sábado, 5 de outubro de 2013

Monteiro Lobato (A Reforma da Natureza) Capítulo 5 : Borboletas, moscas e formigas

Emília esqueceu a vaca e saiu correndo atrás da borboleta, a gritar: - "Dessa não tenho ainda!" Mas não conseguiu pegá-la; cansadinha da corrida, explicou:

- Estou fazendo uma bela coleção de borboletas e dessas azuis não consigo. São das mais ariscas. Temos também de reformar as borboletas.

- Impossível, Emília! - gritou a Rã. - Tudo nelas é tão bem feito, tão direitinho e lindo, que qualquer reforma as estraga.

- Minha reforma das borboletas - explicou Emília - não é na beleza delas e sim  no gênio delas. Quero que se tornem "pegáveis", como os besouros. Já reparou que besouro não foge da gente? Mansíssimos. Mas as borboletas, sobretudo destas azuis, são umas pestes de tão ariscas. Quando descubro uma sentada e me aproximo, ela "bota-se"!

E as borboletas azuis foram reformadas, ficando mansinhas como besouros.

- E as moscas? - perguntou a Rã.

- As moscas - respondeu Emília - vão ficar sem asas, porque são uns bichinhos inúteis e incômodos. Sem asas terão de andar pela terra, como as formigas, e num instante as formigas dão cabo de todas. Para que moscas no mundo? Suprimindo as asas, liquidaremos com as moscas.

- E os pernilongos também?

- Está claro. Esses ainda são piores, porque transmitem moléstias e fazem Dona Benta gastar muito dinheiro com Flit. Q Visconde diz que a febre-amarela, a malária e outras doenças são transmitidas pêlos pernilongos. Corto-lhes as asas e adeus pernilongos, adeus febre-amarela, adeus malária...

A Rã alegou que isso vinha diminuir a música que há no mundo, porque os pernilongos cantam a música do Fiun e propôs outra reforma:

- Em vez de suprimir as asinhas deles, podemos fazer que percam o gosto pelo sangue e aprendam outras músicas além do Fiun. Poderão alimentar-se de água açucarada, ou mel das flores. E podemos fazer gaiolinhas minúsculas, de fios de cabelo, do tamanho de caixas de fósforos, para termos em casa pernilongos cantores. Seria uma galanteza. Um freguês chega a uma loja e pede: "Quero um pernilongo na gaiola, dos bons." E o caixeiro traz várias gaiolinhas para ele escolher, todas com um cantor do Fiun dentro. Mas acho os pernilongos pequenos demais. Eu os faria assim do tamanho de camundongos.

- Oh, não! - protestou Emília. - Sou inimiga do tamanho. Acho que as coisas quanto mais se aperfeiçoam, menores ficam.

A conversa caiu sobre o tamanho. Emília contou vários episódios do tempo em que ela destruiu o tamanho das criaturas humanas, como está contado na chave do Tamanho.

- O tamanho. Rã, é a tolice das tolices, coisa inútil, que só serve para atrapalhar. Se dentro duma formiguinha cabem todos os órgãos necessários á vida - coração, cérebro, pulmões e o mais, e se pequeninínhas como são elas se arranjam tão bem no mundo, por que motivo um tamanhão como o do Quindim, por exemplo? Se os homens fossem do tamanho de pulgas seriam mais felizes. A desgraça dos homens está no tamanho. O Coronel Teodorico tem quase dois metros de altura e pesa cem quilos. Mas que adianta? Nescora uma discussão com o Visconde, que pesa menos de meio quilo e só tem dois palmos de altura. Quando uma coisa começa a aperfeiçoar-se, vai perdendo o tamanho. Aqueles animalões de antigamente - os brontossauros, por exemplo. Por que desapareceram? Porque eram grandes demais. Não havia comida que chegasse. Hoje há poucos animais muito grandes, e parece que todos vão diminuindo. Já o número dos pequenos aumenta. Só de micróbios há milhões. Aqui no sítio nós fizemos guerra ao tamanho e empacamos. Ninguém cresce. Pedrinho e Narizinho estão parados há anos - como Peter Pan.

A Rã ficou triste e confessou que estava crescendo. Cada ano sua estatura aumentava e ela também aumentava de peso.

Emília resolveu o caso:

- Pois pare. Faça como eu. Faça como o Visconde. Qs mamíferos estão diminuindo de tamanho. Você é mamífera. Dona Benta contou que no começo eram quase todos enormíssimos e hoje estão bem menores. E os que teimam em ficar grandes levam a breca. Por que os homens andam a matar se de todos os jeitos nas guerras? Por causa do tamanho. Se ficassem pequenininhos como os pulgões, todos viveriam na maior abundância e sem guerras. Dona Benta diz que a causa das guerras é a falta de comida, um homem como o Coronel Teodorico come uns dois ou três quilos de coisas por dia. Se fosse do tamanho duma pulga contentava-se com iscas de coisas. O que ele come num dia dá para alimentar um milhão de formigas por um mês. Se Dona Benta e tia Nastácia não conseguirem harmonizar os homens lá na Europa, eles continuarão a matar-se nas guerras até não ficar nem um só para remédio.

- E se acontecer isso, quem você acha que vai tomar conta do mundo? - perguntou a Rã.

- As formigas, disso não tenho a menor dúvida. São inteligentíssimas. As idéias delas, de fazerem suas cidades no fundo da terra, é a melhor idéia que existe. Só com isso já escapam de mil coisas, de cem mil perigos - até dos bombardeios aéreos. Que é que os homens fazem para se libertar dos bombardeios? Imitam as formigas - afundam pela terra adentro. Nas zonas arrasadas pela guerra não ficou animal nenhum - mas as formigas ficaram. Só elas - imagine que beleza!

- Mas as formigas me parecem atrasadas em muitos pontos - tornou a Rã. Nem asas têm...

- Como não têm? Têm quando querem. No tempo da "ovação" o céu fica cheio de formigas de asas. Depois descem para abrir buraquinhos e pôr os ovos, e a primeira coisa que fazem é sacudir o corpo e derrubar as asas. No mês de outubro vejo muito disso por aqui.

A Rã ficou pensativa.

- Por que será que elas derrubam as asas, uma coisa tão preciosa?

- Porque só precisam de asas numa ocasião, quando sobem, bem, bem alto, em outubro, a fim de captarem as vitaminas do sol para os ovos. Depois que descem e abrem os buraquinhos já não precisam de asas. Iriam atrapalhá-las lá dentro.

- Mas deve ser muito escuro nos formigueiros - observou a Rã. - Eu gosto muito de luz, muita luz, só luz.

- Que engano! - exclamou Emília. - Você passa nove horas por dia de olhos fechados, dormindo, por quê? Para não ver a luz. Luz só, o tempo inteiro, cansa, atordoa a gente. As formigas usam o escuro á vontade. Quando saem dos formigueiros, regalam-se de luz; quando se recolhem, regalam se de escuro. Isso é que é saber viver. Só luz é tão horrível como só escuro. Por isso é que há a Noite e o Dia.

- E que reforma você pretende fazer nas formigas, Emília?

- Ah, nenhuma. Estudei o caso e vi que com elas nada há a reformar. Tudo perfeito. Eu dou um doce para quem descobrir um meio de melhorar a vida das formigas.

A Rã pensou, pensou e afinal concordou que é mesmo difícil melhorar a vidinha das formigas.
–––––––––––––––––––-
continua…

Folclore dos Estados Unidos (A Lenda do Cervo Branco)

Muitas lendas surgiram devido ao desaparecimento da colônia inglesa de Roanoke. Livros, contos, quadros, séries, filmes falam sobre o assunto.

O livro de Sallie Southall Cotten, “O Cervo Branco: O Destino de Virginia Dare” é uma tentativa de explicar o destino da colônia e de Virginia Dare, a primeira criança de descendência inglesa nascida nas Américas.

Quanto à chegada de europeus à província de Terra Nova, no Canadá, há muito já se descobriu que os vikings foram os primeiros a chegar aqui, 500 anos antes de Colombo.  Graças às pesquisas de Helge Ingstad, descobriu-se as ruínas de L’Anse aux Meadows no Canadá, e segunda os contos nórdicos, uma mulher de nome Gudrun deu à luz um filho que seria o primeiro descendente de europeus nessa terra…

Mas voltando ao livro, ele narra como Virginia cresceu na tribo de Manteo,  winona significa “primeira filha” em Sioux e ska, significa branca. Ela cresceu e se tornou uma linda mulher. Okisko um jovem chefe índio queria casar com ela, só que Chico um velho feiticeiro também queria a mesma coisa.

O velho tentou em vão convencê-la a se casar com ele. Rejeitado ele lançou um feitiço sobe ela e a transformou em um cervo branco.

Okisko estava decidido a reverter a maldição e pediu ajuda a um feiticeiro do bem chamado Wenokan. Okisko fez um flecha com uma concha de ostra e Wenokan a banhou em uma fonte mágica, transformando-a em uma pérola. Para quebrar o feitiço Okisko deveria acertar a flecha mágica no cervo branco e ela se tornaria novamente Winona-Ska.

Nesse meio tempo, o jovem Wanchese, filho daquele que foi à Inglaterra com Manteo, resolveu matar o cervo encantando para ter fama. Para matar esse animal especial seria necessário uma flecha de prata. Por coincidência o pai dele tinha ganhado uma da rainha Elizabeth I quando ele visitou a Inglaterra.

Um dia, Okisko viu o cervo branco próxima das ruínas de Fort Raleigh, na ilha de Roanoke. Mais que depressa ele apontou sua flecha de pérola para o animal. Infelizmente, Manteo também disparou sua flecha de prata no cervo.

As duas flechas acertaram o cervo ao mesmo tempo. A flecha de Okisko transformou-o em uma linda mulher novamente, só que a flecha de Manteo também acertou seu coração.  Okisko correu até ela, mas Virginia morreu em seus braços.

Desesperado ele corre até a fonte mágica e banha as duas flechas nas águas, implorando pela vida de Winona. Quando ele voltou para o local, não havia sinal nem de Virginia, nem de cervo. Mais tarde, o cervo branco reaparece olhando para ele com olhos lindos e tristes. Então ela corre para as matas.

Desde esse dia, até hoje muitas pessoas dizem que veem um cervo branco fantasmagórico próximo da área onde a Colônia Perdida fez seu primeiro assentamento.

E essa foi uma das lendas sobre Virginia Doe, talvez o mistério nunca seja explicado, nem mesmo com o projeto de análise do DNA dos índios da área, mas talvez seja mais interessante imaginar o que teria sido feito de todos…

Fonte:
http://www.learnnc.org/lp/pages/1647
Texto em português http://casadecha.wordpress.com

José Roberto Balestra (A Barragem)

Há dias que tanto faz como tanto fez
Que a coisa fique cinza ou amarela
Feito alguma estupidez
Ou qualquer abanadela
De um doce adolescer

Hoje amanheci assim
Não troco uma Zepparella
Por um velho e bom Led Zeppelin
A vida é boa barbaridade

Melhor é ter um dente só
E andar pela cidade
Do que ficar logo banguela
Sem nenhuma bocatividade
Esperando quando a barragem romper...

