quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 311)


Uma Trova Nacional

Entre as pedras do caminho,
deixei um sonho disperso,
que morreu longe, sozinho,
nas rimas tristes de um verso!
–SÔNIA SOBREIRA/RJ–

Uma Trova Potiguar

A vida... Que importa a vida?
Cante a vida quem quiser...
que eu tenho a vida envolvida
na vida de uma mulher!...
–JUNQUILHO LOURIVAL/RN–

Uma Trova Premiada

2000 -Fortaleza/CE
Tema: FEITIÇO -2º Lugar

A mesma sorte vadia
que de mel nos enche a taça,
serve também, quem diria,
o veneno da desgraça.
–JOSÉ PEREIRA ALBUQUERQUE/CE–

Uma Trova de Ademar

Eu, cansado de sofrer
o teu retrato eu rasguei...
Mas como irei esquecer
todo esse amor que te dei?
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Trago sempre na lembrança
o meu sonho de menina:
uns olhos cor de esperança
da boneca da vitrina.
–ZENÍLIA PAIXÃO/MG–

Simplesmente Poesia

Bobo Prazer
–ILKA VIEIRA/RJ–

Já és tão bela,
tão doce e plena,
mas ainda não percebes
o fluído original
que recarrega minha ânsia
quando te vejo,
quase toco,
quase beijo,
quase roubo,
sem covardia,
com puros desejos
de envolvê-la em meus braços
e morrer por abraços
num bobo prazer.

Estrofe do Dia

Plantei um pé de roseira
dentro de uma lata rasa,
pendurei detrás de casa
numa vara da biqueira,
numa noite de fogueira
que era véspera de São João,
o danado de um barrão
pensando que era batata
furou o fundo da lata
e a terra caiu no chão.
–BELARMINO DE FRANÇA/PB–

Soneto do Dia

Labirintos
–FRANCISCO MACEDO/RN–

Angústia no olhar que buscando o infinito,
é luz da minha alma... Meu eu sofredor,
na dor de não ter mais o brilho do amor
perdido em meu ontem em torpe conflito.

A lágrima quente deixando-me aflito,
cruel labirinto, caminhos de dor...
As mãos estendidas ao nada, sem cor,
total solidão, repercute meu grito!

O trilho da vida me deixa inseguro,
relâmpagos riscam o céu todo escuro,
tal qual a minha alma que vaga no espaço!

Conflitos mentais tão comuns nesta idade,
serão transformados na minha verdade...
Nos versos que agora, em conflito, eu te faço!

Fonte:
Textos enviados pelo Autor
Imagem = http://www.lilianpoesias.net

domingo, 21 de agosto de 2011

Paulo Leminski ("Tarde de vento")


Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 310)


Uma Trova Nacional

A ser feliz não me furto,
mas tentando te esquecer,
meu tempo ficou tão curto
que me esqueci de viver...
–MARIA NASCIMENTO/RJ–

Uma Trova Potiguar

Quisera saber um terço
da vida espiritual.
Vem da certidão do berço
o nosso estágio carnal.
–CHICO MOTA/RN–

Uma Trova Premiada

2000 – UBT-Natal/RN
Tema: DESTINO - M/H

Que não me julguem culpado
por não achar a saída...
Meu destino está traçado,
nos labirintos da vida!
–FRANCISCO JOSÉ PESSOA/CE–

Uma Trova de Ademar

O meu EU sofreu mudança,
uma mudança sem fim.
Só não mudou a criança
que eu fui e que vive em mim!
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

De uma paixão incontida,
o tempo - insano juiz -
pode curar a ferida
mas nos deixa a cicatriz.
–ALONSO ROCHA/PA–

Simplesmente Poesia

Todos Chorarão
–PROF. GARCIA/RN–

Se não houver mais flores nos jardins,
se faltar o perfume dos rosais,
sofrerão nossos anjos querubins
ao romper das auroras matinais!

Se faltarem belezas campesinas,
sabiás e os mais lindos rouxinóis,
que serão das auroras tão divinas
sem os cantos que encantam todos nós?

Sem os perfumes virginais dos campos,
sem a voz maviosa das cascatas,
chorarão os poetas pirilampos,
no silêncio final da voz das matas.

Todos nós choraremos de desgosto,
nunca mais os poetas vão cantar,
rolarão muitos prantos pelo rosto,
"as almas dos poetas vão chorar".

Estrofe do Dia

A musa deu-me o condão
e a estrela da poesia;
no entanto, se o mau destino
quiser tomá-los, um dia,
peço a Deus: tire-me o pão,
mas não tire a inspiração,
que é o pão de minha alegria!
–JOSÉ LUCAS DE BARROS/RN–

Soneto do Dia

Quarenta Anos.
–MÁRIO DE ANDRADE/SP–

A vida é para mim, está se vendo,
uma felicidade sem repouso:
eu nem sei mais se gozo, pois que o gozo
só pode ser medido em se sofrendo.

Bem sei que tudo é engano, mas, sabendo
disso, persisto em me enganar... Eu ouso
dizer que a vida foi o bem precioso
que eu adorei. Foi meu pecado... Horrendo

seria, agora que a velhice avança,
que me sinto completo e além da sorte,
me agarrar a esta vida fementida.

Vou fazer do meu fim minha esperança,
ó sono, vem!... Que eu quero amar a morte
Com o mesmo engano com que amei a vida.

Fonte:
Textos e imagem enviados pelo Autor

Danilo Lobo (A Quatro Estrelas)


Dietrich, a diva germânica
do entreato das duas guerras,
surgiu primeiro em preto e branco
na ribalta dum cabaré.
E por emergir na fumaça,
tal qual um arcanjo das nuvens,
foi em vida canonizada
em anjo celeste, cerúleo.

Mas anjo, só mau, decaído,
alcoviteiro do capeta,
que, do palco, semidespido,
exibindo pernas de seda,
se deu, impudico e lascivo,
prometendo abraços e beijos,
para, no final da película,
esfumar-se na sala acesa.
Garbo, a sueca divina,
revelou ao olho da câmara,
a natureza do intangível,
específico da substância
das coisas de forma esquiva,
que, sendo, se fazem ausentes
e se mostram no estado misto
que existe entre o ser e o não-ser.

Mas nórdica, só por equívoco.
Mulher piramidal e esfíngica,
Nerfertite dos anos trinta,
deveria ter sido egípcia
como a rocha que se quis rocha
e, no seu tempo de granito,
fez-se eterna (em celulóide),
lendária e, aliás, mítica.

Maria, a deusa do México,
Ostentou em suas películas
A aparência semidoméstica,
Característica do bicho
Com o qual aprendeu os gestos,
Reflexos do nome gatesco
Que, mais que mulher, a fizeram
Felino manhoso, travesso.

Mas bichana, só das selvagens:
gata por natureza fera
como a onça, o leopardo,
ou, mais exato, a pantera,
que lhe pôs no olhar o enigma,
no cabelo o espesso negror
e no porte o garbo do tigre
não dominado – o domador.

Marilyn, o ídolo dourado,
Primeiro para uma folhinha
E, depois, na tela de prata,
Entregou a pele despida
Com os olhos semicerrados,
Um riso olhado na boca
E a voz oleosa levada
Por canais estereofônicos.

Mas pelada, só por disfarce;
se mais mostrava mais vestia,
acabando por enroupar
apele irreal e vazia
projetada em cinemascópio;
e assim, só de pele vestida
(incógnita oculta no óbvio),
passou por aí sem ser vista.

Fonte:
http://www.antoniomiranda.com.br/Brasilsempre/danilo_lobo.html

Danilo Lobo (1942 – 2005)


Danilo Pinto Lobo nasceu em Vitória – ES, em 04 de julho de 1942 e faleceu em Brasília – DF, no dia 26 de julho de 2005.

Pode dizer-se que de vanguarda é o seu conceito de poesia, fixado não somente no poema em si, “Um poema se impõe a tapas: / a bofetadas aplicadas / no fofo, no cheio da cara, / com mão ofertada em palma;“ mas também nas reflexões sobre o livro, considerado como algo vivo, mostrando-se como espaço a ser ocupado sem limitações, “POEMA ORELHA”:

“Um livro não se abre / (...) Um livro fechado se abre / como se abre uma porta” para o mundo e sua linguagem, com aproveitamento total da “orelha”, posto aí como metáfora do sentido da audição, ‘ouvido’ a escutar todos os ritmos, todos os sons e todos os mexericos, ou fuxicos. Parece-me ser forte traço de sua personalidade artística que desperta a atenção para o seu à vontade na formalização temática, com humor e ironia. Uma espécie de desdenho ao precioso da linguagem literária. Com isso, eleva a banalidade e o non sence à categoria primorosa da arte.

Como poeta Danilo Lôbo publicou relativamente pouco. Participou, no entanto, de várias antologias poéticas e de algumas outras de contos. Deixou uma boa produção inédita, sobre a qual pretendo apresentar uma comunicação ao nosso Grupo de Trabalho da Teoria do Texto Poético, Anpoll, ao qual ele pertencia como membro e coordenador. Disponho, com seu afetivo autógrafo, de dois livros de poesias, publicados em São Paulo e em Brasília. Numa homenagem ao professor e poeta, escrevi recentemente um artigo, incluindo alguns poemas, para a revista da Universidade do Chile, lembrando da recente participação performática e apresentação a Congressos, no âmbito das relações Universidade de Brasília com a Chilena, em Santiago e em Brasília.

Agora, ponho à disposição de virtuais leitores alguns exemplos de sua poesia. Com certeza não lhe faltará pesquisador interessado no seu verso bem cuidado.

