quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Nilto Maciel (Os três botões)

Questão de coragem, participar da brincadeira, porque tanto vocês poderão encontrar o jardim dos prazeres como a cela das dores. Ou ambos, na mesma jornada. E não há como prever nada. O resultado não depende apenas das três teclas.

Ainda ontem uma senhora saiu daí contentíssima, como se tivesse conhecido o prazer pela primeira vez. E sabem quais os botões que ela acionou? Struthio camelus, I Ching e Lesbos. Tudo por acaso, porque mal sabia ler. Viu-se acariciada das mais variadas maneiras por encantadora criatura. Não sei se jovem ou idosa, se macho ou fêmea. Falou-me da maciez do corpo do desconhecido. Tudo fica registrado aqui em videocassete. O resto o cliente me conta, se quiser. Depois reduzo a experiência a escrito nessas fichas: nome, idade, naturalidade, dia e hora da experiência, teclas acionadas, perguntas e respostas da entrevista com o recepcionista, etc.

Assim, uma amiga desta senhora comprimiu as mesmas teclas e saiu chorando, toda ensanguentada. Durante quase meia hora uma grande ave fêmea, semelhante a uma avestruz, lhe bicou os seios, o ventre, as nádegas. Para mim a causa dessa reação se deveu ao fato de a segunda madame não ter sabido responder à pergunta sobre a nacionalidade de I Ching, pergunta essa erigida à categoria de condição essencial ao comportamento da criatura invocada.

Ao pressionar as teclas, a porta se abre e a pessoa passa à Sala das Mágicas. Até então não está decido quem a recepcionará. Um olho examina as características do visitante e pode logo escolher o seu anfitrião. Às vezes o recepcionista-inquisidor lhe faz perguntas e, dependendo das respostas, lhe elege a companhia.

Uma historiadora muito conhecida acionou o botão Salamina e mais outros dois. Não deu outra – o recepcionista leu-lhe um texto, um diálogo, e solicitou-lhe que reconhecesse a personagem não nominada no colóquio. Escutem o texto:

“Temístocles – Tu eras amante de Aristides?

  – Não o nego. Isso não impediu, porém, que eu o repudiasse quando percebi a sua omissão quanto ao destino de Atenas. Ele simplesmente fazia oposição a ti.

Temístocles – E que achas do ostracismo a que o submeti?

– Concordo com a punição. Ele não evitaria a batalha de Salamina.

Temístocles – Então queres evitar a batalha de Salamina?

  – Quero, daí não concordar também com tua muralha de madeira.

Temístocles – Desejas a derrota de Atenas?

  – Nem a derrota nem a vitória. Desejo a paz.

Temístocles – Mas a paz é impossível. Xerxes conta com uma poderosíssima frota. Não devemos nos defender? És por acaso espiã persa?

  – Tu não me entendes. Não quero nada disso. Quero o fim da guerra. Quero evitar a batalha de Salamina. Não vês que essas guerras estão destruindo a Grécia e a Pérsia? Que ganhamos com a primeira guerra médica? Mileto e Erétria foram arrasadas. Que ganhamos com essa segunda?

“O Helesponto foi atravessado, a Grécia invadida e o Templo de Minerva incendiado. De que adiantou o heroísmo de Leônidas e seus trezentos espartanos nas Termópilas?”

Temístocles – Mas aquilo foi traição. Ou não sabes disso?

– Como não vou saber? De qualquer forma, fomos massacrados como ovelhas.

Temístocles – O que queres que eu faça? Diga, pois serei capaz de todos os sacrifícios para te atender.

– Conheço todos os segredos e mistérios...

Temístocles – Disseste-me que nossa salvação está no mar. A muralha de madeira são os trezentos navios. Com eles vamos derrotar Xerxes, assim como derrotamos Dario.

– Não estou diminuindo teu valor. Poderás fazer tanto ou mais que Milcíades. Mas não nos interessa a vitória. Não nos interessa a guerra. Devemos e podemos evitar mais uma batalha.

Temístocles – Como, louca?

– Vou dizer. Mande Xerxes de volta a sua Pérsia. Com sua esquadra e seus soldados, logicamente. Em seguida, transforme a muralha de madeira em peças de museu. Chama-se a isso desarmamento.

Temístocles – E que seria de nós, soldados, guerreiros? Estás louca de verdade?

– Nesse caso, destrua Salamina.

Temístocles – Não entendo. Salamina é nossa. Como vamos destruir o que é nosso?

– Estou falando de escoamento das águas da baía. Drenagem. Conheces o termo e o processo? Como poderão navios navegar e batalhar no seco?

Temístocles – E essas águas vão para onde?

– Pode-se fazer coisa melhor. Fechar as entradas e transformar Salamina num imenso lago azul.

Temístocles – Maravilhosa ideia!

– Ou então mandar terraplená-la com terras do Peloponeso. Não, o Peloponeso é muito distante. Pode-se utilizar os montes Olimpo e Parnaso. Ou não são suficientes para terraplenar Salamina?

Temístocles – Estás dizendo asneirices. Primeiro as águas do mar invadiriam nossas terras. Depois, seria cometer a mais criminosa das ofensas aos deuses.

– Podemos então transportar uma ilhota qualquer dessas e despejá-la em Salamina. Nesse caso não haveria perigo de as águas invadirem nossas terras.

Temístocles – São absurdas as tuas propostas. Estás louca.

– Pois se insistires nessa batalha suicida, eu te deixarei com tua glória feita de sangue e dormirei mil noites com o poderoso Xerxes."

Quem souber a resposta poderá viver longas horas de delícias, tal como sucedeu à nossa historiadora. Tem algum historiador aí? Esperem, deixem eu explicar mais. Muitas vezes não basta dar resposta acertada.

