terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Astolfo Lima Sandy

Astolfo Lima Sandy (Sobral, 1952) é autor do livro Mão de Martelo e outros contos (Fortaleza: Programas Editoriais Casa de José de Alencar/Coleção Alagadiço Novo – Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará, 1998). Participou do Almanaque do conto cearense (Recife: Ed. Bagaço, 1997), da Antologia do Conto Nordestino ano 2000 (Recife: Ed. Micro, 2000) e da revista Caos Portátil: um almanaque de contos (Fortaleza: Letra & Música, 2007). Em 2002 recebeu o Prêmio da Biblioteca Nacional para escritores com obra em fase de conclusão, com o livro A Grande Fábrica de Brinquedos, inédito em 2007. Tem contos em suplementos literários e sites na internet. Vencedor de vários prêmios literários. Concluiu em 2007 o romance Exuberante pós-nada (vencedor do Edital de Literatura da Secretaria de Cultura do Estado do Ceará/SECULT, em 2007).

Constituído de 23 narrativas curtas, Mão de Martelo e outros contos apresenta um painel de personagens e situações bastante variados, quase sempre localizados na zona urbana e num tempo histórico indefinido. A maioria das histórias se desenvolve no curto espaço de uma sala, de uma casa pequena. Em outras, o drama deixa estes espaços para alcançar a rua, como em “Bandeira Dois”. O protagonista se desloca de casa, onde promove uma baderna, para a rua, um táxi, e pratica um assalto. Assim, os demais personagens (como num filme) desaparecem do foco narrativo. Nesta linha (de denúncia da miséria, dos problemas sociais) se situa também “Os meninos”. A técnica utilizada neste, no entanto, é diversa daquele: toda a ação se desenrola na rua. Aliás, o conflito é narrado num só parágrafo, como se o narrador portasse uma câmera e focasse os personagens, um grupo de meninos de rua, em tempo restrito a uma ação rápida de assalto. Semelhante a este é “O grande salto”. Mais uma vez a rua como palco. As únicas falas são do protagonista – o palhaço, o contorcionista, sem nome – que tenta ganhar uns trocados dos transeuntes à custa de piruetas, saltos, malabarismos.

Os personagens de Astolfo são quase sempre disformes, tortos, grotescos, como caricaturas. O político descrito pelo narrador em “Tiro Certeiro” é um exemplo disso: “Elemento pernóstico, com seu crânio disforme afinando drasticamente para baixo, e que, de perfil, lembrou-me um cavalo com nariz de Pinóquio.” O mesmo ocorre quando o protagonista de “Mão-de-martelo” se descreve: “silhueta longa, grave inclinação para a esquerda, enquanto enorme nariz emoldura-me a face descorada.” Sandoval Balheiros, de “Teoria do equilibrista”, é descrito como semelhante a um faquir. Os “seios flácidos da índia velha”, da mulher do protagonista de “Bandeira dois”, aparecem algumas vezes, como a pintar a miséria em que viviam os personagens. A pintura distorcida de alguns personagens se mostra também em “O Debate”, no qual “senhores sisudos” debatem assunto da mais alta importância: a Constituição do País. Um, “muito magro, ares de intelectual”; outro, “meio estrábico”; um terceiro, “cara de pouca inteligência”. Além dos debatedores, personagens menores e também sem nome surgem e desaparecem como simples figurantes exóticos: “uma mulher muito loura enfeitada de batom e joias”, “um palhaço tomando coca-cola”, “uma garota sardenta”, “uma senhora gorda”.

O uso contínuo da narração, entremeada de breves diálogos e descrições físicas e psicológicas de personagens, dá vigor à linguagem dos contos de Astolfo. Em “Luz e Sombras” os movimentos narrados apresentam a linguagem do cinema, na visão de um homem paralisado, à espera de um ataque.