Fonte:
Antonio Miranda

Sá de Freitas (Livro de Sonetos)


CAVALGADA NOTURNA

Talvez tu possas ver passar garboso,
(Em calma noite, cálida, enluarada),
Um cavaleiro à sós, pela envernada,
A dominar o seu corcel fogoso...

Talvez, ao som de um violão plangente,
Ouças alguém romântico cantando
Uma canção de amor ou declamando,
Um poema ou um verso simplesmente.

Não temas e nem fujas nessa hora,
Nem rezes pra que chegue logo a aurora,
E tudo passe, então, com a claridade.

Pois quem está ali fazendo flerte,
Sou eu que lá do Espaço vim pra ver-te,
Para curar a dor de uma saudade.

AQUELE HOMEM

Aquele homem ali, roupa rasgada,
Barbudo, de chapéu, ao nada olhando,
A estender a mão suja e cansada
À caridade dos que vão passando,

Já foi uma pessoa destacada
Na alta sociedade, mas julgando
Que os pobres nunca mereciam nada,
A prática do bem foi ignorando.

Vivia à sós sem ter nenhum parente
E fortunas gastava inutilmente,
Mas tudo, um dia, desapareceu.

Passou o tempo e agora abandonado,
Por ironia fica ali sentado,
Rente à porta do prédio que foi seu.

NAO ME DIGAS: «TE AMO»

Não me digas: «Te amo loucamente!»
Porque a palavra é apenas ressonância,
Que se perde, com o tempo, na distância,
E cai no esquecimento facilmente.

Prefiro um abraço sem nem um ruído;
Um beijo sem sussurros de promessa;
O teu olhar que quase sempre expressa,
O desejo que trazes escondido.

Não fales que me adora e que me almejas,
Entregas-te em meus braços simplesmente,
E me demonstres o quanto me desejas.

Se me disseres qualquer coisa agravas
O nosso idílio... E tenhas sempre em mente,
Que um suspirar diz mais que mil palavras.

O PODER DA CARIDADE

Se procura suprir, ao ver sem nada,
A mesa do idoso ou da criança;
Se traz consolo à alma já prostrada,
Sem fé e desnudada de esperança.

Se vai, tal como pode, na jornada,
A dar auxílio a todos sem cobrança;
Mesmo que certa ingratidão o invada,
Pela estrada do bem sem mágoa avança.

Se mantiver sua boca sempre muda,
Para não propagar sua bondade,
Humilhando a quem teve a sua ajuda...

Ah! Meu amigo ou minha amiga, a cruz
Que faz sangrar seus ombros sem piedade,
Vai ficar leve ao lado de Jesus.

SOFREMOS MUITO?

A cruz que arrastas pela vida afora,
Tal qual a minha, às vezes pesa tanto,
Que nos provoca o mais copioso pranto
E a esperança nossa se evapora.

Mas se olharmos com atenção lá fora,
Veremos com piedade e com espanto,
Que há cruz maior que a nossa, em cada canto;
Que há gente que soluça, grita e implora.

Se os pés ferimos, há os que não os tem;
Se a nossa vista é fraca, há os que não veem;
Enquanto andamos, há os que escalam serras...

Lembremos-nos: Há enfermos condenados;
Há nas ruas farrapos esfomeados;
Há milhares de vítimas das guerras.

QUANDO EU NASCI PRA SER POETA

Quando eu nasci pra ser poeta um dia,
A inspiração e o sonho festejaram,
Mas num canto escondidos, com ironia,
O pranto e a dor, sem pejo, gargalharam.

Mas hoje, mergulhado na poesia,
A dor e o pranto, que de mim zombaram,
Não podem retirar minha alegria,
Porque nunca... jamais... me escravizaram.

Eu sou poeta e igual a toda gente,
Sofro em meus dias, quando estão nublados,
Embora de maneira diferente.

É porque nos momentos adversos,
Enquanto muitos sofrem a dor, calados,
Eu desabafo a dor fazendo versos.

AO SOM DA LIRA

Ao som da lira eu fico embevecido,
Meio perdido até... se o amor decanto,
Porque o pranto flui-me tão sentido,
Quando envolvido estou por esse encanto.

Mas da lira não ouço o som doído,
Nem o gemido do meu peito, enquanto
Fujo de pronto, do meu tempo ido
E tão sofrido por desgosto tanto.

E as dores?... Busco eu sempre esquecê-las,
Pois prefiro ficar olhando estrelas
E nelas encontrar os versos meus.

Enquanto estrelas olho... a dor esqueço;
Quando esqueço da dor eu agradeço
E enquanto agradeço... eu sinto Deus.

SEM AMOR A VIDA FINDA

As ilusões se vão...vão de repente...
E, de repente, surge a realidade,
Que faz-me compreender que não é tarde,
Para sonhar de modo diferente.

Mais consciente agora e realista,
Meus castelos possuem outra estrutura...
Não alço vôo em demasiada altura...
Somente luto certo da conquista.

As ilusões da mocidade ida,
Serviram-me de ponto de partida,
À longas lutas que empreendo ainda.

Pois sem ter sonho o ideal fenece,
Sem ideal o amor desaparece
E sem amor, por certo, a vida finda.

Fonte:
http://www.raizonline.org/sadefreitas.htm
Imagem = montagem por José Feldman

Sá de Freitas


SAMUEL FREITAS DE OLIVEIRA, cujo pseudônimo de escritor é Sá de Freitas, escreveu oito livros de romance, contos e poesias, quatro dos quais foram publicados por conta própria, em pequenas tiragens, já esgotados.

Seus livros publicados são: Raios de otimismo, Fragmentos d'Alma, Luzes de Esperança e Folhas Dispersas.

Militou por muito tempo, desde os treze anos de idade, em vários jornais da Região de S. Paulo, escrevendo Artigos, Crônicas e Poesias.

Formado em Letras, Agrimensura e em Técnicas Veterinárias, atualmente, dedica-se à Literatura e também à agricultura e à pecuária.

Teve influência dos poetas : Castro Alves, Raimundo Correia, Gonçalves Dias e Camões. Considera a arte de escrever como uma das mais difíceis porque requer conhecimentos, sensibilidade, clareza de expressão, técnica no emprego das palavras, ética e, sobre tudo, domínio da gramática.

Poetas Preferidos: Atuais: Tere Penhabe, Zelisa Camargo, Eugênio de Sá, Anna Paes e outros(as).

Músico, compositor, com um CD «Gravado Só Para Amigos», ganhou vários Festivais , inclusive na famosa e nacionalmente conhecida FAMPOP- Festival Avareense de Música Popular, Avaré, São Paulo, Brasil.

Gosta da vida simples do campo, para estar sempre em contato com a Natureza, na qual encontra a sua inspiração.

Hoje é membro efetivo das Academias:

AVPB (Academia Virtual Poética do Brasil)
AVSPE (Academia Virtual Sala dos Poetas e Escritores)
AVBL (Academia Virtual Brasileira de Letras)

Faz parte do Grupo «Poetas Del Mundo» e de outros mais, importantes no mundo literário.

Contudo gosta da simplicidade e não tem se exposto nos eventos literários, apesar de vários convites.

Prefere atuar atrás dos bastidores por não se considerar ainda um poeta: apenas um fazedor de versos.

Fonte:
http://www.raizonline.net/arquivo/jornaldesoito/paginatrintacinco.htm

Monteiro Lobato (O Saci) IX – A sucuri; X – A Floresta


IX – A sucuri

— Um monstro! Acuda, saci! Um monstro com corpo de cobra e cabeça de boi!... — gritou Pedrinho, trepando de novo no guarantã com velocidade ainda maior que da primeira vez.

O saci foi ver o que era e voltou dizendo:

— É uma sucuri que acaba de engolir um boi. Desça que não há perigo. Ela está dormindo e dormirá assim dois ou três meses até que o boi esteja digerido.

Apesar da confiança que o saci lhe merecia, o menino foi pulando de árvore em árvore para só descer a cem passos dali. Mas como a tentação de ver a sucuri fosse grande, foi voltando, voltando, até chegar em ponto de onde pudesse observá-la à vontade.

Era das maiores que se poderiam encontrar, devendo ter pelo menos uns trinta metros de comprimento e a grossura da cabeça de um homem. Pedrinho não podia compreender como um boi inteiro pudesse caber dentro dela.

— Muito simples — explicou o saci. — A sucuri enlaça o boi, quebra-lhe todos os ossos e amassa-o de tal maneira que o torna comprido como chouriço. Depois cobre-lhe o corpo de uma baba muito lubrificante e começa a engoli-lo sem pressa. Vai indo, vai indo, até que dá com o boi inteiro no estômago; só ficam de fora a cabeça e os chifres. E leva meses assim, até que a digestão se complete. Quando está nesse estado a sucuri não oferece perigo nenhum, porque fica inerte, caída em estado de sonolência.

E não foi só essa cobra que Pedrinho conheceu naquele dia. Logo depois percebeu um ruído seco de guizos. Era uma cascavel que passava, muito aflita, como que fugindo de algum inimigo.

— Que será que a está perseguindo? — indagou ele.

— Alguma muçurana — respondeu o saci. — As muçuranas são cobras sem veneno que só se alimentam de cobras venenosas. Lá vem uma!

De fato, uma muçurana de cor escura surgiu no rasto da cascavel, que foi alcançada logo adiante.

Luta terrível! Pedrinho nunca imaginou um tal espetáculo. A muçurana enleou-se na cascavel e as duas rebolaram no chão como minhocas loucas. Muito tempo estiveram assim. Finalmente a cascavel morreu sufocada, e a muçurana engoliu-a inteirinha, apesar de serem ambas do mesmo tamanho.