Temos o exemplo de um jovem leitor de boa literatura que, mesmo respondendo, com acerto e desembaraço, a um verdadeiro questionário sobre os livros e autores mais importantes, teve de se submeter às mais aberrantes práticas sexuais, por desconhecer o romance A Guerra da Donzela.

Notem, no entanto, que havia escolhido as mesmas teclas de seu antecessor (Renoir, Sapho e Teodora), e este viveu mais de uma hora de intensos prazeres com três banhistas.

Tenho uma explicação para as duas experiências. O sadismo vivido pelo rapaz está em “Sapho”. Alphonse Daudet se transmudou em Alphonse-François, o Marquês de Sade, como pena pelo erro de conhecimento do arrogante leitor de clássicos.

A razão de o segundo não ter encontrado Daudet? Escutem: pesou mais o quadro “A banhista”, de Renoir.

Outra explicação para os curiosos: por associação de ideias, o inquisidor quis saber sobre A guerra da donzela porque Teodora lembra a novela popular História da Donzela Teodora.

Outra hipótese: os nomes dos dois aventurosos jovens podem ter influenciado o rumo dos acontecimentos. Às vezes os nomes das pessoas nada significam. Assim, eu tinha aqui o registro de três moças de nome Rosana. A quarta a fazer a experiência me pediu para ver as fichas de suas homônimas. Ao verificar os belos resultados obtidos por todas as outras, sorriu. As três se igualavam. Na dúvida, repetiu os botões da segunda, como poderia ter optado pelos da primeira ou da terceira. Acionou, pois, Chimpanzé, Molosso e Cruviana. Nem sequer perguntou pelo significado destas palavras. Mal entrou, ouvi-lhe os gritos. Três sátiros a seviciaram por longos minutos, deixando-a estragada para o resto da vida.

Não adianta, pois, guiar-se pelos outros: o destino da gente não depende de sabedoria nem de palavras bonitas. Ele está na gente e fora da gente. Também as coisas não acontecem por acaso. Pelo contrário, dependem de condições. Aliás, vários estudiosos têm vindo aqui na tentativa de descobrir as fórmulas mágicas do prazer total. É o caso de Scherbatov e Sobakewich, os quais têm desenvolvido algumas teorias.

Segundo esses cientistas do prazer, as teclas Aminoácido, KM e Sexu são as mais propícias a um bom resultado, dependendo do acionador. Assim, as pessoas mais idosas dificilmente encontrarão prazer ideal, dado estarem corrompidas.

Um dos casos relatados pelos dois especialistas é o da moça que bebia muito coca-cola e encontrou pela frente um velho barbado e fedorento. Não aconteceu nada de excepcional. Apenas se viu obrigada a ouvir durante horas as aventuras sexuais vividas pelo ancião.

Tenho a ficha de caso semelhante: neste, porém, a pessoa, embora bebesse coca-cola, não chegava ao vício e acabara de frequentar uma igreja. Tocou as teclas dos cientistas e se viu possuir por um ente (o diabo, segundo ela), sob a ameaça de introdução de um garfo em brasa.

Clientes mal avisados decoram os nomes ou símbolos gravados nos botões e cometem pequenos erros fatais. Primeiro exemplo: um senhor comprimiu a tecla Sexo em vez de Sexu e durante alguns minutos enfrentou o furioso Dom Sebastião. Outro trocou KM por Kilômetro e apenas correu atrás de uma louríssima alemã, até quase morrer de cansado, sem conseguir sequer tocar-lhe os cabelos.

Morro de rir quando me lembro daquele homem que não soube contar a História de João de Calais e terminou nos braços da insaciável velha Constança, tão repugnante que sinto um cheiro de carniça só em pensar nela.

Nossa brincadeira é muito cheia de esfinges. Até hoje ninguém conseguiu decifrar o enigma proposto no texto que vou ler. O inquisidor quer saber apenas o título do livro mencionado. Pergunta também o nome do autor. Escutem:

“A primeira carta elogiosa por ele recebida trazia a assinatura de Vladimir Illich Ulianov, ainda em 1905. Para Lenin, tratava-se de obra tão importante quanto O Capital, de leitura indispensável a todo comunista. Uma longa carta, cheia de ensinamentos.

No mesmo ano chegou-lhe uma carta de Albert Einstein. Nela o gênio alemão expunha toda a teoria da relatividade e, ao mesmo tempo, pregava a necessidade da destruição do inimigo número um da humanidade – o leviatan de que ele próprio fazia parte. Afora isso, a carta vinha prenhe de elogios ao livro.

Só alguns anos mais tarde, por volta de 1930, chegou-lhe a terceira carta elogiosa – verdadeiro panegírico, com frases retumbantes, como: “Seu livro é a Bíblia do século XX”. Escreveu-a Getúlio Vargas.

A quarta carta elogiosa é de Irwin Shaw. O famoso cenarista e romancista se propunha transformar o livro num longa-metragem.

A seguir, outro brasileiro voltou a fazer elogios ao livro. Dizia Santos Dumont: “Você revelou até que ponto uma arma pode ser tão mortífera. Isso é um voo de gênio". Thomas Mann o honraria com a sexta carta elogiosa. Trata-se do primeiro texto do romancista após o último retoque ao Sofrimento e grandeza de Richard Wagner. Considerava o livro como a síntese da decadência da humanidade. Superior a Os Buddenbrook.

Finalmente, uma carta de Noel Rosa, escrita em versos, fechava o ciclo dos elogios.