Concurso Literário Litercultura (Resultado Final)

Os mais de setecentos textos inscritos no concurso promovido pelo Litercultura, com o apoio da Fundação Cultural de Curitiba e da Gráfica e Editora Mona Lisa comprovam o êxito da iniciativa. E revelam parte da produção e das tendências de linguagem dos novos autores que estão escrevendo poemas, contos e crônicas no Paraná. Principalmente em Curitiba, de onde proveio a grande maioria dos trabalhos concorrentes.

Não foi somente na quantidade o sucesso do concurso, mas também na qualidade dos inscritos. Especialmente no gênero conto, foi preciso reler e reexaminar, comparar, refletir para, afinal, selecionar apenas no limite de vinte. Houve aí muito mais trigo do que joio.

Houve casos também de autores que inscreveram livros inteiros – romances, coletâneas inteiras de poesia e de contos. No caso dos dois últimos, entendeu-se que os autores preferiram revelar um conjunto mais amplo de sua produção, para que houvesse pelo menos a escolha de um texto.

Mas, tratando-se de um romance inteiro, infelizmente, não foi possível sequer sua leitura, por extrapolar o propósito do concurso e, claro, os gêneros do concurso. Além do mais, tratando-se uma antologia, com propósitos modestos – o de revelar bons novos autores –, as restrições já estavam definidas na própria medida do livro. Apesar disso, também foram considerados aqueles contos que, sendo extensos, não extrapolavam, entretanto, as características do seu gênero. Porque, embora uma parte das peculiaridades da modernidade e da pós-modernidade tenha sido o turvar um pouco a definição dos gêneros, eles ainda são reconhecíveis e classificáveis, inclusive os narrativos.

Também foram inscritos trabalhos que se inserem claramente em gêneros como o infanto-juvenil e o de novela gráfica ou de história em quadrinhos, e, como no critério usado para os romances, não foram considerados para a antologia.

Algumas surpresas e peculiaridades podem ser apontadas. A primeira foi a predominância da prosa sobre a poesia. E, na prosa, do conto sobre a crônica. Na prosa, a influência de Leminski é bem nítida em vários textos, e Dalton Trevisan segue como uma referência muito viva no conto, quase sempre tendo como ponto de partida e de chegada a realidade urbana. Mas peculiar mesmo é a sobrevivência do Romantismo e até do Ultra-Romantismo em diversos dos textos inscritos, e a irrupção do interesse pela Fantasia em outros, mas em grande parte epígonos do cinema ou da literatura anglo-saxã.

O intimismo convive com flashes da realidade mais bruta. Retrato ampliado do que se vive tocando a imaginação e a memória da literatura na atualidade.

Por fim, chegou-se a um conjunto de textos que refletem bem, e de modo quase homogêneo, algo como um leque das tendências e dos talentos que florescem, já floresceram ou afloram, a partir desta antologia.  Em muitos sentidos, visceral, e à flor da pele.

 RESULTADO DO CONCURSO:

POESIA

1          Tarde de Domingo, de José Tucón

2          Teia, de Matheus Alexandre Moreira Toniolo

3          A cada poema, de Giovanna Lima

4          Perspectiva, de Isabel Furini

5          Biografia de um homem, de Rodrigo Dallapiccolo

6          Caminhos, de Livia Lakomy

7          A vida das coisas, de Carla Anéte Berwig

8          Inspiração, de Fábio de Castro Quintanilha

9          Já não é, de Gilberto Gil Jesse de Oliveira

10        Viaduto, de Miguel Henrique Sandin

11        Exclamação, de Miguel Henrique Sandin

12        Já viu um olho de perto?, de Miguel Henrique Sandin

13        Gritam na casa, de Miguel Henrique Sandin

14        Alcóolatra, de Miguel Henrique Sandin

15        Sublimação, de Fabio Bioca (Fábio André Rolim De Moura)

16        As Mil e Uma Noites em 140 Caracteres Rimando, de Luiz Cezar de Araújo

17        Mobilidade, de Livia Lakomy

18        Quebranto, de Milena Vargas de Oliveira

19        Silêncios, de Giovanna Lima

20       Dois olhares, de Mário Augusto Jaceguay Zamataro

CONTO

1          Surpresa!, de Monica Kukulka

2          Tom, de Marina Yoshimi Rodrigues Mori

3          Tons, de Daniela Piva

4          Dama da noite, de Amanda Tintori

5          Dançando com garrafas vazias na banheira de tijolos, de Victor Hugo Turezo

6          Discórdia, de Luiz Cezar de Araújo

7          Pequenas tempestades, de Carolina Baldissera Damião

8          Polainas, de Laís Valério Gabriel

9          Batom vermelho-sangue, de Amanda Tintori

10        Beco 1, de Victor Hugo Turezo

11        A poça, de Tatiana Angèle de Carvalho

12        Eu, Tom & Jerry, de Rodrigo Gomes de Araujo

13        Grão de milho, de Diego Gianni

14        Sobrevivente, de Thaís Macedo

15        Luar, de Emerson Henrique Gomes Machado

16        O inferno são os outros, de Luiz Cezar De Araújo

17        O pescador de pecados, de Márcia Széliga

18        Dominique, de Paulo Roberto Anastacio Da Silva

19        Entremares, de Eliege Cristina Pepler

20        Eternidade, de Reinaldo Alexander Franco Zaruvni
 CRÔNICA         

1          Demiurgia, de Gustavo Henrique Fontes

2          Machado vs. Nietzche, de Renato Vieira Ostrowski

3          Bons tempos aqueles, de Fabricio Luiz Matoso

4          Coisas da língua, de Pulcina Maria Souza Ribeiro
5          A sétima badalada, de Mark Mielke de Lima

6          Experiências torpes, corpos viciados e mentes mais do que normais, de Evelin Raupp Maia de Almeida
7          Insone, de Nando São Luiz

8          Sorria você esta sendo filmado, de Regina Célia Rodrigues dos Santos

9          Curitiba é uma fresta, de Willy Bortolini Barp

10        Mistério nas noites de um passeio público, de Zélia Maria Bonamigo

11        Paciente CWB, de Livia Lakomy

12        O resto da vida, de Rodrigo Gomes de Araujo

13        O vento, de Surya Amitrano

14        Olha o bucheirooooo, de Alcir Chiari

15        Paciência, de Pedro Meregue Filho

16        Sábado, de Thiago Alberto Kaminski Larsen/Gustavo Moreira

17        Arte sem intelecto, de Thiago Alberto Kaminski Larsen/Gustavo Moreira

18        Visagem, de Gabriela Mendes da Cunha

19        21 de dezembro, de Celio Roberto Pereira de Oliveira
20        A Colifata. O Drama da Vaca, de Sheila Maria José Pita

Lançamento dia 20 de novembro em horário e local a ser divulgado.

Fonte:
http://www.litercultura.com.br/?p=793

Vocabulário de termos e expressões regionais e populares do Centro Oeste (Mato Grosso e Goiás) T, U, V e Z

T

TRIEIRO — Trilheiro: trilho onde se anda a pé, principalmente por onde caminha o gado, para a aguada.

TUCUM — Coqueiro muito abundante em Goiás. Produz um cacho grosso e carregado de frutos redondos e roxos-pretos, parecendo jabuticabas; o fruto faz-se muito apreciado. Das folhas do tucum extrai-se uma fibra muito forte que no norte do Estado é largamente aproveitada para a fabricação de redes. O espinho é muito perigoso.

U

UBÁ — Canoa dos índios; é feita de um pau só, como um cocho.

V

VARANDA — Sala de jantar das casas do interior.

VAREJAR — Usar o varejão, ou vara comprida que vai ao fundo do rio, impulsionando a canoa.

VAU — Lugar do rio que dá passagem.

VEREDA — Várzea servida por um regato margeado de prados virentes.

VIAJADO — Indivíduo que lucrou em viagens grande experiência da vida.

VIANDA — Comida -de pensão, conduzida em marmitas.

Z

ZOEIRA — Barulho; atordoamento da cabeça, dos ouvidos; zumbido.

ZONZO — Tonto. "Levou uma paulada na cabeça e ficou zonzo". Desatinado, "indivíduo zonzo".

Fonte:
Estórias e Lendas de Goiás e Mato Grosso. Seleção de Regina Lacerda. Ed. Literat. 1962

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Norália de Mello Castro (Mandacaru)

Sou montanhesa.

Um dia, o mandacaru entrou em minha vida.
Encontrei-o com seu desenho peculiar
a chamar todos os clamores do verde com espinhos.

Forma altiva,
singular,
soberbo
das raízes às suas pontas,
mesmo sem acalentar
qualquer galho, qualquer tronco.

Sangrei as mãos em feridas,
lambi o sangue
dos espinhos a tocar a capa das entranhas.

O mandacaru permaneceu.
Em beleza explodiu.
Joguei brancos e
matizei toda aquela planta.
Pintei.
Sintetizei o passado
no presente.
Deu uma saudade danada!
Joguei tudo ao chão.
Parti o mandacaru.
Não retirei a sua seiva.
Retirei da planta a água onde nasci.

O mandacaru esfacelado
jorra ainda a seiva do viver;
colhi de sua essência - o alimento.
***

A essência:

Mandacaru
verde,
palmilhado de branco,
ligeiros toques marrons.
Cor soberba
permanece na vitrine,
Sem perder seu frescor,
Sem perder sua mensagem,
Sem dizer uma palavra
a formar todo o texto.
***

A viagem:

Do mandacaru
às estradas dos eucaliptos:

lá onde bebem de sua seiva,
cá onde recolhem de sua lágrima,

Lá sem cheiros ou perfumes,
Cá os perfumes a embrenhar.

Lá onde o sol castiga.
Cá onde a sombra se faz.

Lá entre espinhos rasteiros.
Cá entre folhagens luzentes.

Lá onde o dia nasceu.
Cá onde a noite se fez.

Lá onde os passos foram dados.
Cá onde os sons se repetem.

Lá o sol e o fá.
Cá o carrilhão.

Entre lá e cá,
permanece a alma,
estranhamente,
a ditar: vivi,
não sonhei.
Amanheci encharcada.
***

A disciplina:

Disciplina. Disciplina.
Qualidade necessária
para desenvolver o talento.

Disciplina. Disciplina.
Receita dada por pensadores
aos jovens que querem vencer.

Disciplina. Disciplina.
Envolve ordem,
requer constância.

Disciplina. Disciplina.
Determinação.
Até virar obsessão

A obsessão deve ter módulos
até tornar dona de todos,
esgotando-se até chegar
à realização.
***

Tem-se de arrancar
os espinhos do mandacaru
com disciplina mágica,
para não se ferir as mãos,
muito menos o coração.
Sem feridas a sangrar,
descobre-se o ponto final
da disciplina disciplinada.
Cai-se na indisciplina ordenada.

É o jeito
da Dor virar prazer.
***

As travessias:

Passei pelas águas
- o rio caudaloso entornou.