— Que horror! — exclamou Pedrinho. — A vida nesta floresta não tem sossego. Só agora compreendo por que os animais selvagens são tão assustados. A vida deles corre um risco permanente, de modo que só escapam os que estão com todos os sentidos sempre alerta.

— É o que os sábios chamam a luta pela vida. Uma criatura vive da outra. Uma come a outra. Mas para que uma criatura possa comer outra, é preciso que seja mais forte — do contrário vai comer e sai comida.

— Mais forte só?

— Mais forte ou mais esperta. Aqui na mata todos procuram ser fortes. Os que não conseguem ser fortes, tratam de ser espertos. Na maior parte dos casos a esperteza vale mais do que a força. Os sacis, por exemplo, não são fortes — mas ninguém os vence em esperteza.

X – A floresta

— Pois assim é — continuou o saci. — A lei da floresta é a lei de quem pode mais — ou por ter mais força, ou por ser mais ágil, ou por ser mais astuto. A astúcia, principalmente, é uma grande coisa na floresta. Está vendo ali aquele galhinho seco?

— Sim. Um galhinho como outro qualquer — respondeu o menino.

— Pois está muito enganado — replicou o saci. — Não é galho nenhum, sim um bichinho que finge de galho seco para não ser atacado pelos inimigos.

Pedrinho não quis acreditar, mas cutucando o galhinho viu que ele se mexia. Ficou assombrado da esperteza.

— Bem diz vovó que a mata é perigosa! Um que não sabe há de levar cada logro aqui...

— E aquilo? — perguntou o saci apontando para uma folha. — Que parece a você que aquilo é?

Pedrinho olhou; viu bem que era uma folha de árvore; mas como já estava ficando sabido nas traições da floresta, piscou para o saci e disse:

— Desta vez não caio na esparrela. Parece que é uma folha, mas com certeza é outro bichinho que se disfarça em folha.

E cutucou-a para ver se se mexia. A folha, porém, não se mexeu.

— É folha mesmo, bobinho! — disse o saci dando uma risada. — Inda é muito cedo para você “ler” a mata. Isto é livro que só nós, que aqui nascemos e vivemos toda vida, somos capazes de interpretar. Um menino da cidade, como você, entende tanto da natureza como eu entendo de grego.

— Realmente, saci! Estou vendo que aqui na mata sou um perfeito bobinho. Mas deixe estar que ainda ficarei tão sabido como você.

— Sim, com o tempo e muita observação. Quem observa e estuda acaba sabendo. Aqui, porém, nós não precisamos estudar. Nascemos sabendo. Temos o instinto de tudo. Qualquer desses bichinhos que você vê, mal sai dos casulos e já se mostra espertíssimo, não precisando dos conselhos dos pais. Bem consideradas as coisas, Pedrinho, parece que não há animal mais estúpido e lerdo para aprender do que o homem, não acha?

O orgulho do menino ofendeu-se com aquela observação. Um miserável saci a fazer pouco-caso do rei dos animais! Era só o que faltava...

— O que você está dizendo — replicou Pedrinho — é tolice pura sem mistura. O homem é o rei dos animais. Só o homem tem inteligência. Só ele sabe construir casas de todo jeito, e máquinas, pontes, e aeroplanos, e tudo quanto há. Ah, o homem! Você não sabe o que o homem é, saci! Era preciso que tivesse lido os livros que eu li em casa da vovó..
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continua... XI - Discussão; XII – O jantar
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Viagem ao Céu & O Saci. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. II. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

Antonio Manoel Abreu Sardenberg (Poetas de Ontem e de Hoje V)


Farsa
ANTONIO MANOEL ABREU SARDENBERG / RJ


A farsa fere como ferro em fogo
A face falsa despe a fantasia
A vida vira um salão de jogo
No picadeiro reles da orgia.


Se a faca finca no meu peito afoito
Esvai-se o verso, a prosa e a poesia
E vem na boca aquele amargo gosto
Do amargo fel que, então, provei um dia.


A farsa fere, já que é ferro em fogo
A faca finca quando fere o forte
E nessa vida que virou um jogo
Saio perdendo, pois não tenho sorte.

A faca finca
A farsa fere
O tempo passa
O verso morre
Esvai-se a vida...

Anjo Enfermo
AFONSO CELSO/ RJ
l860/1938


Geme no berço, enferma, a criancinha,
Que não fala, não anda e já padece...
Penas assim cruéis por que as merece
Quem mal entrando na existência vinha?!

Ó melindroso ser, ó filha minha!
Se os céus ouvissem a paterna prece
E a mim o teu sofrer passar pudesse,
- Gozo me fora a dor que te espezinha.

Como te aperta a angústia o frágil peito!
E Deus, que tudo vê, não ta extermina,
Deus que é bom, Deus que é pai, Deus que é perfeito.

Sim, é pai mas – a crença no-lo ensina:
- Se viu morrer Jesus, quando homem feito,
Nunca teve uma filha pequenina!...

Flor da Sacada
REGINA COELI/RJ


Era pra ti aquela linda flor
Jogada pra cair no teu chapéu
Colhida de um pedaço do meu céu
Com perfume de todo o meu amor.

A cada tarde morna em seu calor
Eu te esperava envolta em doce mel
E na felicidade que hoje, ao léu,
Não vê mais beija-flor na minha flor...

Um dia teu sorriso me faltou,
Fez-se triste o minuto em minha hora
E em minha mão aquela flor murchou...

Espero o teu chapéu a cada agora
Trazendo o meu sorrir, que se findou
Naquela flor que não levaste embora!

Continuidade
GIUSEPPE ARTIDORO GHIARONI/RJ


Existe um cão que ladra quando eu passo,
Como se visse um bêbedo, um mendigo.
E no entanto, esse cão foi meu amigo,
Como tantos amigos que ainda faço.

À noite, com que alegre estardalhaço
Vinha encontrar-me no portão antigo;
Enquanto a dona vinha ter comigo
E, sorrindo, apoiava-se ao meu braço.

Hoje ele faz a outro a mesma festa
E ela o mesmo carinho, tão honesta
Como se nem notasse a transição.

Eu rio dessa triste brincadeira.
Mas quando uma mulher é traiçoeira,
Não se pode confiar nem no seu cão.

Locomotiva da vida
JOSÉ FELDMAN/PR

A locomotiva corre
Corre que corre
Corre que corre.

Corre levando a gente
Corre trazendo a gente
E a gente corre e corre
Neste leva-e-traz.

A locomotiva corre e apita
Corre e apita
Corre e apita.

Apita o início do jogo,
Apita a voz de comando
Apita a batalha da vida
Apita a vida passando.

A locomotiva corre e pára
Corre e pára
Corre e pára.

Pára na estação
Pára na carga e descarga
De meus momentos de indecisão.

Vai que vai
Vou que vou
Fico que fico.

E a locomotiva apita
E ela corre que corre
E lá vai ela
E lá vou eu!

Corre que corre,
Corre que corre,
Corre que corre…

Ilusões da Vida
FRANCISCO OTAVIANO/ RJ
1825 / 1884


Quem passou pela vida em branca nuvem,
E em plácido repouso adormeceu;
Quem não sentiu o frio da desgraça,
Quem passou pela vida e não sofreu:
Foi espectro de homem... Não foi homem,
Só passou pela vida... Não viveu.

TE AMO
SÁ DE FREITAS


Amo-te tanto...mais que a própria vida,
E te desejo tanto, na certeza,
De que me queres quanto és tão querida,
De que me prendes n'alma o quanto és presa.

Amo-te mais que o amor permite amar-se;
Amo-te além do além que o amor desperta;
Translúcido te amo sem disfarce;
Te amo com a loucura de um poeta.

Amo-te como deve amar quem ama,
E cercado por essa imensa chama,
Do amor que me aprisiona em fortes laços:

Quero que o coração, no amor, se farte;
Quero viver para poder amar-te...
Quando eu morrer, que eu morra nos teus braços. i

Renúncia
MANUEL BANDEIRA
1886 / 1968


Chora de manso e no íntimo... procura
Tentar curtir sem queixa o mal que te crucia :
O mundo é sem piedade e até riria
Da tua inconsolável amargura.

Só a dor enobrece e é grande e é pura.
Aprende a amá-la que a amarás um dia .
Então ela será tua alegria,
E será ela só tua ventura...

A vida é vã como a sombra que passa
Sofre sereno e de alma sombranceira
Sem um grito sequer tua desgraça.

Encerra em ti tua tristeza inteira
E pede humildemente a Deus que a faça
Tua doce e constante companheira.

Bobo prazer
ILKA VIEIRA


Já és tão bela,
tão doce e plena,
mas ainda não percebes
o fluído original
que recarrega minha ânsia
quando te vejo,
quase toco,
quase beijo,
quase roubo,
sem covardia,
com puros desejos
de envolvê-la em meus braços
e morrer por abraços
num bobo prazer.

Entorpecimento
SÔNIA MARIA GRILLO


Eu queria tanto
sair do entorpecimento
retirar o quebranto
a bruxaria, sei lá,
acabar com o tormento
esse marasmo, essa monotonia,
esse não sei o quê
que incomoda
entristece a alegria
esse cansaço em tudo que se vê
essa agonia, essa ausência de energia
para erguer-me, ficar de pé,
encarar os problemas
como coisas pequenas
fáceis de resolver
e no entanto,
estou com as mão atadas
por dentro o pranto
numa angústia encravada
e não há divindade nem santo
que possa dar jeito
nesse momento imperfeito
que de repente se agigantou
feito uma serpente e se enroscou
como seu eu fora uma presa,
e feito uma corrente
seus elos fortemente atou
destruindo toda a minha defesa,
e aí... Tudo ruiu, desmoronou.