Afora essas cartas, recebeu ele milhares de outras. Nestas, no entanto, qualificavam-no de escritor mesquinho, panfletário nojento, língua de fogo, bandido da literatura e outros apelidos menos brandos.

Quando sentiu a morte se aproximar, não por muita velhice, que talvez não existisse nem pouca, releu as oito cartas famosas. Idealizou publicá-las. Necessitava reacender a chama da glória em declínio depois da morte de seus oito amigos. Onde encontrá-las, porém? Misturara-as às milhares de cartas impiedosas. Carecia de forças para mergulhar naquele mar de cartas, penetrar naquela montanha de papéis e, assim, encontrar os oito atestados de sua genialidade.

Sentou-se para pensar e rememorar. Lembrou-se do Brasil. Que país! Lá morou durante o Estado Novo. País de gênios: Getúlio Vargas, o estadista; Santos Dumont, o inventor; Noel Rosa, o artista. Jamais  esquecera esse gigante. Para lá voltaria um dia. Sua última morada. Depois da publicação das cartas. O povo iria chorar ao reler Vargas. Faria samba da carta de Noel. E Santos Dumont teria uma biografia esmerada.

Recordou Thomas Mann e passou à Alemanha, onde também vivera uns anos. Hitler, o César do século XX. Einstein, o maior gênio da física. Voltou a Thomas Mann, esse alemão-brasileiro, o maior escritor dos últimos tempos. E dela fugira, no entanto. Goebbels conseguiu ver em seu livro idéias anti-nazistas.

Relembrou os outros dois amigos. Lenin, que pena ter morrido tão cedo! O primeiro a elogiar sua obra. Um gênio político! Irwin Shaw, que grande romancista!

Satisfeito com sua memória, mergulhou na papelada, com um único pensamento: achar, a todo custo, a própria vida, a própria vida da humanidade – as oito cartas”.

Alguns de vocês faz ideia do título do livro? E do nome do autor?

Às vezes o cliente sai feliz e quer repetir a façanha. Preme as mesmas teclas e se mete em apuros. Não por acaso. Ora, o tempo é outro, o mundo não é mais o mesmo. Ninguém pode prever nada, embora os fatos não ocorram por acaso, eu já disse. Assim, nas mesmas condições, duas pessoas podem encontrar os mesmos personagens. É o caso de Osvaldo e Januário. Os nomes são diferentes, mas ambos contavam à época das experiências 31 anos de idade, ambos já haviam lido o conto de Trancoso “As irmãs invejosas” e pressionaram os botões Poditã, Fubá e Marduk. Ambos se saciaram por longas horas as delícias de uma formosa cabocla. A partir desse dia muita gente procurou ler os contos de Trancoso e os dois rapazes se associaram para a criação de uma editora para publicação de literatura popular. Mas ninguém mais conseguiu repetir o feito deles. Uns tinham realmente 31 anos, haviam lido o conto e apertaram as famosas teclas. Porém não se chamavam Osvaldo nem Januário, não conheciam Brasília, nem se preocuparam com vir aqui no dia 30 de janeiro. Quem sabe, os dados necessários a um bom resultado eram esses.

No último 30 de janeiro esteve aqui um rapaz de 31 anos, vinha de Brasília, carregava debaixo do braço uma cópia de “As irmãs invejosas” e se chamava Osvaldo. Tocou aquelas teclas e meia hora depois, furioso e abatido, contava: fui atacado por um lobisomem.

E ninguém pode negar nada, porque estão aqui as fitas.

Agora, o primeiro da fila queira fazer funcionar seus botões. E boa sorte.

Fonte: Nilto Maciel. Babel. Brasília/DF: Editora Códice, 1997. Enviado pelo autor.

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Edy Soares (Manuscritos (Di)versos) – 38: Desilusão

 

Mensagem na Garrafa – 35 –


Tere Penhabe
Santos/SP

DEVANEIOS

Eu queria passear no mundo
num voo mágico de esperança
encontrar minha auréola perdida
que o vento carregou nem sei pra onde.
Eu queria retocar meus próprios passos
de pés tortos e caminho incerto
buscar ao longe uma ilusão que exista
que vá além do sonho de se refazer.

Ah, como eu queria reviver!...
Emprestar de uma estrela distraída
o brilho que lhe sobra e me cobrir
e quem sabe finalmente nesse dia
em vez de recordar, viver!
Era tudo que eu queria...
Ter a mão da vida em minhas mãos
e poder escrever por linhas tortas

com letras tortas também...
Trazer o céu mais para perto de mim
recostar de leve a cabeça numa nuvem
e sonhar... sonhar... sonhar...
Depois levar meu sonho para o mar
jogar nas ondas e vê-lo flutuar
até que o horizonte o engolisse
ou antes disso eu pudesse realizá-lo.

Luiz Fernando Costa Daher (Dia Perfeito)

Acordei cedo, disposto e alegre; o despertador nem tocou e ninguém me chamou. Liguei a televisão e nos Bons Dias da vida, não se ouvia desgraças, nem confusão... só boas notícias...

Não se falava de corrupção, nem de conspiração. Não se comentava de Presidentes viajando e esquecendo a nação, nem de economia fracassando, de gente perdendo o emprego, prisões em flagrante ou discursos em vão.

Na cozinha a esposa, sorria, fazendo o café e esquentando o pão... os filhos brincavam, já despertos, tomando o leite com mamão e sorvendo todo o pão.

Participei dessa comunhão, com a xícara na mão , com toda a calma, já que tinha tempo de sobra e muita paz na alma...

Descemos à garagem, o elevador já nos esperava, não demorou... o carro logo pegou, em instantes já estávamos na calçada...

O Trânsito estava tranquilo, o dia ensolarado.. as pessoas não tinham pressa nem correria. Fiquei pensativo! O que aconteceria?