Passei pelas montanhas
- aspirei junção do rio e terras.

Passei por ruas
- sombras encontrei.

Passei aqui e ali
- matutei:
Por onde andarei agora?
- a Mãe Terra me acolheu,
Assim. Aos montões:
terra e águas juntas,
terra e céu juntos.
Juntei tudo:
***
O encontro:

finalmente deixei
o coração mergulhar nas águas,
a transpor por montes.
Abri o coração do mandacaru,
Jorrei sua seiva sobre o papel.

Fonte:
Rede de Escritoras Brasileiras

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Clevane Pessoa (Encantamentos)

Imagem: Bia Tomaz
Tudo em torno parece feérico e extasiante:
a neblina
que desce num momento
de repente, qual um sonho de menina...
o canto da ave
que singra o espaço azul
qual se fosse bela nave
feita de imaginação...
a asa da borboleta
a fremir qual um pincel
cheio de tintas...
o riso do idoso que brincando
quer brincar ainda-e sempre...
a flor que sonolenta acorda
adulta e se abre inteira
ao beijo do sol...
a semente gorda
que sob a Mãe Terra, eclode
e vai romper seu ventre
em sinal verde...
Tudo é magia, encantamento
porque a ânsia criativa das criaturas
põe fiapos de luz
em cada nuance da Vida
e trabalhando o mundo
a cada instante,
o transmuta e recria...

Monteiro Lobato (A Reforma da Natureza) Capítulo 4 – Reforma da Mocha

Por muito tempo ficaram as duas conversando sobre reformas e mais reformas e, como estivessem debaixo da jabuticabeira, iam falando e comendo as deliciosas frutas. Em certo momento Emília disse;

- Esta jabuticabeira, por exemplo. Não acha que é uma vergonha uma árvore deste tamanho dar frutinhas tão pequenas? E no entanto temos lá na horta um pé de abóbora que dá abóboras enormes e é um pé que nem é pé de coisa nenhuma - não passa dum talinho mole que se esborracha quando a gente pisa em cima. Vou mudar. Vou botar as jabuticabas no pé de abóbora e as abóboras na jabuticabeira.

- Mas isso foi o que o Américo Pisca-Pisca fez - alegou a Rã - e o sonho lhe abriu os olhos.

- É que o bobo foi dormir debaixo da jabuticabeira - e sabe para quê? Para que a fábula ficasse bem arranjadinha. O fabulista era um grande medroso; queria fazer uma fábula que desse razão ao seu medo de mudar - e inventou essa história do sono do Américo debaixo da jabuticabeira. Já reformei essa fábula.

O chão encheu-se de tantas cascas que Rabicó se aproximou, farejando.

A Rãzinha, que ainda não conhecia o famoso Marquês, regalou-se de olhá-lo.

- Como está gordinho e lustroso, Emília! É ainda marquês?

- Que remédio? - berrou Emília. - Título é como apelido: quando agarra uma criatura não larga mais.

Aqui nas vizinhanças temos um negro de 70 anos que tem o apelido de Tadinho. Sabe por quê? Porque quando nasceu todos começaram a tratá-lo de "Coitadinho" - depois "Tadinho" - e ficou Tadinho toda a vida, um negrão daqueles...

- Mas você, Emília, parece que nem mais se lembra de que é marquesa, não?

- Às vezes me lembro, mas sem prazer nenhum. Que gosto ser marquesa de um marquês assim? Meu sonho você bem sabe qual é...

- Sei - é ser mulher dum grande pirata, para mandar num navio. Por que então não se casa com o Capitão Gancho?

- Que idéia ! - exclamou Emília. - Não há pirata que mais desmoralize a classe do que esse. Primeiro não tinha um braço e agora nem navio tem. A sua "Hiena dos Mares" virou "Beija-Flor das Ondas", como você bem sabe - e hoje é de Pedrinho. Eu queria casar-me com um daqueles grandes piratas dos tempos do ouro do Peru, aqueles que atacavam os galeões espanhóis em pleno mar, com as facas atravessadas nos dentes. Há um, chamado Morgan, que me servia. Também já pensei num pirata submarino mas desisti. Submarino me dá falta de ar.

Rabicó apenas cheirou as cascas das laranjas. Só gostava de casca com gomos dentro.

- E a vaca Mocha? - perguntou a Rã. - Vai reformá-la também?

- Claro que sim - e já. Acompanhe-me. Lá se foram as duas para o pastinho da Mocha, que estava pachorrentamente mascando umas palhas de milho. Ficaram diante dela, de mãos á cintura, discutindo a reforma.

- Eu mudava o depósito de leite - disse a Rãzinha. - Punha torneirinha nas tetas para evitar o que hoje acontece: para tirar o leite os vaqueiros apertam as tetas com as suas mãos sujíssimas - uma porcaria. Com o sistema de torneira essas mãos não tocam nas tetas.

Emília deu uma risada gostosa.

- Que bobagem! Bem se vê que você é menina do Rio de Janeiro. Pois não sabe que a função das tetas é dar leite aos bezerros?

Como pode um bezerrinho mamar em torneiras?

- Ensinávamos os bezerros a abrir as torneiras.

- Não - declarou Emília. - Muito complicado. Na Mocha quero umas reformas úteis para ela mesma e não para as criaturas que a exploram. Vou pôr a cauda da Mocha bem no meio das costas, porque assim como está só alcança metade do corpo. Como pode a coitada espantar as moscas que lhe sentam no pescoço, se o espanador só chega às costelas? Tudo errado ...

E plantou a cauda da Mocha no meio das costas de modo que pudesse espantar as moscas do corpo inteiro: norte, sul, leste, oeste. E passou as tetas para os lados, metade á esquerda, metade á direita.

- Assim podemos tirar leite de um lado enquanto o bezerrinho mama do outro. Reforma não é brincadeira. Precisa ciência.

- ótimo! - concordou a Rã. - E podemos botar torneirinhas nas tetas do lado direito - para serviço dos leiteiros. As do lado esquerdo ficam como são - para uso dos bezerrinhos.

Emília aprovou a idéia . Depois passaram a considerar os chifres.

- Toda vaca de respeito tem chifres - disse Emília - menos esta coitada, que é Moclia. Vou dar-lhe  chifres compridos, mas sem ponta aguda.

A Rã lembrou que os esgrimistas usam floretes com um chumaço na ponta. Podiam dar à Mocha dois chifres pontudos mas com chumaço na ponta. Emília aperfeiçoou imediatamente a idéia .

- Em vez de chumaço. Rã, podemos espetar nas pontas uma bola de borracha maciça - uma bola "tirável", isto é, que possa ser tirada de noite.

- Para quê?

- Para que ela possa defender-se de algum ataque noturno. Os chifres são a única defesa dela, coitada.

- Mas que perigosos noturnos há por aqui?

- O das onças, minha cara. Tio Barnabé diz que uma antepassada desta Mocha foi comida por uma onça.

De dia a Mocha pode usar a bola porque as onças só atacam durante a noite. E a Mocha foi armada de dois esplêndidos chifres elegantemente retorcidos como saca-rôlhas, com duas bolas maciças nas pontas - bolas "tiráveis."

O pêlo da vaca também sofreu reforma. Ficou macio como pelúcia e furta-côr. Estavam ocupadas na reforma da Mocha, quando passou por cima delas uma linda borboleta azul.
----------
continua...

Wanderlino Arruda (Poesias Avulsas)

Libreria Fogola Pisa
Adoro tua beleza

Adoro a tua beleza,
a luz da tua simpatia,
o amor gostoso que há nos teus olhos,
um brilho, uma bênção de felicidade
que tua alma não deixa esconder,
que te faz tão linda!

Como é bom amar a vida
do jeito que te vejo amar.
bom seria que estivéssemos sempre juntos,
bem juntinhos para vermos o sol e a lua,
para sentir as estrelas todas
e contá-las no tempo e no infinito,
com infinita ternura.

Bom seria ter sempre e sempre
a sensação de tua presença,
do teu calor,
da tua pele morena,
da tua alegria,
do teu viver !
–––––––––––-
Amar

Amar,
Amar muito,
Amar todas as horas,
amar sempre, sempre
amar a vida,
te amar, meu amor,
porque amar é viver.
Gostando de ti,
gosto do vida,
vivo de amar.
De tudo que acontece,
no meio dos sofrimentos,
no meio das alegrias,
no meio das esperanças,
adoro o teu amor,
adoro o teu sorriso,
o brilho da tua alegria,
a cor verde dos teus olhos,
te adoro, morena.
Entre a terra e o céu,
gosto das flores,
da brisa, da luz,
das muitas crianças,
gosto do próprio amor.
Mas, acima de tudo,
de mais do que tudo,
é de ti, minha querida,
o meu viver,
O meu amar !
–––––––––––––––-

Bons dias bem vividos

Doce lembrança,
saudades,
adoráveis sentimentos,
claros montes,
luz, muita luz,
intensa luz.

Meio-dia, limite,
alegria muita.
Na distância, um logo além,
no depois, um antes:
auroras, felicidade.

Tardes de intensa alegria,
noites-verão, dias-inverno,
Ingênuas manhãs,
ingênuas,
bem ingênuas,
mais que a madrugada,
de sonhos nos sonhos,
deleite.
Simbiose, crepúsculos,
tons vermelhos,
rosa-amarelo, ouro no azul,
lilases e sombras
douradas maravilhas...
prata. Antes do depois, ainda,
fios de claridade,
fontes, conforto-luz,
pura alegria,
sorrisos,
bons dias bem vividos!
–––––––––––––––––––––––-

Causa de amor
Ao teu lado,
bem pertinho de ti,
sinto feliz alegria,
aura de muito amor
envolvente e carinhoso,
doce como sonho
em meio da madrugada.

És beleza, brilho e luz.
Tez morena,
olhos de esmeralda:
um encanto.Tua presença linda
desperta em mim
gostosa vida,
evidente causa de amor !
––––––––––––––––––

Olhar-magia

A beleza de teus olhos
eu julgo, eu analiso:
são brilhos de um céu em cor
de mil momentos.Teu olhar tem majestade
em claro-verde
de penumbra luz,
carinho e tarde
em viagem mito
de encantamento.

Teus olhos, um esplendor,
cativam minh'alma
e o meu querer.Teus olhos mostram,
teus olhos vibram
sonho e transcendência linda,
em direção Sul,
ou Leste-oeste,
ou ao Infinito.

Nunca vou deixar dizê-los
charme e bem-parecer,
encantamento:
a Natureza os fez,
mas o enlevo-imã,
luzir fascínio, emoção e música
só eu sei sentir.Teus olhos,
Um espelhar divino,
uma luz crescente,
sol marcante para os meus.

Aí teu fôlego e coração:
significado de amor.
Aí, minha querida,
em guerra e viver-estímulo
reconheço te fazer feliz !
–––––––––––––––––––-

A poesia de Dóris
Linda a poesia de Dóris,
Linda!
Muito de poesia:
beleza de juventude,
ritmo de meninice,
colorido de alegria.
Mil cores.

