sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Héron Patrício (Baú de Trovas)


Eu me recuso, tristeza,
a conviver com teu mundo:
- Vida que tem correnteza
não cria lodo no fundo!

Antes um "não " que amargura:
antes um "não" que maltrata,
do que a terrível tortura
do teu silêncio - que mata!

Mesmo sem assinatura,
o bilhete me revela
tanta meiguice e ternura
que eu sei que o bilhete é dela!

Ao criar seu falso drama
o pessimista parece
aranha que tece a trama
e se enreda no que tece!

Fim de amor, sonhos extintos...
Mas a saudade é radar
que atravessa labirintos
e consegue me encontrar!

Se contra tudo ele existe,
entre segredos e esperas,
nosso romance persiste
na volúpia das Quimeras!...

Quando passas ao meu lado,
te acompanha o meu desejo...
- Se a volúpia for pecado,
eu peco quando te vejo!

Nos caminhos do Universo,
eu sou catador de estrelas
e jogo o laço do verso
na esperança de prendê-las.

Trovador, longe da infância,
contando as horas da idade,
rima tempo com distância
e distância com saudade!

Meu salário teve, agora,
um aumento "cavalar"...
já me botaram espora
e aprendi a relinchar!

Uma lágrima, nascendo,
tem a trágica beleza
de gota de luz contendo
toda a essência da tristeza.

Infiéis os meus cabelos!
saudoso o careca chora...
"Dei carinho... tive zelos
mas foram todos embora!"

Ligo o rádio ... Enquanto o sono
entorpece os meu sentidos,
em carícias de abandono
vibra a Rádio em meus ouvidos

A tristeza é uma senhora,
minha velha conhecida,
que me rouba a luz da aurora
e põe noite em minha vida!

Somente para agradar-te
e não ficares sozinha,
a minha alma se reparte
e é mais tua do que minha!

Nó na vida?... - Não me abalo,
desfazê-lo não me cansa,
pois consigo desatá-lo
com dois dedos de esperança!

Uma estrela, no infinito,
é recado que os ateus
recebem, com luz escrito,
sobre a existência de Deus!

Tempo é moinho rangendo
aos ventos da eternidade,
trigais de sonhos moendo
para o meu pão de saudade!

Pela ofensa que machuca,
por mais que me queime e doa,
se meu sangue diz - "Retruca!",
a minha alma diz "Perdoa..."

Com remorsos na bagagem
ou rancor no coração,
briga de amor é viagem
rumo ao Cais da Solidão!

Ao sentir que a solidão
vai comigo, em meu caminho,
tenho a estranha sensação
de que nunca estou sozinho!

Quando a folhagem fenece,
cobrindo o verde de luto,
o outono, em troca, oferece
a recompensa do fruto.

No jardim, junto ao meu quarto,
o silêncio é tão profundo
que se pode ouvir o parto
das rosas chegando ao mundo!

O poeta é um ser aflito,
um eterno insatisfeito,
por ter um mundo infinito
no exíguo espaço do peito!

A neblina, em dias frescos,
descendo em vales sombrios,
aos poucos tece arabescos,
nas brancas margens dos rios...

Fim de amor, sonhos extintos,
mas a saudade é radar
que atravessa labirintos
e consegue me encontrar!

Eu não contei tuas idas
nem minhas voltas confesso..
O que marcou nossas vidas
foi nosso eterno regresso !

Nossos momentos de amor
temos, os dois, que guardá-los;
- No teu palco sou ator
somente nos intervalos...

Fim de chuva.. e a lua cheia,
que no espaço azul flutua
põe diamantes na bateia
da poça d'água da rua!"

Quando eu partir... quem me dera,
rompendo o infinito afora,
encontrar em outra esfera
meu Pouso Alegre de outrora.
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Fonte:
UBT/Juiz de Fora

Héron Patrício (1931)



Héron Patrício, este festejado e extraordinário Trovador, nasceu em Ouro Fino, nas Minas Gerais, a 17 de junho de 1931, filho de Salvador Santos Patrício e Dona Genoveva Cadan Patricio. Era uma criança muito saudável, porém magrinha.; um amigo vaticinou: vai crescer forte, inteligente, e até se tomará gordinho e Poeta - (Mas que trem de mineiro adivínhão, sô!').

O comboio ia correndo entre Ouro Fino e Pouso Alegre... Estávamos na década de 30. A locomotiva espalhafatosa bufava, chiava, apitava nas curvas. E aquele garoto, deslumbrado com a viagem, e com o rosto colado à vidraça do vagão, não compreendia porque naquela terra os postes da energia elétrica, as bananeiras e todas as árvores que margeavam a linha férrea "corriam" em sentido contrário ao do trem... Mas ele "via" que corriam! E para trás foi ficando seu doce chão onde veio ao mundo, seu mundo de brincadeira e de folguedos inocentes... A máquina bufou, chiou, deu um vasto suspiro de alívio, frenou e "solavanqueou" os passageiros. O clã do nosso amigo estava chegando à cidade que escolhera para nova residência. E Pouso Alegre foi mesmo um "pouso alegre" para todos. Foi logo providenciada a escola para o menino, que viria a tomar-se ótimo aluno. Foi nessa linda cidade que Héron começou a participar do movimento poético.

Em 1964 mudou-se para São Paulo, mas sempre dividiu, emocionalmente, sua residência entre a capital paulista e a cidade de Pouso Alegre.

Casado com a Trovadora Yedda Ramos Maia Patricio. Nasceu-lhes a filha Patrícia que já lhes deu os netos Raphael e Daníel.

Funcionário público aposentado, é Contabilista, Professor e Advogado, exercendo, atualmente, a nobre "profissão" de Poeta/trovador.

Além de ter seus trabalhos publicados em Jomais e Revistas do país, particípou de "MEUS IRMÃOS, OS TROVADORES" (Luiz Otávio), CIGARRAS EM DESFILE" (trovas), "GARIMPEIROS DE SONHOS" (Arcádia de Pouso Alegre), "EM PROSA E VERSO" (Academia Pouso Alegrense de Letras, "I Antologia de Trovas" (Livro Arte - SP) etc.

Pertenceu à Arcádia de Pouso Alegre e é membro-fundador da Academia Pousoalegrense de Letras. Desde 1994 é integrante da União Brasileira de Trovadores, Seção de São Paulo, onde ocupa uma více-presidência.

Ocupa a cadeira número 17 da Academia Pousoalegrense de Letras.

Fonte:
UBT/ Juiz de Fora

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Edival Perrini (Poemas Escolhidos)


BATISMO

Fazer-se ao mar
como quem se joga num abraço
e respira.

MAR ABERTO

Por frestas,
toco a luz que se escancara
para além dessas treliças.

Por farpas,
tenho gotas de oceano
e sede, e sede,
e sede.

O SURFISTA

Olhos de águia
olham
sobre o hálito do mar
estrelas que só eles veem.

O corpo abre um talho na água.

Entre vagalhões,
a prancha
é lança e é guerreira.

Soberano,
o surfista
põe-se de pé
e costura a onda
tantas e tantas vezes
que o fio
interminável
é o da linha do horizonte.

Na areia
uma vestal sorri,
e molha-se também.

À MARGEM

havia uma grossa casca,
abacaxi turvo,
sem qualquer possibilidade de fruto

havia palmeiras,
olhares ao mar,
o sol que vinha e que se punha,
e uma trava
sem nenhuma fresta
para ser rompida

MARULHOS

Um sonho feito balão
pressente o rumo do mar,
que chão de mar é molhado
e liso e fofo e alado
como carece ser chão
pra empinar sonho e gente.

Escafandrista de sonho
não diz que mar não dá pé.
Mergulha os olhos na água,
não dá bola pra marola,
ignora sombra e lama,
olha e vê, como vê!

Vê que gaivota é um peixe
que pulou fora do mar.
Daí que olhar seus avanços,
balanços e acrobacias,
traz um ar de nostalgia.
Saudades do vasto mar?

Vê a vida o mareante,
cavalga as algas e areias,
descasca o fruto-mar.
Aí se acendem estrelas,
conchas, polvos e arraias:
há um mar dentro do mar.

Apalpar estas entranhas,
alquimia de sereias,
é reencontrar o menino
que outro dia viu o mar,
e se pôs a perguntar
se o verbo dos princípios
não seria o verbo almar?

DOMICÍLIO

estar na hora exata
como o anzol e o peixe
e alguma brisa

depois
fugir das iscas
e fundar domicílio
num pensamento de mar

PASSAGEM

O alvoroço dos pássaros
diz do bom tempo que se vai.

Dentro de sua sombra
invisível
perece o azul,
último alecrim antes da chuvarada.

VÉSPERAS

No princípio é a luz do verbo.

Dentro da luz,
botão de flor das vésperas,
o verbo.

Dentro do verbo em luz,
a madrugada das palavras.

No princípio é a luz do verbo.

Se me toca,
falo.

VÉRTICE

Homem em pé sobre a canoa
pesca a manhã de cada dia,
noventa graus de poesia.

PROA

O sonho é meu pastor, nada me faltará.
Que venham as tormentas, que venha o que vier,
tenho o sonho comigo, o sonho é meu pastor.

O mundo da aparência não me engolirá.
Conheço bem suas manhas, meu ofício é interior:
girassol que é girassol tem proa pro amanhecer.

O sonho é meu pastor, nada me faltará.
Com ele eu teço o mundo, reinvento a via-láctea.
Mistérios são bem-vindos, o sonho é meu pastor.

Ou eu busco a verdade ou ela não me achará.
Minha verdade, o sonho, é pomar e é brasão.
Seu universo, os versos, fio do sim e do não.

O sonho é meu pastor, nada me faltará.
Encontro nele a luz, meu alimento e cor.
Que escorra a ampulheta, o sonho é meu pastor.
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Fontes:
PERRINI, Edival Antonio Lessnau. O Olho das Águas. Curitiba: Ed. Do Autor,
2009.
__________. Armazém de Ecos e Achados, Curitiba: Ed. do Autor, 2001
__________. Pomar de Águas. Curitiba: Kugler Artes Gráficas, 1993.

Bia Zolnier (Livro de Poesias)


TEUS CAMINHOS

Teus caminhos
São tão estranhos...
Inúmeros em quantidade e tamanhos
Me perco nas alamedas estreitas
Tropeço em troncos caídos
Ainda acabo me ferindo nos espinhos
Tão bem escondidos
Das flores com que me enfeitas
Entre sorrisos e carinhos

Teus caminhos
Se perdem em frases feitas
Quando finalmente encontro
O portão de saída

Mas acabo por me deter
Junto aos escombros
Do que foi tua vida
Sutis assombros...

