quarta-feira, 5 de junho de 2024

Vereda da Poesia = 25 =


Trova Humorística de Miguel Couto/RJ

EDMAR JAPIASSÚ MAIA

Ela engana o marinheiro
que sempre lhe afoga a mágoa.
Também engana o padeiro...
e vai vivendo a pão e água!
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Poema de Porto União/SC

BENJÚNIOR
(Benevides Garcia Barbosa Júnior)

TARDE AZUL

Olhando por esta janela antiga,
Nem mais sei 
O que eu sou.
Já não ouço mais
Meus blues,
Nem tenho tempo
Para ver o sol nascer.
Só restam lamentos
Nas minhas tardes azuis,
Uma tristeza profunda, 
Vontade de não mais ser...
Como um espantalho
levado pelo vento
vou seguindo a vida,
esquecido dos deuses,
ermo de amores,
carente de pensamentos,
distante de tudo,
crivado de dores...
Sou agora aquele que nunca foi.
Aquele que nunca ousou,
alguém que nunca amou...
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Aldravia de Juiz de Fora/MG

CECY BARBOSA CAMPOS

na
orquestra
da
vida
sons
dissonantes
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Soneto de Vitória/ES

BERNARDO TRANCOSO
(Bernardo Sá Barreto Pimentel Trancoso)

LOUCURAS DE AMOR (I)

Torcer por um amor insano, incerto,
É ser um sonhador, ter peito aberto
Pra suportar a dor, infernizante,
Que a insegurança traz a cada instante.

É ver a alma perdida num deserto,
Sedenta e entristecida; é estar tão perto
De ser feliz na vida e tão distante
Desta felicidade, desta amante.

Passa o tempo e o desejo permanece,
Mas o corpo envelhece. Penso, então,
Que a alegria se encontra em outro plano.

Sabendo disso, um ser novo aparece
E, pretendendo alçar seu coração,
Arrisco um novo amor incerto, insano. 
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Trova Premiada  em Montes Claros/MG , 2010

OLGA AGULHON 
(Maringá/PR)

Mesmo das lutas vencidas,
restou-me tanto cansaço,
que nas armas recolhidas
só vi renúncia e fracasso.
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Poema de Évora/Portugal

POETA SILVAIS
(Manuel Joaquim Frades Carvalhal)

DEDICADO AO MENSAGEIRO
  
Mensageiro a Poesia
Está-te muito agradecida
E o Poeta dia a dia
Dá-te rimas que são vida
 
De tristeza já esquecida
Por carinho e simpatia
A pobreza enriquecida
Dá-te amor por cortesia
 
Do pai da mãe e da tia
Do primo do neto e avô
Quero que siga a “Dinastia”
Desta herança que te dou
 
O amar a quem te amou
E amanhã quem te amará
Daquilo que não estimou
Nunca nada te dará
 
Qualquer dia venho cá
E não é pra te agradar
Quem critica ajudará
Tua vida a melhorar
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Quadra Popular de Faro/Portugal

ISIDORO CAVACO
(Antonio Isidoro Viegas Cavaco)

Dando aos sonhos mais diversos,
forma, pureza e encanto,
apenas em quatro versos
os poetas dizem tanto!...
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Soneto de Lisboa/ Portugal

JOAQUIM EVÓNIO
(Joaquim Evónio Rodrigues de Vasconcelos)
(Funchal/Ilha da Madeira/Portugal, 1938 – 2012, Lisboa)

NOTURNO EM SETEMBRO

Hoje a lua nasce muito mais tarde
Nesta tristeza que trago comigo
Rompe farrapos do céu sem estrelas
Prata que não tange os sinos da aldeia

Dormem os poetas da minha rua
E os cães ladram sem saber porquê
Enquanto mais além é o silêncio
Que governa o tempo e o espaço

E eu observador intemporal
Prisioneiro de minhas verdades
Deitei-me logo a adivinhar

Se mais tarde quando o sol nascer
A lua lhe vai dizer em segredo
A solidão que passou esta noite
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Trova de Natal/RN

JOSÉ LUCAS DE BARROS
(Serra Negra do Norte/RN, 1934 – 2015, Natal/RN)

Zarpei ao romper do dia,
no meu barco, a velejar,
para "pescar" a poesia
que a Lua escondeu no mar.
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Poema de Alegrete/RS

MARIO QUINTANA
(Mário de Miranda Quintana)
(Alegrete/RS, 1906 – 1994, Porto Alegre/RS)

DATA E DEDICATÓRIA

Teus poemas, não os dates nunca... Um poema
Não pertence ao Tempo... Em seu país estranho
Se existe hora, é sempre a hora extrema
Quando o Anjo Azrael nos estende ao sedento
Lábio o cálice inextinguível...
O que tu fazes hoje é o mesmo poema
Que fizeste em menino,
É o mesmo que,
Depois que tu te fores,
Alguém lerá baixinho e comovidamente,
A vivê-lo de novo...
A esse alguém,
Que talvez nem tenha ainda nascido,
Dedica, pois, teus poemas,
Não os date, porém:
As almas não entendem disso…
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Triverso de São Paulo/SP

CARLOS SEABRA

que flor é esta,
que perfuma assim
toda a floresta?
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Sextilha de Fortaleza/CE

NEMÉSIO PRATA
(Nemésio Prata Crisóstomo)

POEMA DO ESQUECIMENTO... 

Quando o tempo passa, a gente 
passa a se esquecer "tudo", 
uns dizem: "tá é demente!"; 
discordo..., porém, contudo, 
entretanto, todavia..., 
já esqueci o que escrevia: 
mas comigo é diferente!
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Trova de Mangualde/Portugal

ELISABETE DO AMARAL
(Elisabete do Amaral Albuquerque Freire Aguiar)

A vida é feita de nadas,
enganando muita gente
que julgando águas paradas
vai ao sabor da corrente.
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Glosa de Porto Alegre/RS

GISLAINE CANALES
Herval/RS, 1938 – 2018, Porto Alegre/RS

AO AMOR

Mote:
Em ternura plena e extrema,
nossos sonhos se cruzaram!
E a noite se fez poema...
E os versos também se amaram!...
FLÁVIO ROBERTO STEFANI
(Porto Alegre/RS)

Glosa:
Em ternura plena e extrema,
nos entregamos os dois,
numa carícia suprema,
sem antes e sem depois.

Nesse momento tão lindo,
nossos sonhos se cruzaram,
vivemos o amor, sorrindo,
por todos que já se amaram.

De amor, então, fiz meu lema.
Em beijos eu li teus versos,
e a noite se fez poema...
Unindo os sonhos dispersos.