Deixando as crianças na escola, tinha até lugar pra estacionar, não tinha congestionamento, nem fila dupla. Ninguém tocou a buzina. Você pode imaginar?

No escritório todos sorriam, o chefe já estava tranquilo, sorridente; a todos cumprimentava, perguntando da família.

Liguei o computador, pendurei o paletó, o sol entrava de mansinho, o som começou a tocar...

Não era o som da rua, de buzinas e gritos, era um acorde suave, de letras sensíveis... era uma musica profunda, de paz infinita.

Abri a caixa postal.... nem um email afinal.... o celular não tocou, tudo transcorria normal...

O Congresso funcionou, projeto de Lei foi votado... nenhum Deputado foi cassado..

Não recebi nenhum telefonema, de casa, nem mesmo pra uma conversa amena...

Pesquisadores descobriram a cura do câncer, fato sensacional.

Ninguém foi sequestrado, nenhum animal maltratado, o preço do petróleo baixou e o dólar estabilizou.

O dia passou, a tarde chegou..... hora de ir , afinal.

Colocando o paletó, desligando o computador.. o chefe de bom humor...

Toca o maldito despertador.. fico sem ação...... era tudo ilusão!

Já acordei insatisfeito, sonhei com um dia perfeito!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 
Formado em Direito, atuou como advogado para a Eletropaulo. Depois foi gerente na Bandeirantes Energia, depois na CPFL e depois na Rio Grande do Sul Energia. Trabalha na Assembleia Legislativa de São Paulo prestando Assessoria. Em Santo Ângelo, no Rio Grande do Sul, foi vice presidente da loja Maçônica Renascença IV, vice presidente da Associação Comercial e Industrial e Conselheiro do Clube Gaúcho.

Desde criança gosta de escrever e fazia da literatura sua companheira. Em 2005 passou a dedicar-se mais aos seus escritos e à divulgação deles sendo que algumas de suas crônicas foram publicadas no Jornal Bom Dia de Sorocaba e muito do seu trabalho encontra-se em sites literários, como o Recanto das Letras, por exemplo. Em 2005 participou da seletiva para fazer parte da “ 24ª Antologia de Poetas Contemporâneos “. Depois em 2006 esteve na obra “Novos Talentos da Crônica Brasileira”, na 28ª Antologia de Poetas Contemporâneos e “Os Donos do Mundo”, também da “Câmara Brasileira de Jovens Escritores”, e a coletânea Roda Mundo .

Fontes: cronica: http://sorocult.com/el/colunistas/ld/dp.htm. acesso em 02 fevereiro 2008.
biografia: http://sorocult.com/el/colunistas/ld/biografia.htm

Maria Nascimento Santos Carvalho (Trovas de Humor)


"A bruxa anda solta" aqui...
disse o meu genro e correu
quando entendeu que entendi
que a tal da bruxa era eu...
**********

A coroa quis casar
com um garoto glutão
e agora tem que provar
que entende bem... de fogão…
**********

Acusando a carestia,
sai quase nua , a vizinha,
e diz que é uma fantasia
boa, barata e fresquinha...
**********

A donzela em confissão,
diz que é moça inconformada,
porque fez muito arrastão,
mas nunca foi arrastada...
**********

A guiar num caminhão,
"barbeiro "como ninguém,
entrou mal na contramão,
mas veio o Guarda, e entrou bem!
********** 

A moça perdeu o rumo
quando o namoro esquentou...
E atrás da moita de fumo
quase que a cobra fumou...
**********

Com cara aportuguesada,
no Cartório: É brasileira?
E a mulher, muito invocada :
- uai moço, eu não: sou mineira!
**********

Comeu goiaba exultando,
mas quase esvaiu-se em baba,
quando viu se estrebuchando
meio bicho na goiaba...
**********

Ele ronca e não desperta
e a mulher por previdência,
deixa a porta sempre aberta,
para "casos" de emergência...
********** 

Foi pescar, mas preferiu
Por viagra, na isca, o ZÉ :
- no rio, nunca se viu
tanta manjuba de pé...
**********

Fungava a sogra com asma
e o genro dela já farto,
gritou: - Socorro! Um fantasma
está rondando o meu quarto...
********** 

Incurso em poligamia,
depois que foi condenado,
disse : - Credo! eu nem sabia
que já tinham me casado !
********** 

Meu vizinho briga à toa,
porque é um sujeito estourado,
mas, vendo a mãe da patroa,
perde logo o rebolado.
********** 

Minha sogra, honrando bem
seu conhecido conceito,
diz que genro sempre tem
abundância... de defeito.
********** 

Mostrando o corpo bem feito,
protestou em altos brados,
sentindo as mãos de um sujeito
testando os seus predicados...
**********

Na cama é amante perfeito,
já fora de garantia,
porque apresenta um defeito
só dorme, ronca e assobia...
********** 

No documento é solteira,
mas vendo a idade da dona,
diz a patroa encrenqueira:
solteira, não, solteirona...
********** 

O chofer ficou "por conta"
ao ser fechado na rua
por uma perua tonta
que guiava outra perua...
**********

O doutor ao ancião :
- mulherzinha lhe faz mal ?
- Doutor, se eu não sou anão,
por que não mulher normal ?
**********

O frango já não esquenta
quando a franga sai da linha...
afinal ele "comenta":
- galinha é sempre galinha...
**********

O Lalau tinha a mania
de assaltar Padre gordão,
porque sonhava algum dia
ser "Operário Padrão"...
********** 

O vizinho tem mania
de não pegar no pesado,
pois, quando chegar seu dia,
quer morrer bem descansado
**********

