fulano é um bom rapaz,
nunca lhe falta dinheiro;
e sempre num bolso traz
gazuas e um chaveiro...
HERMAN CABEZA
- - - - - -
No inferno, um homem da roça
ao diabo, disse, num rogo:
— Eu só entro nessa joça
depois de apagar o fogo!
HILÁRIO S. SONEGHET
- - - - - -
As modas surgem e somem
e na de hoje erra quem quer:
Parece mulher? É homem.
Parece homem? É mulher.
ILDEFONSO DE PAULA
- - - - - -
Quis dar meu traque a um mendigo,
mas o ingrato respondeu:
— Senhor, minha casa é pobre,
mas não é nenhum museu!
J. B. MELLO E SOUZA
- - - - - -
Não precisa guarda-chuva
o magrelo do Domingos,
pois andando em plena chuva
passa bem por entre os pingos!.
JORGE ROCHA
- - - - - –
Jurou que só casaria
com o João e foi verdadeira.
— Já tem três filhos Maria,
e continua solteira...
JOUBERT DE ARAÚJO SILVA
- - - - - -
Cabeça — força é dizê-lo;
cabeça — que desconsolo:
por fora, não tem cabelo;
por dentro, não tem miolo!
LAURINDO RABELO
- - - - - -
É assim mesmo, minha filha,
aqui no mundo há de tudo:
costureira maltrapilha
e barbeiro cabeludo!...
LAURO CATALDI
- - - - - -
Diz um burro (assaz profundo)
a outro burro (inteligente):
— Quantos homens neste mundo,
são mais burros do que a gente!
OSÓRIO DUTRA
- - - - - -
Neste mundo interessante
há muito doutor de beca,
que, em vez de mente brilhante,
tem o brilho na careca.
PAULO EMÍLIO PINTO
- - - - - -
A vaidade de um poeta
que conhecemos a fundo,
se fosse coisa concreta,
não caberia no mundo...
RODRIGUES CRÊSPO
- - - - - –

O amor, quando cega, zomba
da nossa sorte mesquinha:
— As vezes vê-se uma pomba
e não é pomba — é galinha...
SILVA TAVARES

Fomte:
Aparício Fernandes. A Trova no Brasil: história e antologia. São Cristovão/RJ: Artenova, 1972.

Aparecido Raimundo de Souza (Parte Dezenove) Como buracos na parede


CONVERSA ENTRE DOIS HOMENS de profissões distintas. O primeiro é um taxista. O segundo, professor de medicina veterinária, com a diferença que não exerce mais a profissão,  é aposentado. E, como tal, todo começo de mês se desloca com o mesmo táxi de um ponto perto de sua residência até o banco para receber seu pagamento. O profissional do volante o transporta há mais de três anos, o que gerou uma amizade entre ambos. Entretanto, nunca trocaram nomes, endereços ou telefones. Apenas um bate papo informal que dura entre a ida e a volta, coisa de uma hora e meia, às vezes um pouco mais, outras, menos, dependendo do trânsito. Neste início de mês, o taxista, assim que o professor se acomodou no banco de trás, entabulou conversa:

TAXISTA: — Meu amigo, posso lhe fazer uma pergunta um tanto indiscreta? Não é de hoje, tenho vontade chegar para o senhor e questionar, mas na hora agá, me bate uma vergonha danada e a gente acaba falando de tudo e eu não entro na questão que, no fundo, me intriga...

PROFESSOR: — Qual o quê! Fique à vontade. Embora não saiba seu nome, e nunca passamos do bom dia, seguido de um papo sobre coisas triviais, tipo futebol, mulheres, situação do país, em quem votaremos ou deixaremos de votar, culminando no tradicional ‘quanto lhe devo’, eu o considero da família. Afinal, embarco em seu táxi, acredito que há mais de três anos, quase beirando quatro, visto que todo começo de mês uso seus serviços para me dirigir ao banco receber meu pagamento. Fique a vontade. Não vou me ofender, de forma alguma.