E começo a refazer
O caminho de volta

Algumas coisas escolhemos
Outras...nos escolhem
Teus caminhos
Agora mapeados
Me acolhem...
Compreendo!

O JARDIM DAS FADAS

Vem
Já é madrugada
A cidade mergulha em silêncio sonolento
Barulho só do vento

Vem
Vamos passear no jardim das fadas
Que fica em qualquer lugar
Entre o querer e o acreditar

Vem
Ninguém nos verá flutuar
Entre as roseiras floridas
E por um breve momento
Cairá o véu de seda colorida
Que envolve o coração
Fazendo brilhar
No rosto a paixão

Vem
Sem medo
Vamos descer as escadas
Que levam à fonte
Dos segredos
Vamos atravessar a ponte
Deste improvável paraíso

Vem
Dançar com as fadas
Não se assuste com o riso
São cúmplices silenciosas
Das almas muito amadas
E nos presenteiam com o perfume das rosas

SONHOS

Um dia
Voamos
Nas asas do mesmo sonho
Sem querer
Nos quebramos
Sem querer
Sonhamos
Sem querer
Ainda queremos...

MAPAS DO ACASO

Nossos destinos
São desertos
Separados pelo mar...

Evoluímos
Do nada ao tudo
Num tempo muito rápido
Num desejo ávido
E nos tornamos navegantes incertos
Com medo absurdo
De se afogar

Perdemos a noção da rota marcada
Que revele
O mapa do acaso
Que a vida riscou em nossa pele
Voltamos ao nada
Buscando um tesouro
Escondido em algum lugar
...entre o presente
E o passado

Não é prata nem ouro
É diferente...
Nem sei se ainda pode ser encontrado
No acaso dos mapas
...separados.

PESSOAS-EMBRULHO

Embrulhados em papel-gente
Pouco
Ou muito presente
As pessoas carregam consigo
(Parece louco??)
Um pacote de qualidades
Defeitos
Desejos
Sentidos
...
Alguns tão grandes
Mas tão ausentes
Outros tão escondidos
Sempre
Em lugares indevidos
...
Somos pessoas-embrulho
Empacotadas
Com ou sem barulho
(São as interrogações
Reticências e exclamações
Que se enroscam a todo momento)
Ao menor movimento
Não dá para perceber no mundo real
E no virtual,
Todos os pacotes são pardos!

--

Vânia Moreira Diniz (Hoje é Domingo)


Hoje é domingo e sem querer imagino como foi sempre importante para mim. Acordava ao som de Vinicius de Morais e Jobim que meu pai adorava.Domingo recorda-me o sol de Copacabana, praia, amigos reunidos e alegres bate-papos em minha adolescência.Com era bom acordar tarde, vestir o biquíni correndo, apenas uma pequena toalha em volta da cintura e encontrar a turma na praia e a sedução das águas que sempre amei. Depois de uma conversa animada ficar deitada bem perto do mar e sentir a água fria e estimulante a cobrir o corpo.

Já tarde voltávamos queimados e aquecidos e ouvindo as admoestações de minha mãe sobre horários tardios. Mas não esperávamos muito e já era hora do cinema na Avenida Copacabana e depois a reunião na lanchonete cirandinha cheia de conversas animadas, muitos risadas, o olhar brilhando e franco, os namorados a se beijarem tranqüilos, e os planos animados e sonhos esperançosos.

Hoje é Domingo e vejo a noite estrelada, televisão ligada, movimento da casa inteira, meus irmãos e eu a brigarmos ou brincarmos e a casa cheia e animada. Ah, os Domingos como eram queridos e vertiginosos.

Mais tarde os serões familiares, as histórias fascinantes, todos querendo dar um aparte e os risos das crianças. Meu pai que era kardecista militante sempre ao fim da noite nos reunia para sortear entre os papéis dobrados alguma boa ação que devíamos cumprir durante a semana.

Isso já se passou. Foi há muitos anos passados. Outros domingos tiveram significação diferente dependendo da fase que eu estava vivendo. Mas sempre foram marcantes.

Hoje os Domingos tem outro sentido. E fazendo minhas reflexões, vejo a distância de idéias e sonhos que existe entre aquele tempo e os dias atuais.

Mas ainda ouço o som matutino de Vinicius de Morais e tenho uma nostalgia imensa de minhas águas verdes do mar de Copacabana. Hoje é domingo…

Fonte:
http://www.vaniadiniz.pro.br/
Foto de Marcos Aurélio Alves de Oliveira

Silvane Daminelli (Filmes legendados: um caminho para o ensino da leitura)


RESUMO: É por meio da leitura que o indivíduo verifica suas experiências e valores. Ler é a condição para que o indivíduo saiba posicionar-se, ter opinião própria, ser crítico. No entanto, hoje, o que vemos nos interiores das salas de aula são alunos que não têm nenhum interesse pela leitura. Embora um dos principais objetivos da escola seja ensinar a ler, o que se percebe é que os alunos não conseguem ir além da simples decodificação. A escola enfatiza demasiadamente o ensino da escrita e esquece a leitura. Ensinar a ler exige analisar os aspectos ligados à compreensão, às estratégias e aos procedimentos de leitura. Portanto, é preciso pensar o ensino da leitura sob novas nuances, ou seja, é preciso cruzar as fronteiras e imergir num mundo novo. O uso de filmes legendados como suporte para o ensino da leitura é um caminho.

A todo instante ouve-se falar que vivemos em um país carente de práticas de leitura e de escrita. Essa carência não se refere somente à leitura de letras expressas no papel, refere-se também à leitura de textos através da tela. Segundo Chartier (2002), no mundo digital, “(...) todos os textos, sejam eles quais forem, são entregues à leitura num mesmo suporte (...). É assim criada uma continuidade que não mais distingue os diferentes gêneros ou repertórios textuais que se tornaram semelhantes em sua aparência e equivalentes em suas autoridades” (2002, p. 109). O aluno, hoje, é fruto da cultura visual e a todo instante se depara com imagens fantásticas, enquanto tudo acontece numa velocidade incrível, pois ele está cercado por imagens. Deixando de lado o computador, porque a maioria dos alunos brasileiros ainda não tem acesso a ele, os meios de comunicação se utilizam de uma linguagem carregada de estímulo visual.

Para os brasileiros, ler não é uma prática habitual, infelizmente. Geralmente a leitura ocorre nas escolas, no entanto não como um ato espontâneo, mas obrigatório, pois o foco normalmente está voltado a uma atividade posterior. É lamentável que este ato não se estenda aos lares destes alunos, o exemplo de casa com raras exceções existe. Se não bastasse o problema mencionado, ainda é preciso admitir que essa leitura escolar está distanciada da realidade das experiências pessoais. Por essa razão, ao chegar à vida adulta, o indivíduo esqueceu há tempos o gosto pela leitura. Partindo dessa constatação, poder-se-ia afirmar que há a possibilidade disso vir a repetir-se de pai para filho ou até mesmo da escola para o aluno. Nem precisamos ir tão longe; basta observar um aluno do ensino médio. O desinteresse pela leitura é tanto, que assusta. Para ler é preciso gostar de ler. É claro que quando não é fomentada esta prática, quando não há exemplos dos principais parâmetros referencias citados anteriormente, quando a leitura não é ensinada, raramente tem-se um leitor assíduo e interessado em aprender através da mesma.

São muitos os aspectos responsáveis pelo desinteresse à leitura. Talvez o maior e mais significativo seja o próprio sistema escolar. Segundo Paulo Freire (1988), há um abismo infindável entre o que é lido nas escolas e o mundo das experiências de cada indivíduo. Assim, ao estudante, resta a obrigação de ler o que lhe é exigido, ou melhor, decodificar mera e simplesmente. A vontade pessoal, o gosto de cada um pouco importa. Essa situação aos poucos tem dado mostras de mudanças, apesar da lentidão e dos questionáveis interesses daqueles que por uma razão ou outra não desejam ver um país de cidadãos opinativos e críticos.

Como a escola é a entidade responsável pelo ensino da leitura, cabe-lhe refletir e redirecionar sua postura diante dessa prática que pode, dependendo de como for conduzida, transformar o aluno num leitor competente ou distanciá-lo de qualquer leitura. Segundo Solé (1998, p.11), “cabe à escola, ainda, destacar a reflexão de fundo sobre os objetivos do ensino e aprendizagem da leitura e o esforço para situá-los no contexto mais amplo das funções que a escola deve desempenhar na sociedade atual”.

Ler é a condição para que o indivíduo saiba posicionar-se, ter opinião própria, ser crítico. Porém, é lamentável o fato de que a grande maioria das escolas brasileiras não tem dispensado à leitura tal tratamento; ao contrário: os alunos, quase que na totalidade, não gostam de ler, não se sentem atraídos pela leitura e, quando lêem, é meramente para cumprir exigências de alguma disciplina. O ato é mecânico, não-crítico, é simplesmente decodificação de letras, pois se assimila a aquisição e o ensino da leitura à aquisição e o ensino do código e se restringe àquilo que a leitura envolve e que supera as habilidades de decodificação. Conforme Solé (1998), falta à escola analisar os aspectos ligados à compreensão e às estratégias de leitura. Partindo desse pressuposto, é necessário reconhecer que a leitura e escrita são procedimentos e que, portanto, devem ser ensinados. Procedimento, segundo Coll (1987 apud SOLÉ, 1998, p. 68) geralmente também chamado de regra, técnica, método, destreza ou habilidade; é um conjunto de ações ordenadas e finalizadas, isto é, dirigidas à consecução de uma meta. A aprendizagem da leitura, como toda aprendizagem de um conhecimento, requer, como condição necessária, sua demonstração. E isso pode ser feito a partir do ensino das estratégias de leitura. Ensinar tais estratégias possibilita formar leitores capazes de aprender a partir dos textos.

Aprender a partir dos textos implica afirmar que ler é construir significado do texto. Para Leffa (1996, p.15) “compreensão não é um produto final, acabado, mas um processo que se desenvolve no momento em que a leitura é realizada” O enfoque está voltado à análise de como essa compreensão se dá, de que estratégias o leitor se utilizou para atribuir significado ao texto. Ainda conforme o autor, para se entender o processo de leitura é necessário considerar então o papel da leitura, o papel do texto e o processo de interação entre leitor e texto.

Desta forma, é pertinente ter claro o conceito de leitura e a necessidade de a mesma ser ensinada para que seja compreendida como parte de um processo mais amplo e, principalmente, ser reconhecida como uma atividade cognitiva por excelência, onde os leitores fluentes descrevem a leitura como um meio de obtenção de significados através do uso de estratégias adequadas.