Confidência de Primavera,
Dóris deixa fluir e fluir-se
sem segredo algum.
O verso é cristal:
jorra e seduz, sempre sincero,
limpo e transparente.
Agradável sempre!

Dóris canta o canto,
não importa se o dia é dia
ou se a noite chega,
porque poesia tem cheiro-criança
e brilho de floresta mágica.
Toda criatura é de Deus,
Realidade sempre.
A música é livre
e o verso não é ilusão.

No infinito olhar de Dóris,
o além permite caminho
E o amanhã será sempre lindo.
Preciso é dourar a esperança,
preciso é viver e amar,
dispensando a visão de enfeites.
"Felicidade é pés na enxurrada,
tamancos na mão,
alma ensopada
pingando paixão".Mais do que isso
só banho em águas de fadas.
Ou dança com duendes
de múltiplas madrugadas.
––––––––––––––––––––––––––––

Sonhos de sonhos

Passo a passo,
passam os passos
de sonhos bem sonhados
em múltiplas sinergias.

Alma com sol e lua,
estrelas incontadas,
terra e céu,
saudades.
Aqui encanta o canto
com mil matizes.

A sensibilidade vive e vibra
por luminosas dimensões.
O bem-querer cavalga
em cintilantes brisas
de vento-luz.
Felicidade sim.

É acordado o amanhecer:
agora ilumina a sedução
e poetiza vívidas vidas,
vidas revividas.
Múltiplas vidas.

Fonte:
Casa do Bruxo

Humberto de Campos (Morfina)

Quando o Carvalho Souto, meu companheiro de escritório, sofreu aquele acidente de automóvel em que fraturou duas costelas e o braço esquerdo, eu, ia vê-lo quase diariamente à Casa de Saúde Santa Genoveva, na Tijuca. A solicitude persistente com que velava pelo meu amigo, fez-me, em pouco tempo, íntimo dos médicos do estabelecimento. E de tal maneira que, trinta e quatro dias depois, quando o Souto recebeu o boletim concedendo-lhe "alta", eu contava já um amigo novo, na pessoa amável e mansa do Dr. Augusto de Miranda, que exercia, então, ali, as funções de subdiretor. Filho de médico, e neto de médico, Miranda nascera, pode-se dizer, no quarto ano de medicina. Aos sete anos já utilizava o seu pequenino serrote de fazer gaiolas, serrando, com ele, a perna dos passarinhos que apareciam com alguma unha doente.

Mediano de estatura, robusto de tórax, cabelos alourados e olhos entre o azul e o verde, o subdiretor da Casa de Saúde Santa Genoveva era uma figura grave e simpática. O rosto largo, e escanhoado, transpirava a energia serena e boa das almas fortes e tranquilas. Daí a confiança que entre nós rapidamente se estabeleceu, a franqueza com que me falou, naquela manhã, de uma das suas doentes que ali se achava, ainda, hospitalizada.

- Quer vê-la? Vamos... - convidou.

A Casa de Saúde Santa Genoveva está situada, como se sabe, na Estrada Velha da Tijuca, em um ponto pitoresco, dominando a cidade. Ensombram-lhe as cercanias de antigo solar, algumas dezenas de mangueiras enormes, e árvores outras, de fronde compacta e agasalhadora. Sob uma dessas mangueiras, estirada em uma espreguiçadeira de pano branco e vermelho, achava-se uma senhora alta, de rosto longo e olhos cavados, mas apresentando na fisionomia cansada e enferma os traços da antiga distinção. Devia ter sido bela, com os seus cabelos negros de ondulação larga. E elegantíssima de porte, a avaliar pela graça do busto posto em relevo na postura em que se encontrava.

- Preste atenção, vamos passando... Depois que você conhecer a história trágica de sua vida, voltaremos... - disse-me o Dr. Miranda.

Entramos por uma estrada de mangueiras vetustas, e, enquanto caminhávamos lentamente na manhã fresca, o subdiretor, a voz tranquila e pausada, me falava desta maneira:

- Aquela senhora que acaba de ver, foi casada com um dos meus companheiros de turma na Faculdade, e é a heroína de uma das tragédias mais terríveis que vieram ter aqui dentro o seu desfecho...

- O marido morreu? - indaguei.

- Não. Ela, porém, o perdeu sem que ele morresse: está desquitada. As senhoras desquitadas, são, em nossa terra, as viúvas dos maridos vivos.

Apanhou, no chão, um pequeno ramo, uma nódoa na estrada limpa, e reatou:

- Filha de um advogado que morreu sem fortuna, esta moça, aos dezessete anos, casou com o colega de que lhe falo, o qual fez um dos mais belos cursos do seu tempo, mas não foi igualmente feliz na vida prática. No primeiro ano de casamento, veio-lhe um filho. Linda criança! Vi-a uma tarde, na rua, em companhia do pai, e não esqueci, jamais, a sua graça infantil... Quatro anos depois de casados, foi esta senhora uma noite atacada de cólica hepática de extraordinária violência. O marido recorreu à terapêutica indicada no caso, mas inutilmente. Compadeceu-se, e aplicou-lhe uma injeção de morfina. A doente sentiu alívio imediato, e dormiu, até à noite. Ao acordar, pôs-se a gemer novamente, e, em seguida, a gritar. Nova injeção. Novo sono. No dia seguinte, à tarde, voltaram os gemidos queixando-se ela dos mesmos padecimentos. Gemia, debatia-se, gritava, reclamando a injeção. Profissional inteligente, o marido certificou-se de que, verdadeira a princípio, a dor, agora, era simplesmente simulada. A morfina havia exercido a sua influência funesta! Por isso, não deu a injeção. Desiludida de alcançar o que pretendia, a esposa calou-se. E a tranqüilidade voltou, de novo, à intimidade do casal.

- E a tragédia?

- Espere que a história é longa... Ao fim de algumas semanas, começou o meu colega a observar na senhora uns ímpetos de temperamento, uns excessos de paixão que o encantavam, porque ele era homem, mas que o preocupavam porque era médico e o alarmavam porque era marido. Pôs-se vigilante, e descobriu a verdade terrível: a esposa, seduzida pelas sensações das injeções que ele lhe aplicara, era presa, já, da morfinomania, consumindo diversas ampolas por dia! A sua assinatura havia sido falsificada, já, por mais de uma vez, no papel do consultório, em receitas de responsabilidade, pondo em perigo a sua reputação profissional.

O Dr. Miranda parou, por um momento, para acender um cigarro, e tornou:

- Com a sua experiência de clínico, o marido compreendeu a ineficiência do seu esforço individual para salvar a companheira infeliz. Por esse tempo, havia chegado da Europa um colega nosso, o Dr. Stewenson, que se tinha especializado na Alemanha e na Suíça na cura da toxicomania. Era um belo homem e um belo espírito, e o marido daquela senhora foi à sua procura, e expôs lealmente o seu caso doméstico. Pediu-lhe que tomasse sob os seus cuidados a esposa, e levou-a, no dia seguinte, ao consultório. Stewenson marcou o início do tratamento para outro dia. A moça foi, sozinha. O médico fê-la entrar para o seu gabinete, e fechou-o a chave. Em seguida, encheu duas seringas, aplicando uma injeção na cliente, e outra em si mesmo. E rolaram, os dois, abraçados, como dois loucos... Stewenson era morfinômano, e o seu anúncio como especialista contra os entorpecentes não visava senão atrair as senhoras viciadas, conquistando companheiras para os seus delírios...

- Que horror!...

- Ao fim de algumas semanas, o marido da pobre moça descobria a extensão tomada pelo seu infortúnio. A esposa, ela própria, confessou-lhe tudo, fornecendo-lhe os elementos para apurar a verdade. E ele apurou que era duas vezes desgraçado: o Dr. Stewenson era amante de sua mulher!... Diante disso, veio a separação, com o desquite. Não tendo sido judicial, o meu antigo colega de turma passou a dar uma pensão à esposa, que fixou residência apartamento em Copacabana, ficando ele num hotel no centro da cidade. Ele era, porém, um homem de temperamento apaixonado, e não podia esquecer a criatura a quem amara tanto, e que lhe havia dado as horas de paixão mais intensas da vida. Nenhuma outra mulher lhe satisfazia os sentidos e o coração. E ei-lo, na da noite, alta madrugada, abandonando o seu hotel e indo secretamente, bater à porta do apartamento de Copacabana, tornando-se um dos amantes de sua antiga mulher.

- Mas, isso é verdade? - perguntei,

- É verdade, e é ciência - respondeu-me o Dr. Miranda.

Havia rodeando um tronco de mangueira, um banco circular, de pedra. Sentamo-nos. E o subdiretor da Casa de Saúde Santa Genoveva reatou:

- A esposa, agora entregue a si mesma, continuava a tomar morfina, absorvendo doses espantosas. Uma tarde, achando-se em casa, encheu a seringa, e meteu a agulha na parte anterior da coxa. Apertou o sifão. O líquido desapareceu da agulha. No mesmo instante, porém, a pobre rapariga soltou um grito. Uma nódoa vermelha surgira-lhe diante dos olhos. E essa nódoa se transformou em chamas, em labaredas enormes, que a envolviam como se a tivessem precipitado numa fogueira. Um calor intenso, infernal, subia-lhe pelo corpo todo, e tudo era vermelho, tudo era fogo ante os seus olhos horrivelmente abertos. As mãos na cabeça, o pavor estampado na face, a infeliz gritou para a criada, que lhe fazia companhia: "Chamem meu marido, que eu estou morrendo!". Dizia, aos gritos, que estava sendo queimada viva, e rasgava as roupas, correndo pela casa, batendo-se nos móveis, pois que se achava completamente cega, não vendo senão línguas de fogo, chamas que se enroscavam no seu corpo, em furiosos turbilhões. Quando o ex-marido chegou, encontrou-a totalmente nua, o sangue a correr-lhe da testa. E descobriu, logo, a origem daquela crise: a agulha alcançara a artéria, entrando a morfina, diretamente, na circulação... Daí a sensação de incêndio dentro do qual se debatia, e a impressão de labaredas que a envolvessem e as tivesse diante dos olhos... Não podendo detê-la sozinho, chamou o ex-esposo dois empregados do prédio, que a subjugaram, e a amarraram, inteiramente despida, na cama, a fim de receber a única medicação aconselhável no caso, e evitar que se mutilasse na fúria com que se atirava pelo chão, pelos armários, pelas paredes...

- Coitada!