TAXISTA: — Agradeço duplamente ao amigo. Primeiro por me dar a preferência no meu taxi durante todos esses anos e, segundo, por me deixar matar, finalmente, uma curiosidade que me acompanha desde a primeira vez que me solicitou lá no ponto. O senhor foi professor de medicina veterinária por mais de quarenta anos —, me disse outro dia, um vizinho seu —, ou seja, o senhor além de ensinar e capacitar novos médicos para esta área, cuidava de animais doentes e abandonados. Mas não é isto o que me incomoda. O que me tira o sono é o seguinte: o senhor tem um carro, não é mesmo? Já o vi várias vezes no posto lá perto da avenida onde o senhor mora e onde, aliás, eu e meus colegas da praça abastecemos.

PROFESSOR: — Sim, é verdade. Tenho um Aircross da Citroën. Quero dizer, tenho ‘mais ou menos...’.

TAXISTA: — ‘Mais ou menos...?’ — Como assim?  — O senhor tem ou não?

PROFESSOR: — Deixa tentar explicar. Na minha casa, somos eu, a minha mulher, oito filhos, quatro noras, dois genros e cinco netos.

TAXISTA: — Que é isso! Família grande e de peso. Mais de vinte cabeças!

PROFESSOR: — Para ser exato, vinte e uma. Por isto possuir uma mansão monstruosa que o senhor mesmo sabe onde fica.

TAXISTA: — Tudo bem. E onde entra esta história de ter um carro na modalidade ‘mais ou menos?’.

PROFESSOR: — Seguinte: o carro é da minha mulher, quando ela vai ao supermercado fazer às compras do mês.

TAXISTA: — Hummmmmm!...

PROFESSOR: — É do meu filho Paulo e da esposa Flavia, quando eles vão à academia. Do Luiz, quando precisa levar a esposa Beth ao dentista. É do Juarez e da Bárbara, quando saem com os amigos para farrear. Do Adalberto, que é oficial de justiça junto com a minha nora Catarina, que pegam emprestado para cumprirem seus mandatos. Da Lídia, mais meu genro Eustáquio que precisam correr constantemente para o hospital...

TAXISTA: — Essa sua filha ou esse seu genro têm alguma doença?

PROFESSOR: — Não, meu amigo. Ambos são médicos. Minha filha é pediatra e meu genro cardiologista.

TAXISTA: — Entendi. Desculpe a interrupção. Prossiga.

PROFESSOR: — Nada a desculpar. Continuando, meu carro é da Silvia e de seu esposo, quando vão para a clínica veterinária que abriram para eles.  Ela, Silvia e Gustavo, meu genro, possuem um espaço veterinário nos fundos, tipo um SPA e, na frente, uma loja bastante sortida de iguarias para gatos, cachorros, papagaios e etc... Igualmente da Ana Lúcia que vende roupas e utiliza o automóvel para fazer as suas entregas...

TAXISTA: — Entregas?

PROFESSOR: — Sim, foi o que eu disse. Ela é representante de uma grife famosa. É viúva, a coitadinha! O marido morreu, mas me deu de presente dois netos maravilhosos. E é do Moacir e da Larissa, quando eles cismam de ir ao shopping dar um rolê com as meninas e levam, além das três crianças deles, os meus dois outros netos, filhos da Ana Lúcia, de contrapeso.

TAXISTA: — Que loucura, meu amado, que loucura! Estou pasmo!

PROFESSOR: — Este balaio de gatos e cachorros não acaba aqui. Tem mais. O carro é da Flávia (minha nora, esposa do meu filho Paulo), quando eles precisam visitar os pais dela, em finais de semana alternados. Da Catarina, a oficial de justiça, lembra que falei dela ainda há pouco, a cara metade de meu filho Adalberto, quando ela parte distribuindo os meus cinco netinhos, cada um em seus respectivos colégios.  Da Beth, igualmente nora, companheira de meu filho Luiz (eles não são casados no papel). Beth é feirante e meu filho Luiz acorda cedo e aproveita para deixá-la no local de trabalho.