Fonte:
Poesias enviadas pelo autor

Ialmar Pio Schneider (Reminiscências)


Há tempo vinha lutando contra um bloqueio que o atrapalhava demasiadamente. Queria pôr no papel e publicar algumas idéias que povoavam sua mente, mas tinha escrúpulos. O que pensariam dele os outros, principalmente os conhecidos? E assim os dias iam passando e Vitório não tomava uma atitude a respeito, sofrendo muito com isto. Quantas reminiscências teria para contar ! Quando passeava pelas ruas, em certas ocasiões, encontrava algum amigo que lhe perguntava, após entabularem conversa: - “Continuas escrevendo; como vão as poesias?” Respondia então, quase sempre: - “Atualmente, estou mais lendo, inclusive relendo romances e contos que me parecem esquecidos.”

Realmente, desde a infância gostara muito de ouvir e ler histórias, entretanto, se dedicara mais ao gênero poético. Lembra-se vagamente do que lhe contavam na tenra idade as criadas de sua família, principalmente a que se chamava Virgilina. Tem a impressão de que falava da revolução de 23, quando houve escaramuças pelo Rio Grande do Sul e que ela presenciara nas regiões do Planalto Médio e Alto Uruguai. O assunto tratava de invasões de propriedades para roubo de gado e entreveros. Se tivesse anotado, quantas páginas fantásticas teria para escrever?!

Todavia, tudo se perdeu no mar do olvido e Vitório procura recordar alguma coisa que o possa socorrer neste impasse. Talvez que, varrendo as cinzas do passado, surja alguma brasa para acender-lhe na memória os episódios que escutara na longínqua infância.
Vem-lhe à memória o caso daquele filho de imigrantes que se embrenhara nos matagais a fim de não ser recrutado pelos revolucionários. Ficara vinte e tantos dias desaparecido, alimentando-se de frutas silvestres e bebendo água em vertentes. Emagrecera e voltara barbudo, desconfiando de todos. Quase enlouquecera de tanto pensar que poderia ser encontrado. E daquele outro que se escondera dentro de um poço ao ver se aproximarem os cavaleiros?! “Foram uns tempos brabos” que ficaram remarcados nas tradições gaúchas tão decantadas em prosa e verso pelos nossos historiadores e poetas gauchescos. Alguns desses casos já são considerados lendários, pois como dizem “quem conta um conto, aumenta um ponto”, e pertencem, por assim dizer, ao domínio público.

Assim pensando, caminha pela praça da Alfândega, em Porto Alegre, onde transcorre a 43ª Feira do Livro que tem como patrono o consagrado romancista gaúcho, Dr. Luiz Antonio de Assis Brasil, do qual solicita e obtém um autógrafo no grande pequeno livro “Anais da Província-Boi”, e, após, dirige-se ao Cine Guarany onde assistirá ao filme “Lua de Outubro”, que talvez lhe desperte alguma inspiração, pois foi daquela época que ouviu histórias incríveis.

Fonte:
Texto enviado pelo autor
Imagem = http://www.paginadogaucho.com.br/cine/lo.htm

Lino Mendes (Maria Albertina Dordio: "Os Galegos")


O Correio trouxe-nos mais uma preciosidade literária, aliás, pela maneira compreensível como escreve, a mensagem da poesia e não só de Maria Albertina Dordio entra facilmente no nosso coração.

Este seu novo livro, um espaço de afectos e de memórias de infância, tem sem favor lugar em toda a boa Biblioteca.

Deste livro intitulado “Lembras-Te Mãe ?”,um poema;

Os Galegos

O jantar terminou e, na travessa,
Há ainda comida a gritar
Pelas bocas famintas que, à pressa,
Acorrem quando as vou chamar.

São muitos e não têm que comer!
São muitos e nãpo têm que vestir!
Andam magros, descalços, a sofrer,
São tristes,nem sequer sabem sorrir.

Lá vêm com o prato aceitar,
Num alvoroço grande,com esperança
De poderem na sopa saciar
Aquela fole adulta de criança.

A boca pouco afeita ao sorriso,
Abre-se sem sorrir, num feio esgar…
O olhar, sem estrelas, com preciso
Apenas de alimento, pra brilhar.

A sopa cobre todo o barranhão
Que dois ou três agarram, com cuidado,
Não vá algum deixá-lo ir ao chão…
Nem lembram de dizer, --“muito obrigado”.

Recolhendo a casa, em algazarra,
Na ânsia impaciente de comer,
Deixam-me a mim, ficar na triste amarra
Da injusta razão de tal sofrer.

Maria Albertina Dordio no livro “Lembras-Te,Mãe?”

Fonte:
Texto enviado pelo autor

sábado, 20 de agosto de 2011

Paulo Leminski (Distâncias Mínimas)


Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 309)


Uma Trova Nacional

No banheiro se deu mal
a coitada desatenta,
usando, justo, o jornal
onde enrolara a pimenta...
–WANDA HORILDA DE LIMA/MG–

Uma Trova Potiguar

Tudo sobe!... A carestia
na feira já me derruba.
Só não sobe todo dia
o que eu preciso que suba!
–CLARINDO BATISTA/RN–

Uma Trova Premiada

2007 - Bandeirantes/PR
Tema: PIRRAÇA - M/H.

A Rosa, só por pirraça,
ao seduzir o Zezinho,
pôs Viagra na cachaça
e o bebê nasceu “bebinho”.
–WANDIRA F. QUEIROZ/PR–

Uma Trova de Ademar

A minha sogra assanhada,
no barracão da Mangueira,
foi muito mais apalpada
do que laranja na feira!...
ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

"Abre, meu bem, a janela,
me esquenta que a neve cai..."
Quem abriu foi a mãe dela,
quem me esquentou foi o pai!
–APRYGIO NOGUEIRA/MG–

Simplesmente Poesia

MOTE:
Você já não me procura...
Também...Você não se esconde!

GLOSA:
Em noite bastante escura,
ouvi “Zefa” reclamando:
Eu já nem sei desde quando
você já não me procura.
A vista ficou escura
procurei chão, não sei onde,
mas o poeta responde
com seu jeito bonachão
dando outra explicação:
Também...Você não se esconde!
–FRANCISCO MACEDO/RN–

Estrofe do Dia

Na Inglaterra as coisas andam feias
todo mundo por lá endoidecendo;
todo dia é uma princesa sem marido
e um príncipe que sozinho está vivendo...
ou a carne da vaca fez efeito,
ou o chifre do boi está fazendo...
–EDMILSON FERREIRA/PI–

Soneto do Dia

Um Vice-Versa... Ao Contrário
–HELOISA ZANCONATO/MG–

Amigo Zé Maria que surpresa,
saber-te um Casanova aposentado,
pois, sempre, existe alguma brasa acesa
por baixo do carvão enfumaçado.

Se quem foi rei não perde a realeza,
um pau-de-lei não morre carunchado
e uma viril pistola portuguesa
não vive de gatilho enferrujado...

Esquece a ostoporose... a catarata
e sai, enfim, atrás de uma mulata
que tope um “ti-ti-ti” num canto escuro...

Pois, para um português de nome honrado,
melhor ficar com fama de tarado...
que ser considerado um dedo “duro”!

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Marina Bruna (Livro de Trovas)


Ao tanger minha guitarra,
ser pobre não me importuna.
Tenho o perfil da cigarra
que é feliz sem ter fortuna.

Chega alguém...corro à janela...
mas tenha calma , emoção!
Não confunda os passos dela
com os passos da ilusão!

Depois da tua partida,
na desordem dos meus passos,
o que me prende na vida
é a memória dos teus braços…

Descem do morro, sambando,
o Conde, o Rei e a Princesa.
É o Carnaval mascarando
de sangue azul a pobreza…

Disse um "sábio" picareta
sobre um voo espacial:
- "Pra chegar noutro planeta
é só ter um mapa astral...”

Eu faço um apelo mudo
na velhice que me alcança:
– Destino, tire-me tudo
mas não me roube a esperança!

Fim do amor… mas nosso enredo
restou em minha lembrança,
como ficou em meu dedo
a marca de uma aliança…

Já fui musa no passado
e hoje só, bem que eu queria
os versos de pé quebrado
que eu desprezei certo dia…

Mágico no seu cantar,
o poeta tem na voz
a virtude de criar
mil mundos dentro de nós!

Morrem florestas, açudes
e o mundo, pobre de afeto,
perde os versos e as virtudes:
– vira selva de concreto!

Na história de tua vida
sou apenas, sem escolha,
uma sentença esquecida
no rodapé de uma folha.

Na insânia de uma paixão,
que me pega e não tem cura,
deixo de lado a razão
e dou razão à loucura!

Nas águas turvas dos rios,
os venenos poluidores
nos darão dias sombrios
de primaveras sem flores…

O destino rege as vidas
num balé, cujo andamento
lembra o das folhas caídas
dançando ao sabor do vento…

Quanto sonho se vislumbra
numa esteira, à luz de vela,
quando um amor e a penumbra
se encontram numa favela!

Quem faz poemas alcança
todo o brilho do Universo
pondo estrelas de esperança
nas rimas de cada verso!

Se um dia o céu censurar
o nosso amor, não aceito...
e a teu lado hei de encontrar
um outro céu...mais perfeito!

Sobre seda ou algodão,
na trama dos figurinos,
o Supremo Tecelão
faz desiguais os destinos.