Pão-duro, morto-de-fome,
o meu vizinho Gastão
diz a todos que não come
com medo de indigestão ...
**********

Perto de oitenta e donzela
Ainda pede a Santo Antônio
pra que interceda por ela
nas tentações do Demônio...
**********

Quando a Sara viu o custo
do tratamento que fez,
foi tão violento o susto
que adoeceu outra vez !
********** 

Quando o peão, no chiqueiro,
tirou a bota do pé,
sentiu no cheiro outro cheiro
misturado ao do chulé !
********** 

Sendo um craque da "pelota",
quis subir pela parede,
ao ver sua "Maricota"
enroscada em outra rede...
********** 

Seu "hobby" era trabalhar,
mas tinha tanta preguiça
que, até pra se espreguiçar
ficava "enchendo linguiça"...
********** 

Tanto a coroa se pinta,
para fingir que é mocinha,
que afoga as rugas na tinta
e engrossa os pés de galinha.
********** 

Tem muitos "anos de estrada",
mas se fingindo inibida,
já foi muito mais testada
do que pista de corrida...
**********

Um gaiato de mau gosto,
vendo um gordo esbaforido,
disse: é suor no teu rosto
ou toicinho derretido! ?
**********

Velava o esposo ainda quente
mas sendo boa, a viuvinha,
convocou seu pretendente
para não chorar sozinha!...
********** 
Fonte: www.marianascimento.net/pages/trovash.htm. acesso em 6.01.2008.

Artur de Azevedo (Contrabando)


A Valentim Magalhães

CAPÍTULO 1

Geraldo casou-se muito novo, em 1871, aos vinte anos, e enviuvou aos trinta. Solteiro, foi um menino turbulento; casado, era um moço alegre: viúvo, tornara-se macambúzio. 

Foi para o pobre rapaz um golpe terrível e esmagador a morte da esposa querida, excelente senhora, bonita e bem educada, mais nova dois anos que o marido. Ele morreria também, se em 1874 não lhes houvesse nascido uma filhinha.

Órfão e sem parentes, Geraldo vive hoje apenas para essa criança, que vai fazer dezessete anos e é linda como os amores. Não a tem consigo, mas no próprio colégio, em que a mandou educar e de onde não a tirou ainda por não ter a quem confiá-la.

Aos domingos almoça e janta com ela, vai pela manhã buscá-la às Laranjeiras, e traz-a para casa em S. Cristóvão, depois de ouvirem ambos a missa das dez na matriz da Glória. À noite, leva-a para o colégio.

Nesses dias, a casa do viúvo - o convento, como lhe chamam os vizinhos – transforma-se; as janelas abrem-se, o piano desperta os ecos adormecidos da sala, e há flores por toda a parte. Depois que a menina sai, a casa readquire o seu aspecto sombrio e monástico.

Nos outros dias Geraldo consola-se da ausência de Margarida - é este o nome dela - esquecendo os olhos na contemplação do seu retrato, uma fotografia recente, emoldurada, que enfeita e alegra a parede da sala, por cima do piano. Infelizmente o viúvo não possui o retrato da morta, mas a filha parece-se tanto com a mãe, que a imagem de uma é bastante para aproximá-lo mentalmente de ambas, e confundi-las no mesmo carinho e na mesma saudade.

Geraldo é funcionário público. Ergue-se muito cedo, toma seu banho frio, lê os jornais e almoça. Depois do almoço vai para a repartição, de onde sai às três horas. Atravessa vagarosamente a rua do Ouvidor, parando defronte das vitrines, sem falar a ninguém, cumprimentando apenas os raros conhecidos que encontra. Às cinco horas está em casa; janta, acende um charuto - fumar é o seu único vício - e vai passar duas horas sentado numa poltrona, contemplando o retrato da filha. Às oito horas recolhe-se ao gabinete e lê até às onze. Deita-se então, e pega imediatamente no sono. Às vezes, vai buscar Margarida, leva-a ao teatro lírico, e acompanha-a ao colégio depois do espetáculo, - mas isso é raro. 

Além dele, há em casa uma cozinheira que dorme fora, e um fâmulo português, o José, homem de confiança, que acumula as funções de criado de quarto, copeiro e jardineiro. Geraldo faz questão do jardim por causa dos domingos:  Margarida gosta de flores.

CAPÍTULO 2

Estamos numa tarde de março de 1891. Geraldo dá um dos seus passeios habituais pela rua do Ouvidor; para defronte da vitrine do Preço Fixo, e sente alguém pousar-lhe a mão nos ombros. Volta-se, e reconhece o Tavares, que fora seu condiscípulo no colégio Marinho, - um grande estroina que se ensaiou sem resultado em três ou quatro profissões diversas, e tem agora muito dinheiro, ganho na rua da Alfândega em transações da Bolsa.

- Oh, Geraldo, andava morto por encontrar-te! Ia escrever-te amanhã...

- Estou às suas ordens.

- És ainda muito urso?

- Sou e serei. Bem sabes que há dez anos, desde que perdi minha mulher, perdi também toda a alegria, é só me comprazo na solidão e no silêncio. Se me encontras na rua do Ouvidor, é porque, depois de azoinado por este bulício, acho ainda mais deliciosa a paz do meu tugúrio.

- Bem, mas vais sacrificar-me um dia, um dia só, desse isolamento com que comprazes: hás de jantar comigo quinta feira.

- Eu?!

- Tu, sim; nesse dia faço quarenta anos, e quero reunir à mesa alguns amigos da minha idade.

- Sabes lá o que dizes, desgraçado! Os meus quarenta iriam ensombrar os seus! Pois queres à tua mesa contemplativo, um urso, como tu mesmo me classificas?