TAXISTA: — Que engraçado a sua vida, ou melhor, a vida do seu carro. Aliás, eu diria uma história bem familiar. Por isso o prezado fez referência ao ‘mais ou menos’. Agora entendi o espírito da coisa. Um dia o automóvel é da sua esposa, outro dia cada um dos oito filhos disputam a charanga... Sem falar nas noras, genros e netinhos. Confesso, até hoje, não havia tomado consciência, ou ouvido alguém falar num caso assim, tão engraçadamente extravagante e atípico. Não seria mais cômodo cada um ter o seu próprio meio de transporte?

PROFESSOR: — Pois é a mais pura verdade, meu amigo. Sem tirar nem aumentar. Com relação a cada um ter seu próprio meio de transporte... A galera prefere ficar nas coisas aqui do velho pai. Família é coisa séria!

TAXISTA: — Concordo plenamente. Família é de tirar a gente do sério. Apesar de tudo o que acabou de me contar, ainda paira uma dúvida na cabeça. Toda a sua família faz uso de seu carro. E o senhor anda de táxi. No meu táxi. Para mim, em particular, acredite, isto é bom. Cá entre nós: nesta confusão toda, nesta torre de Babel, quando o seu quatro rodas é realmente seu, de verdade? Vou perguntar de forma mais clara: em que momento o senhor consegue sentar no seu AirCross e desfrutar, literalmente, do seu Citroën?

O Professor de medicina veterinária se abre num sorriso alegre, antes de descer em frente ao banco:

— Quando acaba a gasolina, meu prezado. Aí eles se lembram que eu sou o proprietário, perdão, o médico veterinário aposentado, dono do animal e me liberam a caça preciosa para que eu cuide, dê água e remédio no posto de saúde mais próximo. Desculpe, entenda as minhas palavras de forma literalmente objetiva: me entregam, o bicho quase morto e faminto, nas últimas, para ser alimentado o rombo deixado na sua barriguinha e ele, coitado, não venha a morrer de fome  jogado no meio da uma avenida qualquer.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020. No prelo.
Texto enviado pelo autor.

sábado, 26 de setembro de 2020

Varal de Trovas n. 390

 


Stanislaw Ponte Preta (Latricério [Com o perdão da palavra])


Tinha um linguajar difícil, o Latricério. Já de nome era ruinzinho, que Latricério não é lá nomenclatura muito desejada. E era aí que começavam os seus erros.

Foi porteiro lá do prédio durante muito tempo. Era prestativo e bom sujeito, mas sempre com o grave defeito de pensar que sabia e entendia de tudo. Aliás, acabou despedido por isso mesmo. Um dia enguiçou a descarga do vaso sanitário de um apartamento e ele achou que sabia endireitar. O síndico do prédio já ia chamar um bombeiro, quando Latricério apareceu dizendo que deixassem por sua conta. Dizem que o dono do banheiro protestou, na lembrança talvez de outros malfadados consertos feitos pelo serviçal porteiro. Mas o síndico acalmou-o com esta desculpa excelente:

— Deixe ele consertar, afinal são quase xarás e lá se entendem.

Dono da permissão, o nosso amigo — até hoje ninguém sabe explicar por quê — fez um rápido exame no aparelho em pane e desceu aos fundos do edifício, avisando antes que o defeito era "nos cano de orige".

Lá embaixo, começou a mexer na caixa do gás e, às tantas, quase provoca uma tremenda explosão. Passado o susto e a certeza de mais esse desserviço, a paciência do síndico atingiu o seu limite máximo e o porteiro foi despedido.

Latricério arrumou sua trouxa e partiu para nunca mais, deixando tristezas para duas pessoas: para a empregada do 801, que era sua namorada, e para mim, que via nele uma grande personagem.