Tem melodia tristonha
minha seresta, sei bem…
pois canto para quem sonha
nos braços de um outro alguém.

Tu chegavas e eu ouvia
o trem, em tons comoventes,
tocar canções de alegria
no teclado dos dormentes…

Vão ficando tão distantes
os carinhos do passado,
que eu nem sei se o que era antes
foi vivido...ou foi sonhado...

Velho bilhete... lembrança
de um amor que não foi meu...
Um pedido de esperança
que a vida não respondeu…

Zéfiro da tarde mansa!
por favor, sopra esta vela
e leva ao mar da esperança
minha triste caravela!

Fonte:
BRUNA, Marina. Cantares: trovas. São Paulo: Ar-Wak, 2010.

Marina Bruna


Marina Bruna nasceu em Franca, SP, filha de Diva Luz Paiva Bruna, diretora de escola e Jaime Bruna, professor universitário.

Marina Bruna, graduada em Matemática pela PUC/SP; em Pedagogia pela “Carlos Pasquale” e em Jornalismo pela “Cásper Líbero”, exerceu o Magistério como professora concursada em Escolas Estaduais e Municipais de São Paulo. Lecionou, também, em Escolas particulares. Hoje está aposentada dessas funções.

Uniu conceitos de áreas supostamente opostas, mas que resultaram em sua formação poética. Poetisa desde a adolescência, distingue-se como Trovadora, com mais de 500 trovas classificadas em concursos de âmbito nacional e internacional, entre as quais se incluem premiações em Portugal, Argentina e República Dominicana.

Somente em 1988 passou a frequentar a Casa do Poeta Lampião de Gás, de São Paulo.
Faz parte da União Brasileira de Trovadores, onde foi agraciada com os troféus “Revelação” (1989); “Destaque” (1994) e os de Trovador mais premiado do ano (1999; 2001; 2004; 2005; 2007 e 2009).

Recebeu em 2007 o troféu “Lilinha Fernandes”, que a União Brasileira de Trovadores de Porto Alegre atribui ao Trovador mais premiado nacionalmente nos concursos de Trovas do ano.

Publicou os livros: “Transparências” (poemas e trovas); “Cintilações” (trovas), Cantares (trovas) e trabalhos em Jornais Literários, Antologias e Coletâneas poéticas.

Proferiu várias palestras sobre Trovas em diversos espaços culturais de São Paulo, Santos, Niterói e outros, entre as quais “A Esperança nas Trovas” (1993), “Cantigas do Paranaso” (1998), “Pegando Carona na Trova” (1999), entre outras.

É colaboradora da revista “Litteratrova”, de Taubaté, na qual mantém uma coluna mensal intitulada “Redondilhas”.

Além da Academia de Letras, Ciências e Artes da Associação dos Funcionários Públicos do Estado de São Paulo, onde ocupa a cadeira de n. 13, sujo patrono é Paulo Setubal, pertence às seguintes entidades culturais: Casa do Poeta “Lampião de Gás” de São Paulo; Movimento Poético Nacional; União Brasileira de Escritores; e “União Brasileira de Trovadores, seção São Paulo.

Fontes:
http://www.recantodasletras.com.br/biografias/3167512
BRUNA, Marina. Cantares: trovas. São Paulo: Ar-Wak, 2010.

Eduardo R. V. (O Fantasma do Hospital)


Já se passara quanto tempo?
Ele não sabia, não havia como saber.
Quem sabe aconteceu há um ano?
Talvez tenha sido apenas há uma semana.
Um dia?
Bom, há quanto tempo aconteceu ele não sabia.
Sabia, e apenas isto, que foi algo sem igual; para ele maravilhoso, até certo ponto.
Para a maioria das pessoas teria sido horrível, mas ele adorou, e repito, até certo ponto.

O menino, em um leito de um hospital, se acomodou de maneira mais confortável. A lembrança daquela sua amiga causava certo arrepio. Ele sentiu muito por ela. Por tudo o que ela fez; por tudo que a levou a atos desesperados de vingança. Coisas que fizeram a pobre menina cruzar a linha fraca e fina que separa o mundo dos mortos e os dos vivos. Ou poderia ser ao contrário; não poderia?

Seu corpo fraco e inutilizado. Como todos lamentavam seu corpo sem uma função, para muitos, essencial, que o menino não conheceu: locomoção. Não era só esse o problema do menino, existiam mais dois. Bom, um deles poderia não ser um problema, dependeria das pessoas, da cultura que comanda a vida destas. Nem todos consideram o poder de ver espíritos algo ruim. Porém muitos banalizam. E o menino pensava nessas pessoas. Muitas delas acreditavam que pessoas em um passado distante viram anjos ou ouviram vozes ou ainda receberam esclarecimentos superiores.

Lágrimas apareciam nos olhos do menino sempre que pensava nisso. Por que ele não podia ver? Por que ele não podia ouvir? As pessoas condenavam o menino. Ele se importava com isso. Gostaria que as pessoas aceitassem seu dom, assim como aceitavam o dom daqueles que viveram no passado.

O tempo para o menino estava acabando. Ele sabia, ninguém precisava dizer, ele simplesmente sabia. Sabia que a leucemia o devastava mais e mais, dia após dia. Uma depressão se abateu sobre o menino quando ele soube. Foi quando ele perdeu a noção do tempo. O médico afirmava firme, mesmo sem o menino perguntar, que ele iria viver; mas ele não se deixava enganar.

O menino esperava uma visita, o diretor do hospital. Foi por um pedido do menino que o diretor do hospital iria lhe visitar. Era preciso esclarecer um acontecimento. O menino precisava dizer, precisava dizer antes de ir. A sua amiga havia chorado; ele nunca tinha visto um chorar. Ela chorou…

A maçaneta dourada da porta branca girou, o diretor do hospital entrou.

— O que deseja meu pequeno? — disse o diretor do hospital calmo. — O que é tão importante que eu saiba?

O menino, fracamente, respondeu:

— Lembra que aconteceram coisas estranhas há algum tempo? É sobre elas que eu quero falar; preciso.

— Sim, lembro muito bem. Nunca antes — o diretor do hospital puxou um banco, sentia que a conversa seria longa — aconteceram coisas como aquelas por aqui.

Bom, aqui foi à primeira vez. Já tinha ouvido, em conversas, coisas parecidas.

— Então — disse o menino, que sempre escutava com atenção enquanto as pessoas falavam — eu sei quem, sei por que, conheço cada detalhe.

— Como pode saber? — perguntou curioso do diretor. — Lembro que você não saiu do quarto durante os acontecimentos. Era muito perigoso.

— Eu não saia, mas alguém entrava.

O direto do hospital olhou espantado para o menino. Não sabia como ele poderia conhecer detalhes. Lógico que ele conhecia os dons do menino; seu olhar ante o menino não mudou mesmo após a revelação.

— Por favor — pediu o diretor do hospital —, explique-me melhor.

— Houve uma paciente neste hospital — começou a dizer rapidamente o menino — que foi internada aqui com febre...

Uma imagem apareceu na mente do diretor do hospital, era a de uma paciente sendo levada de maca para um dos quartos do hospital. Ela se contorcia agressivamente, tinha febre alta e delirava.

— ... se contorcia, delirava. Ela. Foi ela quem me contou o que acontecia.

O diretor do hospital sabia quem era. Porém ainda não compreendia, [ou não queria], a ligação entre aquela jovem garota e o que aconteceu no hospital.

— E ela, como ela poderia saber?

Ele tinha uma curiosidade. Queria ver até que ponto o dom do menino iria.

— Percebeu que enquanto as coisas aconteciam — respondeu o menino —, não havia nenhuma pessoa que pudesse estar por trás de tudo. As coisas iam acontecendo, simplesmente. Por mais que procurassem, não teriam achado nenhum responsável. Não acharam, acharam?

— Está dizendo que não achamos o culpado por que foi um espírito?

— Isto.

Antes que a conversa continuasse, o diretor do hospital foi chamado para atender uma urgência.

— Descanse, depois continuamos a conversa — disse o diretor do hospital saindo.

O menino sabia que não poderia tomar o tempo do diretor do hospital. Ele era um homem muito importante no hospital, admirado por suas qualidades médicas e administrativas, portanto ter sua atenção por tempo suficiente seria muito difícil.

O menino dormiu tranqüilamente o começo daquela noite. Como sempre, não sonhou com nada, pelo menos ele não se lembrava de alguma vez ter sonhado; nenhuma imagem, nenhum som, nenhuma sensação.

Depois que o diretor do hospital deixou o quarto, o menino ficou pensando se sua amiga concordaria com a escolha dele em contar. Isso o perturbou. Antes ele tinha certeza de que deveria contar. Contar antes que seus dias acabassem, mas agora...

Esse medo que o menino tinha foi eliminado em uma conversa que teve. No meio da noite do mesmo dia da conversa com o diretor do hospital, o menino ouviu uma voz. Uma voz doce, agradável. Voz que transmitia muita paz. O menino foi acordado suavemente pela voz. Ao ver sua amiga ele se animou; gostou de revê-la. Ela nem precisou dizer nada, o menino sabia o porquê dela estar ali. Com certeza era sobre sua insegurança que ela desejava conversar. Só poderia ser esse o motivo da visita.

— Você decidiu que vai contar — disse ela. — Está em dúvida se eu concordo.