- Afinal, passou a crise. Dias e dias tinha ela permanecido entre a vida e a morte. Após as injeções sedativas desamarraram-na. Mas ficara com os braços feridos, as mãos feridas, o rosto ferido... O ex-esposo foi, então, de uma solicitude acima de todo louvor... Não a abandonou um só instante. Amor ou piedade, o certo é que ficou a seu lado até que a viu fora de perigo... Um dos primeiros cuidados da pobre moça, logo que recobrou os sentidos, foi ver o filhinho, que contava, então, cinco anos, e ficara com o pai, que o internara em um colégio em Botafogo. O desejo era legítimo, e, ao vê-la melhor, o pai foi buscar o menino. A desventurada, chorou muito, beijou muito o garoto, e, como fosse hora do almoço, o meu colega foi para a mesa, com outras pessoas da família que ali se achavam de visita, ficando a mãe e o filho no quarto próximo. De repente as Pessoas que se encontravam à mesa ouviram um grito: "Corram que eu estou matando meu filho! Corram, pelo amor de Deus!". Correram todos, e soltaram, diante do que viam, um grito de terror. A morfinômana tinha as mãos crispadas em torno do pescoço da criança, e estrangulava-a sem querer! Queria retirar as mãos, e não podia! Ao contrário do seu desejo, os dedos cada vez mais se contraíam, comprimindo as carnes do pequenito, que se tornara roxo, e cuja língua saía já da boca com um filete de sangue... "Salvem meu filho!... Matem-me, mas salvem meu filho!...", gritava a pobre. Bateram-lhe nas mãos até lhe ferirem os dedos. Quase lhe quebram os braços, com as pancadas que lhe deram, para libertar a criança. Quando o conseguiram, era tarde. Minutos depois, o pequenino morria...

O subdiretor da Casa de Saúde Santa Genoveva não procurou ver o espanto que se estampava em meu rosto. Acendeu outro cigarro, e pôs-se de pé. Fiz o mesmo.

- Agora, - continuou - a desventurada senhora que ali viu, está boa. Mas a nossa vigilância em torno dela é enorme.

- Para que não volte à morfina?

O Dr. Miranda sacudiu a cabeça, lentamente:

- Não. Para que não corte, como tem tentado, as mãos com que estrangulou o seu filho!

E pusemo-nos a andar, de regresso, a cabeça baixa, em silêncio, um ao lado do outro.

Fonte:
Humberto de Campos. O Monstro e Outras Histórias.

Carlos Lúcio Gontijo (Pedra Literária)

Gosto de ler artigos de opinião e creio que eles nos conduzem à reflexão tão necessária em nosso dia a dia. As opiniões nem precisam estar de acordo com o que defendemos, pois o que importa é promover a evolução de nossa forma de pensar. Em 2007, quando o “Diário da Tarde”, fundado no dia 14 de fevereiro de 1931, fechou as portas e pôs fim a uma página em que desfilaram articulistas como Paulo Francis, Professor Aluísio Pimenta, Celso Brant, Professor Silveira Neto, poetisa e escritora Regina Morelo, Mário Clark Bacelar, Barbosa Lima Sobrinho, Fábio P. Doyle, Floriano Nascimento, José Carlos Alexandre e tantos outros, aos quais tive o prazer de editar e estar entre eles às quintas-feiras quando publicava o meu artigo na democrática e eclética página de opinião do velho, bom e saudoso DT, como era popularmente denominado pelos leitores.

Hoje, deleito-me com as edições do jornal “O Trem Itabirano”, onde posso encontrar muitos artigos semeadores de novas luzes em minha mente, carente do alimento proporcionado por considerações bem colocadas e que têm o mérito de me fazer situar diante de questões importantes para o desenvolvimento da coletividade como um todo. Confesso-me orgulhoso de estar entre os articulistas que compõem as linhas gráficas de “O Trem Itabirano”, que indubitavelmente representa uma publicação diferenciada, uma vez que, com o advento dos tabloides, os espaços para a inserção de matérias de opinião foram diminuídos, existindo publicações que abrem mão até do editorial, no qual poderiam expressar a sua visão socioeconômica.

A cultura de facilidades, em perfeita sintonia com o fast-food, incute-nos a ideia de que tudo deve vir embalado e pronto para consumo, erigindo entre nós a indústria de entretenimento, que pouco ou quase nada tem a ver com a definição de produto ou bem cultural de antigamente, pois dentro do prisma vigente não há lugar extenso para elementos culturais mais complexos, ainda que simples, como solicita a arte de qualidade e raiz. Não é à toa, portanto, que estejamos embebidos em tanta música ruim e tanta poesia desprovida de metáfora, que é a essência estrutural da arte poética.

Itabira tem tudo para se transformar em cidade literária, grafando nas pedras que o poeta Carlos Drummond de Andrade detectou existir nos caminhos da trajetória humana toda palavra e toda arte de sua gente e, claro, do povo mineiro. Explicitamente, a filosofia editorial do jornal “O Trem Itabirano” está dentro desse destino natural impregnado na atmosfera da cidade de Itabira, que tatuou nas páginas petrificadas de seu solo o desejo de manifestação e opinião sincera, tendo como meta elevar o nível de conscientização e cultura dos cidadãos, que então, por si mesmos, partirão em busca de dias melhores e, certamente, mais próximos da verdadeira materialização, pois dependentes da união construtiva entre irmãos dispostos a tomar em suas mãos o enredo da projeção do futuro que almejam para suas vidas.

Fonte:
O Autor
site: www.carlosluciogontijo.jor.br

Ciranda da Primavera (Seleção por Simone Borba Pinheiro) Parte 5

JOYCE LUAZUL
Primavera e Vida

 Primavera... sem demora!
 Primavera a inspirar
 Poemas e canções a embalar...
 A poesia flui, agora!

 Eterna melodia do coração!
 Pássaros e animais a festejar...
 Ela, com suas flores a perfumar,
 Quando vem, há comemoração.

 Quando se vai deixa seu olor
 Para lembrar que retornará um dia...
 Ao voltar semeará poesia e melodia:
 Momento de cantar poema de amor!

 Deixar fluir a saudade por onde passar...
 Como a vida tem tempo para ser vivida!
 Vida pode, em breve momento, ser perdida.
 Existência breve... eis a razão de hoje amar!
––––––––––––––––

JOYCE LUAZUL
Árvore na Primavera


 Primavera...das estações a mais bela
 Muitos dias do ano esperei por ela
 Árvore com folhas e flores revestida
 Que no inverno frio foi despida

 Árvore do amor por mim plantada
 Aguardo na Primavera sua florada
 Caminhando feliz por entre as flores
 Sigo relembrando todos os meus amores

 Vejo na árvore copada e florida
 As alegrias que oferece a vida
 Ser uma flor cor-de-rosa eu quisera
 Uma flor da árvore na Primavera

 Árvore com folhas e flores coloridas
 Na Primavera renascem suas vidas
 Sinto na alma também o renascer
 Fazendo a árvore da vida florescer
––––––––––––

LIGIA TOMARCHIO
Primavera Poema


Densos tapetes de folhas esquecidas
pretéritos sons, esvoaçantes cortinas
nuas árvores emolduradas pela retina
do tempo perene e repetitivo.

Derradeiro sonho outonal
desdenha o inverno
criando em si um eterno desejo
do imaginar cores e flores.

Memória viva, atenta
desperta involuntária paixão
um amar intenso a verdejar
nos campos e versos do poeta.

Ciclo da vida mensageira
não mais sussurra
eclode florida primavera
poema único da existência.
––––––––––––––––––––-

LINA ROCHA
Primavera


As cores invadindo o espaço
colorindo tudo sem embaraço
sob o perfume das flores
e o gorjear dos pássaros
os amores que se renovam
brincam nesse arco-íris
os momentos se tornam mais felizes
mais cheios de brilhos das matizes
a esperança que é sempre verde
brota nos corações como magia
trazendo um novo alento
para o renascer do dia
o céu espalha seu manto azul
refletindo pelas planícies
acalmando os dias difíceis
O sol aquece as emoções
que aos poucos criam raízes
e solidifica as relações
O desabrochar da primavera
abre todas as janelas
deixando sair aos poucos o bolor
dos longos dias frios do inverno
das noites escuras sem calor
––––––––––––––-

LORENZO YUCATÁN
A Primavera Chegou...


Enfim, chegou a estação das flores!
Minh'alma canta... e não é pra menos!
Vejo, da natureza, seus lindos acenos;
Novos tempos, de nuances multicolores.

Tenho a sensação do paraíso a meu redor...
Há algo de diferente... Um convite ao amor.
Assim como a primavera seduz o beija-flor,
Nela, a paixão entre os amantes fica maior.

Quero ficar mais a teu lado, a partir de agora,
Passear de mãos dadas pelos bosques e jardins,
Feliz, apanhar e te oferecer violetas e jasmins,
Ouvindo o canto dos pássaros, admirando a flora.

Nestes três meses floridos que temos à frente,
Contigo, pretendo namorar no banco da praça,
Apreciar teu jeitinho de mulher, cheio de graça,
E que tudo faz para me ver e deixar contente.

Nas noites primaveris, já nos vejo abraçadinhos,
Pertinho da fonte luminosa e sob seu hídrico véu,
Desgarrado dos jatos d'água que procuram o céu,
Uma cortina de respingos que nos deixa molhadinhos.
––––––––––––––––––––––––––

LUIZA DE MARILLAC BESSA LUNA MICHEL
A Rosa e o Espinho


Vida curta e vã
Beleza e Alteza
Numa breve manhã

Galho selvagem
Estupendo rebento
Em espinhos tantos

Pétalas são alvas
Deslizando sob mãos
Sem tocar nos espinhos

Assim é a vida
Doçura e fel
Ventura e Desilusão

Rosa aventureira
Deste meu coração
Atravessa a vida

Ferindo o cultivo
Floresce tão amada
Fenece tão pisoteada...
––––––––––––––––––––

MANUELA NEVES
Primavera


Nascida de vida renovada
Carente de festas e afectos
És ardente Primavera em flor
A estação que me fez renascer
e tornar flor

Magia de momentos breves
Movimentos de vida multicor
És Primavera fonte inesgotável
Fé no amanhã, eterno amor.
––––––––––––––––––––-

MARCIAL SALAVERRY
Estamos na Primavera


Primavera, dita do amor, a estação,
estimula o amor no coração,
para a alma, dá mais vida,
para vida, mais amor,
para o amor, mais calor...
A Natureza se enche de cores,
com a explosão das flores,
perfumando o ar com seus odores,
estimulando corações enamorados,
a seus amores apaixonados...
Um bouquet florido...
Um desejo declarado...
Um amor acontecido...
Um prazer desejado...
Com um ramo de flores,
conquistam-se amores...
Com uma simples rosa,
um verso, uma prosa,
declaramos nosso amor...
Assim é a Primavera, enchendo a vida de cor...
Assim ficam nossos corações, prontos para amar
a quem seu amor nos venha declarar...
––––––––––––––––––––––––––––-

MARGARET PELICANO
Seja Bem Vinda Primavera


Dos tinteiros mais imprecisos,
espalhou-se em cores a primavera!

Do artista mais impressionista,
expressou-se em formas a primavera!

Da vontade mais narcisista
surgiram as flores e seus olores...

Assim, como quem não quer nada,
vão chegando e abafando
parecem longas saias,
com a terra se misturando,
nos galhos se espalhando
ó primavera rendada...

Das janelas é o decote,
de onde saltam os seios da natureza,
jorrando belezas tantas
que quem tem olhos para ver não se cansa
de acordar e ver o amanhecer e o anoitecer...

São dias e dias de belezas,
frescores, correntezas de bem viver...
Seja bem vinda primavera,
mais uma vez doce quimera,
a amaciar a caminhada
dos seres na morada Terra!

