quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Baú de Trovas LXVIII


Que enorme esperança, irmãos,
um simples gesto nos traz:
o encontro de duas mãos
selando um voto de paz!
A. A. de Assis
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Casou-se. Tem nova vida.
E como me custa agora,
eu, que a chamei de "querida",
ter que chama-la "senhora"!
Aníbal Vitral Monteiro
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Tropeço nos seus brinquedos...
Na saudade que me embala,
vejo marcas de seus dedos,
numa parede da sala!
Antônio Carlos Teixeira Pinto
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As paredes que sustentam
meus sonhos, meus ideais,
são tão sólidas que aguentam
os mais fortes vendavais!
Antônio Siécola Moreira
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Hei de alcançar teus carinhos,
pois estou certo de que
quase todos os caminhos
me conduzem a você!
Aparício Fernandes
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Quando os sonhos esvanecem
e os amores acabarem,
os poetas aparecem
para ilusões recriarem.
Arthur Thomaz
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Nós nos vemos com tal pressa
e tamanha raridade,
que, mal o encontro começa,
começo a sentir saudade.
Bitencourt de Sá
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Se a vida é um texto e deixamos
para trás folha esquecida,
de perda em perda é que vamos
perdendo o senso da vida.
Carolina Ramos
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O pior da viuvez
são angústias sem respostas:
sai um mês... vem outro mês...
...e quem vem coçar-me as costas?
Célia Guimarães Santana
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Nesses dias tão tristonhos
que a vida nos infligiu,
parece que em muitos sonhos
nenhuma rosa se abriu.
Cenize De Andrade
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Dá meus olhos, morto, Amada,
ao cego da nossa rua.
Se o morto não vê mais nada,
veja o cego a graça tua...
Cicero Costa
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Agora que na parede
do meu quarto de saudade
vejo apenas uma rede,
eu vivo pela metade!...
Clarindo Batista
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Veneno e inveja, empreiteiros
da enorme parede erguida
entre os nossos travesseiros
e entre a minha e a tua vida...
Darly O. Barros
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Juntas, duas alianças,
no dedo da mão esquerda,
são permanentes lembranças
da minha infinita perda...
Domingos Freire Cardoso
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Sonhei que estava abraçando
alguém que tinha teus traços.
Quando acordei, soluçando,
tinha a saudade nos braços!
Dulce de Mello Montemór
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Vou meu rancho erguer no fundo
do sertão cheirando a flor,
e viver longe do mundo,
nos braços do meu amor.
Durval Borges
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Fugir do tempo?... Tolice!...
Por mais que acaso se tente,
o fantasma da velhice
burla o acaso e encontra a gente!
Edmar Japiassú Maia
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Saudade — tempo da infância,
que transcorre de repente...
A gente mede a distância
pela saudade que sente!
Edmundo Rêgo Ferreira
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Na queda, não esmoreço:
levanto-me e sigo avante,
pois é a pausa de um tropeço
que torna o passo gigante!
Edweine Loureiro
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Contei ao céu meu desgosto
e o céu afligiu-se tanto
que pôs cinza sobre o rosto
e fogo desfez-se em pranto.
Elias Barbosa
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Que me imporia ser um louco,
por gostar de ti, meu bem?!
Importa é que, pouco a pouco,
fiques louquinha também.
Evando Marinho Salim
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Sonhando escuto teu passo,,,
Doce raio de esperança!
— Tão distantes pelo espaço,
tão juntos pela lembrança!
Evangelina Maia Cavalcante
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Amor de espécie tão vária!
— Quem teve a ideia de por
a tanta coisa contrária
o mesmo nome de Amor?
Fernandes Costa
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Há quem diga que sou feio,
que sou triste e vivo só.
Mas o calor de teu seio
dos outros me faz ter dó.
Fernando Meirelles
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Das glórias do meu passado,
a maior — meu peito diz —
seria haver conquistado
um amor que não me quis.
Florêncio Argolo
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— "Adeus!..." disseste-me, "esquece
minhas constantes ternuras..."
Ah, como se o sol pudesse
deixar a Terra às escuras!..,
Francisco Pereira Da Silva
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A dor da tua partida,
que não me saí da lembrança,
já me levou mais que a vida:
levou-me toda esperança!
Frazão Teixeira
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Na Ordem dos Capuchinhos,
sem espinhos não há flores.
Haja flores sem espinhos
na Ordem dos Trovadores!
Frei Marcelino de Angatuba
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Se tens de vir e voltar,
não venhas, por caridade!
— Uma esperança a brilhar
sempre é melhor que a saudade...
Flávio Jarbas
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Quando o teu rosto de santa
junto ao meu empalidece,
a minha ternura é tanta
que o beijo termina em prece!
Garcia Rosa
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És mais bela do que a rosa,
és mais pura do que a neve:
não sei descrever-te em prosa,
e o verso não te descreve!
Geraldo Alvim