Lembro-me que, mesmo tendo sido, por diversas vezes, vítima de suas habilidades, lamentei o ocorrido, dando todo o meu apoio ao Latricério e afirmando-lhe que fora precipitação do síndico. Na hora da despedida, passei-lhe às mãos uma estampa do American Bank Note no valor de quinhentos cruzeiros, oferecendo ainda, como prêmio de consolação, uma horrenda gravata, cheia de coqueiros dourados, virgem de uso, pois nela não tocara desde o meu aniversário, dia em que o Bill — o americano do 602 — a trouxera como lembrança da data.

Mas, como ficou dito acima, Latricério tinha um linguajar difícil, e é preciso explicar por quê. Falava tudo errado, misturando palavras, trocando-lhes o sentido e empregando os mais estranhos termos para definir as coisas mais elementares. Afora as expressões atribuídas a todos os "mal-falantes", como "compromisso de cafiaspirina", "vento encarnado", "libras estrelinhas" etc., tinha erros só seus. No dia em que estiveram lá no prédio, por exemplo, uns avaliadores da firma a quem o proprietário ia hipotecar o imóvel, o porteiro, depois de acompanhá-los na vistoria, veio contar a novidade:

— Magine, doutor! Eles viero avalsá as impoteca!

É claro que, no princípio, não foi fácil compreender as coisas que ele dizia, mas, Com o tempo, acabei me acostumando. Por isso não estranhei quando os ladrões entraram no apartamento de dona Vera, então sob sua guarda, e ele veio me dizer, intrigado:

— Não compreendo como eles entraro. Pois as portas tava tudo "aritmeticamente" fechadas.

Tentar emendar-lhe os erros era em pura perda. O melhor era deixar como estava. Com sua maneira de falar, afinal, conseguira tornar-se uma das figuras mais populares do quarteirão e eu, longe de corrigir-lhe as besteiras, às vezes falava como ele até, para melhor me fazer entender.

Foi assim no dia em que, com a devida licença do proprietário, mandei derrubar uma parede e inaugurei uma nova janela, com jardineira por fora, onde pretendia plantar uns gerânios. Estava eu a admirar a obra, quando surgiu o Latricério para louvá-la.

— Ainda não está completa — disse eu — falta colocar umas persianas pelo lado de fora.

Ele deu logo o seu palpite:

— Não adianta, doutor. Aí bate muito sol e vai morre tudo.

Percebi que jamais soubera o que vinha a ser persiana e tratei de explicar à sua moda:

— Não diga tolice, persiana é um negócio parecido com Venezuela.

— Ah, bem, Venezuela — repetiu.

E acrescentou:
— Pensei que fosse "arguma pranta".

Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Dois amigos e um chato. Ed. Moderna, 1996

Rubens Luiz Sartori (Poemas Avulsos) 3


ESTRADAS ANTIGAS

Serpenteando os morros e as canhadas,
imperavam majestosas,
as antigas estradas, velhas picadas,
aplainadas nos cascos dos animais,
nas diuturnas carreteadas.
Poeirentas. Tranquilas. Lamacentas.
Veredas do desbravamento alinhavadas.

Estreitas as estradas dos campos e das serras,
com valetas e cancelas; mateadas e lorotas.
Foi um momento. Sumiram as gaiatas,
as carroças e as pousadas ao relento.

Nas novas pistas modernizadas.
não há mais marcela nem carqueja no barranco,
só as fugas da terra lavada.
Fenderam as pedras. Rasgaram os montes.
Endireitaram as encruzilhadas,
esconderam as sangas e secaram as fontes.
Tudo ficou novo, mas nem tanto...

Hoje esquecidas, desviadas, encurtadas.
Os aterros e pontilhões das modernas estradas asfaltadas,
são como mármore entalhado de túmulos estilizados,
a sepultar no seu ventre os peraus do passado.

E nas sendas do tempo,
as estradas antigas
são marcas esquecidas, agredidas,
da aurora do progresso que,
possesso,
destrói a própria vida...
****************************************

MÃE! SE AMA E NÃO SE DEFINE

Figura humana e divina,
que gera amor e fascina,
dispõe sem tempo do tempo,
não tem sequer um momento.