O menino não se surpreendeu quando a amiga falou tão perfeitamente sobre sua insegurança. O que o surpreendeu foram suas vestes: um longo vestido branco, muito brilhante; um véu prateado que guardava seus lindos cabelos negros; uma tiara, que ajustava o véu em sua cabeça, marcava ainda mais o brilho que sua amiga possuía. Os olhos dela... ele nunca havia visto os olhos castanhos dela tão brilhantes quanto naquele momento. Seu sorriso mudou, era amigável, ele se surpreendeu com a mudança, gostou muito.

— Você está linda — disse o menino em um elogio sincero.

— Você é o responsável por isto tudo — agradeceu a menina girando e fazendo seu vestido flutuar. — Se não fosse pela sua ajuda eu não estaria feliz agora.

A menina fez um carinho leve na testa do amigo. Depois o beijou na testa. Ele sentiu um calorzinho fraquinho e confortável onde ela o beijou.

— Que bom que eu pude ajudar, que bom...

— Vamos ao que interessa — disse a menina não oferecendo outra alternativa. “Você pode contar o que quiser sobre o que aconteceu comigo. Não precisa ocultar nada. Não tenha medo. Se for preciso eu ajudo de alguma forma.”

— Obrigado — disse o menino. — Sinto-me mais — ele pensou um pouco — “leve” — disse por fim. — Já que você não é contra, será mais fácil.

— Foi só sobre o que vim falar. Até alguma outra oportunidade — despediu-se.

— Até...

Depois da conversa seria tudo mais fácil. Já que sua amiga não era contra sua decisão. Era só esperar pelo próximo encontro com o diretor do hospital.

De manhã era a única hora em que o diretor do hospital poderia visitar o menino, no novo dia. Mas ele não apareceu; decidiu que precisava de mais tempo para pensar em tudo o que ouviu do menino debilitado.

No entanto o menino não ficaria sozinho durante a manhã, pelo menos não durante boa parte dela. Como o seu estado de saúde era muito delicado, seus pais conseguiram uma autorização especial para visitá-lo fora do horário, considerado, horário de visita. Os pais do menino foram visitá-lo; ele gostou.

— Oi filho — disse o pai abrindo a porta e entrando no quarto. — Como é que anda meu campeão.

Sua mãe se aproximou de seu leito pelo lado oposto ao que seu pai ficou. O beijou na testa, o menino, que adorava o beijo que sua mãe lhe dava, sorriu.

— Eu estou na mesma — respondeu o menino ao pai. — Por que vieram hoje? — quis saber o menino.

— Viemos por que sentimos saudades do nosso filho — afirmou a mãe. — Não podemos ficar muito tempo longe — apertando as bochechas do menino disse: — desta fofura.

— Mãe — reclamou o menino tentando se desvencilhar. — Sabe que não gosto que aperte minhas bochechas.

— Conversamos com o médico que toma conta de você — informou o pai. — Ele disse que há grandes chances de melhoras. Só depende de você — terminou tentando animar o menino.

O menino sabia que seu pai tinha a melhor das intenções quando lhe dizia que só dependeria dele. Mas ele sabia que não era assim; se fosse já estaria tudo acabado e ele estaria muito melhor. Até certo ponto, porém, isso o incomodava; ele tinha certeza de que morreria, apesar de não querer, as esperanças que tentavam passar para ele, eram desnecessárias.

Aquilo não perturbou o menino.

Ele queria contar para os seus pais sobre sua decisão de narrar para o diretor do hospital os acontecimentos que envolviam sua amiga. Seus pais já tinham relativo conhecimento sobre o assunto, e não gostavam nada dele. Seus pais eram o tipo de pessoa que não acreditava que outras podiam ver seres imateriais.

— Pai, mãe — começou tímido o menino. — Quero falar com vocês sobre uma coisa.

— O que é meu filho? — perguntou a mãe. — Que coisa é essa que quer falar. Sinta-se à-vontade.

O pai não falou nada, em parte por que sabia o que o filho queria falar. Ele sonhava com coisas que irão acontecer. Sua esposa e seu filho não sabiam e nunca souberam; ninguém nunca soube. O sonho que teve naquela noite foi com seu filho, e ele revelava acontecimento.

— É sobre a minha amiga — respondeu o menino. — Aquela que perturbou muita gente neste hospital — o menino respirou fundo ao acabar. — Sei que não gostam do assunto, mas, por favor, escutem.

O pai e a mãe se entreolharam. Em outras conversas, duas, em que o assunto foi mencionado, os pais do menino se estressaram; fizeram um grande esforço para não brigar com o menino, conseguiram.

A mãe pegou a mão do filho, com todo cuidado e carinho que uma mãe zelosa pode ter por um filho.

— Já conversamos sobre esse assunto — disse a mãe com a ternura agressiva que só uma mãe conseguiria ter. — Essa sua amiga é coisa da sua imaginação, efeitos dos remédios, talvez. Não temo mais o que falar.

— Mas eu preciso dizer uma coisa — implorou o menino. — Por favor, mãe é importante. Antes que seja tarde...

Silêncio na sala.

Ninguém percebeu, mas a persiana abriu, uma mudança mínima; praticamente não houve mudança na iluminação do ambiente.

— Conte-nos meu filho — permitiu a mãe.

Mais uma mudança leve na persiana, o ambiente ficou um pouco mais claro, com o nervosismo da conversa ninguém percebeu.

— Vou contar para o diretor do hospital tudo que sei — informou o menino. — Vou contar tudo sobre os dias em que minha amiga estava descontrolada; os acidentes infelizes, tudo.

— Você associa o que aconteceu aqui àquela sua amiga — disse o pai finalmente —, mas nunca falou o que, exatamente, ela fez.

— Vou dizer o que ela fez — informou o menino —, mas não quero dizer como ela fez — avisou. — Alguns pacientes no hospital precisam de cuidados especiais, de acompanhamento, ela interrompia esse acompanhamento. Conseguia fazer isso diretamente ou indiretamente.

O menino parou, tinha que tomar muito cuidado, não queria revelar nada sobre como sua amiga realizou os seus atos. Pelo menos disso ele queria protegê-la.

— Meu filho, se você vai falar sobre esse assunto, diga tudo — pediu a mãe.

— Não dá — replicou o menino. — Não quero contar tudo. Quero ocultar certas coisas para ter certeza de que o diretor do hospital não fique sabendo. Não por outra pessoa. Eu tenho que contar.

Os pais demonstraram sua impaciência; um pouco nervosos saíram do quarto, não queriam ter uma conversa como aquela.

No silêncio do quarto o menino sussurrou para si mesmo:

— A água, eu tenho que falar sobre a água.

A persiana abriu completamente e revelou a luz da manhã.

O dia transcorreu normalmente. Não houve nada que não pudesse ser considerado normal. O menino recebeu as visitas rotineiras para o acompanhamento de sua saúde; o almoço e jantar foram, como sempre, pontuais.

O diretor do hospital, que o menino tanto esperou, decidiu que no dia seguinte à visita dos pais do menino, iria conversar com ele. O que pretendia, na verdade, era conseguir dos pais do menino alguma informação que considerasse útil, mas nada conseguiu.

Não havia mais saída para o diretor do hospital, a conversa não poderia ser adiada. Só que no dia seguinte ao da visita de seus pais, o menino acordou diferente. Toda a avaliação que sempre faziam nele não apontou nada de anormal, mas o menino acordou, no dia seguinte, com febre alta, tendo convulsão e delirando; algo muito parecido com o que teve sua amiga quando entrou no hospital. Depois de muitas tentativas os médicos conseguiram fazer com que o menino melhorasse, mas seu quadro ainda era instável.

Quando o menino melhorou e conseguiu pensar direito, pediu para falar com o diretor do hospital. Quando seu pedido foi negado ele começou a gritar, se não podiam chamar o diretor do hospital, ele mesmo o faria. Pouco tempo depois o diretor do hospital foi atender ao chamado do menino.

— Nossa conversa — disse o diretor do hospital quando entrou —, temos que continuá-la. Diga, então, o que aconteceu que você sabe e eu não!

O menino se sentia cansado, muito. Sentia muitas dores. Mas tinha que falar, talvez fosse sua última chance.

— A... á... gua — disse o menino com um esforço considerável.

Suas forças o abandonaram. Ele tentou completar o que pretendia dizer, mas não conseguiu.

— O que tem a água? — perguntou o médico. — Não se esforce muito, não fará bem para você.

O menino respirou fundo, se concentrou.

— Minha amiga desligava os aparelhos que eram importantes... — começou a dizer o menino.

— O que tem haver os aparelhos com a água?

— ... para manter vivas as pessoas. Às vezes ela aprontava com alguns médicos que também eram importantes para manter vivas as pessoas.

O menino falava como se fosse a última coisa que diria em vida. Ele tinha uma vaga noção de que falava e do que falava.

— Não estou entendendo — disse o diretor do hospital demonstrando certo desespero.

— Você não está dizendo coisa com coisa. “O que fez esta sua amiga afinal?”

Uma figura apareceu no quarto; ao lado do menino; segurou-lhe a mão. Para o menino a imagem era bem nítida, para o diretor do hospital não era nada mais do que uma imagem borrada, como uma tevê mal sintonizada.

O menino começou a balançar a cabeça; rápido, forte e falava:

— Não... não... não era o suficiente? — lágrimas. — Você precisava de mais. Por quê?

A garota também começou a chorar. Apertou mais a mão do menino.

O diretor do hospital, que já não estava gostando do assunto, agora demonstrava um nervosismo altamente contido. Ele se encontrava em uma situação da qual não gostava: fazia parte do enredo de uma peça de teatro, nos últimos atos ele era um dos protagonistas, mas não detinha total controle da situação, o destino da encenação não cabia a ele escolher. E ainda havia aquela imagem borrada. Ele tinha uma noção vaga do rosto, era conhecido, mas não conseguia relacionar a imagem borrada a algum rosto conhecido.