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Ermo de ti, cheio de ânsia,
meu olhar nos longes erra...
Oh, como eu amo a distância,
quando a distância te encerra!
Gílka Machado
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Minha terra tem palmeiras
onde canta o sabiá.
Não permita Deus que eu morra
sem que volte para lá.
Gonçalves Dias
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Ante a “maçã” do pecado,
na dúvida, vou sofrendo:
- Se como... sou castigado;
- Se não como... me arrependo!...
Hermoclydes Siqueira Franco
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Benditas são as paredes,
testemunhas sem pudor,
que amparam ganchos e redes
... e ouvem murmúrios de amor!
Héron Patrício
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Triste é alguém ser como aquelas
paredes velhas, pesadas,
que têm portas e janelas
eternamente fechadas...
Izo Goldman
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Amo-te mais, cada dia;
longe de ti — que sou eu?
Sou como a concha vazia
de quem o mar se esqueceu.
Jeny de Lima
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O beijo da despedida
é triste, mas mesmo assim
podias passar a vida
a despedir-te de mim...
Jerônimo Bragança
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Se o fracasso tem dois lados,
vale muito a decisão:
chorar os planos frustrados
ou bendizer a lição.
Jérson Lima de Brito
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Minha ventura, querida,
é ser, com o maior fervor,
escravo de tua vida
e dono do teu amor!
João Guimarães
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Você ficou aturdida
na bagunça de meu quarto.
Se visse a da minha vida,
você teria um infarto.
José El-Jaick
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Encontrar-te em cada sonho
e te perder em seguida...
Este é o clichê mais medonho
das noites da minha vida!...
José Ouverney
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Diz ela, vendo a intenção
de seu noivinho devasso:
- mude o rumo dessa mão...
Minha coceira é no braço!
José Tavares de Lima
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— "Não há mãe melhor que a minha!"
Diz a filha à mamãezinha.
E a mãe, sorrindo: — "Filhinha,
melhor que a tua, era a minha"...
Lia Pederneiras de Faria
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Que momentos cruciais
nos umbrais das invernadas,
quando ecoam nossos ais
pelas decisões erradas...
Luciana Pessanha Pires
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No instante em que tu partiste
houve uma pausa... sem fim...
Deixaste teu rosto triste,
sorrindo... dentro de mim.
Luiz Poeta
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Se há tantos pobres que pedem
e a todos te vejo dar,
nunca teus olhos me neguem
a esmola do teu olhar.
Manuel Giraldes da Silva
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Na humildade dos seus passos,
lembre sempre a decisão
de dar a mão, nos fracassos,
a quem lhe estendeu a mão...!
Mara Melinni Garcia
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Não vou culpar o destino
pelos erros cometidos;
culpo, sim, meu desatino
por impulsos incontidos.
Marina Valente
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O nosso nome, juntinho,
gravei num galho de ipê;
e o povo todo, todinho,
inveja a mim e a você!
Nair Starling
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É teu amor ouro puro,
por isso sou rica assim;
e as outras todas, te juro,
morrem de inveja de mim.
Odélia Belém Boneschi
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Sempre que a pinga os refresca,
qual mentira tem mais graça:
- a do Juca, quando pesca,
ou do Joca, quando caça?...
Orlando Brito
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Ei-lo, de todos os casos,
o mais estranho do mundo:
como, nuns olhos tão rasos,
cabe um olhar tão profundo?
Pereira Da Silva
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Decidiste impor intrigas,
mas a distância, sem voz...
Diz que é melhor nossas brigas
que esse silêncio entre nós!
Professor Garcia
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Por crer sempre em que lhe deve,
meu coração é um credor
que vai sofrer muito em breve
perdas e danos no amor.
Sérgio Bernardo
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Dá-me os teus olhos profundos
e o mundo pode acabar!
Que importa o mundo, se há mundos
lá dentro do teu olhar!...
Silva Tavares
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Naquele encontro fatal,
ao olhar nos olhos teus,
tive a certeza final:
não era encontro, era adeus!
Sônia Maria Sobreira da Silva
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De alguém que amamos, a imagem,
que está longe, vemos perto...
— Saudade é como miragem
que engana o olhar no deserto.
Stélio Autran
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A antiga paixão fenece...
e mesmo juntos e a sós,
eu sinto como se houvesse
uma parede entre nós!
Therezinha Dieguez Brisolla
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Quando passa o encantamento
de um amor que nos devora,
fica um saído de tormento
que nunca mais vai embora.
Vitorina Sagboni Teixeira
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Saudade do amor perdido,
pois sei que não volta mais.
É meu destino bandido
onde suporto meus ais.
Wadad Naief Kattar
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Queres saber, doce amada,
o que é saudade na vida?
Uma metade afastada
da outra metade, querida.
Waldemiro Portugal
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Hans Christian Andersen (O guardador de porcos)

Era uma vez um príncipe pobre; ele tinha um reino muito pequeno, mas mesmo assim grande o bastante para que ele se casasse. E casar era o que ele queria, era mesmo seu maior desejo. Mas é claro que ele ia ser muito atrevido se perguntasse logo à filha do Imperador: “Você quer casar comigo?” Pois foi justamente o que ele fez.

Seu nome ilustre era conhecido por toda parte, e havia centenas de princesas que lhe diriam “sim” na mesma hora, felizes da vida de ir morar com ele em seu pequeno reino.

E a filha do Imperador? Que será que ela respondeu? Pois é o que vamos ver agora.

Sobre o túmulo do pai do príncipe, crescia uma roseira, uma roseira maravilhosa. Só florescia de cinco em cinco anos, e ainda assim dava apenas uma rosa de cada vez. Mas não era uma rosa como as outras; tinha um perfume tão doce, que fazia as pessoas esquecerem todos os desgostos e preocupações.

Além da rosa, o príncipe tinha um rouxinol; um rouxinol que cantava tão bem, que era como se as mais lindas melodias morassem em sua pequena e delicada garganta.

Essa rosa e esse rouxinol o príncipe quis dar de presente à princesa; para isso, foram enviados a ela dentro de duas caixas de prata. O Imperador ordenou que as caixas fossem levadas ao grande salão, onde a princesa brincava com suas damas de honra. Quando ela viu aquelas caixas com os presentes, bateu palmas de alegria.

– Ah, que bom se eu ganhasse um gatinho! – disse ela.

Mas o que saiu da primeira caixa foi uma rosa lindíssima e perfumada.

– Oh, que coisinha mais bem feita! – exclamaram todas as damas de honra.

– Ela é mais do que bem feita. É fascinante! – disse o Imperador.

A princesa, porém, tocou na rosa e logo começou a chorar:

– Que coisa horrível, Papai! Não é uma rosa artificial, é de verdade! – reclamou ela, aborrecida, jogando a rosa no chão.

– Que coisa horrível! É uma rosa de verdade! – disseram também todas as damas de honra. É que elas achavam uma rosa de verdade muito pouco elegante e nobre, pois se encontra por toda parte. Ninguém reparou em seu doce perfume, ninguém se abaixou para pegá-la do chão, e logo ela foi esquecida. Mais tarde, uma serva do palácio jogou-a no lixo.

– Antes de ficarmos zangados, vamos primeiro verificar o que veio na outra caixa – disse então o Imperador. Com todo o cuidado, a caixa foi aberta, e o que apareceu foi o rouxinol. Dois pajens tiveram de trazer um suporte de ouro com uma argola pendurada, e um deles pousou o passarinho naquele aro dourado. E, apesar de ser bem simples, sem cores vivas, seu canto era tão maravilhoso, que ninguém conseguiu falar mal dele.

As damas de honra ficaram escutando, encantadas, o Imperador pôs as mãos no peito, comovido, e a princesa sentou-se numa poltrona sem dizer nada e prestando a maior atenção.

– Superbe! Charmant! – disseram as damas de honra, pois todas falavam francês, cada uma pior que a outra.

Com isso, elas queriam dizer que o canto do passarinho era magnífico e fascinante. A linda voz do rouxinol ressoou por todo o castelo, de modo que foram aparecendo mais e mais ouvintes: o mestre-de-cerimônias e os ministros, o camareiro do Imperador e a criada de quarto da princesa.

– Como esse passarinho me faz lembrar a caixinha de música da saudosa Imperatriz! – disse um velho ministro – Ah! O tom é o mesmo, e a maneira de cantar também!

– Tem razão – disse o Imperador, chorando como uma criança, pois começou a pensar em sua boa esposa, que havia morrido há poucos anos.

De repente, a princesa disse:

– Tenho a impressão de que esse passarinho canta como se estivesse vivo. Não me digam que é um passarinho de verdade!

O Imperador indagou dos mensageiros que tinham trazido os dois presentes, e eles responderam:

– Sim, é um passarinho de verdade.

– Então, podem soltá-lo – disse a princesa, e não deixou que o príncipe viesse ao palácio.

Os servos tiveram de abrir a janela e deixar o passarinho sair voando.

As damas de honra ainda comentaram:

– Deve ser muito sem educação esse príncipe, para mandar de presente uma rosa de verdade e um passarinho vivo.

Apesar de tudo, o príncipe não desanimou. Pintou o rosto de marrom, afundou o chapéu na cabeça até a testa e foi bater à porta do castelo. E aconteceu que quem abriu foi o próprio Imperador; o príncipe tirou o chapéu e disse:

– Bom dia, senhor Imperador! Seria possível arranjar para mim um trabalho no castelo?

– Pois é – respondeu o Imperador – tanta gente vem pedir emprego aqui… Mas eu não sei se temos alguma coisa para você fazer. Vou pensar… Ah, espere um pouco! Lembrei que preciso de alguém para tomar conta dos porcos, pois nossos porcos são muitos.

E assim o príncipe arranjou um emprego de guardador imperial de porcos. Deram-lhe um quartinho miserável ao lado do chiqueiro, e lá ele teve de morar; mas durante o dia todo ele trabalhou e, ao anoitecer, tinha feito uma panelinha com alegres guizos pendurados em volta; e, assim que a panelinha fervia, os guizos tocavam a antiga melodia:

“Oh, meu Agostinho,
perdeste tudinho!”

Mas a panelinha sabia fazer uma porção de outras coisas, pois não era uma panela comum. Só de pôr o dedo na fumaça que saía dela, a gente ficava sabendo que comida estava sendo preparada em todos os fogões da cidade. Na casa do alfaiate imperial, ia-se comer linguiça no espeto; a mulher do caçador da corte estava assando uma perdiz, que seu marido tinha reservado para eles depois da última caçada; na casa do sapateiro, as batatas pulavam dentro d’água, e na casa do professor da escola, por ser dia de aniversário, uma galinha estava sendo ensopada. E – vejam só! – o mendigo, que todos os dias pedia esmola no castelo, tinha até um suculento pedaço de carne em sua sopa e mingau de aveia para a sobremesa. Pois é, a panelinha era bem diferente da rosa de verdade e do rouxinol vivo. Então, certo dia, quando a princesa estava por acaso passeando ali perto com todas as suas damas de honra, ouviu a música dos guizos e parou toda contente; é que ela também sabia tocar “Oh, meu Agostinho”. Aliás, era a única música que ela sabia tocar, e assim mesmo com um dedo só.

– Essa é a cantiga que eu toco! – disse ela – Deve ser bem educado esse guardador de porcos. Vá falar com ele e pergunte quanto custa esse instrumento que eu quero tanto comprar.

Então, uma das damas de honra teve de ir até o chiqueiro, mas precisou calçar tamancos, pois o lugar era muito cheio de lama.

– Quanto você quer pela panelinha? – perguntou a dama de honra, tampando o nariz e pisando na ponta dos pés.

– Quero dez beijos da princesa – respondeu o jovem guardador de porcos.

– Deus me livre! – disse a dama de honra, e quase desmaiou com aquela exigência.

– Por menos eu não vendo. Afinal ela não é uma panela comum – replicou o guardador de porcos.

A dama de honra foi até onde as outras estavam, e a princesa perguntou:

– Que foi que ele disse?

– Eu nem posso contar – respondeu ela.

– Pois então fale aqui no meu ouvido!

Quando a princesa ficou sabendo o que o guardador de porcos queria, disse:

– Que sem-vergonha! Que sujeito malcriado! – e foi embora dali.

Mas, foi só andar um pouco, que os guizos tocaram:

“Oh, meu Agostinho,
perdeste tudinho!”

– Olhem – disse a princesa – voltem lá e perguntem se ele aceita dez beijos de minhas damas de honra.

– Muito obrigado – respondeu o guardador de porcos – Quero dez beijos da princesa ou nada de panelinha.

– Está muito chato esse vai e vem! – disse a princesa – Vocês todas fiquem então em volta de mim, para que ninguém veja.

Assim, as damas de honra fizeram uma roda esticando as pontas dos vestidos, e o guardador de porcos ganhou dez beijos, e a princesa recebeu a panelinha.

Foi uma alegria, que só vendo! O dia inteiro a panela ferveu; e elas agora sabiam o que estava sendo cozinhado em todos os fogões da cidade, tanto na casa do camareiro como na casa do sapateiro ou do alfaiate. As damas de honra dançavam e batiam palmas, dizendo:

– Sabemos quem vai comer sopa doce e omelete e quem vai ganhar mingau e carne assada. Que coisa mais interessante!

– Interessantíssima! – exclamou a mestre-sala.

– É, mas guardem segredo, pois eu sou a filha do Imperador.

– Pode deixar, pode deixar! – disseram todas.

O guardador de porcos, isto é, o príncipe – só que ninguém sabia que ele era o príncipe – não deixava passar um dia sem fazer alguma coisa, e dessa vez ele fez uma matraca. E era só girar a matraca que ela tocava todas as valsas e polcas do mundo.

– Que maravilha! – exclamou a princesa quando passou por perto – Nunca ouvi música mais linda. Ouçam, vá uma até o chiqueiro e pergunte ao guardador de porcos quanto custa esse instrumento: só que beijos eu não dou mais!

– Ele quer, em troca, cem beijos da princesa – disse a dama de honra que tinha ido lá perguntar.

– Acho que ele ficou maluco! – retrucou a princesa, saindo dali.

Entretanto, depois de andar um pouco, parou.

– Em nome da arte, é preciso fazer alguma coisa. Afinal, eu sou a filha do Imperador! Diga que vou dar dez beijos, como da outra vez. O resto ele pode receber de minhas damas de honra.

– Ah, mas nós não temos vontade nenhuma de fazer isso! – disseram as damas de honra.

– Que enjoamento de vocês! – reclamou a princesa – Pois se eu posso beijar, vocês também podem. Além disso, é de mim que vocês recebem alimento e salário!

Assim, querendo ou não, as damas de honra foram de novo ao chiqueiro.

– Cem beijos da princesa – respondeu o guardador de porcos – senão cada um fica com o que é seu!

– Então, ponham-se todas na minha frente – disse ela.

As damas de honra obedeceram, e o guardador de porcos ganhou os beijos da princesa.

– Mas que ajuntamento é aquele lá no chiqueiro? – perguntou o Imperador, que tinha saído para o terraço.

Ele esfregou os olhos e pôs os óculos.

-É… São as damas de honra que fazem esse barulho todo; preciso ir ver o que está acontecendo!

E… zás-trás… lá foi ele bastante afobado.

Assim que chegou mais perto, começou a andar bem devagarinho. As damas de honra estavam tão ocupadas contando os beijos, para que fosse um negócio honesto, que nem repararam no Imperador.

– Que é isso? – exclamou ele, ao ver a princesa e o guardador de porcos se beijando.

Já haviam sido trocados oitenta e seis beijos, quando o Imperador começou a dar sapatadas na cabeça dos dois.

– Fora daqui! – gritou ele, furioso.

E a princesa e o guardador de porcos foram expulsos do reino. Do lado de fora, a princesa ficou chorando, o guardador de porcos reclamando, enquanto o maior temporal começou a cair.

– Ai, ai! Coitada de mim! – gemia a princesa – Se ao menos eu tivesse casado com aquele belo príncipe! Ah, como eu sou infeliz!

O guardador de porcos foi então para trás de uma árvore, limpou o rosto tirando dele a tinta marrom, livrou-se dos trapos horríveis que usava e apareceu vestido de príncipe. Estava tão bonito, que a princesa curvou-se, respeitosamente.

– Por você, só sinto desprezo – disse ele – pois não quis um príncipe honesto, não aceitou a rosa nem o rouxinol, mas beijou um guardador de porcos em troca de uns brinquedinhos; agora, você recebeu o que merecia!

E com essas palavras o Príncipe foi embora, deixando a Princesa sozinha na chuva.

(Tradução Ruth Salles)

Fonte> Hans Christian Andersen. Contos. Publicados originalmente entre 1835 – 1872. Disponível em Domínio Público

Mitos Indígenas (Igaranhã - a canoa encantada)

 Um índio da tribo Kamaiúra iniciou a construção de uma canoa com a casca do jatobá. Ao terminá-la retomou para junto de sua mulher, que há pouco dera à luz, permanecendo por alguns dias. 

Algum tempo depois, voltando à mata onde havia deixado a canoa, não mais a encontrou. Entristeceu-se e, pensativo, tentou imaginar o que ocorrera. Talvez a tivessem roubado, ou algum animal a tivesse destruído. Como poderia pescar agora? 

Absorto, despertou com um ruído. Foi grande o seu espanto ao perceber que em sua direção movimentava-se lentamente, por si mesma, uma canoa, a mesma que ele construíra, agora com vida e olhos na proa. Talvez houvesse se transformado em um animal, pensou. Dar-lhe-ia então um nome: Igaranhã - o crocodilo. 

Entrou na canoa, ordenando-lhe que seguisse em direção ao lago. Assim que Igaranhã tocou a água, cobriu-se com muitos peixes, dos mais variados tipos, cores e tamanhos, que saltavam sem cessar da água para dentro da embarcação. 

Os primeiros, a própria canoa devorou, ficando no entanto a maior parte para o índio. Á sua mulher, maravilhada, falou apenas de um lugar ideal para a pesca, que houvera encontrado. 

Dias depois, retomando ao mesmo local, nada encontrou sob a frondosa árvore. Como por encanto a canoa surgiu novamente da mata, dirigindo-se ao lago e o fenômeno repetiu-se. 

O índio ambicioso recolheu rapidamente os peixes, sem deixar à Igaranhã sua parcela do alimento. Esta então, muito contrariada, acabou por devorar seu próprio dono.

Fonte> Adaptação do Texto de Jayhr Gael in O Caminho de Wicca - http://www.caminhodewicca.com.br (desativado). acesso em 13/10/2023.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

Dorothy Jansson Moretti (Álbum de Trovas) 36

 
Trova com imagem obtidas no facebook da trovadora

Monsenhor Orivaldo Robles (Maringá, mãe ou madrasta?)

(texto escrito em 2014)

Os pioneiros desta cidade agregaram ao nome Maringá os qualificativos “novo” e “velho”. O novo desapareceu pouco depois; o velho continua até hoje para designar o bairro onde a cidade começou. Os que chegaram naqueles sofridos tempos eram homens rudes, de mãos calejadas e rosto queimado de sol. A maioria era competente em derrubar mato, queimar coivara e plantar café. Da língua pátria pouco tinha conhecimento. Não sabia que nome de cidade leva adjetivo do gênero feminino. Como fez, na construção “nossa amada Maringá”, o poeta e professor Ary de Lima, a quem me coube a honra de ter como colega no querido Colégio Gastão Vidigal. Com razão até maior do que outras, Maringá é feminina. Pois não se chamava Maria do Ingá, na canção que a batizou, a retirante nordestina e imaginária musa de Joubert de Carvalho? Todos os que por aqui passam dedicam-lhe elogios feitos com adjetivos ou pronomes femininos. Sempre escutamos: “Maringá é linda. Deve ser muito bom viver nela”.

Nossa cidade exibe o encanto de uma sedutora mulher, que desperta paixão logo ao primeiro olhar. Não fui eu que inventei isso. Venho ouvindo-o desde meus dezesseis anos. O tempo só fez crescer em mim um amor de que não me sabia capaz. No seu cinquentenário, faz dezessete anos, eu lhe dirigi uma saudação que hoje reconheço um tanto melosa. Mas como não ser meloso falando àquela que se conheceu como graciosa menina de dez anos? Eu me permiti, na ocasião, pieguices deste calibre: “Que saudade da garotinha que embalamos no berço de mato e chão batido. Que nos garantia uma união de meninos vivendo juntos, olhando-nos de frente e sorrindo sem disfarce. Era o tempo em que partilhávamos tudo. O pão era branco; o dia, claro; a palavra, direta. Sentíamo-nos abertos e puros, animados de coragem para enxugar o suor uns dos outros. Estendíamos as mãos com transparência e as apertávamos sem medo. Não havia susto em nossas noites nem desconfiança em nosso olhar”.

Para mim Maringá irradiava a ternura de um colo de mãe. Notaram que até seu aniversário tem um traço materno? Cai perto do Dia das Mães; às vezes nele. Talvez para recordar que ela nasceu para acolher os filhos. Todos os filhos, sem excluir um sequer.

Agora me angustia uma preocupação difícil de ocultar. Quando me recebeu, mais de cinquenta anos atrás, Maringá ainda cheirava a mato e sujava-se no pó e no barro, como lembram idosos que têm a minha idade. Mas era uma cidade deliciosa, que nos envolvia num abraço de mãe. Nela nos sentíamos em casa. Não havia essa distância que hoje separa uns de outros; ricos, de pobres; os do centro, dos da periferia; os que aqui moram, dos obrigados a morar em cidades afastadas; os que se acham importantes, dos que são vistos como pés-rapados.

Compreendo que a cidade cresceu além do que se pensava. Mas mãe que é mãe não discrimina um filho por ser menos prendado que outro. Ao contrário, dá atenção maior ao que é menos favorecido. Na casa em que uns são considerados mais filhos, outros menos, algo está muito, muito errado mesmo. Dá pena ver Maringá passando de mãe amorosa a madrasta desumana, que mima uns enquanto pisoteia outros.

Perto dos setenta, a formosa dama de hoje precisa redescobrir a inocência do seu tempo de menina. Brilho sem amor não vale nada. É pura hipocrisia.

Fonte: Portal do Rigon. 10 maio 2014
https://angelorigon.com.br/2014/05/10/maringa-mae-ou-madrasta/

Caldeirão Poético LXXIX


Murilo Fontes
Juiz de Fora/MG, 1901 – 1975, Lisboa/Portugal

SINOS DA TARDE

São seis horas da tarde... são seis horas!
Vibram nos ares carrilhões divinos!
Por que sofres minh'alma, por que choras
pela tardinha, ao repicar dos sinos?

São seis horas... e eu sei... Tu não demoras...
Dentro em breve chegavas... mil violinos
cantavam no meu peito como auroras
a bendizer os nossos dois destinos!