Fonte:
Seleção por Simone Borba Pinheiro. in http://www.familiaborbapinheiro.com

Selma Lagerlöf* (O Hóspede da Noite de Natal)

Há muito tempo, um grupo de boêmios e de artistas havia encontrado refúgio numa velha mansão da província de Varm-land e sob o nome de cavaleiros de Ekeby, viveram ali uma vida desenfreada de divertimentos e aventuras.

Um deles chamava-se Ruster e era um jovem músico que tocava flauta.

De origem humilde, pobre, necessitando de um lar e de família, conheceu tempos muito duros quando aquele alegre bando se dispersou. Já não tinha cavalo, nem carros, nem peliça, nem um bom cesto carregado de provisões. E teve de ir a pé de casa em casa, com uma trouxa na mão, a roupa embrulhada num lenço, para melhor dissimular o estado do colete e da camisa. Trazia toda a fortuna nas algibeiras: uma flauta desarmada, uma cabaça de aguardente e a pena.

Se os bons tempos não tivessem mudado, um copista de música como êle não teria mãos a medir, mas, ai! a gente de Varmland se desinteressava cada vez mais das melodias e das lindas árias. Dependuravam nos celeiros as guitarras, com as suas fitas desbotadas e as cravelhas já gastas, bem como as buzinas de caça, com as borlas meio desfiadas e o pó amontoava-se em camadas espessas sobre a caixa dos violinos. E à medida que a flauta e a pena de Ruster trabalhavam menos, a garrafa, que nunca o abandonava, trabalhava mais. Tornou-se um bêbedo incorrigível. Embora fosse recebido como um velho amigo, a sua chegada produzia uma certa contrariedade, e a sua saída, alegria. Estava sempre cheirando a álcool, que exalava de todos os poros, e logo ao segundo ponche, os olhos já turvos, entabolava as conversas mais desagradáveis. Era o eterno pesadelo das casas hospitaleiras.

Dias. antes do Natal, chegara a Lofdala, onde vivia a grande violinista Liliécrona, que fora também cavaleiro de Ekeby e um dos mais entusiastas daquela vida desregrada. Depois Liliécrona voltara para junto da família, e nunca mais a deixou. Quando Ruster lhe apareceu pedindo trabalho, no meio de toda a azáfama para os preparativos da festa, Liliécrona deu-lhe alguns trechos de música para copiar.

— Terias feito melhor se o tivesses deixado ir — disse-lhe a mulher; — vai prolongar o seu trabalho de tal forma que seremos obrigados a tê-lo conosco durante o Natal.

— Em alguma parte há de o passar — respondeu Liliécrona.

E ofereceu de beber a Ruster, fazendo-lhe companhia e recordando os seus dias de boêmia. No fundo, a convivência de Ruster incomodava-o um pouco e entristecia-o, mas nada queria dizer porque, para êle, as recordações de velhos amigos e os seus deveres hospitalares eram coisas sagradas.

Havia três semanas já que na casa de Liliécrona se faziam preparativos para a festa do Natal; há três semanas que tudo andava numa roda-viva, numa atividade febril. Os olhos já estavam vermelhos e cansados de fabricar tanta vela, as mãos geladas de tanto bater cerveja no lavadouro, e, lá embaixo, na tenda das provisões, não se parava um instante de salgar carne e de fazer salsichas. Mas tanto os criados como a dona da casa suportavam, sem resmungar, aquele acréscimo de trabalho, porque sabiam que, finda a tarefa e chegada a noite santa ia baixar do céu um suavíssimo encanto que abençoaria a todos: que as graças e os ditos alegres lhes saltariam naturalmente dos lábios, os pés iriam ganhar asas nas danças da terra e as antigas árias e as velhas modas esquecidas irromperiam dos recantos mais escuros da memória. E que alegres se sentiriam então!

Mas, quando viram chegar o jovem Ruster, tanto a dona da casa, como as criadas e as crianças, todos pensaram que êle lhes vinha estragar a noite de Natal.

A presença de Ruster pesava-lhes no coração. Receavam que Liliécrona ao impulso de lembranças revolvidas sentisse despertar a sua vocação nômade e que o grande violinista, que outrora não podia estar muito tempo ao lado dos seus, se perdesse novamente para a família. E como se fizera amar naqueles dois anos que tiveram a felicidade de o possuir! Dava-se a todos, era a alma da casa, sobretudo na Noite de Natal. Sentava-se então perto da lareira, não no sofá ou na cadeira de balanço, mas num grande banco, já poído pelo uso e pelos anos, umas vezes contando histórias, outras, executando música, no meio de toda a família atenta; pendente dos seus lábios e dos gestos, corria às aventuras mais loucas e galopava através do mundo até às estreias. E a vida se fazia grande, formosa e rica perante a irradiação daquela alma. Amavam-no assim como se ama a noite de Natal, como se ama o sol e a primavera. Mas a presença do jovem Ruster vinha-lhes comprometer a festa. Todas as suas canseiras para nada serviriam se o espírito do dono se afastasse de casa. E, depois, quem podia olhar com calma para aquele bêbedo sentado à mesa no meio da família honrada e piedosa, cuja alegria êle estragava?

Na véspera de Natal, pela manhã, Ruster tinha acabado de copiar a música. Falou vagamente em partir, embora tivesse intenção de ficar. Sob a influência da má vontade geral, Liliécrona respondeu, em termos também vagos, que talvez Ruster fizesse melhor em passar o Natal onde estava. Mas Ruster era orgulhoso e suscetível; retorceu os bigodes e sacudiu os cabelos que se lhe erguiam sobre a cabeça como uma nuvem negra. Que queria dizer Liliécrona? Acaso êle, Ruster, estaria incomodando? Em todas as casas de ferreiro da região o esperavam com cama feita e o copo cheio. Tinha tanto trabalho e tantos convites que não sabia por onde começar.

- Muito bem, — disse-lhe Liliécrona — não te reterei.,

Depois do almoço, o jovem Ruster pediu uma peliça e uma pele emprestadas, mandaram atrelar um trenó e recomendaram ao criado que devia conduzi-lo que fustigasse bem o cavalo, porque o tempo ameaçava nevar.

Ninguém ali acreditava que Ruster fosse gostosamente recebido debaixo de qualquer teto; mas afastavam de si aquele pensamento desagradável; regozijando-se por se verem livres de tal personagem.

— Quis ir-se embora — diziam — ninguém o obrigou. — E agora, alegremo-nos.

Todavia, quando, por volta das cinco horas, se reuniram em torno da árvore para dançar, Liliécrona, preocupado e taciturno, não se sentou sobre o escabelo maravilhoso nem tocou na tijela do ponche. Não se recordava da menor dança e o seu violino não estava afinado. Teriam de cantar e dançar sem êle. Então a mulher ficou inquieta c as crianças começaram a dar mostras de agitação. Tudo correu mal: o serão do Natal foi um fracasso completo. O arroz pegava-se ao fundo das caçarolas, e as candeias espirravam e cuspiam em lugar de arder; a lenha fumegava e nas dependências da casa penetravam golfadas de ar glacial. O criado que acompanhara Ruster, ainda não tinha regressado. A cozinheira chorava e as criadas brigavam umas com as outras. De repente, Liliécrona reparou que não tinham posto no pátio o molho de trigo para os pássaros e queixou-se amargamente daquelas mulheres, que esqueciam as tradições antigas e não tinham coração.

Mas todas compreenderam que, muito mais do que nos pássaros, era no jovem Ruster que êle pensava, arrependido de o ter deixado partir na Noite de Natal. Meteu-se no seu quarto, fechando a porta, e ouviram-no tocar no violino árias estranhas, como nos tempos passados, quando sentia a casa estreita demais para êle; árias cheias de provocação e de mofa, plenas de torturante nostalgia.

A mulher pensava: "Amanhã ir-se-á embora, se Deus não fizer um milagre esta noite. E aqui está como a nossa falta de hospitalidade produziu a desgraça que tanto queríamos evitar."
*

Entretanto o jovem Ruster corria sob a tempestade. Andou de porta em porta pedindo trabalho, mas não foi recebido em parte alguma. Nem sequer o convidaram a descer do trenó. Uns tinham a casa cheia de convidados; outros tinham de passar a noite em casa de pessoas amigas. Poderiam suportá-lo durante alguns dias, em outras ocasiões, mas não numa noite de Natal. Em todo o ano não há senão uma e as crianças preparam-se desde o outono para a gozar. Como sentar aquele homem à mesma mesa que as crianças? E agora, que deu para beber, não sabiam onde alojá-lo. O quarto dos criados não era suficientemente bom para êle e o dos hóspedes era-o demasiado. E Ruster continuava o seu caminho, açoitado pelos turbilhões de neve. O bigode, molhado, caía-lhe tristemente e os olhos injetados já não viam; mas pouco a pouco, os vapores da aguardente que tinha bebido dissiparam-se.

Admirado do que lhe sucedia, começou por perguntar a si mesmo qual seria a razão disto. Seria possível que ninguém tivesse querido recebê-lo? E, de repente, viu-se a si mesmo; viu-se tal qual era: rebaixado, uma verdadeira ruína, um miserável, que ninguém acolhia de boa vontade.

Acabou-se tudo — disse. — Nem música para copiar, nem árias de flauta! Ninguém no mundo tem necessidade ou compaixão de Ruster.

As rajadas sucediam-se, levantando colunas de neve, que arrastavam para o meio dos campos, num rodopio vertiginoso. Depois, cessavam, e a neve, terminada a sua dança, tornava a cair, enchendo o vazio dos fossos.

— Assim é a vida — disse Ruster consigo. — Dança–se e, depois da dança, vem a queda. Somos um pobre floco que outros flocos vêm cobrir. Mas quando chega o momento, então é que são as queixas e as lágrimas. Agora é a minha vez!

Não o preocupava saber para onde o criado o levava; para onde senão para a morte? O jovem Ruster não maldizia a flauta, nem a alegre boêmia dos tempos passados, não pensava em que teria sido melhor para êle cultivar a terra ou trabalhar em peles para calçados. Todavia lamentava não ter sido até ali senão um instrumento usado, cuja alegria nunca mais deixaria de soar falso. Não acusava ninguém. Quando a corrente está partida e a guitarra rachada, a gente desfaz-se delas. Sentia-se muito ruim, muito só, inteiramente inútil, completamente perdido: o frio e a fome matá-lo-iam naquela noite de Natal.

O trenó deteve-se, viu luzes à sua volta e ouviu vozes carinhosas. Algumas pessoas ajudaram-no a entrar numa sala bem aquecida, e fizeram-lhe beber chá quente, ao mesmo tempo que lhe tiravam a peliça; e umas mãos tépidas esfregavam-lhe os dedos enregelados e saudações de boas-vindas zuniam-lhe aos ouvidos. Sentiu-se tão atordoado que demorou pelo menos um quarto de hora a reconhecer que se encontrava em casa dos Liliécrona.

O criado, cansado de correr duma herdade para a outra, debaixo da tempestade, havia decidido regressar à casa.