Descanso é coisa dos outros,
pode tudo, ama e faz,
pros filhos tudo lhe apraz,
não tem olhos nem pra choro,
quando seu filho, um tesouro,
lhe busca o seio de vida,
que só nela tem guarida,
para entender o seu tempo;
que pro marido é só vento,
que passa e vai para o mundo.

E ela como um segundo,
age, pratica e se dá.

Tudo pra ela é sem dor,
na graça, no peito de amor,
que se esparrama em aceite,
oferece ao seu filho seu leite,
que é vida, coisa sublime,
por isso mãe não se explica,
se ama e não se define.
****************************************

ROSEIRA - VIDA EM ESPINHOS

I - Que coisa mais dadivosa,
um ramo de rosa florido.
É arbusto agreste e temido,
pelos espinhos que tem,
no caule seco e esguio,
porém, fulgura no estio
a flor tão bela e charmosa.

II - No eito de uma existência,
não há quem não tenha furado,
um dedo, um braço enroscado
num galho duma roseira.
Má sorte, diz a parteira.
a quem nasce em dia nublado,
pra começar sua vivência.


Il l- Quanta vez em sua casa
um vivente viu-se atado.
no meio do emaranhado,
dos galhos de uma roseira;
de pegajosas maneiras,
fustigam qualquer pedaço
e, ao sair-se dos laçaços,
se fica co'corpo em brasa.

IV - Vale tudo na emoção:
ser espinhado ou riscado
pelo galho da roseira,
ao passar à trepadeira
na visita à casa amada,
onde fica aquerenciada
nossa "flor" do coração.

V - Assim, como registro somente.
a história de uma roseira,
que ficou a vida inteira
esperando sua colheita;
mas todos fizeram desfeita,
nenhuma flor extraída,
e ela desiludida,
murchou e secou para sempre.

Fonte:
Rubens Luiz Sartori (org.). Compêndio da Academia Mourãoense de Letras.  Campo Mourão/PR: UNESPAR/FECILCAM, 2004.
Livro enviado por Sinclair Pozza Casemiro

Contos e Lendas do Mundo (Espanha: O Califa, o Pastor e a Felicidade)


Um dia, o califa de Bagdá saiu para caçar com sua comitiva. Quis a má sorte que seu cavalo se assustasse e partisse em disparada pelos campos, sem que ele pudesse controlá-lo. Os homens que acompanhavam o califa tentaram segui-lo. Mas o cavalo corria tanto, que logo o perderam  de vista.  

Em vão o califa lutava, puxando as rédeas e gritando  para conter o animal. Mas de nada adiantava. De repente,  cavalo e cavaleiro se aproximaram de um precipício. Os  dois já iam despencar, quando um pobre pastor de cabras, que ali cuidava de seu rebanho, correu e conseguiu segurar  o cavalo.  

O califa, ao ver o quanto o pastor tinha se arriscado  para salvar-lhe a vida, pensou: "Vou oferecer-lhe a felicidade como recompensa por seu ato heroico." E jurou, pela própria  barba, que haveria de conceder tudo o que ele lhe pedisse.  

No dia seguinte, o pastor se apresentou na corte do califa e foi recebido imediatamente. O pastor se chamava Ben Adab  e possuía um rebanho de cinquenta cabras.

Disse ao califa  que gostaria muito de aumentar o rebanho para cem cabras e, para isso, necessitava de mais cinquenta.  

Olhando-o com gratidão, o califa respondeu: – Vejo que você se contenta com pouco. Portanto, além  das cinquenta cabras, eu lhe darei uma pequena casa e um  pedaço de terra, onde seu rebanho poderá pastar.

O pastor saiu do palácio muito contente, pensando que aquilo, sim, era a felicidade... Ganhar mais do que havia  pedido: além das cinquenta cabras, uma casa e um bom pasto.  