Poesia, carinho e amor
abraçados, se irmanaram...
Nos amamos com fervor,
e os versos também se amaram!...
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Epigrama de Portugal

BOCAGE
(Manuel Maria de Barbosa l'Hedois du Bocage)
(Setúbal, 1765 – 1805, Lisboa)

A UMA VELHA MUITO FEIA

Não veio a morte buscar-te
Com o seu chamante robusto,
Porque receia ao encarar-te
Morrer a Morte de susto.
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Soneto de Curitiba/PR

EMÍLIO DE MENESES
(Emílio Nunes Correia de Meneses
(Curitiba/PR, 1866 – 1918, Rio de Janeiro/RJ)

NUMA LÁPIDE

Qual se teu filho fora, eu me acabrunho
E, de mágoa, a falar-te mal me atrevo.
Aceita, entanto, o humilde testemunho
De quanto foste meu sagrado enlevo.

Fosse-me dado, de cinzel em punho,
Talhar o liso mármore em relevo,
E eu daria da pedra o eterno cunho
Às estrofes que em pranto e sangue escrevo:

Sei que não cabem nestes sons dispersos
O pranto em que esta angústia não se acalma,
E o sangue em que tais sons morrem imersos.

Não cabe dentro de votiva palma
Nem na estreiteza de mesquinhos versos
O infinito de dor que tenho na alma.
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Trova Premiada  em Nova Friburgo/RJ, 1995

RITA MOURÃO
(Rita Marciano Mourão)
(Ribeirão Preto/SP)

Quando esta lua indiscreta, 
me traz lembranças sem fim 
eu choro o velho poeta 
que morreu dentro de mim. 
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Spina de São Paulo/SP

ARTUR JOSÉ CARREIRA

AMORES

Amores são diferentes
Amores são diversos:
Inversos são rancores.

Seus versos rimam meio assim,
Nos perplexos olhares, não sós,
Se prestam pelos seus favores.
Amores são divinos, sem alarde
Apenas pétalas ao chão, flores.
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Trova de São Paulo/SP

ELIAS PESCADOR
(Aparecido Elias Pescador)

Tropeiro da mocidade
galopando a solidão,
foste conquista, e és saudade
que deixa rastro em meu chão...
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Poema de Maia/Portugal

JOSÉ CARLOS MOUTINHO

MURMÚRIOS DISTANTES

Sufocam-me os dias do meu estar,
Aperta-se-me o peito angustiado pelo nada;
Solta-se-me um grito estrangulado
Que voa, pelos vales da esperança,
E é a tua voz, que no eco, me responde,
Palavras de amor e arrependimento;
Mas estão longe, muito longe,
E chegam-me num murmúrio…
Perdem-se na distância dos erros cometidos
E momentos sofridos,
Que nem os místicos luares sararam;
Tampouco as estrelas que nos iluminavam,
Te mostraram a luz do nosso caminho;
Desperdiçaste a felicidade que se te oferecia,
De um coração aberto e uma alma transbordante,
De alegria constante!
Recusaste o sol que aqueceria a tua frieza,
Renegaste até os perfumes que a natureza,
Te colocou na floreira da tua vida,
Na forma de belas rosas vermelhas,
Oferecidas em instantes de êxtase

Agora o Universo gira num desatino,
Descontrolado pela razão da inconsciência,
Que me leva a uma irónica saudade,
Que não faz mais sentido,
Metamorfoseada por outras razões.
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Poetrix do Rio de Janeiro/RJ

LÍLIAN MAIAL

violoncelo plangente
(o arco arranca sustenidos):
sinfonia pelo chão
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Poema de Curitiba/PR

DANIEL MAURÍCIO

Com a porta
entreaberta
Deixei que entrasses
No meu céu.
E no céu da tua boca
A lua procurei.
Mas pra
Surpresa minha,
Quando estava
De olhos fechados,
Estrelas
Tu me fizeste ver.
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Trova de Sorocaba/SP

TAPAJÓS DE ARAÚJO
(Raimundo de Araujo Chagas)
(Sorocaba/SP, 1894 – 1969)

Nesse amor aberto em palmas,
espero encontrar depois
um céu para duas almas
e um sonho para nós dois.
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Triolé* do Rio de Janeiro/RJ

MACHADO DE ASSIS
(Joaquim Maria Machado de Assis)
(1839 – 1908)

FLOR DA MOCIDADE

Eu conheço a mais bela flor:
És tu, rosa da mocidade,
Nascida, aberta para o amor.
Eu conheço a mais bela flor:
Tem do céu a serena cor
E o perfume da virgindade.
Eu conheço a mais bela flor:
És tu, rosa da mocidade.
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 
* Triolé, pequeno poema de forma fixa. Originário da França (triolet), ao mesmo tempo em que o rondel e o rondó, com os quais é confundido; o triolé tem sua própria estrutura poética. Deschamps, poeta francês medieval, julgava-o igual ao rondel, e assim há quem o considere até hoje. Caiu em desuso (completo) no século XVI e foi reerguido, na metade do século XIX, pelos poetas parnasianos. Dentre os nossos que experimentaram o triolé, destaca-se um nome ilustre, Machado de Assis.

A estrutura do triolé consta do seguinte: uma oitava, ou mais, com duas rimas apenas, de modo que o primeiro verso repete no quarto, e os dois primeiros fecham a estrofe, como o sétimo e oitavo, assim: ABaAabAB (as maiúsculas representam os versos que são repetidos como estribilho).

Consta de estrofes de oito versos, em duas rimas, com a seguinte disposição: abaaabab. O 1.º, o 4.º e o 7.º versos são iguais.

Contos das Mil e Uma Noites (A justiça de Karakouss)

Karakouss foi um dos déspotas mais esquisitos da história.

Seu nome tornou-se símbolo da injustiça, e a sua injustiça tinha um cunho especial, como mostra a seguinte história:

Quando Karakouss era governador do Cairo, um ladrão tentou entrar numa casa para roubar. Escalou a parede até a janela. Mas a moldura da janela cedeu, e o ladrão caiu na rua, quebrando a perna. 

No dia seguinte, o ladrão se apresentou perante o governador e disse: “Vossa Excelência, eu sou um ladrão de profissão. Ontem, tentei entrar numa casa para roubar, mas a moldura da janela era muito fraca; cedeu, e caí e quebrei a perna.” 

Karakouss ordenou aos seus guardas que trouxessem o proprietário da casa. O proprietário chegou, trêmulo. O governador repetiu-lhe a narração do ladrão e acrescentou: “Por que fizeste a moldura da tua janela tão fraca que cedeu e levou este pobre ladrão a quebrar a perna?” 