- Faço questão da tua presença!

- Não! não vou! não contes comigo! Há dez anos janto sozinho, ou, quando muito, em companhia de minha filha!

- Há dez anos que não jantas...

- Gosto de ti, sou teu amigo, considero-te muito, mas não terei o menor prazer neste jantar de anos.

- Oh, grande tipo, sê misantropo, mas - que diabo! - não sejas desse modo egoísta! Não se trata do teu prazer mas do meu, entendes tu? Exijo um sacrifício de tua parte, bem sei; mas, como te declaras meu amigo, tens o dever de te submeteres à minha vontade! Vens a contra gosto?... que me importa!... o essencial é que venhas! Quem te mandou ter quarenta anos! Aguenta-te!

CAPÍTULO 3

Na quinta feira aprazada Geraldo saiu da repartição às horas do costume e foi direto para casa. Não se calcula o espanto da cozinheira e do José quando o patrão lhes disse: Janto hoje fora.

O macambúzio foi ao seu quarto, mudou de roupa, lançou um olhar saudoso ao retrato da filha e saiu. Uma hora depois entrava em casa de Tavares, em Botafogo, e caía-lhe a alma aos pés: na sala, sentados aqui e ali, fazendo roda ao dono da casa, estavam quatro sujeitos e cinco mulheres elegantemente vestidas, empoadas, pintadas e cheias de joias e brilhantes.

Geraldo estacou entre os umbrais da porta e teve um movimento retroativo em presença de tantas cocotas; mas o Tavares desprendeu-se dos braços de uma delas, a mais bonita, e foi buscá-lo com um abraço.

- Bravo! Cá está o homem! Agora não falta mais nenhum! Estão reunidos seis amigos de quarenta anos. Nascemos todos em 1851. - Conhecem-se?

Dos quatro sujeitos, Geraldo apenas conhecia um, o Eduardo Távora, doutor em medicina, que fora também seu condiscípulo no colégio Marinho. O Tavares apresentou-lhe os outros: o visconde do Sabugal, opulento banqueiro que há seis anos ainda era moço de padaria, - o doutor Bandeira, advogado, - e o Mora, um rapaz português, muito ativo mas muito pândego que tinha deitado fora duas fortunas, e desfrutava agora a terceira, que era a maior.

Seguiu-se a apresentação das cocotas. O Tavares principiou pela mais bonita: – Mademoiselle Georgina, madame Tavares até amanhã ali pelas onze horas o mais tardar; uma parisiense que nunca pôs os pés em Paris; nasceu e cresceu em Bordeaux, e de lá veio o ano passado, contratada para as Folie-Bergères do beco do Império. Não fala uma palavra de português e não tem medo da febre amarela.

Geraldo cumprimentou mademoiselle Georgina com muito acanhamento.

- Conchita e Mercedes, ambas espanholas de Buenos Aires, como a outra é parisiense de Bordeaux, - duas moscas varejeiras, atraídas pelo mel do Encilhamento dos macaquitos. - A sinhá paulista que deu a volta a todas as cabeças em São Paulo e está conquistando todos os corações na Capital Federal.

- Angelina - chapeau bas! (tiro o chapéu!), - a italiana mais bonita que tem pisado nas terras de Santa Cruz!

E baixinho, ao ouvido de Geraldo:

- É das nossas. Nasceu também antes do golpe de Estado...

O viúvo estava atônito. Ele apertara a mão às cinco mulheres, e cada uma delas lhe impregnara um perfume diverso. Chamou Tavares ao vão de uma janela, e disse-lhe:

- Armaste-me uma cilada. Vou fazer triste figura entre essas tipas. Não sirvo para isto.

- Ora deixa-te de luxos! Que mal podem elas fazer-te?

- Nenhum.

- Mandei buscá-las para enfeitarem a mesa. Faze de conta que são flores...

- Que flores!...

- Elas são cinco e nós somos seis. Sobra um, que és tu. Uma vez que o gênero não te agrada, fica isolado. Tua alma, tua palma.

Às sete horas passaram todos à sala de jantar. Os cavalheiros deram os braços às damas. Geraldo ia sozinho, nesse batalhão de Cythera.

A mesa, uma mesa circular, de doze talheres, resplandecia entre flores e frutos, numa profusão de luzes que se refletiam nos cristais multicores. O Tavares sentou-se entre a francesa e a italiana; o visconde ficou entre esta e Conchita, e junto da Conchita o Mota, e ao pé do Mota o nosso Geraldo que deixou entre si e a Mercedes uma cadeira vazia; junto da Mercedes ficou o doutor Bandeira, tendo à sua direita a sinhá e entre esta e mademoiselle Georgina tomou o lugar o doutor Távora.

O Mota protestou contra a cadeira vazia:

- Isto não está direito: somos seis homens e cinco senhoras!

- Estamos no Paraguai! – exclamou o doutor Távora.

- Um contratempo, obtemperou Tavares, madame Bertin ficou de trazer seis raparigas e só trouxe cinco. Eu pus-a imediatamente a andar, e disse-lhe que não voltasse aqui sem a sexta. Conto que a traga. Se vier, há de sentar-se ali entre o Mota e o Geraldo.

Terminada a sopa, discretamente regada por um delicioso Vinho Madeira seco, abriu-se uma porta e apareceu na porta a figura encarquilhada da tal madame Bertin, uma francesa que brilhou entre o mulherio galante do Rio de Janeiro de 1855 a 1860, e exerce agora a ignóbil profissão de medianeira de amores fáceis.

A entrada da velha foi ruidosamente acolhida com palmas batidas por vinte mãos, que vinte e duas seriam se Geraldo não se abstivesse dessa manifestação.