O pastor instalou-se em seu novo lar, soltou o rebanho de cem cabras nas terras que agora lhe pertenciam e fez amizade com os novos vizinhos. Certo dia, um deles lhe contou  que tinha uma ótima casa, além de duzentas cabras e vastas  pastagens.  

Naquela noite, o pastor não conseguiu dormir, pensando  no rebanho do vizinho e dizendo a si mesmo: "Como fui estúpido! Por que não pedi mais cabras ao califa? Se eu tivesse  feito isso, hoje seria um homem tão próspero quanto meu vizinho..."  

Ficou remoendo esses pensamentos até altas horas. Por fim, vencido pela angústia e pelo cansaço, acabou adormecendo. Na manhã seguinte, apresentou-se no palácio, cabisbaixo e constrangido. Pediu para ver o califa, que o recebeu  cordialmente.  

Relutante, o pastor falou sobre os pensamentos que o  haviam perturbado durante a noite. O califa riu:  - Homem, não era preciso ter perdido o sono por uma  coisa tão simples.  

Depois, o califa contou ao pastor que tinha jurado, por sua barba, que lhe concederia tudo o que desejasse. E concluiu:  

- Claro que vou lhe dar mais cem cabras. Assim, você ficará com um rebanho igual ao de seu vizinho.  

O pastor saiu do palácio, muito feliz. Mas, no caminho de volta para casa, começou a pensar: "Quer dizer que se eu  pedisse duzentas, trezentas ou mil cabras, o califa me daria.  Puxa, como sou idiota! Agora tenho somente duzentas."  

Passou alguns dias ruminando esses pensamentos. Por fim, animou-se a retornar ao palácio. Disse ao califa que ainda não se sentia completamente feliz. Necessitava de mais cabras e de pastagens maiores para alimentá-las. O califa, que  havia jurado satisfazer todos os desejos de seu salvador,  atendeu o pedido.

Entusiasmado, o pastor foi para casa, dizendo a si mesmo que enfim havia encontrado a felicidade.  

Mas a certeza durou pouco. Logo o pastor voltou a sentir-se frustrado. Começou a pensar e repensar sua situação, até que decidiu não mais viver no campo e sim na corte. E lá se instalou, com o consentimento e ajuda do califa.  

Entretanto, o pastor não mudava nunca... Primeiro, ganhou uma casa confortável perto do palácio. Depois, insatisfeito, manifestou o desejo de ter uma casa maior. Ganhou-a e, pouco tempo depois, pediu um palacete... E logo o palacete pareceu acanhado demais, em comparação com outros, mais luxuosos. O mesmo aconteceu em relação aos animais: em vez de cabras, preferiu mulas. Depois, em vez de mulas, preferiu cavalos puro-sangue... E o califa, como sempre, satisfez seus desejos.

A ambição do pastor estendeu-se também às relações sociais. Se antes ele se contentava em conversar ocasionalmente com os vizinhos, agora queria promover jantares, recepções e festas dispendiosas, com muitos comes e bebes, para centenas de convidados.

O califa começava a se inquietar com os constantes pedidos do pastor. Mas havia jurado, por sua barba, que o atenderia sempre. Por isso, continuava cedendo.

Nem assim o ambicioso Ben Adab se dava por feliz. Certo dia, sentindo-se mais frustrado do que nunca, dirigiu-se ao palácio e disse ao califa:

- O senhor se ofereceu para me proporcionar a felicidade. E jurou que me daria tudo o que eu pedisse.

- De fato - respondeu o califa. - E se até agora você não alcançou a felicidade, com certeza não foi por minha culpa.

- Nesse caso... - disse Ben Adab - o que realmente preciso para me sentir feliz é ser califa. Portanto, quero que o  senhor me conceda, por algum tempo, seu título e seu posto.

Diante dessas palavras, o califa mandou chamar o barbeiro real e, ali mesmo, ordenou que lhe raspasse a barba. Depois, dirigiu-se ao pastor:

- Agora, nada mais me obriga a cumprir o juramento, pois já não tenho barba. Consequentemente, você não tem  motivos para continuar aqui. Portanto, voltará a ser o que  sempre foi.  