Mas muito menos compreendia Ruster o acolhimento de que era alvo. Não lhe ocorreu que a sua hospedeira, cheia de compaixão ante a idéia da triste viagem que havia feito e de que todas as portas se lhe tinham fechado naquela noite de festa, esquecera as suas próprias preocupações.

Liliécrona, sempre metido no seu quarto, desconhecendo o regresso de Ruster, continuava a tocar no violino a sua música louca e selvagem.

Ruster estava sentado na sala de jantar com as crianças. Os criados, que costumavam sentar-se ali na noite de Natal, tinham ido para a cozinha como que em busca de um refúgio contra o aborrecimento que nessa noite se apossara dos seus amos. A mulher de Liliécrona aproximou-se de Ruster:

— Meu marido tocará durante toda a noite — disse — e eu tenho de tratar da ceia. Os pequenos estão sós. Quer você, Ruster, tomar conta dos dois menores?

Ruster não estava habituado a lidar com crianças. Não as encontrava nem debaixo das tendas, nem nas estalagens, nem nas orgias, nem nos caminhos da boêmia. Sentia diante delas uma grande timidez e não sabia o que dizer-lhes. Sacou da flauta e deixava-os mexer nas chaves e nos buracos. O menor, que tinha quatro anos, e o maior, que tinha seis, receberam a sua primeira lição da flauta e mostraram-se vivamente interessados.

— Este é o dó — disse — e este, o ré.

E, pegando numa folha de papel, desenhou as notas.

— Não, não! — exclamaram eles. — Não é assim que se escreve dó.

E correram para buscar o alfabeto.

Então Ruster fêz-lhes perguntas acerca das letras. Sabiam umas, mas ignoravam outras. Seus conhecimentos não eram ainda muito extensos. Ruster, interessado no caso, sentou-os nos joelhos e julgou de seu dever completar-lhes a instrução. A mãe ia e vinha da cozinha para a sala de jantar, e escutava cheia de surpresa. Os pequenos riam, repetindo docilmente o abecedário. Mas pouco a pouco a atenção de Ruster fatigou-se, a alegria desvaneceu–se-lhe as idéias, que se tinham agitado dentro dele sob a tempestade, vieram-lhe à mente. Sim, tudo aquilo era bom e encantador, mas passageiro; nem por isso deixara de estar menos acabado e morto. E, de repente, levou as mãos à cara e começou a chorar.

A mulher de Liliécrona acorreu solícita:

— Ruster – disse — compreendo-o bem; você julga que já não tem nada a fazer no mundo. A música dá pouco e a aguardente arruína-o. Mas nem tudo está perdido.

— Oh, sim! — soluçou o jovem flautista.

— Vejamos: não seria melhor que você ensinasse as crianças a ler e a escrever? Ficar sentado junto delas como nesta noite? E quem quisesse dedicar-se a esta tarefa, não seria bem recebido em toda parte? Não são as crianças instrumentos mais sensíveis do que a flauta e o violino? Olhe bem para elas, Ruster.

— Não me atrevo »— murmurou êle, porque lhe parecia doloroso contemplar as suas almas puras através dos seus formosos olhos.

A mulher de Liliécrona começou a rir, com um riso feliz e claro.

— Em breve se acostumará, Ruster. Este ano ficará em nossa casa como mestre-escola.

Liliécrona, que ouvira a risada, saiu do quarto.

— O que há?

— Não há nada — respondeu-lhe a mulher. .— Foi Ruster que voltou e já o levei a comprometer-se a que ensinaria as crianças a ler e a escrever.

— Fizeste isso? — disse em voz baixa — fizeste isto? Mas, êle prometeu. . . ?

— Não; não prometeu nada. Mas compreenderá que é preciso privar-se de muitas coisas, quando todos os dias a gente tem de encontrar-se com os olhos das crianças. Se não fosse Noite de Natal talvez eu tivesse hesitado ou voltado atrás. Mas, quando Deus não receou pôr o seu filho, o seu próprio Filho, entre nós, pecadores, penso que posso dar aos meus filhos a ocasião de salvar uma alma.

Liliécrona não respondeu nada, mas todas as rugas do seu rosto se distenderam e tremeram. Inclinou-se para a mulher, pegou-lhe na mão e beijou-a piedosamente.

Depois gritou:

— Meninos, venham todos aqui e beijem a mão de sua mamã.

E em casa de Liliécrona houve uma noite de Natal muito alegre e feliz.
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*Prémio Nobel de Literatura e sendo talvez o autor mais apreciado das letras escandinavas contemporâneas, Selma Lagerlöf tem hoje um renome universal.
    Nascida em Marbacka, na Suécia, a 20 de novembro de 1857, passou a infância e parte da juventude na província onde nasceu, terra rica em costumes e tradições.
    Aos vinte e dois anos mudou-se para Estocolmo onde freqüentou a Escola Normal, graduando-se professora. Como tal, nenhum espírito houve, melhor dotado que o seu, para dirigir-se ã alma das crianças incutindo-lhes o amor da Pátria e da Humanidade.
    Seu primeiro livro, "A Saga de Gosta Berling" apareceu em 1891, obtendo grande sucesso e alcançando inúmeras edições, o que assegurou à sua autora a glória e a fortuna.
    Selma realizou várias viagens pela Europa e pela Ásia e, em 1907, teve a satisfação de ver celebrado o cinqüentenário do seu nascimento com grandes festas, às quais se associou toda a Suécia e particularmente as crianças das escolas.
    "A viagem maravilhosa de Nils Holgerson", concebido a princípio como livro para o ensino de geografia, é hoje considerado como uma das obras-primas da literatura infantil.
    Em 1909 Selma foi agraciada com o Prêmio Nobel de Literatura e em 1914 ingressou como membro da Academia Sueca.
    Selma é considerada a verdadeira herdeira e continuadora da geração pré-naturalista e uma viva representante da comiseração ante as calamidades sociais.
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Fonte:
http://www.consciencia.org

Folclore dos Estados Unidos (O Legado do Povo Assiniboine)

Nos tempos antigos, eles tinham um belo costume de capturar um pássaro (1), para liberá-lo sobre a sepultura na noite do enterro, assim o pássaro carregaria o espírito do morto para o descanso celestial. E a sua ansiedade de resgatar os corpos dos guerreiros mortos em batalha, e a impossibilidade de deixar os velhos e indefesos para morrerem sozinhos no deserto, foi  o resultado de uma crença de que as almas daqueles que não receberam os ritos funerários vagariam inquietos e infelizes.

Pode-se facilmente imaginar que um povo que tanto amou o seu lar e reverenciou o túmulo de seus pais, ficaria indignado e com raiva, ao ver-se tratados desumanamente e tendo as relíquias sagradas dos mortos arrancadas e espalhadas com indiferença como se fossem pedras, ou ossos dos alces e os veados da floresta.

Foi este sentimento que muitas vezes os levou a atos de hostilidade, que aqueles que testemunharam atribuíram a eles grande crueldade e barbárie. Um exemplo ocorreu em Nova Inglaterra, onde as peles postas na sepultura da mãe de um Sachem foram roubadas e o cacique reuniu seu povo e os convocou para a vingança. Ele se inspirou em sua piedade filial, e os ditames de sua religião. Ele assim ele falou:

“Quando a última das gloriosas luzes de todo o céu ficaram debaixo deste mundo, e as aves ficaram em silêncio, eu começo meu repouso, como é de meu costume. Antes que os meus olhos se fechassem, julguei ver uma visão, em que meu espírito estava muito perturbado, e tremendo nessa visão triste o espírito gritou, “Eis, meu filho, aquele em que me alegrei, veja os seios que te amamentaram, as mãos que te mantiveram quente, e alimentaram. Podes esquecer de se vingar daqueles povos selvagens que desfiguraram o meu túmulo, desdenhando de nossa relíquias e honrados costumes? Veja agora que a sepultura de um Sachem é igual a de pessoas comuns, desfigurada por uma raça ignóbil. Tua mãe queixa-se, e implora tua ajuda contra essas pessoas gatunas, que recentemente invadiram a nossa terra. Se isso não for feito não vou descansar tranquila no meu eterno descanso.”

Essa tribo tem sido conhecida a visitar o local que havia habitado, em tempos antigos, e o lugar do enterro de seu povo, apesar de abandonado há eras, e passar horas em silenciosa meditação, e fará isso até que toda a esperança tenha morrido em seus peitos, ou a última gota de sangue seja derramada, não deixam a grama que cobre o pó de qualquer de seus parentes seja pisado por estranhos.

Sobre sua hospitalidade  a qual me referi várias vezes,  há muitas estórias para ilustrar esse traço de seu caráter. O egoísmo que continuamente vi naqueles que estavam ávidos de lucro, era algo que eles não poderiam compreender. Em muitas das suas aldeias, existia uma casa para hospedar visitantes, onde eles eram acomodados, enquanto os anciãos iam à coleta de peles para eles pudessem dormir, e comida para eles comerem, sem esperar recompensa.

Era rude para as pessoas ficar encarando os forasteiros quando eles passavam nas ruas, e  eles tinham tanta curiosidade quanto os brancos, mas eles não ficariam felizes em se intrometer entre eles e examiná-los. Eles, às vezes, escondiam-se atrás de árvores, a fim de olhar para estranhos, mas nunca se olhou abertamente para eles. Sua respeitosa atenção aos missionários era freqüentemente o resultado de suas regras de polidez, como é uma parte do código do índio, que cada pessoa deve ter uma audiência respeitosa.

Seus conselhos tem uma regra de decoro, e nenhuma pessoa é interrompida durante um discurso. Alguns índios, depois de respeitosamente ouvir um missionário, pensaram que eles deveriam relatar algumas de suas lendas. Mas o bom homem branco não pôde conter a sua indignação, e chamou-as de fábulas tolas, enquanto afirmava que o que ele tinha dito a tribo era uma verdade sagrada.

O índio, por sua vez, se ofendeu e disse: “Nós escutamos suas histórias. Porque você não ouvir as nossas? Você não sabe nada sobre as regras de civilidade!”

Em outra estória, um caçador, em suas andanças por presas, acabou em uma assentamento de brancos na Virgínia, e em virtude da inclemência do tempo, buscou refúgio na casa de uma agricultor, que ele viu na porta de casa. Foi recusada a sua entrada na casa. Estando ele com muita fome e sede, pediu um pedaço de pão e um copo de água fria. Mas a resposta a pedido foi:

“Não, você não terá nada aqui. Vá embora cachorro índio!”

Alguns meses depois, este mesmo fazendeiro se perdeu na mata, e depois de um dia cansado de andanças, chegou a uma cabana indígena, em que ele foi bem acolhido. Perguntando sobre a distância mais próxima de um assentamento, e encontrando-se longe demais para ele pensar em ir naquela noite, ele perguntou se ele poderia pernoitar. Muito cordialmente os donos da casa responderam que ele tinha liberdade para ficar, e todos eles estavam a seu serviço. Deram-lhe comida, eles fizeram uma fogueira para animar e aquecê-lo, e lhe deram pele de veado limpa para servir de cama, e prometeram conduzi-lo no dia seguinte em sua jornada. De manhã, o caçador índio e o fazendeiro partiam através da floresta. Quando chegaram à vista de uma habitação do homem branco, o caçador, antes de ir embora, voltou-se para seu companheiro, e disse: “Você não me reconhece?”