- Mas que é isto?... a senhora veio só?!... – perguntou o Tavares, arregalando uns olhos furibundos.

- Não; ela está na saleta; é ainda muito acanhada.

O Tavares ergueu-se e foi à saleta. Voltou, conduzindo pela mão uma rapariga morena, muito envergonhada, com os olhos postos no chão, e tão nova, tão nova, que certamente não tinha ainda vinte anos.

- Foi o que pude encontrar, ponderou madame Bertin durante a curta ausência do Tavares.

- Passa para a outra cadeira, disse logo o Mota a Geraldo; a pequena deve ficar sentada entre nós dois. Entretenha-se o amigo com ela, porque eu cá estou muito ocupado com a Conchita.

Geraldo obedeceu enfiado, e o Tavares conduziu a recém chegada até a cadeira vazia.

- Quanto à senhora, – disse o Tavares retomando o seu lugar e dirigindo-se a madame Bertin - vá lá para a copa; coma e beba à vontade!

- Sim, aduziu o visconde; aqui não há lugar para mais ninguém... não queremos ser treze à mesa...

- E demais, – acrescentou o Mota, – não podem tomar parte neste jantar pessoas que tenham mais de quarenta anos.

Todos se riram e madame Mertin desapareceu.

Depois dos dois primeiros pratos, acompanhados o primeiro por um rico vinho Sauternes e o segundo por um riquíssimo vinho Pommard, notou Geraldo que cada um dos comensais se ocupava muito particularmente de uma das suas vizinhas.

O Tavares bebia pelo copo de mademoiselle Georgina. O doutor Távora passara o braço em volta da cintura da sinhá. O advogado segredava não sei o que ao ouvido da Mercedes, que revirava languidamente os olhos. O Mota cantarolava um trecho de zarzuela, tamborilando nas costas de Conchita. O visconde, que se queixava do calor, entrelaçava os dedos nos de Angelina. Só Geraldo e a última chegada se conservavam sisudos, como se assistissem a um banquete de muita cerimônia.

- Então que é isso, Geraldo? – vociferou o Tavares. – Não dizes palavra a essa pobre moça?... não lhe fazes a corte? Sê romano em Roma, meu velho! Esquece-te dos teus velhos desgosto! Transforma-te!

Geraldo, efetivamente, começava a sentir a necessidade de transformar-se, para não ser ridículo.

- Como se chama? – perguntou à sua vizinha, num tom de voz brando e carinhoso.

- Laura.

- É filha mesmo daqui?

- Sou de Resende.

- Já não tem pai nem mãe?

- Ânimo, Geraldo! – vociferou o Tavares.

- Tenho mãe; meu pai morreu quando eu era pequenina.

- Vive em companhia de sua mãe?

A moça estranhou a pergunta, e volveu para o seu interlocutor uns olhos muito espantados. Depois caiu em si, refletiu que a curiosidade do outro era uma coisa muito natural, e respondeu:

- Não, senhor.

- Com quem vive então?

- Vivo sozinha. Eu era casada, mas deixei meu marido.

- Por que?

- Porque não gostava dele. Mamãe obrigou-me a casar contra a vontade. Eu gostava de um moço que me tirou do meu marido, me trouxe para o Rio de Janeiro e me abandonou no hotel. Não conheço ninguém nesta terra e se não fosse madame Bertin...

A conversação continuou por algum tempo, nesse terreno simples e inocente; continuaria ainda se o ponche à la romaine que no menu, delicadamente impresso em ventarolas de seda, figurava como o um drinque alcoolico de frutas, não se combinasse com o Madeira, o Sauternes e o Pammard para a transformação de Geraldo. Porque, digamo-lo, o nosso viúvo, como todos os homens melancólicos, gostava de fazer honra aos bons vinhos.

Às nove horas, quando estourou a champanha, todos os convivas, inclusive a bisonha Laura, fumavam magníficos cigarros egípcios, - “dos que fuma o quediva (soberano)”, observava o Tavares, que não perdia ensejo de encarecer o seu regabofe. A sala enchia-se de fumo. O doutor Bandeira e a Mercedes beijavam-se descaradamente. A sinhá, para ficar mais à vontade, pedia ao doutor Távora que lhe desabotoasse o corpinho. O Tavares ia buscar com os lábios as uvas que mademoiselle Georgina prendia entre os dentes, e dizia-lhe umas coisas num francês capaz de fazer tremer de indignação a sombra de Bossuet. O Mota, embriagado, recostava-se no colo da Conchita, que o penteava com os dedos. O visconde, que se pusera em mangas de camisa, abraçava, voluptuosamente a italiana, e gaguejava um brinde “ao nosso Anfitrião”, brinde a que ninguém prestava ouvidos. Geraldo e Laura, de mãos dadas, faziam protestos de não se separarem naquela noite.

CAPÍTULO 4

Às onze horas, quando os convivas se levantaram da mesa, Geraldo, ébrio de vinho e de volúpia, apoiou-se à cadeira para não cair. Foi para a saleta, e Laura acompanhou-o até um divã, onde se sentaram, ambos, de mãos dadas, ele saboreando um havana, ela fumando, por obrigação, desajeitadamente, outro cigarro dos que fuma o quediva (soberano).

O visconde e os doutores desapareceram com as vizinhas respectivas. Só ficaram Geraldo e o Mota, - tão bêbado este, que o Tavares mandou preparar-lhe o quarto de hóspedes. Conchita afetuosa e solícita, ofereceu-se para fazer-lhe companhia durante a noite.

O Tavares aproximou-se de Geraldo, a rir-se:

- Deitaste as manguinhas de fora, hein, meu santarrão?