— A água — começou o menino — está EN...

As últimas palavras do menino não saíram. Os seus olhos fecharam. O diretor do hospital não tentou fazer nada, sabia que nada poderia ajudar. A imagem borrada ficou com parte do corpo nítida, a mão que segurava a mão do menino. A mão ergueu até o diretor do hospital um bilhete, [escrito a mão]:

Um dos médicos deste hospital dopava-me, e aproveitava minha vulnerabilidade para abusar do meu corpo. Contra ele eu jurei que moveria o mundo. Quando finalmente morri, coloquei em ação minha vingança. Atrapalhei a vida daquele médico e quando acabei com ele, voltei-me contra o resto do hospital.
O garoto internado no quarto 8-A ajudou-me a ver que tudo o que fazia era errado. Mas já era tarde, a água do hospital já havia sido envenenada.
Juliana

O diretor do hospital olhou onde estava Juliana, não viu nada.

Rapidamente a água do hospital foi enviada para analise. Estava envenenada; o veneno era fraco. O antídoto foi comprado e administrado antes que uma tragédia se completasse.

Estou melhor…

Paulo Setúbal (Alma Cabocla) 1


CHIQUITA

"Bom dia! Sempre bonita?"
— É assim que eu vou, de manhã,
Saudar a linda Chiquita,
Que, toda em frios, tirita
No seu vestido de lã.

Maneiras brandas e amenas,
Olhos de negro fulgor,
Chiquita, a flor das morenas,
Com seus quinze anos apenas,
É um mimo de graça e amor.

De estranho tédio ferida
No seu colégio francês,
Quisera, langue e abatida,
Mudar um pouco de vida,
Passar nos campos um mês.

E em festa e risos, agora,
Nos ares bons do sertão,
Chiquita se revigora,
E alegra-se, e viça, e cora,
Como uma rosa em botão.

Mal surge, fresca e orvalhada,
No céu azul, a manhã,
Saímos nós pela estrada,
Com alma leve, e dourada
Pela alegria mais sã.

Que graça!... Ela tudo admira:
O campo, as roças, os bois.
Às vezes passa um caipira,
Que, com espanto, nos mira,
E fica a rir de nós dois!

Em casa, o dia inteiro, ela
Faz mil perguntas pueris.
Ah, como é ingênua e singela!
Conversa. Ri. Tagarela.
É um pássaro feliz!

Sol a pino, a todo transe,
Quer ir saltar no café;
E à volta, sem que descanse,
Começa a ler um romance,
Ou trabalhar num croché

De quando em quando, um espinho
Sangrar o peito me vem.
A tarde inteira, sozinho,
Sentado ao pé do caminho,
Fico a lembrar-me de alguém.

Eis que ela chega, de branco,
Cabelo negro, em bandós;
Festiva, num riso franco,
Ali, no pobre barranco,
Sentamos os dois a sós...

Na tarde azul, merencória,
Dum sossego espiritual,
Chiquita, como uma glória,
Repete-me toda a história
Da vida de colegial.

Então, nesse ermo pacato,
Ela, menina e mulher,
Relembra, fato por fato,
As diversões do internato,
Os ralhos da Notre-Mère...

Fala... E eu, ouvindo a macia
Brandura do seu falar,
Sinto, no olhar que me envia,
A doce melancolia
Do seu nostálgico olhar.

Não há feitiço que prenda
Como o dulçor dessa voz.
Assim, sem que ela o compreenda
Chiquita é o sol da fazenda,
É a festa de todos nós!

NHÔ JOÃO, O TROPEIRO

Por essas noites de frio,
Batidas de água e tufão,
Num rancho, à beira do rio,
Eu me quedo, horas a fio,
A conversar com nhô João.

É um velho... Rude e trigueiro,
Envolto num ponche azul,
Fumando, a olhar o braseiro,
Começa o antigo tropeiro
Contar-me histórias do Sul.

Ao longe, muito a distância,
Os tempos perdem-se já,
Em que ele, todo arrogância,
Ia de estância em estância,
Buscando tropas por lá.

Na sua besta tordilha
De manchas brancas no pé,
Nhô João, tocando a tropilha,
Cortava muita coxilha
Para chegar em Bagé!

E lá, de tais cercanias,
Ele, viril rapagão,
Puxava, dias e dias,
Pontas de mulas bravias.
Para vender no sertão.

Que linda! Assim que a alvorada
Tingia o céu de listrões,
Já a tropa, a chucra manada,
Trotava ao longo da estrada,
Por entre a grita dos peões:

Eh mula! Vorta! Caminha!
E os ecos vibravam no ar,
Enquanto, lerda e sozinha,
Ia na frente a madrinha
Com seu cincerro a tocar...

Que vida simples e honesta!
Como era bom, no verão,
Ter o descanso da sesta,
No meio duma floresta,
À beira dum ribeirão!

À tarde, quando caía
A sombra crepuscular,
Era de ver a alegria,
Com que a peonada escolhia
Um sítio para acampar.

Então, descendo as bruacas,
Queimados, fulvos de suor,
Sobre improvisas estacas,
Erguiam logo as barracas,
Soltando a tropa em redor...

Ah, nada mais delicioso,
Ah, nada mais doce então,
Do que, na calma do pouso,
Ter um churrasco cheiroso,
E a cuia de chimarrão!

E entre histórias de rodeio,
Contos, gauchadas febris,
Aos poucos, num devaneio,
Sobre os pelegos do arreio,
Dormir um sono feliz...

E o velho, a voz rude e grossa,
Relembra com efusão:
"Que viage... Êta festa — nossa!
— No dia em que Ponta Grossa
Despontava no espigão..."

A história sempre ele acaba,
Pintando, com muita cor,
As feiras de Sorocaba,
Onde encontrara uma "diaba"
Por quem morrera de amor...

Assim, lembrando o passado,
Nhô João, com frio desdém,
Termina desconsolado:
"Hoje tá tudo mudado!
Vem tudas coisa no trem…

E ali, no humilde pardieiro,
Envolto num ponche azul,
Saudoso, olhando o braseiro,
Conta-me o velho tropeiro
Longas histórias do Sul...

Fonte:
SETÚBAL, Paulo. Alma Cabocla. Belém,PA: NEAD – Universidade da Amazônia.

Nilto Maciel (A Velha Guarda da Literatura Cearense)


Desde muito jovem, meti na cabeça duas ideias ousadas: escrever bem e publicar livros. Não consegui realizar a primeira, por mais que tenha tentado. Mas não me aventurei como outros: não li todo o essencial, não estudei gramática e línguas, fui preguiçoso e relapso nesses erros. A segunda ideia se concretizou aos poucos, embora tardiamente. O primeiro livrinho eu o editei aos 29 anos de idade. O segundo o Estado o publicou sete anos depois. Aos 37 anos tive o privilégio de assinar contrato com a editora sulista Mercado Aberto para a edição da novela A guerra da donzela, com distribuição nacional. Só então meu nome chegou a alguns jornais e ao conhecimento de críticos e escritores do Ceará (onde nasci), de Brasília (onde morava) e outros rincões.

Desde muito jovem, meteram-se na minha cabeça alguns dos melhores escritores estrangeiros e brasileiros. Primeiramente na escola: Liceu do Ceará, Ginásio Salesiano de Baturité, Colégio Capistrano de Abreu (Fortaleza). Os livros escolares da disciplina Português traziam poemas, contos e capítulos de romances dos principais escritores brasileiros e portugueses. E eu, de tanto os ler, cheguei a decorar (sou de péssima memória) alguns trechos, como o soneto “Língua portuguesa”, de Bilac, e o conto “Suave milagre”, de Eça. Do Ceará apareciam, nesses compêndios, somente Juvenal Galeno, com “Cajueiro pequenino”, e Alencar, com fragmento do Iracema. Não lembro de outros.

Apesar dessa carência escolar, nos jornais eu lia todos os mais notáveis poetas e prosadores vivos nascidos no Ceará. Alguns vindos do século anterior: Cruz Filho (1884-1974), Júlio Maciel (1888-1967), Otacílio de Azevedo (1896-1978), Herman Lima (1897-1981) e Carlyle Martins (1899-1986). Estes não os vi nunca. O primeiro e o segundo porque só passei a frequentar o mundo real da literatura por volta de 1976, quando surgiu a revista O Saco. O pai de Sânzio de Azevedo me parecia inatingível, como se vivesse além do Olimpo. O autor de Tigipió vivia no Rio de Janeiro. A poesia de Carlyle não me causava vontade de o conhecer.

A um segundo elenco pertenciam os mais novos que estes cinco, alguns oriundos do Grupo Clã, como Moreira Campos, que em 1960 (provável data em que me iniciei na leitura de suplementos literários) completara 46 anos de vida. Mas também os nascidos um pouco depois, como Francisco Carvalho, que contava apenas 33 anos. Poucos deles, no entanto, cheguei a ver, ouvir e com eles conversar. Com o contista de Vidas marginais mantive alguma correspondência. Encontramo-nos poucas vezes. Na crônica “Mestre Moreira Campos” relato essa amizade. De Braga Montenegro (1907-1979) nunca me aproximei. Mas guardo a única comunicação minha com ele: uma carta. Travei conhecimento também com Antonio Girão Barroso (1914-1990), nos anos 1970, ele ainda ativo no jornalismo. Andava sempre de paletó, muito respeitado pelos mais jovens. Estive com Eduardo Campos (1923-2007) somente depois de meu regresso a Fortaleza, ocorrido em 2002. Mantivemos boas conversações na Ceará Rádio Clube e no Instituto Histórico, Geográfico e Antropológico do Ceará. Ofereceu-me alguns de seus livros. Com José Alcides Pinto (1923-2008) tive diversos encontros. Alguns deles exponho na crônica “As galhofas de José Alcides Pinto”.