Kleiman (2004) define leitura como um conjunto de habilidades que envolvem aspectos lingüísticos e psicológicos. Essa habilidade se refere à capacidade de decodificar palavras escritas até a capacidade de compreender textos escritos de forma competente, ou seja, fazer uso da linguagem em diferentes situações que envolvem a comunicação.

Usar a leitura de forma competente significa, também, perceber que ler é uma atividade individual que se entrelaça a experiências interpessoais. Ou seja: a leitura é considerada um ato individual, porque submete o leitor a um processo pessoal e particular de processamento dos sentidos do texto. O sentido de um texto não está unicamente no texto ou no leitor desse texto, ele está presente nos dois: leitor e texto; assim a leitura é também uma atividade interpessoal.

Considerar tais aspectos é, sem dúvida, colocar em prática o letramento, cujo princípio básico, como já foi afirmado no texto anterior, é considerar a idéia de que não há como falar em leitura sem falar em letramento e vice-versa.

Saber ler com competência proporciona ao indivíduo, no que se refere ao seu desenvolvimento pessoal, subsídios para que desempenhe o seu papel no meio social em que vive. Outro grande benefício da leitura, e talvez o mais importante, é o poder de transformação que ela exerce sobre o ser humano. Através dela é possível aprimorar o conhecimento e desenvolver o senso crítico. É possível, ainda, interagir e compreender o mundo. A leitura fomenta o processo de desenvolvimento do indivíduo e proporciona, como apontam estudos neste campo, melhoria da condição social e humana. À medida que os conhecimentos se ampliam via leitura, o indivíduo amplia, aos poucos, a própria produção cultural e, em conseqüência, a da humanidade. Para que isso ocorra de fato, é necessário que a escola redimensione seus objetivos.

Um dos objetivos mais importantes da escola é ensinar a ler e escrever. O problema reside no fato de muitos educadores/escola enfatizarem demasiadamente o ensino da escrita e esquecerem a leitura. A esse respeito Cagliari (1991, p.167) afirma:

A escola exige muito mais do aluno com relação à escrita do que à leitura. Isso se deve ao fato de a escola saber avaliar mais facilmente os acertos e erros de escrita e não saber muito bem o que o aluno faz quando lê, sobretudo quando ele lê em silêncio. E a escola tem a mania de querer controlar tudo. O privilégio da escrita sobre a leitura na escola se deve a essa maior facilidade de avaliação.

É mister lembrar que a aquisição da escrita é parte fundamental do processo de aprendizagem, assim a leitura é, por sua vez, forma de interpretação da escrita e consiste em traduzir os símbolos escritos em fala. Porém, ler é tão importante quanto escrever. Como vemos, é pertinente uma mudança de atitude em relação ao que aqui foi apontado, pois a leitura é a extensão da escola na vida das pessoas. É através dela que a escrita atinge seu objetivo.

Cagliari (1998) relata ainda que, na escola, a leitura serve não só para se aprender a ler, mas para aprender outras coisas lendo. Desta forma, a leitura ocupa lugar privilegiado na sala de aula e deve ser encarada como um processo de interação entre leitor e texto. Entretanto, segundo Kleiman (2004, p. 08) “poucos professores ensinam a criança a ouvir o autor nessa interação”. O que se vê, na maioria das vezes, é a ênfase ao estudo de elementos formais presentes nos textos.

Atualmente, o termo leitura parece estar relacionado simplesmente à decodificação da forma escrita. Mas decodificar não basta, é necessário interpretar o que se lê.

Todos sabemos que o bom leitor hoje é aquele que ao ler ativa as estratégias de leitura e que gosta de ler. Porém, é preciso lembrar que nem todo leitor proficiente é um bom leitor. Equivocadamente alguns autores consideram proficiente aquele indivíduo que lê um determinado número de palavras por minuto, se o assunto lhe for familiar. Considera-se leitor proficiente aquele indivíduo que consegue estabelecer uma relação, como já foi dito, de interação, ou seja, estabelecer um diálogo mútuo entre leitor e autor na construção do sentido daquilo que é lido. Portanto, ler um determinado número de palavras por minutos não classifica um leitor como proficiente.

Sabemos, ainda, que muitos alunos não gostam de ler não somente porque desconhecem as estratégias de leitura ou porque apresentam baixo nível de letramento e pouca proficiência, mas também por ignorar-se o fato de que, antes de tomar contato com o mundo da escrita, ou seja, antes de ir para a escola, o aluno já interage com representações do mundo. Freire (2004), afirma que antes de ler as palavras o indivíduo é capaz de ler o mundo. Assim, antes da escolarização, não só se lê o mundo como se escreve o mundo, ainda que não com a utilização do código valorizado pela escola.

Com base naquilo que é proposto por Paulo Freire (2004), é necessário repensar o posicionamento teórico da escola sobre a leitura e a escrita. Uma vez que o aluno, ao chegar à escola, traz o conhecimento de um mundo que ele já aprendeu a ler e escrever, é fundamental que seja desenvolvido nele a capacidade de interpretar o que ele lê e, conseqüentemente, possibilitar uma leitura de mundo muito mais ampla daquela oferecida hoje pela escola. Professor e escola não podem mais seguir ignorando o fato de que antes mesmo de o aluno chegar até a escola ele já mantinha contato com diversas representações do mundo. Talvez esta postura seja mais um dos muitos fatores que tenham afastado o aluno da leitura, ou seja, ignorar esta realidade pode contribuir para que os alunos se mostrem cada vez mais desinteressados.

Ler apenas como forma de decifrar os sentidos dos signos é automatismo. E ler como obrigação resulta em um ato desagradável, contudo a importância da leitura é tanta que mesmo assim, segundo Rangel (1990, p. 11), “agradável ou não, prazerosa ou não, confortável ou não, é necessária, indispensável, quando se trata de aprendizagem”. Para a referida autora, ler é uma prática básica, essencial para aprender. Portanto, para que esse ato seja mais frutífero e compensador, é necessário que pais, professores e escola se unam com um objetivo só: inserir naturalmente no cotidiano do aluno o gosto pela leitura, evitando que esta seja encarada como obrigação. E ainda, é necessário ensinar a ler, isto é, ensinar ao leitor a fazer uso de estratégias de leitura. Se há, como foi afirmado anteriormente, uma recusa tão grande por parte do aluno àquilo que se refere à leitura, há que se considerar que isso não ocorre de graça. Desprezamos aquilo que a nós se apresenta não só desinteressante, mas e principalmente aquilo que não entendemos, ou seja, que não aprendemos.

Arthur Schopenhauer, em 1850, já dizia em sua obra Über Lesen Und Bücher que quando se lê continuamente sem pensar depois no que foi lido, a coisa não enraíza. Podemos concluir a partir da afirmação de Schopenhauer que ler simplesmente por ler não acrescenta muito à vida do aluno. Se o leitor deseja se apropriar do que está lendo, é necessário ler com olhos voltados à interpretação, à compreensão, à inferência, ao diálogo, à interação com o texto e com o autor.

A prática de leitura deve ter por finalidade a preparação de leitores capazes de não só viver em sociedade, mas leitores capazes de modificar a sociedade que fazem parte. Para isso, é necessário que o aluno seja não somente um leitor, mas um leitor crítico, capaz de perceber o caráter social do ato de ler, pois, no momento da leitura, trocam-se valores que não pertencem somente ao leitor, nem ao autor do texto lido, mas a todo um conjunto sociocultural.

Hoje, um dos grandes desafios aos educadores, no meio escolar, é o de levar o aluno a interessar-se pela leitura. A leitura na escola não pode se limitar a um ou dois tipos de texto. Por isso, é importante promover situações que desenvolvam no aluno o gosto pela leitura, que tornem o ato de ler algo prazeroso, com sabor de “quero mais”. Para que isso aconteça talvez seja necessário sair daquilo que é tão convencional e adotar novas abordagens à prática da leitura.

Uma sugestão seria cruzar as fronteiras do que permeia a leitura e entrar num mundo novo: o uso de filmes legendados como suporte para o ensino da leitura. Assim, ao aluno será oferecida a possibilidade de melhorar sua capacidade leitora e conseqüentemente não ser mais um analfabeto funcional. Para tanto, é preciso pensar o ensino da leitura sob novas nuances, ou seja: entender que recursos como filmes legendados são capazes de promover a aprendizagem e o desenvolvimento da leitura. É preciso principalmente entender que a leitura é fundamental aos processos de aprendizagem complexos, que envolvem construtos teóricos abstratos e que estão presentes nas instituições escolares. O seu ensino é a extensão da escola na vida das pessoas. O melhor que a escola pode oferecer aos alunos deve estar voltado para a leitura (Cagliari, 1991).

Uma das grandes preocupações dos educadores em nossa sociedade hoje é em relação à formação de uma cultura de leitura, voltada ao aluno. Porém, em muitas situações, o próprio professor apresenta-se despreparado, incapaz de formar outros leitores tanto pela carência de formação profissional para a docência quanto pelo baixo nível do próprio letramento. A esse respeito, Kleiman (2004, p.8) afirma:

O professor visto como modelo ideal a ser imitado pela criança na resolução de tarefas cognitivas complexas que estão além da capacidade real da criança é uma figura que nessa perspectiva não se faz presente na escola.

Embora tal problemática seja uma realidade, seria difícil defender que o aluno é incapaz de aprender ou que as dificuldades são decorrentes de carências individuais. Se este dispusesse de orientação adequada por parte do professor, possivelmente resolveria tarefas exigidas pela escola de forma mais eficaz e coerente. Todos sabemos que a leitura proporciona ao aluno o sucesso no desempenho de suas atividades.

Observando o contexto escolar e o que a literatura há muito vem apontando, o que se percebe é que, embora as escalas de letramento indiquem um avanço nos últimos anos, o ensino da leitura ainda se apresenta frágil, e isso tem gerado muita discussão e reflexão. Os índices de leitura, no país, são baixíssimos. Dados obtidos através da Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil (2008), realizada pelo Instituto Pró-Livro, revelam que 77 milhões de brasileiros, o que corresponde a 45% da população do país, não têm o costume de ler. Essa informação explica porque somente 26% da população dominam as habilidades de leitura, ou seja, possuem nível de letramento pleno.

É neste momento que a figura do professor se torna importantíssima. Como sabemos, para que as práticas de leitura no contexto escolar se efetivem de fato, é necessário que o professor seja o intermediário entre ensino e aprendizagem. Cabe-lhe, e é imprescindível, criar diferentes meios para aproximar aluno e leitura. Tarefa, em princípio, não muito fácil, mas possível. Mesmo ciente da importância da leitura em sua vida, o aluno em geral não gosta de ler e, quando o faz, é por obrigação. Souza (2004) em sua tese de doutorado constatou que o desempenho em leitura demonstrado pelo grupo de estudantes que participou da pesquisa ficou aquém do esperado para o nível de escolarização em que se encontravam.

O objetivo deste artigo é sugerir o uso de filmes legendados como meio para promover o ensino da leitura. No entanto, para que isso ocorra de fato, alguns aspectos como proximidade, familiaridade e afetividade devem ser levados em conta, uma vez que estes estão ligados à produtividade. Desta forma, ao aluno será oportunizado o pleno desenvolvimento das habilidades de leitura, assim ele será capaz de avaliar as possíveis e diversas abordagens de um texto, conforme os fatores intervenientes: natureza do texto, propósito da leitura, contexto, entre outros.

Partindo desse pressuposto, é necessário reconhecer a importância do vídeo e a TV em sala de aula. Se no passado chegaram a ser vistos como ameaça ao letramento, pois se acreditava que os mesmos ocupavam um tempo que poderia ser gasto com leituras e estudos, hoje, entretanto, passaram a ser interpretados de outra forma. Segundo Spanos e Smith (1990), atualmente a crença de que o vídeo e a TV são instrumentos pedagógicos eficazes está difundida nas mais diversas áreas. A utilização da televisão e do vídeo, na escola, são recursos que possibilitam um ambiente de aprendizagem mais contextualizado e significativo (PCNs, 1998).

A abrangência de meios eletrônicos, em particular a TV e o vídeo, deve-se à capacidade de articulação, de superposição e de combinação de linguagens, imagens, falas, músicas e escritas diferentes. Num olhar distante tudo parece igual, mas ao olhar mais de perto, por trás da fórmula conhecida, há mil nuances que introduzem variantes adaptadoras e diferenciadas. A força da linguagem audiovisual está em dizer muito mais do que captamos (MORAN, 2006).

O amplo acesso e a familiaridade com a TV e o vídeo são ótimos recursos para mobilizar os alunos quando se pretende ensinar sob novas perspectivas. Assim, ensinar leitura utilizando estes recursos abre a possibilidade de oferecer ao aluno uma proposta de ensino que tem como princípio a motivação e envolvimento com a atividade, pelo caráter lúdico, pela multiplicidade de linguagens coexistentes que possibilitam/facilitam a compreensão, pelo apelo sensorial.

O uso de filmes legendados no ensino de língua materna ainda é algo novo. Daí a importância em apresentar esta prática não só no ensino de língua estrangeira (LE), mas, e principalmente, no ensino da língua materna, principalmente por ser uma proposta inovadora. Um exemplo disso é o texto que chega ao aluno através da legenda. Se o recurso existe, por que não utilizá-lo em benefício do aluno? Garcez (2005, p.108) afirma que

Nesta perspectiva deve-se focalizar o caso específico do uso do audiovisual pelo professor de língua portuguesa como forma de delinear algumas propostas de trabalho na escola. Em princípio qualquer material audiovisual pode ser considerado um texto e presta-se ao trabalho com a língua portuguesa, já que permite a leitura.

Sendo assim, é preciso inovar, ou melhor, usar o velho atrelado a novas dimensões, isto é, usar filmes legendados direcionados ao ensino da língua materna, mais especificamente à prática da leitura. Se o aluno demonstrou interesse pela linguagem do cinema, fará a leitura da legenda. Portanto, o uso de filmes legendados, quando bem utilizados, é capaz de promover a leitura, possibilitando ainda melhorar a habilidade leitora e amenizar o baixo nível de letramento apresentado pelos alunos.

Nesta concepção, o uso de filmes legendados como meio para ensinar leitura parte do princípio da motivação, do envolvimento. Ou seja: é fundamental pensar o ensino da leitura a partir do uso de novas ferramentas, recorrendo a estímulos audiovisuais, levando em conta a crescente proliferação destes recursos e a disponibilidade/presença dos mesmos nas escolas.

Fonte:
Revista Litteris. número 3, novembro 2009.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Jorge Luís Borges (O Guardião dos Livros)



Ai estão os jardins, os templos e a justificação dos templos,
A exata música e as exatas palavras,
Os sessenta e quatro hexagramas,
Os ritos que são a única sabedoria
Que outorga o Firmamento aos homens,
O decoro daquele imperador
Cuja serenidade foi refletida pelo mundo, seu espelho,
De sorte que os campos davam seus frutos
E as torrentes respeitavam suas margens,
O unicórnio ferido que regressa para marcar o fim,
As secretas leis eternas,
O concerto do orbe;
Essas coisas ou sua memória estão nos livros
Que custodio na torre.

Os tártaros vieram do Norte
em crinados potros pequenos;
Aniquilaram os exércitos
Que o Filho do Céu mandou para castigar sua impiedade,
Ergueram pirâmides de fogo e cortaram gargantas,
Mataram o perverso e o justo,
Mataram o escravo acorrentado que vigia a porta,
Usaram e esqueceram as mulheres
E seguiram para o Sul,
Inocentes como animais de presa,
Cruéis como facas.

Na aurora dúbia
O pai de meu pai salvou os livros.
Aqui estão na torre onde jazo,
Recordando os dias que foram de outros,
Os alheios e antigos.

Em meus olhos não há dias. As prateleiras
Estão muito altas e não as alcançam meus anos.
Léguas de pó e sonho cercam a torre.
Por que enganar-me?
A verdade é que nunca soube ler,
Mas me consolo pensando
Que o imaginado e o passado já são o mesmo
Para um homem que foi
E que contempla o que foi a cidade
E agora volta a ser o deserto.
Que me impede sonhar que alguma vez
Decifrei a sabedoria
E desenhei com aplicada mão os sí­mbolos?
Meu nome é Hsiang. Sou o que custodia os livros,
Que talvez sejam os últimos,
Porque nada sabemos do Império
E do Filho do Céu.
Aí­ estão nas altas estantes,
A um tempo próximos e distantes;
Secretos e visí­veis como os astros.
Aí­ estão os jardins, os templos.
---------
Fonte:
BORGES, Jorge Luíz . Elogio da Sombra (Tradução de Carlos Nejar e Alfredo Jacques).

Cristina Arraes Moreira (Reflexões Após Leitura)


Acabo de reler o livro “O Retrato de Dorian Gray” de Oscar Wilde, onde se encontra muitas reflexões que são inerentes ao ser humano. Ali se pode ter a oportunidade de ver retratado as preocupações com a beleza, em contraponto com nossa própria essência. Opções de vida, decisões que podem transformar nossa realidade também é ali apresentado de forma cativante e real.

Começo pela preocupação por uma beleza, muito menos desejada e muito mais imposta por um mundo, cuja população tem necessidade de modelos para se tornarem semelhantes. Mas o que é esta perfeição física, sem um espírito que a anime e a faça presente e participante?

Se pudéssemos separar a alma do corpo, como se fossem dois, o que seria um disparate, com qual parte gostaríamos de ficar? Optando pela alma, tenho o corpo físico junto porque ela é a verdadeira essência de ser. Mas o que acontece se, como o autor descreve, tem-se um desejo profundo de se tornar eternamente jovem, sem que as experiências da vida tenham qualquer sinal no que as pessoas podem ver.

Realmente fiquei muito pensativa, perdida nestas reflexões. Olho-me ao espelho e posso vislumbrar uma vida toda, de amores e decepções, tristezas, alegrias, dúvidas, realizações, tudo enfim que me fez ser o que sou hoje.

Lembro então do personagem desta obra, que fez a opção de não ver exteriorizado todo este caminho, sua verdadeira história. O autor consegue transmitir o completo vazio que se apodera do ser humano, ao se ver separado de suas emoções.

O mundo ocidental apresenta uma super valorização da juventude, sua disponibilidade, seu frescor, sua forma de sonhar e buscar seus projetos. As “não marcas” em seu corpo por uma história que apenas se inicia. Tudo isto é perfeito, na hora certa, no momento certo. Mas tentar eternizar esta condição, seria loucura, um desmando em relação à própria natureza.

História... A minha história, a sua história... Quantas coisas se perderiam se não houvesse um registro de fatos e emoções. E que são estes registros? Marcas que o tempo coloca em nosso corpo, mapa de uma existência que é dádiva e que se deve preservar. O personagem, provavelmente se olhava no espelho e deveria sentir o vazio de sua aparência, sua identidade se tornava algo irreconhecível, perdido no desejo da vaidade.

Gosto de minha vida, gosto de minha história, gosto de minhas experiências, gosto de me olhar e sentir que realmente vivi, que fiz diferença neste mundo, para mim, para os que encontrei, para os que amo. Não renuncio a isto por uma bonita imagem que o mundo anseia por impor. Que venha a maturidade, com suas transformações físicas, emocionais, espirituais, presentes de anos de vivência, ricos de tentativas, sucessos, derrotas.

Para tudo há o seu momento e, infeliz daquele que ousar modificar a ordem natural das coisas. Como é bom, como é gratificante ir conhecendo, aos poucos, tudo que se adquire com os anos que passam. Melhor ainda chegar à compreensão de que, por mais que se estude, mais teremos a aprender. A constatação de que a vida é um livro que não tem fim. A morte vem e interrompe o simples passar das páginas. Fica o enredo, fica a história, que servirá para outros continuarem.

Mate-se os sinais da própria vida, mate-se as emoções retratadas nas mãos, nos olhos, no corpo e há que se ter a morte que se precipita, chega-se ao fim, prematuramente.

Fonte:
http://www.vaniadiniz.pro.br/

Cristina Arraes Moreira


Maria Cristina Moreira Safadi nasceu no dia 14 dezembro, no Rio de Janeiro e viveu no bairro de Copacabana sua infância e adolescência. Sua casa, onde morava com mais sete irmãos e seus pais, é fonte constante de inspiração para seus escritos.

Em criança, de temperamento mais caseiro, passou a conhecer o prazer da leitura na biblioteca de seu pai, e costumava permanecer lá, durante muito tempo. É desta época também, o hábito de escrever. Tudo isto lhe fornecia um mundo cheio de atrações, liberdade e amor à vida.

Estudou em colégio católico, onde aprendeu a conhecer o amor a Deus e o carinho de Nossa Senhora, a quem sempre recorre e por quem se sente acolhida. Sua fé é parte central de sua vida, do que escreve e a guiou na criação de seus três filhos. O mais novo, Daniel, também é colunista.

Formou-se em Estatística e exerce a profissão no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE. Paralelamente a isto, desenvolve textos neste site tão querido criado por sua irmã, Vânia Moreira Diniz, que sempre foi sua grande incentivadora.

Além de sua profissão inicial, gosta de informática, teologia, sociologia e filosofia. Faz curso na Escola Mater Ecclesiae – Escola de fé e catequese. Fez alguns cursos também na área de informática. Fez curso lato Sensu em orientação educacional, na Faculdade Pedro II, onde desenvolveu uma monografia com o tema ‘Exclusão Social do Idoso’. Interessa-se também por estudos na área de gênero e Meio Ambiente.

Fonte:
http://www.vaniadiniz.pro.br/

Direitos Autorais (Esclarecendo Dúvidas)


Posso usar trechos de textos de outros autores para compor um texto meu?
Trechos de textos de outros autores podem ser usados desde que citada a fonte, dentro das normas da ABNT. Nesse caso, é necessário intercalar as citações com textos de sua autoria e com textos de mais de um autor.
Se você usar um mesmo autor muitas vezes ou trechos muito longos e sem intercalar com outros autores e com textos seus, isso é considerado plágio.

Posso modificar textos de outros autores?
Você pode parafrasear os autores, ou seja, escrever o texto do autor com as suas palavras. Mesmo assim, é necessário referenciar o autor original.

Ao usar trechos de obras, quanto da obra posso usar?
Um trecho da obra devidamente referenciado pode ser utilizado desde que não ultrapasse a 30% do conteúdo da obra completa, o que nem sempre satisfaz às necessidades da publicação.

O que é considerado obra completa?
São exemplos de obras completas:
- Livros
- Pinturas
- Fotografias
- Poemas
- Letras de músicas
- Melodias de músicas
- Filmes
- Charges
- Tiras (quadrinhos)
- Histórias em quadrinhos
- Roteiros
- Caricaturas

Para usar uma obra completa em produção própria basta citar a fonte?
A simples indicação da fonte não garante a possibilidade de utilizar uma obra completa. Não há impeditivos legais para usar qualquer obra para fins didáticos em sala de aula. Entretanto, para materiais que serão publicados, a utilização de obras completas precisa ser autorizada pelos autores/editoras/detentores dos direitos autorais e, quando se trata de adaptação, o autor/editora/detentor dos direitos autorais também precisa autorizá-la por meio de um contrato de cessão de direitos autorais.

Posso traduzir, adaptar e usar livremente obras completas em línguas estrangeiras?
Cada tradução de uma obra, que está ou não em domínio público, é considerada uma obra nova e o tradutor tem direitos autorais sobre ela. Entretanto, é necessário pedir autorização do autor da obra original, por meio de um contrato, para publicar a tradução. Observe-se que há obras escritas em uma língua estrangeira (Inglês, por exemplo) cuja obra original foi escrita em outra língua estrangeira (Francês, por exemplo).

Como identifico uma obra em domínio público?
Para identificar uma obra em domínio público é necessário pesquisar se o autor faleceu há mais de 70 anos e se os seus descendentes não requereram direitos autorais sobre a obra. Nesse caso, a obra pode ser usada em novas publicações sem problema algum. Caso os herdeiros tenham reivindicado os direitos autorais, a obra só cairá em domínio público após 140 anos da morte do autor. O autor e a fonte sempre devem ser indicados.

Quando devo pedir autorização ao autor de uma obra para republicá-la na minha produção?
Quando a intenção é usar parte significativa da obra, ou a obra completa, é necessário pedir autorização:
- Do autor, se estiver vivo.
- Dos herdeiros legais, se o autor faleceu há menos de 70 anos.
- Dos herdeiros legais, se o autor faleceu há mais de 70 e menos de 140 anos e os herdeiros reivindicaram legalmente os direitos sobre a obra.
- Da editora, caso tenha direitos patrimoniais sobre a obra.

Posso usar, em uma publicação, imagens/fotografias em que as pessoas podem ser identificadas?
Quando há concordância das pessoas que aparecem na imagem, essas podem ser usadas, mesmo assim, é necessário um contrato. Quando as imagens são de crianças, é necessária a autorização dos responsáveis. Outra possibilidade seria desfocar a imagem de modo a não permitir a identificação das pessoas.

Fonte:
Secretaria de Estado da Educação do Paraná
Imagem = http://www.plural.com.br/

Jamil Snege (Para matar um grande amor)


Muito se louvou a arte do encontro, mas poucos louvaram a arte do adeus. No entanto, não há gesto tão profundamente humano quanto uma despedida. É aquele momento em que renunciamos não apenas à pessoa amada, mas a nós mesmos, ao mundo, ao universo inteiro. O amor relativiza; a renúncia absolutiza. E não há sentimento mais absoluto do que a solidão em que somos lançados após o derradeiro abraço, o último e desesperado entrelaçar de mãos.

Arrisco mesmo a dizer: só os amores verdadeiros se acabam. Os que sobrevivem, incrustados no hábito de se amar, podem durar uma vida inteira e podem até ser chamados de amor mas nunca foram ou serão um amor verdadeiro. Falta-lhes exatamente o dom da finitude, abrupta e intempestiva. Qualidade só encontrável nos amores que infundem medo e temor de destruição. Não se vive o amor; sofre-se o amor. Sofre-se a ansiedade de não poder retê-lo, porque nossas cordas afetivas são muito frágeis para mantê-lo retido e domesticado como um animal de estimação. Ele é xucro e bravio e nos despedaça a cada embate e por fim se extingue e nos extingue com ele. Aponta numa única direção: o rompimento. Pois só conseguiremos suportá-lo se ocultarmos de nossos sentidos o objeto dessa desvairada paixão.

Mas não se pense que esse é um gesto de covardia. O grande amor exige isso. O rompimento é sua parte complementar. Uma maneira astuciosa de suspender a tragédia, ditada pelo instinto de sobrevivência de cada um dos amantes. Morrer um pouco para se continuar vivendo. E poder usufruir daquele momento mágico, embebido de ternura, em que a voz falseia, as mãos se abandonam e cada qual vê o outro se afastar como se através de uma cortina líquida ou de um vitral embaçado.

Há todo um imaginário sobre os adeuses e as separações, construído pela literatura e pelo cinema. O cenário pode ser uma estação de trem, um aeroporto (remember Casablanca), um entroncamento rodoviário. Pode ser uma praça ou uma praia deserta. Falésias ou ruínas de uma cidade perdida. Pode estar garoando ou nevando, mas vento é imprescindível. As nuvens devem revolutear no horizonte, como a sugerir a volubilidade do destino. Os cabelos da amada, longos e escuros, fustigam de leve seus lábios entreabertos. Há sutis crispações, um discreto arfar de seios. E os olhos, ah!, os olhos... A visão é o último e o mais frágil dos sentidos que ainda nos une ao que acabamos de perder.

Uma grande dor, uma solidão cósmica, um imenso sentimento de desterro. Que se curam algum tempo depois com um amor vulgar, desses feitos para durar uma vida inteira...

Fonte:
http://raulpough.blogspot.com/

Herman Hesse (O jogo das contas de vidro)



Sinopse

Último romance escrito por Hermann Hesse, publicado em 1943, 'O Jogo das Contas de Vidro' descreve uma comunidade mítica, no ano 2200, onde as regras, a linguagem figurada e a gramática do jogo representam uma espécie de linguagem oculta, altamente evoluída, de que participam várias ciências e artes, especialmente a Matemática e a Música (ou seja, a musicologia). Essa linguagem tem a possibilidade de expor o conteúdo e os resultados de quase todas as ciências e de relacioná-los entre si.

O livro propriamente dito divide-se em três partes. A primeira é um curto estudo histórico sobre o jogo que dá nome à obra, também conhecido por Jogo de Avelórios, uma atividade lúdica e intelectual fictícia, à qual muitos sábios e acadêmicos da também fictícia comunidade de Castália se dedicam profissionalmente em um futuro distante (não há menção direta à datas na narrativa, mas a contra-capa da edição diz que a ação principal se passa no século XXIII; isso não faz do livro uma história de ficção científica, no entanto).

O próprio tema do jogo também é recorrente na maior parte do livro, e em geral ele parece servir de metáfora para a idéia do saber acadêmico e da erudição vazias, que são um fim em si mesmos e pouco ou nada devolvem à sociedade pelo tempo e recursos que consomem; eu, no entanto, acabei por fazer uma relação um tanto diferente a seu respeito. Pela nata profissional intelectualizada que o pratica, pela trabalhosa forma de preparo das partidas, com extensas pesquisas de referências e temas acadêmicos, e pela sua natureza pretensamente artística, me ocorreu em algum momento da leitura que o tal Jogo de Avelórios tem muito comum com a visão intelectulizada que alguns jogadores parecem ter do RPG; e, assim, muito dos avisos e decadências por que o jogo passa no decorrer da sua história, com o crescente afastamento do povo comum e a sua restrição a uma comunidade cada vez mais isolada e distante de jogadores, me pareceram ser bastante relevantes também para o RPG, se esse tipo de visão se tornar predominante. Mas isso já é outra história.

A segunda parte do livro, a mais extensa e que constitui o corpo principal da narrativa, trata de uma biografia fictícia de José Servo, uma virtuose no jogo desde a infância, que em dado momento da sua vida recebe o cargo de Magister Ludi, ou Mestre do Jogo de Avelórios, o mais alto título dado a um jogador, que tem por função coordenar e regular a prática do jogo. Os detalhes da sua vida são destrinchados desde a infãncia, com a entrada no universo acadêmico, passando pela sua descoberta e envolvimento com o jogo, e também pelo conflitos e discussões com duas figuras em especial - um colega de fora do universo acadêmico e um historiador beneditino que conhece durante um seminário que ministra sobre o jogo em uma abadia. A estes confrontos, entre outros tantos, é dado bastante importância na narrativa, pois é a partir deles Servo que se faz os principais questionamentos e reflexões a respeito do papel que ele e toda a comunidade acadêmica onde vive desempenha na sua sociedade, e sobre a função do saber e do cultivo do espírito, o que gradualmente vai se tornando no mote principal da história; por isso tudo, é certamente um livro bastante interessante e reflexivo para qualquer um com algum tipo de aspiração dentro deste universo da Academia, uma vez que não é difícil cair neste tipo de questionamento e dúvida. Eu sei que eu já passei bastante por isso, e ainda me pego muitos vezes pensando e refletindo sobre esse tipo de questão.

A segunda parte, enfim, acaba com a morte abrupta e um tanto inesperada do protagonista, o que também não é nenhum spoiler, já que é um fim anunciado desde bastante cedo na narrativa, além de esperado da maioria das biografias. Quem espera o fim da leitura, no entanto, se deparará então com aquela que é, talvez, a melhor e mais envolvente parte do livro, na centena de páginas final: as obras póstumas de José Servo. Constituem as tais obras alguns poemas atribuídos a ele, e, principalmente, três contos que fecham definitivamente a narrativa. A partir de três personagens bastante diversos - um xamã primitivo, um ermitão cristão e um príncipe indiano -, ele explora de forma mais sucinta e direta os temas que haviam composto o livro até então, com habilidade e clareza bastante nítidos e evidentes, e um resultado bastante cativante e espirituoso.

Resumo da narrativa:

Joseph Knecht é um estudante bastante dotado que foi «descoberto» e recrutado pelo Mestre da Música da Ordem de Castália, uma sociedade quase monástica onde se cultiva o estudo de todas as ciências e artes, sem lugar para a história e temas relacionados com a sociedade, sendo uma referência da nação e servidor de professores nas disciplinas mais puras e sublimes, tais como a matemática e a música. A jóia da coroa de Castália é o Jogo das Contas de Vidro, que consiste numa arte de montagem de divagações racionais a partir de qualquer tipo de conhecimento puro, misturando quaisquer disciplinas deste. Knecht é um homem que, devido às suas capacidades, mas, sobretudo, devido à sua abertura de espírito, rapidamente ascende ao lugar de Magister Ludi, supremo Mestre do Jogo das Contas de Vidro. O seu percurso de vida é deveras singular, permitindo que Knecht se confronte e complemente os seus conhecimentos e crescente sabedoria com vários sábios representantes de diferentes apologias face à vida.

Nos seus primeiros tempos em Castália é nomeado para ser seu representante nas discussões com Designori, pessoa do mundo secular que defende a vida do homem fora de elitismos de sabedoria tais como são vividos em Castália, com constantes críticas à mesma, firmemente, mas amigavelmente rebatidas por Knecht. Após a sua formação, Knecht parte em viagem pelo reino de Castália (cuja Ordem tem instalações em vários sítios da nação), aprofundando os seus conhecimentos, tomando contacto com um sábio ostracizado por Castália pelo seu excesso de misticimo, a quem chamam «O Irmão Mais Velho», aprendendo com ele novas perspectivas sobre o conhecimento e a sabedoria. Pouco depois, é designado para passar alguns anos num Mosteiro, para uma aproximação maior de Castália à Igreja, onde vai encontrar Frei Jakob, outro grande sábio, desta feita na vertente histórica/religiosa, com quem aprende muito e trava discussões bastante interessantes. Fruto de todas estas experiências, Knecht cria uma aura de calma, serena e ampla sabedoria que o torna no candidato preferencial ao lugar de Mestre do Jogo das Contas de Vidro, quando este falece, pelo que é eleito para esse lugar.

Mas não pára por aqui a fantástica aprendizagem de Knecht. No declínio da velhice do Mestre da Música (o seu tutor na juventude) constata nele a silenciosa sabedoria de quem tudo compreendeu. E, com Tegularius, seu colega em Castália e maior admirador, as desvantagens de uma postura rígida face à necessidade de flexibilidade quer em relação às instituições, quer em relação a conhecimentos opostos aos seus (de Castália). Interiormente, é cada vez maior a constatação da existência dos dois pólos, por Knecht: o aprofundamento ou a diversidade, representando esta última o eterno recomeço e a verdadeira apetência do ser humano na busca da sabedoria. O reencontro com Designori dá-se muitos anos depois dos seus confrontos de juventude, ambos desiludidos com a sua vida atual, mas que desperta em Knecht o rumo a seguir nos anos seguintes.

Todo este percurso, conforme previsto desde o início do livro, vai ter um final inevitável: embriagado por um constante aumento de sabedoria, Castália já não pode satisfazer Knecht, que, após uma brilhante troca de cartas e discussão com o presidente Mestre Alexander, vai sair de Castália e voltar à vida secular, seguindo a sua intuição que, até aí, lhe tinha sido sempre preciosa na sua busca pela sabedoria, mas que, depois, lhe vai proporcionar um final inglório embora comovente e revelador.

Comentários:

Por tudo aquilo que se referiu acima, pode-se considerar este romance como um romance de idéias, apesar do forte enfoque na personalidade de Joseph Knecht, símbolo irreal de um homem completamente aberto a todo o tipo de conhecimentos e sabedoria, que tudo absorve e potencia na sua visão sobre a vida, cumprindo sem limites o potencial maximizado do ser humano na sua busca da compreensão do mundo.

É importante destacar, no entanto, que talvez O Jogo das Contas de Vidro não seja uma obra fácil de ser lida por qualquer um. É um romance indiscutivelmente erudito, em parte por ser recheado de referências eruditas e falar de um personagem erudito que se desenvolve em um universo de erudição, mas também por tratar de temas e questionamentos que dizem respeito principalmente ao mundo dos eruditos e acadêmicos. Por mais cativante e envolvente que seja a narrativa, não consigo deixar imaginar boa parte dos leitores em potencial se sentindo entediados e fatigados pelos extensos devaneios e diálogos a respeito da filosofia e natureza da História ou da função do saber acadêmico, por exemplo. De qualquer forma, para alguém que se identifique nestas questões, e saiba se conectar ao enredo e personagens do livro, é uma leitura facilmente encantadora, e talvez mesmo transformadora.

Descrito como sublime por Thomas Mann, este excelente romance valeu a Hermann Hesse a atribuição do Prêmio Nobel da Literatura em 1946.

Excerto:

Nenhum ser nos foi concedido. Correnteza apenas
Somos, fluindo de forma em forma docilmente:
Movidos pela sede do ser atravessamos
O dia, a noite, a gruta e a catedral

Assim sem descanso as enchemos uma a uma
E nenhuma nos é o lar, a ventura, a tormenta,
Ora caminhamos sempre, ora somos sempre o visitante,
A nós não chama o campo, o arado, a nós não cresce o pão

Não sabemos o que de nós quer Deus
Que, barro em suas mãos, conosco brinca,
Barro mudo e moldável que não ri nem chora,
Barro amassado que nunca coze

Ser enfim como a pedra sólido! Durar uma vez!
Eternamente vivo é este o nosso anseio
Que medroso arrepio permanece apesar de eterno
E nunca será o repouso no caminho

Conclusão:

O «Jogo das Contas de Vidro» transmite uma mensagem de esperança e uma visão libertadora da materialidade e da quantidade como critérios fundamentais da Vida e do Conhecimento.

Fonte:
Anatoli: Um blog cultural. http://anatoli-oliynik.blogspot.com/

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Heloísa Zanconato Pinto (Juiz de Fora em Trovas)

Praça da Estação de Juiz de Fora
colagem e pintura de Sonia Rezende
Parece que um anjo arruma,
no céu, a luz das estrelas:
de dia, apaga uma a uma...
E à noite, torna a acendê-las!

Eu não sou Mago, nem Santo,
mas na magia do amor
hei de quebrar teu encanto;
Fazer-te escrava... e, eu, Senhor!

Posso doar-te a ventura
na transfusão do que anseias,
pois, mais que sangue, é ternura
o que me corre nas veias!...

Mãe, teu sangue é abençoado,
pois Deus concedeu-te os meios
de doá-lo ao filho amado
na transfusão dos teus seios!

A ofensa mais dolorida,
que à humilhação se compara,
é quando a mão estendida
leva uma "porta na cara"!

É meio a meio, eu garanto,
a culpa de meus pecados,
pois só deixei de ser santo
quando aceitei seus agrados!

Seja cobrado... ou de graça,
num paradoxo profundo,
por melhor que algo se faça,
não se agrada a todo mundo!

A tristeza mais pungente...
aquela que ninguém vê,
é a que dói dentro da gente
e a gente sabe por quê!

A saudade me garante,
já que a tristeza persiste,
que eu devo, de agora em diante,
me acostumar a ser triste!

Ao ser preso lamentou
o português trambiqueiro:
- Em meu trambique faltou
o "jeitinho brasileiro"!...

Porque a Suíça distante
Veio às terras brasileiras,
No peito dessa imigrante
Tremulam duas bandeiras!

- Como manter a esperança?...
Indago a Deus, de mãos postas.
E Ele, de andança... em andança,
vai me mostrando as respostas!

Segue a neta, em gesto terno,
com o avô pelas calçadas:
- É a Primavera... e o Inverno
passeando de mãos dadas!...

Porque, sempre, nas vitórias,
logrei o apoio de alguém,
eu reparto as minhas glórias
com meus amigos também!

Brota emoção com fartura
e o peito explode à vontade,
sempre que o amor se mistura
à essência de uma saudade!...

Considerando-se a essência
de quem não faz o que diz,
sua distinta aparência
é simplesmente "verniz".

Se ao romance eu me refiro,
a moçada de hoje em dia
me responde que suspiro
se encontra... em Confeitaria!

Quando a mão de Deus descerra
o inverno que a neve traz,
esconde o verde da Terra,
mas dá-lhe o branco da paz!...

Compositor caipirinha
foi à praia no verão...
E em vez da ousada sunguinha,
levou seu "Samba-Canção"!

No verão, em grande estilo,
o biquíni bem mostrava:
nas gordas sobrando "aquilo"
que nas magrelas faltava!

Verão pra gordo é tortura,
pois ao dobrar-se em si mesmo,
nas preguinhas da gordura
derrete que nem torresmo!

A sorte faz que eu prefira,
talvez de modo incomum,
qualquer amor de mentira,
a não ter amor nenhum...

Feito a chama de uma vela
que se esvai no alvorecer,
qualquer poder se esfacela
ante o Supremo Poder! ...

Padece a Nação inteira
e explodem forças armadas,
quando a Sorte põe, arteira,
o poder em mãos erradas! ...

Por entender que ela o escuta,
seu canto pode alcançá-la...
por isso a lua se enluta
quando um boêmio se cala!...

Expulsou-me!... E por castigo
eu feri sua vaidade,
pois, fui, levando comigo
tudo o mais... menos, saudade!

O Destino irreverente,
pôs no mundo, por capricho,
bicho com cara de gente,
gente com "jeito" de bicho!

Eternos não são os meus risos;
nem meus momentos tristonhos...
Mas, sendo bem mais precisos,
serão eternos meus sonhos!

- Se um dia eu virar defunto,
vou ser na rede, enterrado.
- Que melhor caixão, pergunto,
pra quem viveu "pendurado"?...

Nosso conflito, suponho,
deu-se em razão de um defeito:
coração, é que o teu sonho
era maior que o meu peito!

Dois seres entrelaçados
no amor da eterna união,
são corações afinado
pelo mesmo diapasão!

O galo mostrava a zanga
ciscando de lá pra cá,
depois de "pegar" a franga
no ninho do carcará!...

O solitário modera
seus passos no viajar.
Quem não tem ninguém à espera,
não tem pressa de chegar!...

O nosso amor clandestino,
vivendo à mercê da sorte,
viaja pelo Destino
sem carimbar passaporte!...

Superando a hora prevista,
viaja o trem a correr.
- Subornei o maquinista
pela pressa de te ver!...

O Destino se afigura
aquela torre elevada
que oferta o gozo da altura
pelo suplício da escada!...
-------------


Fonte:
União Brasileira dos Trovadores/ Juiz de Fora,MG
Pintura = Estação em tres tempos - de Sonia Rezende

Heloísa Zanconato Pinto



Heloísa Zanconato Pinto é fluminense, de Resende, mas residente em Juiz de Fora-MG desde a juventude. É casada com Romero Tostes Pinto, sendo pais de Paulo Romero e Marcelo, ambos Trovadores, e, atualmente, Vovó-coruja de Francisco, que é filho do Marcelo, e que provavelmente, seguirá os passos dessa família que traz, no sangue, o abençoado vírus da Trova.

Heloísa pertence à UBT de Juiz de Fora, onde ocupa o cargo de Vice-Presidente de Cultura. É Escritora, Poetisa Clássica e Trovadora, tendo conquistado várias premiações no Brasil e em Portugal. É membro da Acadenia Mineira de Trovas, Cadeira 26 - Patrono Graziela Lydia Monteiro.

Fez-se Trovadora em 1988, e, como tal, conquistou vários troféus, inclusive o prêmio "Menestrel da Trova", na categoria "A Trova Mais Criativa de 1995". Já foi nome de Troféu em Barra do Piraí e em Porto Alegre. Foi premiada muitas vezes em todos os concursos e Jogos Florais. Ela, além de grande Trovadora , é muito simpática e querida por todos os Trovadores. Acima de tudo é incansável batalhadora pela Trova.

Fonte:
União Brasileira dos Trovadores/ Juiz de Fora,MG

Jamil Snege (Sentimento Paranista)



No cabo de uma enxada
No volante de um caminhão
Na escola em construção
No risco de uma estrada
O meu Paraná eu traço.

Que importa se a vida é dura…
Amanso ela na canga
Transformo usura em fartura
Meto os peito, dou castigo
O meu Paraná eu brigo.

Por isso eu digo, irmão
Tome conta deste chão
Garanta o seu pedaço…
Assuma o seu quinhão.

O meu Paraná somos todos
cada qual com sua parte
Seu ofício e sua arte.
––––––-
Fonte:
http://jornale.com.br/ruy/?p=32563

Jamil Snege (O Ciclista)


Difícil foi esconder a bicicleta. Acabou achando um espaço no porão, atrás do tampo de uma mesa desmontada. Seus filhos já não entravam mais ali, a mulher tampouco – despejo de cacarias, lustres e móveis quebrados, garrafas, jornais velhos. Reluzente, coberta por um pano, a bicicleta prometia-lhe aventuras inusitadas no seu poeirento esconderijo.

Nunca aprendera a andar. A mulher sempre zombou – jamais conhecera alguém que não soubesse andar de bicicleta. Escarnecia-o diante dos filhos e chegou mesmo a humilhá-lo quando ele se propôs a ensinar o mais velho, então com cinco anos, a pilotar a máquina que ganhara da avó. “Vai ensinar a ele o que você não sabe? Ridículo!”

Vingou-se da humilhação exibindo o novo ciclista com um perfeito domínio da máquina. A mulher negou-se a reconhecer-lhe o mérito. Quando o filho mais novo, através de sua mão paciente e segura, adquiriu também ele a mágica noção do equilíbrio sobre duas rodas, a mulher foi mais rude: “Por que não deixou que ele aprendesse sozinho? Teria sido mais fácil”.

Engoliu a ofensa em silêncio. Passaram-se os anos e ele pareceu esquecer. Os filhos cresceram, trocaram suas bicicletas por namoradas e carros, seguiram suas vidas. Restando-lhe a mulher e uma confusa sensação de inutilidade. Foi então que teve um sonho premonitório. Sonhou que pilotava uma bela bicicleta azul, velozmente, pelas ruas do bairro. Reviu o portão da casa do cônsul, os muros de ardósia, o grande cipreste na esquina. O telhado de sua própria casa, de um verde já desbotado, e a negra faixa de asfalto ao fundo.

Sentia o vento lamber seu peito e a gloriosa sensação de liberdade – o passado, a idade, tudo ia ficando pelas esquinas, para trás. Acordou deliciado, um leve torpor nas pernas de tanto pedalar. Dissimulou tão bem sua felicidade que a mulher, na mesa do café, achou-o meio triste e mais calado que de costume. Talvez por essa razão não reclamou quando ele avisou que precisava ir até a cidade resolver alguns negócios.

Convenceu o vendedor que precisava da bicicleta logo de manhãzinha. Não fazemos entrega tão cedo, tentou ponderar o rapaz. Fale com seu gerente, insistiu ele. A bicicleta acabou sendo entregue às sete da manhã seguinte – ele esperava no portão, no nicho previamente preparado. Cobriu-a com um pano, colocou de volta o tampo e subiu para o café. Pôs a água para ferver e foi fazer a barba. Suas mãos tremiam. A mulher ainda não acordara.

No dia seguinte, despertou às seis em ponto. Escolheu uma roupa leve e uns sapatos esportivos. Serviu-se de um copo de leite na cozinha e foi tomá-lo à porta do quarto. Na penumbra, a mulher dormia de boca aberta. Ficou ali um minuto ou dois, dando pequenos goles, retendo o líquido gelado na boca antes de engolir. fechou a porta e saiu.

Professor e aluno a uma vez só, encostou a bicicleta no meio-fio e, antes de montar, certificou-se de que não havia nenhum vizinho à espreita. Apoiando o pé direito na guia da calçada, deu um pequeno impulso para frente, mas não chegou a colocar o outro pé no pedal. Seu coração acelerou-se e tentou novamente.

Na terceira tentativa conseguiu meia pedalada e só por sorte não foi ao chão; susteve a bicicleta inclinada entre as pernas abertas, chocando o pedal contra a panturrilha. Foi descendo a rua aos trancos e quando percebeu que se afastara uns duzentos metros do portão de casa decidiu que era hora de voltar. Calculou que a última tentativa lhe rendera uma pedalada completa e uns quinze metros percorridos sem apoio.

Voltou na manhã seguinte e nas outras manhãs. Sua primeira queda ocorreu no terceiro dia: feriu o joelho esquerdo e ambos os cotovelos. Quando sentou-se para o café, descobriu um corte ardido junto ao pulso. A bicicleta nada sofrera na sua bela cor azul. A mulher achou-o corado e bem disposto. Depois reclamaria das manchas de mercurocromo no piso do banheiro.

O fim de semana amanheceu chuvoso e ele resolveu não se arriscar. Antes do almoço de domingo, insinuou-se no porão e foi dar uma olhada na companheira. Retirou o pano que a ocultava e fitou-a ternamente. Amanhã passa essa chuva, sussurrou e voltou a cobri-la. À tarde, afastou-se das tias que visitavam a mulher e subiu para o quarto. Há muito que se sentia invisível na casa, principalmente depois da saída dos filhos. Limitava-se a sorrir para as visitas, quase sempre visitas da mulher, enquanto sua cabeça viajava para longe. E elas nunca lhe exigiam mais que isso – um sorriso tolo e apagado. Tinha agora um motivo adicional para se furtar às conversas sobre doenças e parentes remotos. Clandestina no porão, amante amantíssima, a bicicleta azul – seu pacto secreto com a vida. Abriu o guarda-roupa, subiu nos pés da cama e procurou no fundo do maleiro pela velha mochila. Separou uma toalha de banho, algumas roupas, um abrigo de chuva. Guardou tudo na mochila e voltou a descer. As velhas tias estranharam sua amabilidade ao se despedirem. A mulher ligou o televisor e só abriu a boca para se queixar do tempo na hora de dormir.

Ainda caía uma garoa fina quando a segunda-feira clareou. Ele desceu o porão, retirou o pano e pela primeira vez observou o efeito das gotinhas d‘água sobre o azul reluzente. Desta vez não se apoiou no meio-fio. Pedalou com determinação e percebeu, maravilhado, que os dois dias de abstinência tinham eliminado todas as dificuldades entre ele e sua máquina. Flutuava sobre as duas rodas – e a bicicleta lhe respondia com entusiasmo a cada giro vigoroso do pedal. Lamentando não encontrar nenhum vizinho, contornou o quarteirão. Quando passava diante de casa, reduziu a velocidade na esperança de que sua mulher surgisse à janela. repetiu o mesmo trajeto algumas vezes, até que finalmente dobrou à direita e mergulhou em direção à estrada que se abria logo adiante.

Fonte:
Jornal Guata. – Cultura em Movimento

Jamil Snege (1939 – 2003)



Jamil Snege nasceu em Curitiba, em 1939, onde passou sua vida toda. Graduou-se em Sociologia e Política pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Escritor e publicitário, dividia seu tempo entre os livros e sua agência publicitária. Publicou crônicas, quinzenalmente, no Caderno G do jornal Gazeta do Povo .

Escritor reconhecido pela classe literária, publicou, entre outros, O Jardim, a Tempestade (minicontos, 1989), Como Eu Se Fiz Por Si Mesmo (memórias, 1994) e Os Verões da Grande Leitoa Branca (contos, 2000).

Fonte:
http://www.travessadoseditores.com.br/

Walmor Marcellino (Poesias Avulsas)


TEOREMA DO PÃO

Há-de-ázimo
nesse pão azedo
de toda-a-vida.

Vindima acre transportada
de rácimos fermentos
fermentada saliva
posta em sua mesa.

Cogumelos do teu gosto
com saber da fome
o antidoce percorre
sem saber da sede.

Teu interstício de vivo
já vai morto.

Sem cerimônias
sem acrimônias
essas antinomias
demonstram amenas
um teorema: CQD

DESPOJAMENTO

(Um jogo prológico;
episódio com palavras
em lavras
de pura insensatez:
uma por vez)

Um começo de tudo:
poderia a quem finada
a voz, e o gesto mudo
sua tarefa terminada.

Ei-la que sua vida
seria-de pertencer
a quem a souber tecer
até a morte surpreendida...

Entrementes, dessarte
em todos os meus ensejos
espiada arte de desejos,
álgidos delírios loucos
sorvemos amor aos poucos.

E fomos assim
se aprouve às parcas.
Até que a vida se pôs
demais comprometida.
Até que a sobrevida se fez
bem distendida.
Até que a morte se faça
em agonia.

SONETILHA

É possível que este amor
seja mais que fome e sede
uma ferida na solidão, cutelada:
a dor física que não se mede.
Mais ainda que qualquer dor,
uma retribuição que se perde,
dor-surpresa, punção sangrada
Amor de fruição perdida, apaixonada.

PEQUENA ELEGIA

Os homens ganharam seu pão.
Podem comê-lo
como o sistema os come.
Podem amar em angústia,
com amor e tristeza
uma carga depositada
liberta seus ombros em nova marcha.

Podem gritar na noite
como animais acuados
sua indizível esperança.
Podem comer o fumo
banhar-se no álcool
engolir sua paçoca
extenuar-se na enxerga
povoar a fêmea de ruídos
e breves pensamentos.
-----

Fonte:
MARCELLINO, Walmor. Malvas, Fráguas e Macanilhas. Travessa dos Editores, 1994.

Carlos Eduardo Leal (O Escritor, sua memória e seu ofício)

"O escritor", escultura do italiano Giancarlo Néri
É sempre marcado pelo passado que se escreve. O ato de escrever é, de alguma maneira, uma tentativa de reconciliação com nossas memórias. Ora, a memória é também composta por restos fragmentários que ficaram inconclusos na vida cotidiana. Muitas vezes são restos que nos assombram, noutras nos deterioram pela fragilidade à qual eles nos expõem.

Freud, dizia que uma das funções de uma análise era preencher as lacunas da memória e, assim, livrar o sujeito de seus traumas e medos infantis que ficaram soterrados sem a menor possibilidade de dar um sentido claro ou uma significação coerente. Então, uma análise também é resignificar os fatos adormecidos, as histórias submersas, verdadeiros tesouros arqueológicos da nossa infância vivida ou devaneada. Numa análise, o sujeito ao recontar sua vida acaba recriando ficções para sua verdade. Se os sintomas são metáforas de uma verdade recalcada, então a palavra ficcional do analisante poderia reconstruir a fantasia que havia servido de tela para o real? Qual é a diferença entre o viver e o devanear? Para o psicanalista, o que importa é a realidade psíquica e, não propriamente, a realidade vivida, pois é desta realidade que o sujeito reconstrói sua vida no presente e a relança para o futuro. É desta realidade que ele sofre.

Shakespeare, escreveu uma peça que se chama As you like it, ou, 'assim é se lhe parece'. A vida é como você a enxerga. Igualmente para o escritor, não há uma separação tão nítida entre a realidade e a ficção. Aliás, é melhor que não haja mesmo, pois ele vai construir realidades ficcionais para que o leitor 'viva' a vida de seus personagens como se ele também fizesse parte da história. Entrar dentro de um livro é como entrar em uma enorme caverna com seus labirintos em busca de uma aventura, de um romance ou de uma caçada policial sem passar pelos perigos que os personagens vivem. O bom romance diminui ao máximo a distância entre a ficção e a realidade ao ponto do leitor quase não conseguir mais diferenciá-la, ou melhor, de torná-la crível como se ele também pudesse ser o protagonista da história. A travessia de uma análise deve igualmente permitir que o sujeito possa transmitir a sua história para outro sujeito a partir de seu inconsciente e, assim, dizer de um estilo que é só seu.

Existem cinéfilos que acham que a sétima arte é insubstituível. Eu adoro cinema, mas como escritor, percebo que a "oitava maravilha do mundo" é a capacidade fantasística do leitor. Um bom romance consegue fazer despertar no leitor um grande diretor de filme e rodar cenas inimagináveis através da realidade psíquica sem que para isso ele precise levantar do sofá. Por isso se diz com frequência que "o livro era melhor do que o filme", porque o leitor já havia feito o seu filme dentro da sua própria mente. A tela do cinema não é a tela da fantasia, mas ambas podem ter o intuito de re-velar algo mais-além do dito. Quando o autor põe um ponto final no romance, cabe ao leitor tornar-se co-autor daquele e dar continuidade através de sua imaginação à ficção criada.

Assim, o leitor se torna co-autor do autor passando magicamente a fazer parte da 'memória' vivida deste. Memória vivida ou memória inventada, pouco importa. O que importa, tal como Freud escreveu, é que a realidade a ser tratada seja a realidade psíquica. O repetir ficcional (tanto na insistência da criação literária como na sucessão das sessões de análise) faz com que a memória recorde do esquecido (Aqui os exemplos são inúmeros na literatura ou filosofia: Proust e la Recherche du Temps Perdu , santo Agostinho em suas Confissões, Platão em Mênon, etc) e, assim fazendo, possa elaborar os pontos cegos, os hieróglifos do passado. Repetir, recordar e elaborar são em última instância, o que o poeta Manoel de Barros escreveu: “repetir, repetir, repetir, até fazer diferente.”

Recentemente, uma leitora comentou acerca do meu livro A última palavra, dizendo que "só quem amou apaixonadamente pode viver tal ira dos personagens". E ela tem razão. No plano ficcional ou na vida real, é preciso que tenha havido um grande amor para que um grande ódio surja como contraponto. Mas, pergunto novamente: qual é a diferença entre a realidade e a ficção? O limite é extremamente tênue. Também ouvi de outra pessoa: "no início tive muita raiva dele, mas depois entendi a minha raiva e passei a prestar mais atenção ao discurso tão feminino dela". Sem querer arriscar aqui uma interpretação, poderia dizer que a leitora já havia se identificado com ela ao ter muita raiva dele.

São memórias afetivas que estimulam nossas identificações. São atavismos perdidos que um livro pode recuperar. Um livro diz respeito à memória do seu autor, mas produz do lado do leitor, a possibilidade de recuperar imagens perdidas, tal como num filme musical remasterizado. Porém, o que é mesmo memória e o que é memória inventada em relação ao próprio leitor? O déjà vu é algo que o sujeito viveu, ou foi 'fabricado' pelo autor confundindo de vez as lembranças perdidas?

O ofício do escritor é inventar memórias: as suas e a dos outros. Lá onde não havia nada, você coloca uma ação, um romance no qual o sujeito no próximo encontro com sua amada vai dizer as palavras que o protagonista disse e que parece que saíram de sua boca.

É comum lermos trechos inteiros de um livro, ou uma poesia, e acrescentarmos que "era exatamente isso que eu pensava, mas não sabia como falar". O escritor fala, então, ao coração do leitor. Empresta sua voz e, claro, dos seus personagens àquele que o lê. Lá onde isso fala, deve o eu advir.

Muitas vezes, o escritor se torna uma espécie de ghost writer para o leitor. Mas, isso acontece também dentro do próprio romance como é o caso de Cyrano de Bergerac no qual o personagem, que se achava muito feio, escreve para que outro o interprete. A palavra do escritor tem por função fazer ponte entre os abismos que existem na vida das pessoas e, assim, possibilitar a crença de que o leitor possa tocar com suas próprias mãos regiões antes inalcançáveis. Trilhar por caminhos nunca antes navegados é estar não-todo na possibilidade do evento. Esta radical posição diante da vida permite um certo ‘iluminismo’ diante das crenças obscurantistas que fizeram da infância do sujeito um canteiro fértil para o unheimlich freudiano. A palavra, escrita ou falada, joga luz onde havia tropeço desde os pés inchados de Oedipus, aquele que anda mal, que manca ou claudica. A palavra ao se banhar nas margens da linguagem abre uma nuvem de significantes que correm ligeiras ao sabor do vento das enunciações do sujeito. A palavra, no correr das lufadas do desejo, vai mais além do que ela gostaria de dizer e, assim, revela ao mesmo tempo em que desconstrói as cercas que aprisionavam as possibilidades e liberdades de escolha do sujeito diante da linguagem. Por isso não há maior liberdade do que a liberdade de escolha. Um autor pode escolher que destino ele vai dar à sua trama. Há aí uma responsabilidade do escritor diante do seu desejo de transmissão. A conformidade entre o que ele pensa e o que ele escreve dá ao autor o poder de convencimento ou persuasão da veracidade da sua história. Para o analisante, a trilha ou o desfiladeiro de significantes em suas associações livres, também revelam caminhos (muitas vezes de irrupção de pontos de angústia) que o leva a se descortinar com as franjas da verdade.

Há enormes paralelos entre o escritor e um psicanalista. Um deles diz respeito a que ambos possibilitem ao leitor ou ao paciente interpretar seus próprios textos. O texto do escritor é interpretado pelo leitor através de suas experiências pessoais e outras leituras. O psicanalista leva o paciente a formular também seus próprios textos, a escutá-los, dando a cada palavra proferida a devida dimensão de sua paternidade e autoria. Não é à toa que alguns analisandos terminem suas análises e vão escrever livros relatando sobre o percurso transcorrido. Vão ficcionalizar sobre a realidade inventada, a memória perdida e a redução inesgotável de suas dores. Escrever sobre o resgate da memória perdida é refazer a parábola do filho pródigo ou do pastor que tendo cem ovelhas e perdido uma, largou as noventa e nove e foi atrás da que se perdeu. Certos pequenos restos perdidos do passado são mais incômodos e contundentes (possuem a força de um tsunâmi) do que toda uma biblioteca de Alexandria de pura e boa memória.

O escritor é um sujeito que sofre. Também possui suas humanidades, poderiam vocês contra-argumentarem. Mas, não só. O escritor sofre, padece da palavra. Sofre dela, por
ela e através dela. Sofre e se regozija pelo encontro. Sofre pelo desencontro tal como no fim de um baile de máscaras; 'não era ele, não era ela'. No fundo, não dá para esquecer que um autor é antes de tudo um leitor, assim como um psicanalista terá sido um analisante.

A memória do escritor é atualizada na palavra construída, inventada por ele e, portanto, resignificada sobre o tempo perdido. Quem escreve, não perde tempo. Quem escreve, não se perde do seu tempo. Quem escreve, não se perde no tempo. No tempo das memórias inventadas.
–––––––––––––––-
Sobre o Autor
Psicanalista e Escritor. Autor de Fragmenta (poesia); A sede da mulher e de um homem (poesia); O nó górdio (romance/ficção) pela editora Cia de Freud; e, A última palavra (romance/ficção) pela editora Rocco. Este ensaio foi publicado originalmente no blog do autor Veredas: Literatura e Psicanálise: http://veredaspulsionais.blogspot.com/

Fonte:
Revista Psicanálise & Barroco em revista v.7, n.2: 173-178, dez.2009 173