O homem branco foi tomado por horror que ele tinha ficado em poder de quem ele tinha maltratado a um tempo atrás, e esperava agora a experimentar a sua vingança. Mas, quando começava a pedir desculpas, o índio interrompeu, dizendo:

“Quando você ver pobres índios desmaiando por um copo de água fria, não lhes diga mais uma vez: “vá embora, seu cachorro índio” e voltou para suas terras.

Qual deles foi mais cristão e seguiu mais o preceito que dizia “Na medida em que vos fizestes vos ao menor destes, o fizestes para Mim? “
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Nota:
(1)
Os pássaros são ligados a jornada da alma depois da morte. Para as tribos norte-americanas, soltar um pássaro durante o enterro, significa que ele está levando a alma do morto para o seu repouso eterno.


Fontes:
http://www.mythencyclopedia.com/Be-Ca/Birds-in-Mythology.html
Texto em português disponível em http://casadecha.wordpress.com

Guilherme de Azevedo (Alma Nova) IX

foi mantida a grafia original.
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À HORA DO SILÊNCIO

Eu quis ontem sonhar, sentir como um romântico
A doce embriaguez do pálido luar,
Ouvindo em pleno azul passar o imenso cântico
Dos astros no seu giro e em sua luta o mar!

A cidade dormia o sono dos devassos;
Aquele sono turvo, infecto e sensual:
E a lua, antiga fada, erguia nos espaços
Tranquila e sempre ingénua a fronte de vestal!

E sobre a quietação das coisas vis e exóticas
Sentiam-se as febris, cruéis respirações,
Dos tristes hospitais e das virgens cloróticas,
Dos amantes fatais da febre e das paixões!

A noite era em silêncio, a atmosfera doce
E ria a natureza aos beijos dum bom Deus.
De súbito escutei, ao longe, o quer que fosse
Dum canto que supus então baixar dos céus!

Atento ao vago som, porém, a pouco e pouco
Senti que era uma voz disforme e sensual,
Soltando uma canção naquele acento rouco
Da triste inspiração alcoólica e brutal! ...

O terna vagabunda, enamorada lua!
Enquanto ias assim, diáfana e sem véu,
Uma triste mulher passava, então, na rua
Cuspindo uma porção de infâmias para o céu!

Eu quisera depois das lutas acabadas,
Na paz dos vegetais adormecer um dia
E nunca mais volver da santa letargia,
Meu corpo dando em pasto às plantas delicadas!

Seria belo ouvir nas moutas perfumadas,
Enquanto a mesma seiva em mim também corria,
As sãs vegetações, em intima harmonia,
Aos troncos enlaçando as lívidas ossadas!

Ó beleza fatal que há tanto tempo gabo:
Se eu volvesse depois feito em jasmins do Cabo,
— gentil metamorfose em que nesta hora penso; -

Tu, felina mulher com garras de veludo
Havias de trazer meu espírito, contudo,
Envolto muita vez nas dobras do teu lenço!

O VELHO CÃO

Soltava ontem já tarde um velho cão felpudo
Uns doloridos ais,
Em frente dum palácio altivo, belo e mudo,
Cerrado aos vendavais.

Fazia pena ouvi-lo, o mísero molosso
Em seu triste chorar!
Era quase uma sombra: apenas pele e osso
E um vago, um doce olhar!...

Eis a sorte cruel do pobre que não come,
Dos míseros sem pão!
Em paga ainda em cima os vai tragando a Fome,
A negra aparição!

Latia o cão faminto. O frio era mordente,
Feroz, quase voraz!
E o pobre não sabia, enfim, que há muita gente
Que adora a santa paz.

Ora perto vivia uma galante rosa,
Etérea, virginal,
Que tinha um lindo colo, amava, era nervosa
E a quem fazia mal,

Aquele uivar sinistro; a ponto de em desmaios
Pender a fronte ao chão!
Saíram pois à rua impávidos lacaios
E foram dar no cão.

— Há no mundo um rafeiro, um velho cão esfaimado,
— o povo sofredor,
Que às vezes vai ganir, com fome, o seu bocado
Às portas dum senhor.

O resto é velha história: ocioso é já dizer-vos
O fim que ela há de ter.
A Ordem, só de ouvi-lo, alteram-se-lhe os nervos
E manda-lhe bater!

AS VELHITAS

Eu não professo muito o culto das ruínas.
Prefiro uma oficina às velhas barbacãs;
Das velhinhas, porém, mirradas, pequeninas,
No entanto nunca insulto as prateadas cãs.

Deixá-las caminhar, curvadas, vagarosas,
Com seu bento rosário, os seus fofos beitões,
A rirem-se de nós, cruéis, maliciosas,
Sagazes comentando as nossas ilusões!

Ah, velhitas sem cor! Cabeças regeladas,
Vulcões de que só resta a cinza e nada mais:
Já fostes as visões; talvez as brancas fadas;
Prendestes vossos pés nos húmidos rosais;

Tivestes já no olhar os bons reflexos mágicos
Dos lagos ideais cobertos de luar;
As curvas sensuais, os belos dedos trágicos;
As rosas más do inferno, os lírios bons do altar!

Prendestes já cismando as frontes melancólicas
Nas varandas à noite, amantes dos Titãs
Do belo amor antigo! Ó Márcias das bucólicas!
E agora apenas sois as mães de nossas mães!

Segui vosso caminho: as graciosas fadas,
As belas da cidade, anémicas, gentis,
Sorriem-se, talvez, das fitas desbotadas,
Dos provectos chapéus, das galas que vestis!

Oh! Mostrando os troféus das vossas velhas rosas,
Dizei-lhes, a sorrir, das fúteis ilusões,
Que fostes já, também, galantes e nervosas
Mas destes isso tudo a vários corações!

Agora tendes pouco: apenas uns lamentos
Sentidos contra nós; queixumes sem valor!
E ao mundo importam muito os vossos testamentos
E importa muito pouco a vossa imensa dor!

Batei à grande porta: os belos dias vossos,
Velhitas, bem sabeis, não podem voltar mais!
A terra ide levar, enfim, nuns tristes ossos
O resíduo fatal das coisas virginais!

ÀS VISÕES

Pois que visões! Não cessa a rápida corrida
E seja noite ou dia,
Volteadoras cruéis! Vós sempre a toda a brida
Na minha fantasia!

Parti, quimeras vãs! Arcanjos ou madonnas,
Parti, que o mando eu,
Como um bando fatal de velhas amazonas
Que o circo aborreceu!

Levai tudo convosco: as setas mais a aljava;
O angélico sorriso:
E as asas de escumilha em que eu voava
À noite, ao paraíso!

Eu quero, enfim, dormir; passar as noites gratas
Sentindo-me feliz,
No sono maquinal dos velhos acrobatas
Depois das farsas vis!

Mais tarde hei de sorrir, ou escarnecer-me quase,
Lembrando-me — é verdade! -
Que onde eu supunha aurora havia apenas gaze
E uns traços de alvaiade.

Perdão se vos insulto! Oh, não, vós sois do empíreo,
Daquele meigo azul,
Que a todos tem sorrido: a Cristo no martírio,
Na dor, ao rei de mil;

E quando vos apraz, nas asas transparentes,
Mais alto ides por certo,
Do que as deusas gentis, aéreas, insolentes,
Que vemos voar tão perto!

No entanto podeis crer ó lúcidos fantasmas
Que o século, afinal,
Oculta no esplendor não sei que vis miasmas
Que fazem muito mal!

E quando vós passais, nas horas do mistério
De estrelas revestidas,
Bebemos nós, talvez, o aroma deletério
Das rosas corrompidas!

Oh sim! Parti depressa; erguei-vos deste abismo
Arcanjos ideais,
Deixando-nos colher a flor do realismo
Nas coisas triviais!

Melancolias do Outono! Eu quando além descubro,
Nas tristezas do campo, as filas mugidoras
Dos vagarosos bois que voltam das lavouras,
Compungem-me as cruéis desolações de Outubro!

Das orlas do poente, afogueado, rubro,
Ó moribundo sol! Com que poesia douras,
As formas triviais das cabecitas louras,
Que, às portas dos casais, de bênçãos também cubro!

Solta o canto final a orquestra da folhagem:
São horas de partir; apresta-se a viagem,
E as noites dos saraus hão de voltar mais belas!

Mas as vistas lançando às regiões saudosas,
Nos esforços cruéis das tosses dolorosas,
Em bandos vão partindo as tísicas donzelas!

O VELHO MUNDO

Eu vejo em toda a Terra um vasto cemitério,
A necrópole imensa, a campa dos colossos,
Aonde em paz descansa o velho megatério,
Por entre a fauna morta, os carcomidos ossos!

E os grandes leviatãs dos primitivos mares!
Os tremendos répteis, cruéis, descomunais,
Celebram no silêncio as núpcias singulares
Dos seus resíduos vis, com ricos minerais!

E os esqueletos nus dos lívidos gigantes
Abraçam-se melhor; conchegam-se na cova,
Deixando um lugar vago aos velhos elefantes
Que vão fugindo à luz da natureza nova!

Também no mundo interno as almas vão seguindo,
Na corrente da vida, em mil circulações;
E da consciência humana o largo abismo infindo
Oculta, há muito já, disformes criações!

Elas dormem na sombra imensa do passado
Aonde em breve hão de ir nos transes doloridos,
A velha Realeza e o trémulo Papado
Sem forças descansar os corpos corrompidos.

Depois virão mais tarde as gerações futuras
E os dois espectros vãos da sombra hão de evocar,
Bem como a nossa voz, as grandes criaturas
Do mundo primitivo, obriga a despertar.

E as crianças terão seus nomes de memória,
Como exemplo, na vida, a todos os momentos;
E vê-los-eis de pé, nas páginas da história.
Grotescos, maquinais, pesados, sonolentos;

Fazendo-nos pensar; de espanto enchendo tudo;
Sofrendo o riso alvar do ingénuo e do plebeu,
Iguais ao mastodonte armado para estudo
E exposto às irrisões nas salas dum museu!

Eis a velha cidade! A cortesã devassa,
A velha imperatriz da inércia e da cobiça,
Que da torpeza acorda e à pressa corre à missa!
Baixando o olhar incerto em frente de quem passa!

Ela estreita no seio a velha populaça,
Nas vis dissoluções da lama e da preguiça,
E nunca o santo impulso, o grito da Justiça,
Lhe fez estremecer a fibra inerte e lassa!

E pode receber o beijo e a bofetada
Sem que sinta o rubor da cólera sagrada
Acender-lhe na face as duas rosas belas!

Somente dum sorriso alvar e desonesto,
As vezes, acompanha o provocante gesto
Quando soa a guitarra, à noite, nas vielas!
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