Dos vivos (em 2010) daquele tempo restam poucos, como Caio Porfírio Carneiro (1928) e Francisco Carvalho (1927). Rememoro a amizade deles comigo nas crônicas “O copo azul do menino Caio” e “Francisco Carvalho: utopia e eutopia”. Artur Eduardo Benevides (1923) está neste rol. Dele ganhei livros e recebi cartas, quando eu morava em Brasília. Escreveu generoso artigo, publicado em jornais e
revistas, a respeito de minha pequena obra: “Dois contistas cearenses”, no qual se refere a mim e a José Hélder de Souza. Conversamos pouco. Moacir C. Lopes (1927) não vi ainda, nem com ele me correspondi. Carlos D’Alge (1930) avistei em raras ocasiões. Talvez tenhamos trocado duas palavrinhas durante lançamento de algum livro. São os vivos da minha adolescência. Os remanescentes daquela geração de homens dedicados à leitura dos clássicos e à realização de obras literárias, sejam elas de maior ou menor valor estético.

Os demais estão mortos e não tive a satisfação de sequer ver ou ouvir uma palavra que fosse: Jáder de Carvalho (1901-1985), Edigar de Alencar (1901-1993), Carlos Cavalcanti ou Caio Cid (1904-1972), Filgueiras Lima (1909-1969), João Jacques (1910), Heitor Marçal (1910), Rachel de Queiroz (1910-2003), Fran Martins (1913-1996), João Clímaco Bezerra (1913-2006), Gerardo Mello Mourão (1917-2007), Otacílio Colares (1918-1988), Aluizio Medeiros (1918-1971), Milton Dias (1919-1983), Durval Aires (1922-1992), Lucia Fernandes Martins (1926) e outros. Uns porque viviam longe de Fortaleza; outros porque me pareciam inacessíveis, até 1977, quando fui embora do Ceará. Seriam muito grandes para mim. Além do mais, nunca fui de ansiar conhecer pessoalmente escritores. Para mim me bastam suas obras.

Quase todos eles apresentavam, com frequência, poemas, contos, crônicas, artigos e pequenos ensaios de crítica literária em jornais de Fortaleza, nos anos 1960. Certamente, antes desse tempo, já o faziam. Mas disso eu não sabia. Eu os lia com sofreguidão de leitor adolescente, cioso de conhecimento e novidade. Depois, aos poucos, fui me aproximando de seus livros ou de parte de suas obras, quer em antologias, quer em livros individuais. Nunca deles como pessoas.

Depois deles vieram Geraldo Markan (1929-2001), que conheci ao tempo da revista O Saco e do Grupo Siriará, e com quem devo ter trocado algumas palavras, e Juarez Barroso (1934-1976), que não cheguei a conhecer. O único vivo dos nascidos por volta de 1930 é Mário Pontes (1932). Andei me correspondendo com ele no final dos anos 70. Encontramo-nos recentemente em Fortaleza. Lembrou-me o artigo que escrevi a respeito de seu livro Milagre na salina. Pareceu insatisfeito comigo. Talvez eu tenha sido maldizente. Penitencio-me por isso. José Hélder de Souza (1931-2004) conheci em Brasília. Frequentávamos bares nos quais se davam encontros semanais dos membros da Associação Nacional de Escritores. Embora mais velhos que eu, estes não pertencem à velha guarda, pois surgiram como escritores quando eu já publicava livros, embora não escrevesse bem como eles.

Fortaleza, março de 2010.

Fonte:
http://www.niltomaciel.net.br/node/61

Monteiro Lobato (O Saci) VII – A Sacizada; VIII – A Onça


VII – A sacizada

— É aqui, dentro destes gomos, que se geram e crescem meus irmãos de uma perna só — disse o saci. — Quando chegam em idade de correr mundo, furam os gomos e saltam fora. Repare quantos gomos furados. De cada um deles já saiu um saci.

Pedrinho viu que era exato o que ele dizia e mostrou desejos de abrir um gomo para espiar um sacizinho novo ainda preso lá dentro.

— Vou satisfazer a sua curiosidade, Pedrinho, mas não posso revelar o segredo de furar os gomos; portanto, vire-se de costas.

O menino virou-se de costas, assim ficando até que o saci dissesse — “Pronto!” Só então desvirou-se e com grande admiração viu aberta num gomo uma perfeita janelinha.

— Posso espiar? — perguntou.

— Espie, mas com um olho só — respondeu o saci. — Se espiar com os dois o sacizinho acorda e joga nos seus olhos a brasa do pitinho.

O menino assim fez. Espiou com um olho só e viu um sacizinho do tamanho de um camundongo, já de pitinho aceso na boca e carapucinha na cabeça. Estava todo encolhido no fundo do gomo.

— Que galanteza! — exclamou Pedrinho. — Que pena o povo lá de casa não estar aqui para ver essa maravilha!

— Esse sacizinho ainda fica aí durante quatro anos. A conta da nossa vida dentro dos gomos é de sete anos. Depois saímos para viver no mundo setenta e sete anos justos. Alcançando essa idade, viramos cogumelos venenosos, ou orelhas-de-pau.

Pedrinho regalou-se de contemplar o sacizete adormecido e ali ficaria horas se o saci o não puxasse pela manga.

— Chega — disse ele. — Vire-se de costas outra vez, que é tempo de fechar a janelinha.

Pedrinho obedeceu, e quando de novo olhou não conseguiu perceber no gomo do taquaruçu o menor sinal da janelinha.

Justamente nesse instante um formidável miado de gato feriu os seus ouvidos.

— É o jaguar! — exclamou o saci. — Trepemos depressa numa árvore, porque ele vem vindo nesta direção.

Pedrinho, tomado de pânico, fez gesto de subir na primeira árvore que viu à sua frente, um velho jacarandá coberto de barbas-de-pau.

— Nessa, não! — berrou o saci. — É muito grossa; o jaguar treparia atrás de nós. Temos que escolher uma de casca bem lisa e tronco esguio. Aquele guarantã ali está ótimo — concluiu, apontando para uma árvore bastante alta e magrinha de tronco, que se via à esquerda.

Subiram — e nunca em sua vida Pedrinho subiu tão depressa em uma árvore! Tinha a impressão de que o terrível tigre dos sertões estava atrás dele, já de boca aberta para o engolir vivo. Mas era ilusão apenas, filha do medo, pois a fera miou outra vez e o saci calculou pelo som que ainda deveria estar a cem metros dali. Pedrinho ajeitou-se como pôde numa forquilha da árvore, lá ficando quietinho ao lado do saci.

Preparou-se para ver uma fera sobre a qual vivia falando, mas sem ter a respeito idéia justa. Ia ver a famosa onça-pintada, esse gatão que muito lembra a pantera das matas da índia.

VIII – A onça

O miado soou de novo, desta vez bem perto, e logo depois surgiu por entre as folhas a cabeça de uma formidável onça-pintada. Era um animal de extrema beleza, quase tão grande como o tigre de Bengala. Parou; farejou o ar. Depois ergueu os olhos para a árvore. Dando com o menino e o saci lá em cima, soltou um rugido de satisfação, como quem diz: “Achei o meu jantar!” E tentou subir à árvore. Vendo que isso lhe era impossível, sacudiu o tronco tão violentamente que por um triz Pedrinho não veio abaixo, como se fosse jaca madura. Mas não caiu, e a onça, desanimada, resolveu esperar que ele descesse. Sentou-se nas patas traseiras e ali ficou quieta, só movendo a cauda e passando de quando em quando a língua pelos beiços.

— Ela é capaz de permanecer nessa posição três dias e três noites — disse o saci. — Temos que inventar um meio de afugentá-la.

Olhou em redor, examinando as árvores como quem está com uma idéia na cabeça. Depois saltou para a mais próxima e foi de copa em copa até uma que estava cheia de vagens. Escolheu meia dúzia das mais secas e voltou para junto do menino.

— Apare nas mãos o pó que vou deixar cair destas vagens. — disse ele, abrindo com os dentes uma delas.

Pedrinho estendeu as mãos em forma de cuia e o saci sacudiu dentro um pó amarelado. O mesmo foi feito com as outras vagens.

— Bem. Agora derrame este pó bem a prumo, de modo que vá cair sobre a cara da onça.

Pedrinho colocou-se em linha vertical com a fera e derramou de um jato o pó amarelo.

Foi uma beleza aquilo! Quando o pó caiu sobre os olhos da onça, ela deu tamanho pinote que foi parar a cinco metros de distância, sumindo-se em seguida pelo mato adentro, a urrar de dor e a esfregar os olhos como se quisesse arrancá-los.

Pedrinho deu uma risada gostosa.

— Que diabo de pó é este, amigo saci? — perguntou. — Vejo que vale mais que uma boa carabina...

— Isso se chama pó-de-mico. Arde nos olhos como pimenta e dá na pele uma tal coceira que a vítima até se cocará com um ralo de ralar coco, se o tiver ao alcance da mão.

Pedrinho escorregou da árvore abaixo, ainda a rir-se da pobre onça. Mas não se riu por muito tempo. Mal tinha dado alguns passos, recuou espavorido.
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continua... IX - A Sucuri; X – A floresta
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Viagem ao Céu & O Saci. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. II. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa