quarta-feira, 15 de maio de 2024

Contos das Mil e Uma Noites (Farruz e sua esposa)

Conta-se que certo rei estava sentado um dia no terraço de seu palácio quando viu, no terraço da casa oposta, uma mulher cuja beleza não tinha igual entre as mulheres. O rei perguntou:

“A quem pertence essa casa?” Responderam-lhe: “A teu servidor Farruz, e essa mulher é a sua esposa.”

O rei desceu do terraço, embriagado por uma súbita paixão. Chamou Farruz e disse-lhe: “Pega esta carta e vai entregá-la em tal cidade e volta com a resposta.”

Farruz pegou a carta e, de volta a casa, colocou-a sob o travesseiro. Pela manhã, despediu-se da mulher e dirigiu-se para a cidade, sem suspeitar das intenções do rei. 

Assim que o viu partir, o rei disfarçou-se e foi bater na porta da casa de Farruz. A mulher abriu-lhe. 

“Vim visitar-te”, disse o rei. 

Ela sorriu e respondeu: 
“Refugio-me em Alá desta visita. Pois não vejo nela nada de bom.” 

Retrucou o rei: “Sou o amo de teu marido. Parece que não me conheces.” 

Respondeu ela com determinação: “Com certeza conheço-te. És o soberano de meu marido e meu soberano também. Também entendi a tua manobra, e sei o que queres de mim. E para te provar que compreendo o que te traz, vou recitar para ti estes versos do poeta”:

Não trilharei o caminho da fonte
se outros podem colar os lábios na rocha úmida.
Jogarei fora as melhores carnes,
se for dado às moscas partilhá-las comigo.

Depois de recitar os versos, a esposa de Farruz acrescentou:

“E tu, ó rei, beberás da fonte onde outros pousaram os lábios antes de ti?”

O rei escutou-a com estupefação, voltou as costas sem dizer uma palavra e fugiu daquela casa com tamanha precipitação que deixou uma de suas sandálias no chão atrás de si. 

Ora, Farruz deu-se conta no meio do caminho que esquecera a carta do rei sob o travesseiro, e voltou para apanhá-la. Vendo a sandália do rei, compreendeu por que tinha sido enviado a cidade tão longínqua, apanhou a carta em silêncio e saiu sem deixar a esposa perceber a sua volta. Após cumprir a missão, apresentou-se ao rei, que o recompensou com cem dinares. Farruz levou os cem dinares ao mercado dos joalheiros, comprou magníficos ornamentos que ofereceu à mulher, dizendo: “Estes são uma lembrança da viagem. Pega-os e tudo que te pertence e volta para a casa de teus pais.” 

“Assim farei,” disse a mulher sem nada perguntar ou comentar. Adornou-se com as joias, apanhou seus pertences e foi para a casa dos pais. Quando um mês se passou sem que Farruz procurasse a mulher, o irmão desta visitou-o e disse-lhe: “Se não queres revelar o motivo de tua cólera contra tua esposa e o abandono em que a deixas, terás que te explicar diante do rei.” 

O marido concordou, e foram juntos à presença do rei.

O rei transferiu-os ao cádi que estava sentado a seu lado. O cunhado disse: “Que Alá assista o nosso senhor cádi! Eis a minha queixa: eu e minha família possuíamos um lindo jardim, protegido por altos muros, cuidado e plantado de flores aromáticas e de árvores frutíferas. Entregamo-lo a este homem. E ele, depois de colher as flores e comer as frutas, e depois de demolir os muros e abandonar o jardim aos quatro ventos, quer romper o contrato e devolver-nos o jardim no estado em que o pôs. Tal é nossa queixa, ó nosso senhor cádi.”

O cádi perguntou a Farruz: “Que tens a dizer, ó jovem” 

Farruz respondeu: “Devolvo-lhes o jardim com vontade e sem vontade! O motivo desta restituição é que, um dia, entrei no jardim e vi nele as pegadas de um leão. Tive medo de que, um dia, ele acabe por me devorar”.

O rei prestava atenção sem o deixar perceber.

Ao ouvir as palavras de Farruz, compreendeu-lhes o sentido e o alcance e interveio, dizendo a seu servidor: “Ó Farruz, acalma teu coração e apazigua tuas dúvidas. Pois, pela verdade e pela santidade do islã, é o jardim mais bem defendido que encontrei em toda minha vida. Suas muralhas o protegem contra qualquer assalto. E suas flores são as mais belas que já vi.” 

Farruz compreendeu e fez a paz com a mulher e amou-a. Nem o cádi nem as demais pessoas presentes compreenderam de que se tratava. Pela forma alegórica dada ao pensamento de cada um, o segredo ficou limitado ao rei, a Farruz e ao irmão da esposa.

Fonte: As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX. Disponível em Domínio Público.

Vereda da Poesia = 7 =


Uma Trova

NEI GARCEZ
(Curitiba/PR)

Entre o sonho e a verdade
vai vivendo, em seu juízo,
toda a nossa humanidade
seu inferno ou paraíso.
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Um Soneto

CARLOS NEJAR
(Luís Carlos Verzoni Nejar)
(Porto Alegre/RS)

Poemas e Sapatos

Nada tenho de meu, nem os sapatos
que vão acompanhar este defunto.
Nem tampouco montanhas e regatos
que habitaram o verso, nem o indulto

pode valer-me, o soldo, mero extrato
de contas. Nada tenho, nem o intuito
consome esta vontade ou desacato.
Desapareça o nome, seu reduto

de carne e bronze, a fome incorporada
e mais desapareça onde fecundos
são dias e são deuses nesta amada.

Não foram nunca meus — sonhos e fatos.
Nada tenho. Poemas e sapatos
irão reconhecer-me noutro mundo.
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Um Quadrão à Antiga

LOURIVAL BATISTA
(Itapetim/PE)

O Cantador repentista, 
Em todo ponto de vista, 
Precisa ser um artista 
De fina imaginação, 
Para dar capricho à arte, 
E ter nome em toda parte, 
Honrando o grande estandarte 
Dos oito pés de Quadrão!
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Um Poema

CELSO BRASIL
(Curitiba/PR)

Tu, eu e a poesia

Te amo com toda energia,
Te quero bem perto de mim,
Mas também tem a Poesia!
Eu Quero as duas, enfim!!!

Te peço... não tenhas ciúme!
Sem ela não posso te amar!
Da minha montanha, ela é o cume,
Do cume, amor te quero gritar!

Abro os braços à magia,
Entre eles, sempre estarás.
Mas se não abraço a Poesia,
A ti... como me declarar?

Poesia, minha eterna amante.
Tu, minha eterna paixão.
A Poesia me leva adiante!
E tu! levo em meu coração.

Se me deixares amá-la,
Para ti também existirei.
Mas se me apartares dela,
Sem versos, então, morrerei.

Ficarás chorando no báratro,
Quando eu tiver que me ir.
Consolar-te até o reencontro,
Sei que a Poesia há de ir.

Tu e a poesia, então, juntas
Viverão a me relembrar.
De vez em quando unidas,
Ambas se porão a chorar.

Nesse momento, querida,
Certamente, ali estarei.
Tu e a Poesia formam minha vida!
E, assim, nunca mais morrerei.
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Uma Quadra

AGOSTINHO DA SILVA
(George Agostinho Baptista da Silva)
(Porto, 1906 – 1994, Lisboa)

Não corro como corria
nem salto como saltava
mas vejo mais do que via
e  sonho mais que sonhava
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Uma Glosa

FRANCISCO JOSÉ PESSOA
(Fortaleza/CE, 1949 – 2020)

Mote:
O meu verso tem o cheiro 
Da poeira do sertão.
(Manoel Dantas)

Glosa:
Nasce o sol, outra manhã 
Se espreguiça, é novo dia 
E a morte, má, se anuncia 
No canto da acauã 
Ave de agouro, malsã, 
Que canta nossa desgraça 
Sobrevoando a carcaça 
Do boi que ontem era são 
Hoje inerte jaz no chão 
No pé do seco imbuzeiro 
O meu verso tem o cheiro 
Da poeira do sertão.

Recordando Velhas Canções (O bom rapaz)


Compositor: Geraldo Nunes

Parece que eu sabia
Que hoje era o dia
De tudo terminar
Pois logo notei
Quando telefonei
Pelo seu jeito de falar

Eu nunca pensei
Quem eu tanto amei
Fosse assim me desprezar
Mas o mundo é grande
Vou nem sei pra onde
Alguém há de me amar

Já que terminamos
Só resta agora
O adeus final
Pá pará pará paraaá
Te amar demais
Ser um bom rapaz
Foi o meu mal
Pá pará pará paráá
Te amar demais
Ser um bom rapaz
Foi o meu mal

Parece que eu sabia
Que hoje era o dia
De tudo terminar
Pois logo notei
Quando telefonei
Pelo seu jeito de falar

Eu nunca pensei
Quem eu tanto amei
Fosse assim me desprezar
Mas o mundo é grande
Vou nem sei pra onde
Alguém há de me amar

Já que terminamos
Só resta agora
O adeus final
Pá pará pará papáá
Te amar demais
Ser um bom rapaz
Foi o meu mal
Pá pará pará paráá
Te amar demais
Ser um bom rapaz
Foi o meu mal
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = = = = = = = = = = 

A Dor e a Reflexão em 'O Bom Rapaz' de Wanderley Cardoso
A música 'O Bom Rapaz', interpretada por Wanderley Cardoso, um ícone da Jovem Guarda no Brasil, retrata a história de um amor que chega ao fim, deixando reflexões sobre a própria conduta do narrador na relação. A letra começa com uma premonição do fim, evidenciada pela mudança no comportamento da amada ao telefone, um detalhe que imediatamente sinaliza que algo não está bem.

O refrão da música, 'Te amar demais, ser um bom rapaz, foi o meu mal', sugere uma reflexão crítica sobre a ideia de que amar intensamente e ser uma pessoa boa podem ter sido contraproducentes para o narrador. Essa ideia pode ser interpretada como uma crítica às expectativas sociais sobre comportamento em relacionamentos, onde frequentemente se espera que a bondade e o amor incondicional sejam recompensados com reciprocidade e felicidade.

Além disso, a música toca em temas universais como a rejeição e a busca por novos começos. O narrador, apesar da dor, reconhece que o mundo é grande e mantém a esperança de encontrar amor novamente. Essa resiliência e aceitação do fim de um ciclo são emocionalmente poderosas e ressoam com muitos ouvintes que já passaram por experiências semelhantes de término de relacionamentos.

segunda-feira, 13 de maio de 2024

Varal de Trovas n. 600

 

Mensagem na Garrafa = 121 =

Lóla Prata
Bragança Paulista/SP

PLENITUDE

O anjo-menina pulou de nuvem em nuvem e apresentou-se para o plantão do serviço noturno. O santo encarregado designou-a a proteger várias pessoas, à quais fora ligada por humanos afetos familiares. A primeira que constava era o nome de sua mãe terrena. O anjo-menina saltitou em êxtase de cristalina alegria! Ora, cuidar da mãe temporal seria um acréscimo de graça à abundância de paz e luz que gozava desde a vinda para a eternidade...

Como todo anjo, era ligeirinha, voava, no sentido literal. Num milésimo de segundo desceu e reviu a mãe biológica descansando na cama: linda velhinha com cabelos despenteados, mas no semblante, os mesmos traços meigos.

O anjinho abraçou-a repetidas vezes enquanto a mulher sorria como se captasse os fluidos amorosos. Com certeza, sentia-lhe a presença, pois percorria com o olhar o ambiente semiescuro, tentando localizar a fonte de tal sensação. Seria a invisível presença da filhinha que partira há tanto tempo?

As duas deixavam-se penetrar de santo amor!

A pequena mensageira divina acomodou-se ao lado da anciã, acariciando-lhe os cabelos até ela adormecer, embalada pela repetição das Ave-Marias do rosário. Cumprida a missão, alçou voo, alegremente, em busca dos outros da relação do trabalho noturno.

Possuía a felicidade em plenitude!

Vereda da Poesia = 6 =


UM SONETO

Maria Santos Nascimento
Rio de Janeiro/RJ

Dilema

Eu que pensei ser livre como o vento,
não fraquejar em cada despedida,
aceitar meus fracassos sem lamento
e nunca me queixar das leis da vida…

Eu que pensei domar meu sentimento,
e ser, na luta, justa e destemida,
agora, com você no pensamento,
pouco importa vencer ou ser vencida…

O nosso bem-querer gera perigos,
mas, como só podemos ser amigos,
é fácil controlar as emoções…

Difícil é lutar contra a saudade
e acreditar que os elos da amizade
têm mais poder que a fúria das paixões!…
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UMA TROVA

Wandira Fagundes Queiroz 
Curitiba/PR

Quando aos luzeiros da fama
se agregam luzes do Bem,
há um brilho, a mais, que se inflama
e imortaliza também.
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UM POEMA

Rui Knopfli
(Rui Manuel Correia Knopfli)
Inhambane/Moçambique, 1932 – 1997, Lisboa/Portugal

PRINCÍPIO DO DIA

Rompe-me o sono um latir de cães
na madrugada. Acordo na antemanhã
de gritos desconexos e sacudo
de mim os restos da noite
e a cinza dos cigarros fumados
na véspera.
Digo adeus à noite sem saudade,
digo bom-dia ao novo dia.
Na mesa o retrato ganha contorno,
digo-lhe bom-dia
e sei que intimamente ele responde.

 Saio para a rua
e vou dizendo bom-dia em surdina
às coisas e pessoas por que passo.

 No escritório digo bom-dia.
Dizem-me bom-dia como quem fecha
uma janela sobre o nevoeiro,
palavras ditas com a epiderme,
som dissonante, opaco, pesado muro
entre o sentir e o falar.

 E bom dia já não é mais a ponte
que eu experimentei levantar.
Calado,
sento-me à secretária, soturno, desencantado.

 (Amanhã volto a experimentar).
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UMA QUADRA

Fernando Pessoa
(Fernando António Nogueira Pessoa)
Lisboa/Portugal, 1888 – 1935

Tens um livro que não lês, 
tens uma flor que desfolhas; 
Tens um coração aos pés 
e para ele não olhas.

Artur de Azevedo (Uma amiga)

Dona Ritinha Torres, a mais ingênua e a mais virtuosa das esposas, adquiriu há tempos a dolorosa certeza de que seu marido namorava escandalosamente uma senhora, vizinha deles, que exercia, ou fingia exercer, a profissão de modista.

Havia muitas manhãs que Venâncio Torres - assim se chamava o pérfido - acordava muito cedo, tomava o seu banho frio, saboreava a sua xícara de café, acendia o seu cigarro e ia ler a Gazeta de Noticias debruçado a uma das janelas da sala de visitas.

Como Dona Ritinha estranhasse o fato, porque havia já quatro anos que estava casada com Venâncio, e sempre o conhecera pouco madrugador, uma bela manhã levantou-se da cama, envolveu-se numa colcha, e foi, pé ante pé, sem ser pressentida, dar com ele a namorar a modista, que o namorava também.

A pobre senhora não disse nada; voltou para o seu quarto, deitou-se de novo, e à hora de costume simulou que só então despertava.

Tivera até aquela data, o marido na conta de um irrepreensível modelo de todas as virtudes conjugais; todavia, soube aparar o golpe: não deu a perceber o seu desgosto, não articulou uma queixa, não deixou escapar um suspiro.

Mas às dez horas, quando Venâncio Torres, perfeitamente almoçado, tomou o caminho da repartição, ela vestiu-se, saiu também, e foi bater à porta da sua melhor amiga, D. Umbelina de Melo, que se mostrou admiradíssima.

- Que é isto?! Tu aqui a estas horas! Temos novidade?

- Temos... temos uma grande novidade; meu marido engana-me!

E deixando-se cair numa cadeira, D. Ritinha prorrompeu em soluços.

- Engana-te? perguntou a outra, que empalidecera de súbito.

- E adivinha com quem?... Com aquela modista... aquela sujeita que mora defronte de nossa casa!...

- Oh, Ritinha! Isso é lá possível!...

- Não me disseram; vi, vi com estes olhos que a terra há de comer! Um namoro desbragado, escandaloso, de janela para janela!

- Olha que as aparências enganam...

- E os homens ainda mais que as aparências. – o pranto recrudescia. – E eu que tinha tanta confian... an... ça naquele ingra... a ..to!...

- Que queres tu que te faça? – perguntou D. Umbelina, quando a amiga lhe pareceu mais serenada.

- Vim consultar-te... peço-te que me aconselhes... que me digas o que devo fazer... Não tenho cabeça para tomar uma resolução qualquer!

- Disseste-lhe alguma coisa?

- A quem?

- A teu marido.

- Não; não lhe disse nada, absolutamente nada. Contive-me quanto pude. Não quis decidir coisa alguma antes de te falar, antes de ouvir a minha melhor amiga.

D. Umbelina sentou-se ao lado dela, agradeceu com um beijo prolongado e sonoro essa prova decisiva de confiança e amizade, e, tomando-lhe as mãos, assim falou:

- Ritinha, o casamento é uma cruz que é mister saber carregar. Teu marido engana-te... se é que te engana...

- Engana-me!..

— Pois bem, engana-te, sim, mas... com quem? Reflete um pouco, e vê que esse ridículo namoro de janela, que o obriga a madrugar, sair dos seus hábitos, é uma fantasia passageira, um divertimento efêmero que não vale a pena tomar a sério.

— Achas então quê?...

— Filha, não há no mundo marido algum que seja absolutamente fiel. Faze como eu, que fecho os olhos às bilontrices (pilantragens) do Melo, e digo como dizia a outra: — Enquanto andar lá fora, passeie o coração à vontade, contanto que me o restitua quando se recolher ao lar doméstico.

— Filosofia no caso!

— Vejo que não sentes por teu marido o mesmo que sinto pelo meu...

A filósofa conservou-se calada alguns segundos, e, dando em D. Ritinha outro beijo, ainda mais prolongado e sonoro que o primeiro, prosseguiu assim:

— Se fizeres cenas de ciúmes a teu marido, apenas conseguirás que ele se afeiçoe deveras à tal modista; o que por enquanto não passa, felizmente, de um namoro sem consequências, poderá um dia transformar-se em paixão desordenada e furiosa!

— Mas...

— Não há mas nem meio mas! Cala-te, resigna-te, devora em silêncio tuas lágrimas, e observa. Se daqui a oito ou dez dias durar ainda esse pequeno escândalo, vem de novo ter comigo, e juntas combinaremos então o que deverás fazer.

— Aceito de bom grado os conselhos, minha boa amiga, mas não sei se terei forças para sofrear a minha indignação e os meus ciúmes.

— Faze o possível por sofreares. Lembra-te que és mãe. Quando um casal não vive na mais perfeita harmonia, a educação dos filhos torna-se extremamente difícil.

Alentada por esses conselhos amistosos e sensatos, D. Ritinha Torres despediu-se da sua melhor amiga, e foi para casa muito disposta a carregar com resignação a cruz do casamento.
***

Logo que ficou sozinha, D. Umbelina que até então a custo se contivera, teve também uma longa crise de lágrimas.

Mas, serenada que foi essa violenta exacerbação dos nervos, a moça correu ao telefone, e pediu que a comunicasse com a repartição onde Venâncio Torres era empregado.

— Alô! Alô!

— Quem fala?

— O Sr. Venâncio está?

— Está. Vou chamá-lo.

Três minutos depois D. Umbelina telefonava ao marido de D. Ritinha que precisava falar-lhe com toda urgência.

Ele correu imediatamente à casa dela, onde foi recebido com uma explosão de lágrimas e imprecações.

— Que é isto?! Que é isto?! – perguntou atônito.

— Sei tudo! – bradou ela. – Tua mulher esteve aqui e contou-me o teu namoro com a modista de defronte!

Venâncio ficou alterado.

— A idiota veio perguntar-me, a mim, que sou tua amante, o que devia fazer! Eu disse-lhe que fechasse os olhos, que se resignasse...

E agarrando-o com impetuosidade:

— Ah! Mas eu é que me não resigno, sabes? Eu não sou tua mulher, sabes? Eu amo-te, sabes?...

— Isso é uma invenção tola... Eu não namoro modistas.

— Olha, Venâncio, se continuares, tudo saberei, porque incumbi a tua própria mulher de me pôr ao fato de tudo quanto se passar! Se persistires em namorar essa costureira, darei um escândalo descomunal, tremendo, nunca visto... — Afianço-te que te arrependerás amargamente! Tu ainda não me conheces!...

Venâncio tinha lábias: desfez-se em desculpas e explicou, o melhor que pôde, as suas madrugadas.

D. Umbelina, que ardia em desejo de perdoar, aceitou a explicação. Entretanto, ameaçava-o sempre:

— Olha que se me constar que... Não te digo mais nada!...

E os dois amantes celebraram as pazes do modo mais definitivo possível.

Pouco antes da hora em que devia chegar o dono da casa com o seu coração intacto, Venâncio, que descia a escada, parou, e retrocedeu três ou quatro degraus para dizer a D. Umbelina:

– Queres saber de uma coisa? Essa história da modista é bem boa: serve perfeitamente para desviar qualquer suspeita que minha mulher possa ter da sua melhor amiga...

E desceu.
***

Oito dias depois, D. Umbelina de Melo recebia um bilhete concebido nos seguintes termos:

"Minha boa amiga. — Parece que tudo acabou, felizmente. Depois que estive contigo, nunca mais Venâncio se levantou cedo, nem foi à janela. Deus queira que isto dure! Como sou feliz!
—  Tua do coração, Ritinha Torres.”

Fonte: Artur de Azevedo. Contos efêmeros. Publicado em 1897. Disponível em Domínio Público

Cassiano Ricardo (Poemas Escolhidos) = 6


DEPOIS DE TUDO

Mas tudo passou tão depressa.
Não consigo dormir agora.

Nunca o silêncio gritou tanto
nas ruas da minha memória.

Como agarrar líquido o tempo
que pelos vãos dos dedos flui?

Meu coração é hoje um pássaro
pousado na árvore que eu fui.
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DESEJO

As coisas que não conseguem morrer
Só por isso são chamadas eternas.
As estrelas, dolorosas lanternas
Que não sabem o que é deixar de ser.

Ó força incognoscível que governas
O meu querer, como o meu não-querer.
Quisera estar entre as simples luzernas
Que morrem no primeiro entardecer.

Ser deus — e não as coisas mais ditosas
Quanto mais breves, como são as rosas
É não sonhar, é nada mais obter.

Ó alegria dourada de o não ser
Entre as coisas que são, e as nebulosas,
Que não conseguiu dormir nem morrer.
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DISTRAÇÃO

Cansado de buscar na terra o que procuro,
em meio do caminho encontrei o homem puro:
"Não viste, ó lenhador feliz que estás cantando
no teu rancho de palha, à luz da tarde morta,
não viste se passou, nem sabes quando,
uma princesa pela tua porta?"

"Eu estava cortando a lenha, lá no mato,
e devido ao rumor das árvores no vento,
e ao barulho sem fim das águas no regato,
não ouvi passo algum, nem canto, nem lamento
que me ferisse o ouvido e me pusesse atento,
a não ser. . . o rumor das águas no regato
e o barulho sem fim das árvores no vento. . .
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DITIRAMBO DA PAZ

quero paz
não
de pás
de cal
nem de pas-
maceira

quero paz
de pás
ao ombro
paz viva
paz
que mantém
o homem
em pé
na pers-
pectiva
do advir.

paz
de sempre
viva
muito viva
que cada um
de nós
cultiva
no peito
homem da
rua
ou na faina
do eito
lutando por
uma
madrugada
definitiva
= = = = = = = = = 

“É TARDE, É MUITO TARDE”

I
Todas as horas se
resumem num minuto.
Os pés me ficam juntos,
conciliados.
Todos os meus caminhos
se encontram em um só.
E eu fico nu de tempo,
nu de espaço.

Fico sendo eu, só eu.

Então aceito a hora,
a única entre todas
no mundo coletivo
que só seria minha.
Terrivelmente minha.
Mais que a de haver nascido.
Mais que a do amor.

Atravesso o horizonte
dos meus pés com a terra.
A minha própria noite.
O meu auto-retrato.

Fico sendo eu, só eu.
Vejam bem que sou eu.

Mas agora já é tarde.

II

Gastei o meu futuro
em coisas que não fiz.

A tarde é quase humana
quando em mim pousa. A tarde
atrozmente enfeitada
de cores, ainda arde;
porém, já não me engana.
É tarde. É muito tarde.

Só haveria um remédio.
Era o de ter prestado
mais atenção à vida.
Era eu ter consultado
mais vezes o relógio
Era o eu ter querido
mais a ti do que quis.

Mas gastei meu futuro
em coisas que não fiz.

É tarde. É muito tarde.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

ELEGIA RÚSTICA

Nasci para viver no mato: o chão da selva
todo se enrelva de um tapete luxuriante!
A folhagem, que baila em cima, a cada instante,
é uma pelúcia toda verde que descobre
os ombros senhoriais da floresta arrogante.

Acordo. Pelos vãos da choça, a alva derrama
como em fitas de cor, seus cabelos de chama.
Rodopiando no vento o arvoredo frufrulha
vendo-se, pelos vãos, a montanha cerúlea
onde o sol escorreu, em laivos de ouro e cobre.

Na manhã tropical, borrifada de orvalho
e manchada de terra, ou nestes coloridos
caminhos que percorro a pé, sem agasalho,
parece que inauguro os meus cinco sentidos!
Há uma flor que me diz bom-dia em cada galho.

Ah! devo descender de algum Anacreonte
anônimo, de pés no chão, sapatos rotos,
que se nutriu de mel lírico e gafanhotos,
frutos tintos de sol, água pura de fonte,
satisfeito com o seu pequenino horizonte.
Não sei o que mais ame: água, frutos ou pássaros.

E então digo, ao meu eco: Ó Deus, ó estrela, ó vento,
eu vim buscar, aqui, um pouco de silêncio
para ver se ainda curo as feridas enormes
que a angústia de pensar me abriu no pensamento.

Não sei o que mais ame: água, frutos ou pássaros.
Só sei que sinto em mim o agreste encanto
de aqui viver, bebendo orvalho e ouvindo as coisas
as lindas coisas que me diz a alma confusa
toda enredada de cipós, do próprio mato:
o choro tagarela de um regato,
uma cigarra que cem vezes recomeça
sua clara canção intermitente
até ficar chorando escandalosamente. . .

E quando a noite vem, numerosa, selvagem,
a minha alma descansa em seus beijos eólios;
e pelos vãos da choça, através da folhagem,
são as estrelas a inocência dos meus olhos.

Fonte> Cassiano Ricardo. Vida e Obra. Disponível em https://www.fccr.sp.gov.br/portalcassianoricardo/#

Recordando Velhas Cancões (Maria, Maria)


Compositores: Milton Nascimento e Fernando Brandt

Maria, Maria é um dom, uma certa magia
Uma força que nos alerta
Uma mulher que merece viver e amar
Como outra qualquer do planeta

Maria, Maria é o som, é a cor, é o suor
É a dose mais forte e lenta
De uma gente que ri quando deve chorar
E não vive, apenas aguenta

Mas é preciso ter força, é preciso ter raça
É preciso ter gana sempre
Quem traz no corpo a marca
Maria, Maria mistura a dor e a alegria

Mas é preciso ter manha, é preciso ter graça
É preciso ter sonho sempre
Quem traz na pele essa marca
Possui a estranha mania de ter fé na vida

Mas é preciso ter força, é preciso ter raça
É preciso ter gana sempre
Quem traz no corpo a marca
Maria, Maria mistura a dor e a alegria

Mas é preciso ter manha, é preciso ter graça
É preciso ter sonho sempre
Quem traz na pele essa marca
Possui a estranha mania de ter fé na vida
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Maria, Maria: Um Hino de Resiliência e Esperança por Milton Nascimento
A canção 'Maria, Maria', composta por Milton Nascimento e Fernando Brant, é uma obra que transcende o tempo com sua mensagem de resiliência e esperança. Lançada em 1978, no álbum 'Clube da Esquina 2', a música se tornou um dos clássicos da Música Popular Brasileira (MPB), sendo interpretada como um hino de força e coragem, especialmente para as mulheres brasileiras.

A letra da música retrata a figura de Maria como uma representação de todas as mulheres, destacando suas lutas e a capacidade de enfrentar adversidades com determinação. A 'certa magia' e a 'força que nos alerta' mencionadas na canção podem ser interpretadas como a energia e a resiliência femininas, que inspiram e movem a sociedade. A repetição do nome 'Maria' reforça a universalidade da personagem, tornando-a um símbolo de todas as mulheres que, apesar das dificuldades, mantêm a fé e a esperança na vida.

A música também aborda a realidade de muitas pessoas que 'não vivem, apenas aguentam', sugerindo uma crítica social às condições de vida de muitos brasileiros. A 'dose mais forte e lenta' pode ser vista como as dificuldades diárias enfrentadas, mas que são suportadas com um sorriso, mesmo quando seria natural chorar. A 'estranha mania de ter fé na vida' é um traço cultural do povo brasileiro, que apesar dos desafios, mantém o otimismo e a capacidade de sonhar com dias melhores. 'Maria, Maria' é, portanto, um convite à reflexão sobre a força feminina e a resiliência humana, elementos essenciais para a superação dos obstáculos da vida.