São seis horas... meu Deus! Quanta harmonia,
duas vidas vivendo uma só vida
na glorificação de um grande amor!

São seis horas... eu rezo... morre o dia!...
Que saudades de ti, minha querida!
— Sinos da tarde, cessem por favor!
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Paschoal Carlos Magno
Rio de Janeiro/RJ, 1906 – 1980

À MINHA MÃE

A tua sombra é doce e comovida,
o teu destino de árvore tonteia...
A tua vida, que mais linda vida?
Toda de pássaros e ninhos cheia...

A sombra deu a tantos acolhida,
a árvore tudo dando pouco anseia:
cada vez mais cansada e envelhecida,
a ramaria para o chão arqueia...

Mas quando o vento vem rodopiando,
a árvore, cuja sombra é boa e doce,
abre os braços em súplica, chorando.

Choro de folhas! Alma dos caminhos...
Enche todos os Céus como se fosse
choro de mãe para embalar os ninhos...
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Paulo Fender
Belém/PA, 1912 – 1981, Rio de Janeiro/RJ

NÃO ERA AMOR...

Não era amor aquele amor veemente,
que me trazia em êxtase profundo
e que causava inveja a toda gente,
como se fosse o amor maior do mundo.

Era, apenas, talvez, abismo fundo,
em que se rola involuntariamente,
coisa estranha, que um deus fero e iracundo
fez brotar no meu peito, de repente.

Não era amor, torno a afirmá-lo, e creio
que todo aquele insopitado anseio
por vê-la sempre a mesma, eterna e linda,

era simples loucura de criança,
porque hoje, velho, o coração não cansa
de me dizer que não amei ainda!
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Rosemar Pimentel
Niterói/RJ, 1905 – 1975

PEQUENINO MORTO

Morreu. Vestiram-no de branco e veio
entre outras crianças rútilas, mimosas,
dar o corpinho emagrecido e feio
à tristeza das tumbas dolorosas.

As mãozinhas em cruz, postas no seio,
como duas saudades silenciosas,
tornavam-se mais lívidas, no meio
das grinaldas, dos lírios e das rosas.

Eu, que encontrei o féretro na estrada,
penso na dor de quem ficou sozinho
e vejo, pela aldeia desolada,

que quando passa o corpo desse anjinho,
enquanto os outros pais não dizem nada,
o coração das mães chora baixinho!...
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Santiago Vasques Filho
Teresina/PI, 1921 – 1992, Fortaleza/CE

NATAL DO ÓRFÃO

— "Mamãe, Papai Noel não veio ainda?
No ano passado, ele chegou tão cedo!... “
E a mulher, voz tremente, a tarde finda,
tenta encobrir o trágico segredo:

"Vai dormir, que ele vem... Não tenhas medo.
Olha as estrelas... como a noite é linda!...
Põe teu sapato ali, que o teu brinquedo
há de deixar, por certo... É cedo ainda...”

Dorme o garoto, e acorda com surpresa,
vendo vazio o gasto sapatinho!
"Ele não veio!..." — e logo o pranto vaza...

—"Sim, filhinho, não veio... Com certeza
não encontrou teu pai pelo caminho,
ou se esqueceu do número da casa!...”
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Vulmar Coelho
Santana dos Ferros/MG, ??? – ????, Juiz de Fora/MG

MELANCOLIA

A gente morre um pouco todo o dia.
O tempo vai matando, devagar,
os sonhos, um por um, a fantasia,
essa ilusão ingênua de sonhar.

A vida é como o sol — nasce, irradia...
Depois vem vindo a luz crepuscular.
Despedem-se os prazeres, a alegria,
e só resta um consolo recordar.

O corpo cansa de viver. A estrada
fica deserta e triste. A caminhada
é mais penosa pelo anoitecer.

Fica-se abandonado ao léu da sorte,
e quando, finalmente, chega a morte,
a gente já tem pouco que morrer.

Fonte> Vasco de Castro Lima. O mundo maravilhoso do soneto. 1987.