O homem empalideceu; mas ele conhecia o governador. Refletiu rapidamente e disse: “Excelência, não foi culpa minha. Eu paguei ao carpinteiro o bastante para que ele fizesse uma moldura resistente. Por que a fez fraca, não sei.” 

- Bem pensado, disse o governador. Trazei-me o carpinteiro. 

Quando o carpinteiro se apresentou, Karakouss lhe disse: “Este homem diz que te pagou o suficiente para que instalasses uma boa janela em sua casa. Por que fizeste a moldura da janela fraca demais para aguentar o peso desse pobre ladrão, que caiu e quebrou a perna?” 

O carpinteiro respondeu: “Excelência, não foi culpa minha. Quando estava instalando a moldura, uma moça bonita e vestida de vermelho passou na rua; distraí-me e esqueci de colocar os pregos necessários.” 

Karakouss mandou averiguar quem era a beldade e ordenou que a trouxessem. 

Quando ela chegou disse-lhe: “Foi por causa da tua beleza e do teu vestido vermelho que este carpinteiro não fixou bem a moldura da janela e, por consequência, este pobre ladrão caiu e quebrou a perna.” 

A moça respondeu: “Excelência, a minha beleza é de Alá, e o meu vestido, do comerciante da esquina.” 

-Trazei-me o comerciante, gritou Karakouss na sua procura da justiça absoluta. 

Quando o comerciante chegou, Karakouss lhe disse: “Tu, miserável comerciante! Por que vendeste um vestido vermelho a essa moça fazendo-a distrair o carpinteiro no seu trabalho e causando a infelicidade desse pobre ladrão?” 

O comerciante não soube o que responder, e Karakouss ordenou aos seus guardas: “Levai-o e enforcai-o na porta da prisão.” 

Mas o comerciante era muito alto para a porta da prisão. Os guardas inteiraram o governador do fato. 

Karakouss tinha resposta para tudo. Ordenou: “Procurai um comerciante baixinho e enforcai-o no lugar deste.” 

Os  guardas procuraram um comerciante baixinho, trouxeram-no apesar dos seus protestos e enforcaram-no na porta da prisão.

Assim, foi cumprida a justiça de Karakouss.

Fonte: As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX. Disponível em Domínio Público.

Recordando Velhas Canções (Mestre Sala dos Mares)


Compositores: João Bosco e Aldir Blanc

Há muito tempo nas águas da Guanabara
O dragão do mar reapareceu
Na figura de um bravo feiticeiro
A quem a história não esqueceu

Conhecido como o Navegante Negro
Tinha a dignidade de um mestre-sala
E ao acenar pelo mar
Na alegria das regatas

Foi saudado no porto
Pelas mocinhas francesas
Jovens polacas
E por batalhões de mulatas

Rubras cascatas jorravam das costas dos santos
Entre cantos e chibatas
Inundando o coração do pessoal do porão
Que a exemplo do feiticeiro gritava então

Glória aos piratas, às mulatas, às sereias
Glória à farofa, à cachaça, às baleias
Glória a todas as lutas inglórias
Que através da nossa história

Não esquecemos jamais
Salve o Navegante Negro
Que tem por monumento
As pedras pisadas do cais

Mas salve
Salve o Navegante Negro
Que tem por monumento
As pedras pisadas do cais

Mas faz muito tempo
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 

Navegação pela História: A Ode a João Cândido em 'Mestre Sala dos Mares'
A música 'Mestre Sala dos Mares', composta por João Bosco e Aldir Blanc, é uma homenagem a João Cândido, figura histórica brasileira conhecida como 'O Almirante Negro'. A letra faz referência à Revolta da Chibata, ocorrida em 1910, quando marinheiros se rebelaram contra os castigos físicos, então comuns na Marinha Brasileira. João Cândido liderou essa revolta, lutando pela dignidade e contra as condições desumanas a que eram submetidos os marinheiros, em sua maioria negros e pobres.

A canção utiliza metáforas náuticas e imagens festivas para descrever a figura de Cândido, comparando-o a um 'mestre-sala', personagem tradicional do carnaval brasileiro, que com sua elegância e liderança, guia a escola de samba. A menção às 'regatas' e ao aceno pelo mar simboliza a liderança e o respeito que Cândido conquistou. As 'rubras cascatas' podem ser vistas como uma representação do sangue derramado pelos revoltosos e a resistência dos oprimidos, que mesmo em condições adversas, encontravam motivos para celebrar a vida e a liberdade.

A música também faz uma crítica social ao mencionar que o 'Navegante Negro' tem como monumento apenas 'as pedras pisadas do cais', uma referência à falta de reconhecimento e valorização dos heróis populares na história oficial. A repetição do verso 'Mas faz muito tempo' no final da música sugere que, apesar dos anos, as lutas e injustiças sociais continuam presentes e não devem ser esquecidas.

Teófilo Braga (O Evangelho da desgraça)

Era uma criança linda, linda como os amores. Os movimentos impensados da infância davam-lhe a cada instante uma nova expressão de candura, faziam ama-la, beija-la. Ela não sabia que estava sozinha no mundo; a pomba não tinha a asa maternal sob que se ocultasse, quando viesse o abutre pairando para arrebata-la. Ria, descuidada.

A graça com que saltava! Parecia um pequeno gato quando brinca.

Faltava-lhe pai e mãe que lhe soubessem interpretar todos os requebrados, a meiguice das palavras apenas balbuciadas, adivinhar seus medos, aspirar-lhe os risos, unir-se às suas alegrias, beber-lhe as lágrimas sem motivo.

Era uma florzinha nascida á beira da estrada, exposta aos ventos da noite, ao rigor das calmas, ao tropel dos que passam, banhada de perfumes que ninguém vem respirar, derramados ao capricho das virações. Pobre filha! Como estas plantas que se estiolam e secam, mal rebenta o gomo que as há de substituir, a mãe morrera ao traze-la à luz; com ela se foram para a cova todos os carinhos que nos embalam e fazem esquecer as dores por onde se nos dá a conhecer a vida.

Sem mãe!

Ninguém sabe o que é ver descer a noite negra, e as crianças que brincavam conosco caírem de cansadas em um regaço que acalenta, ouvir as cantigas que as adormecem e lhes afastam o medo; e não saber por que não temos aquilo também, não haver quem nos chame, nos fale e nos conte maravilhas, e nos esconda no calor benigno de um seio que bate por nós. A orfandade! E depois quando os primeiros alvores da mocidade começam a dourar-nos a existência, a acordar a um tempo todos os sentimentos bons e santos, não ter quem nos descubra e faça pressentir as sarças que nos podem prender, as torrentes que nos podem levar, os abismos em que se pode cair. Uma mãe! Ela nos ensina a amar e nos faz bons com o seu amor.

E se o amor não considerado da glória nos arrasta, se a vertigem de alcança-la dá coragem para afrontar o impossível, sacrificar a vida por um fumo que o tempo dissipa, feliz de quem tem uma lágrima na vida que nos ensine o que ela vale, para não da-la por tão pouco.

Mas a pobre criança na sua ignorância ditosa não sabia disto; brincava sozinha, aprendia a ser mãe. Que afagos perdidos com a boneca que embalava ao seio, que beijava, vestia e despia, falando com uma ternura que ela adivinhava, porque nunca no mundo ninguém lhe a havia dado, ensinado.

Aos sete anos perdeu seu pai; era pescador. Ele e a sua barca desapareceram em uma noite de temporal. Costumada a vê-lo poucas vezes, a criança não deu pela falta; esqueceu-se de que tinha pai, como se acostumara à falta dos desvelos de sua mãe. O pescador, quando ia para a costa deixava-a sempre em casa de uma vizinha, com quem distribuía os diminutos ganhos que apurava. Esta vizinha era como todas as pessoas que rezam muito com a mira no céu, e de tal forma se tornam refratarias a todo o sentimento, sem afeição a ninguém, incapazes de uma generosidade; então para as crianças, que não compreendem, são mais aterradoras que um mestre de meninos.

Quando a vizinha soube da morte do pescador, carpiu, deplorou, sem saber como subtrair-se ao encargo da abandonada criança. Se até ali o mínimo descuido e desmazelo eram providenciais, porque ao menos não vinham atrofiar os impulsos expansivos da infância, dali em diante a vizinha arrogou-se a autoridade absoluta, expressa nesta máxima popular: quem dá o pão dá o ensino. Mas a criança tinha um dom que a defendia de todas as atrocidades brutais da prepotência irresponsável, era linda, linda! 

Quantas vezes não passou pela cabeça da desalmada vizinha ampara-la até a idade em que pudesse auferir um lucro criminoso daquela formosura angélica. Beleza funesta que vem acumular a desgraça a indigência, dar uma cor mais sinistra a miséria. Tinha sete anos apenas! custava tanto esperar. Lembrou-se então a vizinha—uma ideia luminosa que a livrou de escrúpulos de consciência e lhe asserenou o animo alvoroçado por uma caridade que a sorte lhe impusera—a criança tinha ainda um avô do lado materno, feitor de uma rica propriedade. Era a algumas léguas de distancia; em um domingo, depois da missa da madrugada, pôs-se a caminho com a pequena e foi entrega-la ao avô.

Nada mais comovente do que a infância e a velhice quando se amam e se compreendem; tem ambas uma frescura juvenil, o frescor dos orvalhos dourados da alvorada e da geada noturna, a luz e sombra formando um brando crepúsculo em que se cisma sonhando alegrias por vir e ilusões que não tornam.

Não se descreve a loucura de júbilo que o velho sentiu ao ver a criança, carne da sua carne, uma parte da sua alma, que reflorescia viçosa no engraçado renovo. Ria, chorava no seu transporte, doido, doido de contente ao beija-la. Fitava-a, esquecia-se a ver-se naquele retrato, a menina dos seus olhos, como lhe chamava quando os soluços lhe não embargavam a voz.

— Eu não podia morrer, sair deste mundo, sem te ver, minha filha! Tu bem sabias isto; foram os anjos que te o disseram, por isso quiseste vir. Trazes-me o dia mais alegre da minha vida. Quando tua mãe nasceu foi num dia como este, e eu não me alegrei tanto; não me lembrava que uma filha é o melhor encanto da velhice! Estava longe da minha aldeia, muito longe, andava na guerra havia quase um ano, e ainda não era bem um que estava casado. Quando voltei, já tua avó e tua mãe tinham morrido. Não te importam estas cousas! Tu queres brincar? Vai correr, anda a tua vontade. Como ela é tão bonita! 

Eu choro sem saber porquê! Tinha pedido tantas vezes ao pai que a trouxesse cá um dia. Eu não devo deixa-la ir; ela é minha agora.

Quando o velho soube que a criancinha estava completamente órfã no mundo, deu graças ao céu por lhe haver poupado a vida de tantos riscos que atravessara. Julgava-se o roble secular que protege o arbusto flexível, quando as rajadas retorçam na floresta. 

Queria penetrar os desígnios da providencia, que o destinara no declinar dos anos para a guarda deste tesouro de candura.

O velho, à noite, sentava-a sobre os joelhos, falava como a uma pessoa desenvolvida, contava-lhe histórias do passado, até que adormecia, e se esquecia velando ao pé dela, horas inteiras. O que lhe não contaria o velho na sua simplicidade de justo? Mutilado como estava das longas batalhas em que entrara, perguntava-lhe a criança a história de  cada cicatriz. Ela nunca vira estas deformidades nas outras pessoas e tinha medo; o velho distraía-se de contínuo pintando-lhe as pelejas, as contraminas, as cargas; às vezes não falava para ela, falava consigo, veemente, exaltado, por fim ria-se de si, e acabava por beija-la muito. Isto repetido quase sempre ao fim da tarde, quando o sol dardejava na aresta da montanha, e vinha de longe a toada dolorida e plangente da sineta de uma freguesia próxima.

A aparência do velho infundia consolação; a falta de dentes dera-lhe uma disposição aos beiços desbotados de modo que parecia ter sempre um riso de mofa, inofensivo, divertido, comunicativo. Sobretudo, o que era mais simpático na sua fealdade eram uns olhos, de pequenos, tão alegres e vivos, que pulavam, como no vigor da idade e das paixões, em umas orbitas encovadas, maceradas pela senectude. As cicatrizes das balas e espadadas, misturando-se com as rugas da velhice, em vez de o tornarem repulsivo, davam-lhe um aspecto atraente, em que o bom humor que o animava deixava refletir um fundo de bondade, que tem quase sempre as pessoas que sofreram bastante.

E quanto não tinha ele sofrido? Noivo, casado de um ano, viu-se forçado a abandonar seu lar, deixar a roupa de camponês pela farda apertada, a choça pela caserna, o nome por um número, o leito fresco, cheiroso com roupas de linho, pela tarimba, e sobretudo a vida santificada da família que acabava de formar em roda de si, pela guerra em que se ia confundir.

Fora no tempo da guerra peninsular. Uma estrela funesta o acompanhou sempre, amparando-lhe a vida para sofrimentos inauditos. Nunca entrou em ação donde não voltasse ferido; todos galardoados sempre, dele ninguém se lembrava! A jovialidade dava-lhe forças para resistir a opressão da injustiça. De uma vez levaram-lhe os dedos quase todos, porque em uma carga de cavalaria teve de fazer das mãos capacete.

Retalhado, calcado aos pés do esquadrão, ainda ali a sorte acintosa o guardou para novas provações. O pobre soldado não sabia queixar-se; por fim como não pudesse dar ao gatilho, passaram-no para a artilharia.

Aí subiu de ponto a sua infelicidade. Em uma investida a peça que descarregava esteve quase nas mãos do inimigo; era um magnifico apresamento. Exasperado de raiva encravou-lhe o fuzil, para não fazer mais fogo. Depois, que a levassem os contrários!

Nisto o pelotão foi distraído para outro lado. Julgaram então o mísero soldado traidor aos seus, e descarregou-lhe o general um golpe que o estendeu por terra. Em uma nova investida dos contrários conheceram a prudência do artilheiro, mas deixaram-no estendido por morto; as carretas passaram por sobre ele e fraturaram-lhe as pernas.

Pediu debalde aos inimigos, que iam de avançada, que o acabassem de matar. Ninguém o ouviu, com o estrépito das descargas e do rodar dos trens, o ruído da cavalaria e o eco dos clarins. Depois da batalha, quando iam atira-lo na vala, pediu que lhe poupassem a vida. Doeram-se dele e levaram-no.

Passados longos anos, depois de percorrer alheias terras e ter afrontado a fome e a solidão de estrangeiro, pôde voltar a sua aldeia, desacompanhado de felicidade, sem um único sinal de reconhecimento pelos serviços. A esposa que deixara um ano quase depois de casado, tinha já morrido, deixando uma filhinha na orfandade. Ela mesma fora crescendo, fizera-se mulher; humilde, havia dias que se casara também com um pobre pescador. O velho soldado não quis ir regar com a sua presença a sociedade dos dois esposos; restava-lhe um antigo amigo, que ouviu atento as suas calamidades, e o convidou para tomar conta de uma rica herdade que possuía. Ao menos encontrava no fim da vida a suavidade dos campos, e a tranquilidade da solidão.

Quando se tem sofrido muito, cada momento está cheio de saudades da vida, porque o sofrimento é o sinal mais certo de que se tem vivido.

Estava pois nesse remanso o velhinho quando no desejo de ver a criança, filha de sua filha, passara anos e anos na doce expectativa. Só quando lhe a trouxeram e a beijou com a loucura de quem se sente duas vezes pai, é que soube dos novos desastres que o saltearam. Que havia fazer senão resignar-se! Aquela planta débil e mimosa era o que lhe restava na vida; protegia-a com afã, solícito, esmerado, como um amante, cioso de que um átomo impagável de pó a maculasse.

Em todos os momentos, em qualquer parte o velho e a criança agrupavam-se tão bem, que a natureza, por mais bela e surpreendente, era sempre acessória, o fundo do quadro em que realçavam. Neste idílio encantador a criança passou a infância mais descuidada e feliz; a liberdade dos campos, a serenidade do espírito deram-se as mãos no desenvolvimento dela.

Estava uma rapariga! Linda, linda como os amores!

Quem a via esquecia-se a olhar, contemplava. Era mais um Serafim do que uma criatura.

Os olhos tremeluziam-lhe com um fulgor metálico; pareciam nunca terem sido empanados pelas lágrimas. Cantava a toda a hora como um passarinho das balsas; mas as cantigas que modulava distraída, eram a expressão do segredo mais recôndito da sua alma. Lavando na ribeira ao som da agua corrente, ouviram-lhe uma vez cantar:

Os meus olhos são dois peixes
Que nadam numa lagoa;
Choram lágrimas de sangue
Por uma certa pessoa.

E quem seria essa pessoa, a primeira que soube arrancar uma lágrima deste olhos tão puros e meigos? Maior que todos os poetas, mais do que Deus talvez, quem soube dar forma ao sentimento daquele coração virginal em uma gota de agua, uma lágrima caída, irmã gêmea das que os anjos andam pelo mundo aparando em suas urnas cristalinas, para as engastarem como estrelas da noite saudosa no vácuo do firmamento. E ela cantava:

O coração e os olhos
São dois amantes leais,
Quando o coração tem pena,
Logo os olhos dão sinais.

Ela espalhava ao vento os seus pesares, mas ninguém os percebia; o avô alegrava-se ao vê-la sempre entrar em casa cantando; mal sabia que a harmonia sonora era o ruído de uma grande tormenta. A pobre criança sofria muito, amava! Há na vida do coração um momento em que todas as emoções, impulsos e sentimentos se alevantam a um tempo, e vão após o primeiro que os acorda. São como os perfumes derramados pela primeira brisa que chega. É como um estado nascente da paixão.

Don Juan sabia por certo este segredo, conhecia o momento em que todas as mulheres se perdem, porque se dão ao primeiro que aparece. 

Nem ela conhecia porque amava, nem tampouco o impossível que se erguia entre o seu amor e o nascimento desigual daquele que a endoidecera com as palavras balbuciadas tremendo. Amava o filho do antigo amigo de seu avô, dono da herdade em que habitava; estúpido, uma dessas almas boçais, nascidas para deturparem tudo, porque não veem, nem sonham senão o mal, mesmo no instante em que a linguagem mais intima da candura vem afagar-lhes o deserto em que o seu egoísmo as esconde. Demais, ele tinha esta regularidade de feições, de uma monotonia que enfada, chata, insignificante, mas que dizia bem com a alma que o animava, incapaz de qualquer ato generoso, de instintos vis, mas julgando-se digno de todos os respeitos diante da sociedade. Tanto mais criminoso parecia, quanto era ainda novo, também criança, em quem se espera a ingenuidade dos primeiros anos que tudo perdoa.

Aquele que a inocente rapariga amava, não pensava senão em perde-la. Era tão fácil!

Estava desprevenida, não via a traição da onça traiçoeira, onde esperava uma atração irresistível! Mal haja quem não fala verdade neste episódio mais santo e verdadeiro de toda a existência.

A pobre pequena não sabia estas subtilezas do pecado; foi após os seus sentimentos, deixou-se adormecer ao som da voz que a iludia, para acordar com a gargalhada fria e insultante no fundo de um abismo onde fora atirada para sempre. A alegria que até ali tivera, e era a sua principal beleza, perdeu-a com a inocência.

Já não cantava; andava silenciosa, desolada, como na aflição de uma dor que se não exprime. A única pessoa que a amara verdadeiramente no mundo, seu avô, não tinha alma para perguntar-lhe o que a trazia assim opressa.

Ela envergonhava-se das lágrimas, represava-as, bebia-as! Uma vez, pela volta das trindades, o velho voltava do trabalho; pousou a enxada ao canto da choça. Sentaram-se a mesa frugal; não comiam, preocupados por uma angústia que se não atreviam a confessar um ao outro.

Afinal o avô perguntou-lhe com uma doçura inexcedível:

—O que tens?

Ela irrompeu neste instante em uma torrente de lágrimas irrepreensíveis; ia para falar, os soluços entrecortaram-lhe a voz; atirou-se ao pescoço do velhinho, estreitou-o a si, sem poder falar.

Era o maior golpe que o desgraçado soldado experimentava, o último que lhe abalava a vida.

Compreendeu tudo.

Traduziu as meias palavras da queixa dolorida, e soube que o filho do seu protetor fora o seu algoz.

Não podia acusa-lo, vingar-se; era uma horrível colisão de deveres! Ficou com a imobilidade do espasmo; hirto, como Bonifácio VIII diante da multidão que ia para despedaça-lo. Sentado a mesa, com a mudez do assombro, assim permaneceu a noite toda, até que ao outro dia deram com ele regelado, cadáver!
* *

O desespero das imprecações do desgraçado da terra de Hus, deitado sobre o monturo, coberto de lepra, envergonhando-se da luz, desejando haver tido o sepulcro por berço e por seio que o escondesse a podridão e os vermes da terra, todo este ciclo da imensa agonia da alma que se alevanta até Deus e na sua fraqueza lhe exproba a desigualdade da luta, é uma das mais completas, a primeira manifestação do poema eterno da agonia.

Acorrentado sobre os rochedos que te serviram de leito, Prometeu vencido, a Força e a Violência guardaram os sarcasmos para a hora em que as extorsões convulsas não amedrontam os algozes; deixaram-te aos abutres famintos, fustigado dos ventos, mas ao menos o turbilhão erguia o grito da ameaça; o orvalho das noites refrescava-te o ardor da raiva, e o Oceano consolava-te porque te dizia: Prometeu, mesmo pregado contra essas rochas, sabes falar ainda com liberdade! Deus banido, os outros deuses feriram-te porque nos alentaste a vida com a esperança; se é de força o sofrimento cumpra-se a fatalidade! Eles não conheciam as dores fundas, que se não veem, que matam lentamente, as dores da alma, não as conheciam por isso não as infligiram. As grandes obras da arte, Jó e Prometeu, foram os que fizeram sentir no mundo as maiores dores; mas a dor moral, que os deuses antigos desconheceram, a dor muda, essa é uma criação do homem, o maior inimigo do homem.

Fonte> Teófilo Braga. Contos Phantásticos. Lisboa: Livraria de Antonio Maria Pereira, 1894. Disponível em Domínio Público. Convertido para o português atual por JFeldman

segunda-feira, 3 de junho de 2024

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 47

 

Flávio Madalosso (Perfis da Cidade)

Na amplidão do céu, algumas poucas nuvens formam uma tênue barreira entre o amanhecer e a noite que já se vai pelos caminhos do outono neste antepenúltimo dia de maio, tentando, em vão, esconder o Sol que surgirá radioso um pouco mais tarde. Por isso, os nossos passos nesta manhã gelada nos levam por ruas frias e tristes, no roteiro de mais um dia. Pessoas apressadas traduzem o descontentamento de estarem caminhando no desprotegido cenário urbano em busca da sobrevivência, ao invés de estarem confortavelmente instalados sob os cobertores e o teto de um lar aconchegante, e cruzam conosco nas mesmas veredas.

É interessante observar a contrariedade que os dias frios causam na população, em todos nós. Sabemos que as variações do clima são necessárias, o frio é indispensável e, principalmente, é natural e acontece sempre nesta época, e esquecemos que nos dias tórridos de alto verão de janeiros de calor intenso rogamos por uma chuva refrescante, lembramos com saudades do friozinho de junhos e de julhos. No entanto, bastam alguns dias de frio no maio e começamos a deitar queixas, a ouvir lamentos, e se chover, então, as lamúrias se tornam quase insuportáveis, e o clima passa a ser o grande culpado de todas as adversidades que nos acontecem no dia a dia.

Somos mesmo incontentáveis. Quando o Sol e o calor se intensificarem, ouviremos reclamações, e até podemos antecipá-las: “saímos de casa agasalhados e agora estamos morrendo de calor.” E os resmungos começam e não param mais.

Assim é o espírito humano, sempre desejando um pouco de chuva no calor, um Sol generoso e radiante no dia de chuva, um friozinho no verão, um calorzinho no inverno, flores no outono, vento na primavera. Assim é o espírito humano. Sempre desejando o que não possui e sempre pondo a felicidade onde não se encontra, pondo a vida em planos que não pode atingir e vibrando em anseios que ainda não pode conquistar.

E por isso, a felicidade quase sempre está separada de nós apenas por um tênue véu, como a neblina matinal que nos distancia do Sol brilhante lá de cima, que continua aquecendo e iluminando o nosso mundo com seus raios cálidos e desejados. Uma simples brisa que varra as nuvens e ele estará conosco, assim também a felicidade estará junto de nós tão logo aprendamos afastar de nosso caminho as nuvens da incompreensão, da ambição desmedida, do orgulho vaidoso. Uma simples aragem de entendimento, de equilíbrio e de bom senso nos dará esse estado d'alma que chamamos de felicidade e que almejamos desesperadamente, mas que ainda não aprendemos a conquistar. No entanto, ela está bem ali, bem pertinho, tal como o Sol que a neblina teima em esconder nas primeiras horas de mais um belo dia de outono nas paragens da Princesa dos Campos Gerais.

Vereda da Poesia = 24 =


Trova de Maringá/PR

A. A. de Assis
(Antonio Augusto de Assis)

A prata, em nosso cabelo, 
faz ninho se a idade vem... 
Que pena ela não fazê-lo 
em nossos bolsos também! 
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Poema de Castro/PR

Maria Antonieta Gonzaga Teixeira

PÔR DO SOL DA MINHA JANELA

Janela encantada
Em primavera florida
É natureza de encantos
De beleza e vida.

O pôr do sol da minha janela
É aquarela de mil cores.
Que embriaga pensamentos
bem-quereres e amores.

Com o pôr do sol
As lembranças chegam devagarinho
Nas saudades dos momentos felizes
De nossas carícias e juras de amor.
Olho o sol se pondo….

E vejo em quantas primaveras
Vimos esse pôr do sol...
E hoje sinto sua falta.
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Epigrama de Portugal

Bocage
(Manuel Maria de Barbosa l'Hedois du Bocage)
Setúbal, 1765 – 1805, Lisboa

Levando um velho avarento 
Uma pedrada num olho, 
Pos-se-lhe no mesmo instante 
Tamanho como um repolho. 

Certo doutor, não das dúzias, 
Mas sim médico perfeito, 
Dez moedas lhe pedia 
Para o livrar do defeito. 

“Dez moedas! (diz o avaro) 
Meu sangue não desperdiço: 
Dez moedas por um olho! 
O outro dou eu por isso.”
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Poema de Curitiba/PR

Sonia Cardoso

IR E VIR 

Sim, já vesti os mortos 
E desvesti os vivos 
Acompanhei suas dores,
Melancolias profundas 
Caminhadas trôpegas 
E saídas jubilosas 
O ir e vir da vida.
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Trova Premiada em Belo Horizonte/MG, 2005

Dorothy Jansson Moretti 
Três Barras/SC, 1926 – 2017, Sorocaba/SP

Quando me entrego ao passado,
sinto-o tão perto e envolvente,
que – esquecido e enevoado –
longe de fato... é o presente.
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Poema de Alverca/Lisboa/Portugal

Célia Evaristo

SER CRIANÇA

No coração de uma criança
há todo um misto de emoções.
No olhar brilha a esperança
que saltita entre canções.

Tem o perfume das flores
em cada dedo da mão.
E nas suas brincadeiras
rebola pelo chão.

Em cada estrela tem uma amiga,
faz o dia nascer.
E enquanto assobia
há um sonho a acontecer.

No sorriso espelha alegria
e tanto para ensinar.
Tem pozinhos de magia,
o dom de transformar.

Não conhece a maldade,
ainda lhe resta a pureza.
Neste mundo de crueldade
tenta afastar a tristeza.

Está sempre a cantarolar,
agarra as nuvens e vai.
Fecha os olhos e, a voar,
nem dá conta que deste mundo sai.

Ser criança é ser maior,
não contar o tempo pela idade.
É viver de abraços e de amor
no coração da liberdade.
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Poetrix de Palmeira das Missões/RS

Carlos Vilarinho

fio da navalha

O fio da navalha,
Onde o verso se apóia,
O poeta se equilibra…
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Poema de Lisboa/Portugal

Antero Jerónimo

A saudade são alvos fiapos
dependurados na imensidão do pensamento 
nesse lugar bem cativo
onde a lembrança se faz eterna.
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Trova de Barreiro/Portugal

Victor Manuel Capela Batista

A seca traz muita fome
enche todos de tristeza,
para gente que mal come
o porvir é uma incerteza.
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Soneto de Taubaté/SP

Luiz Antonio Cardoso

CHEGASTE…
 
Chegaste em meu destino, de repente,
com poucas palavrinhas, a sorrir.
Chegaste no meu mundo e docemente,
fizeste a minha vida refulgir.
 
Chegaste, completando o meu presente…
traçando com detalhes meu porvir.
fazendo renascer, efervescente,
a vida – que queria inexistir !
 
Chegaste, numa noite irretocável,
alimentando sonhos magistrais
de um tempo de carícia incomparável.
 
Chegaste… e amanheceu neste jardim…
e aquele que era triste? Não é mais…
fizeste florescer dentro de mim !
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Haicai de São Vicente/SP

Marly Barduco Palma

Lembranças da infância –
No vestido da menina
Pousa joaninha.
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Décima de Petrópolis/RJ

Gilson Faustino Maia

Você conhece o poeta,
aquele que canta em versos
as belezas do Universo
e que de forma discreta,
fala da vida secreta
dos seus ais, dos seus amores?
De seu mundo de esplendores?
Ele está em toda parte,
canta com garra e com arte,
sua fé e seus louvores.

Está na terra e no ar,
está na morte e na vida,
no olhar da mulher querida,
em seu viver, seu sonhar
e no desejo de amar.
Canta o mar com seu furor,
os desencontros do amor,
florestas, aves em festas,
madrugadas e serestas
e as mágoas do trovador.

A lua e sua beleza.
Canta a paz, tão desejada,
o amor que ficou na estrada,
as forças da natureza
e do sol, a realeza.
Canta a vida, tão sofrida,
sua pobreza bandida,
sua ternura no olhar.
Porém quem irá cantar
sua eterna despedida?
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Trova de Santos/SP

Carolina Ramos

Só tu, sabiá tristonho,
preso, conheces a dor,
da atroz solidão de um sonho
dos que vivem sem amor!
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Poema de Floriana/Ilha de Malta

Oliver Friggieri

SOMOS ÁGUA VIVA

Nossa história deve terminar algum dia
Como água do manancial que ao remanso chega
Ou pedra que rola até deter-se,
Como um pêndulo de relógio que ao fim se imobiliza.
Cada dia ao anoitecer, em nossas casas
Quando nossos filhos perguntam o que está passando
Trocamos de tema ao não ter resposta
E cantamos o estranho hino de nossa idade:

“Somos água viva e nada a bebe
Porque nas ondas se encontra o sal da destruição.
Somos pedras eliminadas dos altares
De Deuses enfermos que iam mortos desesperados
Em uma luta contra eles mesmos. Pêndulo somos
Que está a ponto de gastar o seu vigor.”

(tradução de José Feldman)
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Quadra Popular

Rouxinol canta de noite, 
de manhã a cotovia;
todos cantam, só eu choro 
toda a noite e todo o dia!
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Elegia* do Rio de Janeiro/RJ

Alphonsus de Guimaraens Filho
(Afonso Henriques de Guimarães Filho)
Mariana/MG, 1918 – 2008, Rio de Janeiro/RJ

ELEGIA PARA MÁRIO DE ANDRADE

Era doce viver, se a madrugada
paulistana molhava as rosas, os milhões
de rosas paulistanas... A arraiada
afugentando pasmos... Mas, pinhões!

que não seria desta vida airada,
destes sítios de dor, destes sertões!
Havia o mundo, a face ensanguentada
do mundo... uivando, uivando nos salões.

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cinquenta,
Mário dizia, o coração batendo
de amor, de um forte amor insaciado.

Mário de humanidade se alimenta.
Mário é milhões de corações sofrendo.
E um dia o corpo... um sonho inanimado.
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*Na Literatura Grega antiga o termo "elegeia" originariamente referia-se a qualquer verso escrito em dístico elegíaco cobrindo uma vasta gama de assuntos, entre eles, os epitáfios para túmulos. A elegia na Literatura Latina foi mais erótico ou mitológico. Devido ao seu potencial estrutural para efeitos retóricos, o dístico elegíaco foi também utilizada pelos poetas gregos e romanos para assuntos espirituosos, engraçados e satíricos.

Modernamente, elegia é uma poesia de tom terno e triste. Geralmente é uma lamentação pelo falecimento de um personagem público ou um ser querido. Vale ressaltar que na elegia também há digressões moralizantes destinadas a ajudar ouvintes ou leitores a suportar momentos difíceis. Por extensão, designa toda reflexão poética sobre a morte: a elegia, assim como a Ode, tem extensões variadas. O que as difere é que a elegia trata de acontecimentos infelizes.

Na antiguidade, a elegia era uma composição da poesia lírica monódica (ou seja, declamada pelo próprio poeta, geralmente, e acompanhada por um só instrumento musical - como a lira; ao contrário da lírica coral, apresentada por um coro, como ou sem acompanhamento musical), aparentada à épica pela sua forma. No entanto, o metro utilizado era o dístico elegíaco. Havia vários tipos de elegia, conforme seu conteúdo: elegia marcial ou guerreira, elegia amorosa e hedonista, elegia moral e filosófica, elegia gnômica...

Inicialmente definida pelo metro específico, chamado metro elegíaco, a elegia passou a designar um gênero poético que se caracterizou não pela forma, mas pelo assunto: a tristeza dos amores interrompidos pela infidelidade ou pela morte.

A elegia surgiu na Grécia antiga, com Calino de Éfeso (século VII a.C.), Tirteu e Mimnermo. Seus poemas eram cantos guerreiros que incitavam à luta. Calímaco, importante poeta alexandrino do século III a.C., foi um dos primeiros a escrever elegias no sentido do moderno termo, ou seja, como poemas líricos e tristes. Sua elegia Os cabelos de Berenice, da qual só restaram fragmentos, constituiu o primeiro modelo do gênero.

Entre os romanos, o primeiro grande poeta elegíaco foi Tibulo. Seus três livros sentimentais, muito lidos durante a Idade Média, influenciaram fortemente os poetas da Renascença. Foram preferidos às elegias de Propércio, que inauguraram um subgênero, com poemas ardentemente eróticos. O mais importante dos elegíacos romanos foi Ovídio: os Poemas tristes e as Cartas do Ponto, que lamentavam seu exílio, se aproximam bastante das elegias modernas.

No século XVI, a elegia transformou-se num dos gêneros poéticos mais cultivados, embora ainda pouco definido. Em Portugal, o primeiro escritor de elegias foi Sá de Miranda, mas Camões foi o principal: da edição de 1595 de suas obras completas, constam quatro elegias, tidas pelas melhores em língua portuguesa. Na França da Renascença, destacou-se no gênero Pierre de Rosnard.

Na poesia inglesa, a elegia apareceu com Astrophel, lamento fúnebre de Edmund Spenser. Durante quase três séculos produziram-se, dentro desse modelo, alguns dos maiores poemas da literatura inglesa, como Lycidas, de Milton (1638), Adonais, de Shelley (1821), sobre a morte de Keats, e muitas outras. Contudo a mais famosa elegia da língua inglesa foi Elegy Written in a Country Church Yard (1751; Elegia escrita num cemitério da aldeia), de Thomas Gray, meditação sobre a morte de gente humilde e anônima e uma das obras capitais do pré-romantismo europeu.

Em outras literaturas, a elegia assumiu características pagãs, como as belas e eróticas Römische Elegien (1797; Elegias romanas), de Goethe, obra prima da literatura alemã. No século XX, a obra mais importante do gênero foi sem dúvida Duineser Elegien (1923; Elegias de Duino), do poeta alemão Rainer Maria Rilke. No Brasil, o mais importante autor de elegias foi Fagundes Varela, no século XIX. Destacam-se ainda Cristiano Martins, Vinicius de Moraes, Cecília Meireles (em Solombra) e Dantas Mota, no século XX. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Elegia)

Renato Frata (Os olhos do Zé)

Disse Einstein que "poucos são os que veem com seus próprios olhos e sentem com seus próprios corações", alusão ao desrespeito que certos homens se dão ao discernirem coisas sob a ótica de terceiros.

Certíssimo. Estamos fartos disso.

O Zé tinha olhos estrambóticos que não se prestavam a ver por si: simplesmente “desenxergavam” sem que houvesse maneira de lhes cobrar definição, e tudo por causa do estrabismo em que um, ressabiado, vigiava o outro; e o outro, cismado, vigiava o um, cuidando. Uma judiação!

Quando Zé precisava distinguir algo, sua vesgueira dupla obrigava a que fechasse um olho para o ajuste de foco do outro, o que provava a sua “desvisão”, se assim se pode dizer.

Os olhos do Zé desviam (do verbo desver) e ele se chateava tanto que a um médico reclamou da dificuldade e aquele, analisando com cuidado o caso, bem rapidinho cerrou um deles com um tampão, deixando-o no escuro. Para que o que ficara à luz, não tendo a quem vigiar, passasse a enxergar direito. Isto é, sem ter a quem vigiar, o olho aberto deveria desentortar a olhadura.

E o Zé, agora, como pirata de duas pernas, desfilava o tampão no olho esquerdo, esperando pela "direitice" do direito. Pois esperou, esperou... e mais de dois meses depois, cansado de desolhar porque o direito não desentortava, insatisfeito desse sangangu (rolo), despregou o tampão do esquerdo e tascou no direito.

- Se o direito quer ser burro, que seja um burro cego! - disse diante do espelho, a despejar birra ao olho birrento.

E qual não foi a alegria que se estampou: ao perceber a luz, o olho esquerdo que não era bobo, "desbalanceou" seu "desbalanceio" de vesguice e deu ao Zé enxergadura perfeita.

Um quase milagre a bem dizer ou a bem ver.

E o Zé, sambando de felicidade, comprovou que a oportunidade, quando agarrada como fez o esquerdo, produz consequência direta, ou direita, ou mais ou menos isso, porque conseguir ver com os próprios olhos e sentir com o próprio coração é tarefa de que ninguém pode dispor. Nem se contrapor, mas se expor, porque entre olhar e enxergar há uma diferença tão grande que vesguice alguma, por mais inteligente seja, vai compreender.

Lembremo-nos que há olhos que somente olham. Estes são diferentes daqueles que também enxergam. Como os olhos de alguns que continuam olhando coisas acontecerem, mas veem bulhufas com seu estrabismo desconcertante... ou safadeza. Melhor nem olhar. Ou fazê-lo, apontando, para ver se enxergam, e se redimem.

Fonte: Renato Benvindo Frata. Fragmentos. SP: Scortecci, 2022. Enviado pelo autor