O califa ordenou aos criados que despojassem Ben Adab  de tudo o que possuía. Em seguida, mandou que o levassem de volta ao lugar onde o encontrara pela primeira vez.  

Até hoje Ben Adab lá continua, com sua eterna insatisfação e suas cinquenta cabras, pobre como no dia em que conheceu o califa.  


Fonte:
Yara Maria Camillo (org.). Contos populares espanhóis. 2005.

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Varal de Trovas n. 389

 


Arquivo Spina 12 (Solange Colombara)

 


A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) Saudade do Grande Hotel


Toda vez que passo em frente bate uma forte e bonita saudade. Um bom pedaço da história de Maringá teve o seu epicentro ali. Era a sala vip da cidade, o ponto de encontro das lideranças que na época determinavam rumos.

Lembro-me bem de ter estado lá na fase de acabamento da obra, junto com um grupo de jornalistas. Foi quando conheci o querido pioneiro Joaquim Moleirinho, com quem anos após tive longa convivência no Rotary. Joaquim Moleirinho e Joaquim Caetano vieram de Portugal como artífices especializados em construções com madeira. Foram os responsáveis pela instalação dos telhados, janelas e outras peças que deram aquele toque de nobreza ao edifício. Os dois acabaram fincando raízes aqui, como proprietários do Frigorífico Central.

Idealizado pelo arquiteto paulista José Augusto Belucci (o mesmo que projetou a nossa Catedral) o Grande Hotel foi inaugurado em 1956. Ao construí-lo, a intenção da Companhia Melhoramentos era ter um lugar classudo onde hospedar investidores caixa-alta que vinham comprar terras na região; o hotel cumpriu, porém, função social e política bem mais ampla.

Haviam dois belos espaços de festas, o Salão Amarelo e o Salão Azul, palcos de grandes bailes, banquetes, formaturas, reuniões do Rotary e do Lions. Nas tardes de domingo, matinês dançantes do badalado Clube dos Solteiros. Havia também um bar bem moderninho onde se reuniam, principalmente nos domingos de manhã, políticos, empresários, jornalistas – uma espécie de “senadinho”. Quem quisesse encontrar um dos ilustres da urbe era só ir ao bar do Grande Hotel. Cada qual centralizando uma roda de admiradores, lá estavam Haroldo Leon Peres, Renato Celidônio, Túlio Vargas, a turma toda.

Ali dormiu muita gente famosa: Joubert de Carvalho, os astros e estrelas que vieram para o Festival de Cinema, Pelé, o goleiro Yashin, J.G. de Araújo Jorge, José Mauro Vasconcelos, Elis Regina, Jair Rodrigues, Nelson Gonçalves, Jânio Quadros, Carlos Lacerda, Adhemar de Barros, Ney Braga, Paulo Pimentel...

O gerente geral era o Doutor Herbert Mayer, um alemão superpreparado que entendia tudo de hotelaria, culinária, etiqueta – essas coisas chiques de gente fina. Durante algum tempo ele foi também dono do restaurante mais requintado que a cidade conheceu nas primeiras décadas, o Lord Lovat. Nos seus últimos anos foi secretário executivo da ACIM.

Mas um dia o hotel foi vendido e (que pena) trocaram o nome: mudou para Ferraretto, depois Bandeirantes. Com isso a casa perdeu muito do seu antigo ar de filme clássico. A geração pioneira até hoje não se conformou com tal mudança. Pior: pouco após fechou de vez.

Agora está lá aquele prédio lindo, num dos espaços mais valorizados de Maringá, esperando que finalmente se decida que destino dar a ele. Bom seria que fosse aproveitado como Casa da Cultura, com museu, biblioteca, auditórios, salas para reuniões de grupos culturais etc. Quem sabe um dia?...
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 10-9-2020)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.