Geraldo limitou-se a sorrir, lançando uma baforada de fumo.

- Olha, eu quis ser gentil para contigo, – continuou o Tavares; – mandei aparelhar a vitória, para acompanhares a pequena à casa dela... ou à tua...

- À minha, – redarguiu Geraldo; – ela já me disse que ainda não tem casa...

CAPÍTULO 5

Quando a vitória de Tavares se pôs em movimento, conduzindo Laura e Geraldo, este bafejado pelo ar fresco da noite, foi pouco a pouco recuperando a consciência nítida dos seus atos, e medindo toda a extensão dos excessos a que se entregara.

Sinceramente arrependido de ter aceitado o convite do Tavares, comparecendo a um jantar que degenerara em orgia, achava agora um incômodo trambolho a infeliz rapariga que ali ia atirada no fundo daquele carro, com as pálpebras cerradas, ignobilmente vendida à concupiscência. Perdera de súbito aquele desejo que à mesa lhe despertara os sentidos; achava-se paternal junto dessa mulher, e velho demais para ela, que era quase uma criança. E lembrava das histórias que Laura lhe contara durante o jantar: o seu casamento, a sua fuga, a sua desgraça; e o coração enchia-se de piedade e azedume. Tudo aquilo devia ser verdade; ela não tinha ainda o feitio da cocota, era ainda noviça na profissão: não devia saber mentir.

E Geraldo perguntava aos seus botões:

- Que vou eu agora fazer desta pequena?...

Depois, lembrou-se da última vez em que andara de carro. Havia já alguns meses. Foi uma noite em que levara a filha aos Huguenotes e teve que restituí–la ao colégio depois do espetáculo. Como ameaçava chover, tomaram um carro no largo da Carioca. Margarida ia assim, como Laura, atirada para o fundo do carro, com as pálpebras cerradas...

- Valha-me Deus! que vou eu agora fazer desta pequena?...

CAPÍTULO 6

À uma hora, Geraldo apeava-se do carro e batia à porta de casa. Veio abrir o José, que esperava a pé firme, e notou, surpreso, que o patrão viera acompanhado por uma mulher. A princípio supôs fosse a menina, que tivesse ido com o pai ao teatro e uma circunstância qualquer impedisse de voltar para o colégio, - mas qual não foi o seu espanto ao ver que se tratava de um contrabando, o primeiro que entrava naquela casa!

- Pode recolher-se. - disse Geraldo.

O criado sumiu-se, e o patrão abriu a porta da sala, convidando Laura a entrar. Entraram, e ele imediatamente acendeu o gás. A rapariga olhou com curiosidade em volta de si e o retrato de Margarida chamou-lhe logo a atenção.

- Que moça tão bonita e simpática! – exclamou. – Parece uma santa! - Quem é?

- Minha filha.

- Sua filha? Que idade tem?

- Dezessete anos.

- Tem a minha idade.

Geraldo estremeceu.

- Tem também dezessete anos?

- Nasci em 1874.

- Sim... e em que mês?

- Em abril... no dia 27 de abril.

O viúvo empalideceu e ficou a olhar para a rapariga com uma expressão singular. Depois sorriu, pareceu refletir, foi ao seu quarto, abriu um guarda roupa, e tirou do gavetão uma camisa de mulher que ali estava religiosamente guardada havia dez anos. com outras roupas que eram o espólio sagrado da morta.

- Aqui tem uma camisa de dormir. Dispa-se e deite-se.

Laura ficou sozinha no quarto. Ele esperou que ela se despisse e se deitasse, trouxe para a sala as suas roupas úmidas e estendeu-as nas cadeiras para secarem, apanhando o ar que entrava timidamente pelas venezianas. Tornou à alcova. Laura estava deitada. Tinha vestido a camisa. Bocejava. Parecia morta de sono. Geraldo cobriu-a com um lençol, e perguntou-lhe:

- Gosta de dormir com luz?

- Gosto.

Ele acendeu uma lamparina e apagou o gás. Depois, aproximou-se da cama, abaixou-se, beijou a sua hóspede na fronte, e disse-lhe:

- Boa noite, Laura; durma bem.

- Oh!... então o senhor não se deita comigo?...

- Não.

- Por que?

- Porque você nasceu no mesmo dia em que nasceu minha filha.

Ela compreendeu, ficou muito triste e murmurou:

- Boa noite.

Geraldo foi para a sala, despiu-se e deitou-se no canapé. Refletiu que Laura iria talvez fazer mau juízo de sua virilidade, e espalhar por aí que ele não era um homem. Um instante quis erguer-se para justificar-se positivamente... Mas não; separava-os aquela data: 27 de abril de 1874; seria quase um incesto! 

Adormeceu e passou toda a noite no canapé.

Levantou-se pela manhã, foi à alcova, e encontrou Laura acordada. Indicou-lhe a toialete num quarto adjacente, e levou-lhe as roupas que ficaram na sala a secar. Depois, serviu-lhe uma xícara de café com leite e biscoitos. Às oito horas e meia, Laura estava vestida. Geraldo chamou o José e deu-lhe ordem para acompanhá-la até a sua casa. Quando ela ia sair, ele meteu-lhe nas mãos um envelope contendo uma nota de cem mil réis, beijou-a na fronte, e disse-lhe:

- Adeus, minha filha.

E pôs-se à janela, e acompanhou-a com a vista até vê-la dobrar a esquina, com muita pena de não poder tirá-la para sempre daquela vida.

Depois, foi contemplar o retrato de Margarida.

Fonte: Artur de Azevedo. Contos fora da moda. Publicado originalmente em 1955. Disponível em Domínio Público