O ponto de vista nas narrativas de Astolfo é ora na primeira pessoa, ora na terceira. No conto que dá título ao livro o narrador é o protagonista, que vai se pintando ao longo da história: como adquiriu o codinome, como participa das rodas de samba, como se operou nele a transformação interior (o aperfeiçoamento de “alguns defeitos morais”, como a mentira, a hipocrisia, a inveja, o sadismo). A descrição que faz de si mesmo se mostra nos moldes do monólogo interior. Esta e outras descrições breves se apresentam dentro da narração, ausente de diálogos. Somente uma personagem menor surge de inopino, apenas mencionada – a mãe –, que não passa de simples adereço, complemento necessário à narração. No centro da trama está o narrador, o protagonista perfeito, porque personagem único. O mesmo se dá em “Barriga de Pano”. O personagem fantasiado de Papai Noel narra a sua breve história de aposentado em busca de uns trocados, até furtar um par de tênis e ser conduzido à polícia. Em “Tiro Certeiro” Astolfo alcança ponto mais alto, em relação aos dois primeiros contos, na maneira de narrar. Um homem indignado com a realidade se faz justiceiro em sua própria casa, como se o mundo se resumisse a uma tela de televisão. Ao se servir de expressões como “acionar o gatilho”, “mirar o distintivo prateado”, “atingir indiscriminadamente quem aparecesse à tela”, dá a ideia de uso de arma de fogo. Entretanto, ao correr da história, o leitor perceberá que o jogo verbal do contista conduz a uma leitura mais larga, mais funda, mais vertical. O protagonista “elimina” mentalmente os políticos que aparecem na tela, como num desabafo. Seria um louco, um esquizofrênico a agir e falar, como se os “personagens” da televisão, as figuras em movimento na tela fossem reais. O personagem lembra aqueles que veem nos personagens de novelas televisivas pessoas de carne e osso.

            Poucas são as narrativas em que o ponto de vista é de narrador onisciente, como “Pequena História de Velhos”. Acompanham a narração a nomeação de móveis de uma casa: guarda-roupa, gancho da rede, lençóis, cadeiras, móveis do quarto, oratório. E nada de diálogo: “Há algum tempo, o ancião não discute mais. Perdeu o derradeiro fio de voz.” Em outro conto, “Teoria do equilibrista”, o foco narrativo se dá de duas maneiras, na terceira e na primeira pessoa. Naquela, a narração sai da pena ou da boca do escritor/narrador onisciente; nesta, constituída de falas, com travessão, o protagonista (o pai) se dirige a outro personagem (o filho), e este, em falas mais breves, ora contesta as lições do pai, ora lhe faz perguntas. No interior das falas mais longas, aqui e ali o narrador toma a palavra, como para quebrar a monotonia do diálogo. Semelhante a este conto, na forma, é “O Batom”, no qual médico e paciente conversam. A narração de pequenos incidentes é mero complemento da história lida nas falas dos personagens. Em outros contos se dá exatamente o inverso: a narração, mais longa, é intercalada de breves diálogos.

Em “O encontro” tudo gira em torno do tempo ou da psicologia do tempo. A imagem que o leitor vai formando é a de um homem desiludido com o tempo: “Até a comemoração dos meus aniversários esqueci.” Em “A carta”, desde os primeiros momentos o leitor é conduzido a ver na história em desenvolvimento a presença do ciúme: “o (envelope) farejei como se buscasse vestígios de um perfume.” Mais adiante outra pitada de ciúme: “Ela não tardaria em retornar de um tal curso que agora frequenta.” No final, o narrador confessa: “Antes que  o demônio do ciúme envenenasse de vez minha alma” (...).

                O choque entre personagens nem sempre significa conflito nos contos de Mão de Martelo, embora o leitor se prepare para um desenlace trágico. Leia-se “Escambo”, que pode ser visto como um conto fantástico. O narrador, cidadão urbano, depara um “desses povoados perdidos no meio do sertão” e, para espanto seu, encontra uma sociedade diferente da sua, espécie de sociedade alternativa, onde o escambo substituiu o comércio normal e, por consequência, tudo se transformou: a política, a religião, a segurança pública, a prática da educação e da saúde etc. Constituído de breves narrações e longo diálogo, esse conto pode ser visto como uma sátira. Essa singularidade pode ser encontrada também em “Meu tio Ambrósio e os poetas”, assim como em “Confissão”.

Ao término da leitura de Mão de martelo e outros contos, percebe-se em Astolfo Lima Sandy um contista “sisudo”, embora não lhe falte humor, aliado ao sarcasmo, dedicado a temas fundamentais da tragédia humana e voltado para a elaboração de narrativas em que as mais variadas técnicas se mesclem, dando origem a pequenas histórias simples, porém nada banais, e sem muitas arestas a serem aparadas.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Acruche Collection - Trova 17


Teófilo Braga (Contos Tradicionais do Povo Português) A Saia de Esquilhas

Recolhido no Algarve

Um homem rico tinha três filhas, e costumava ir passar o verão com elas para o campo; ao voltar para a corte ficou a filha mais velha, que era muito esperta, encarregada de arranjar a bagagem. Depois de ter tudo arrumado e pronto para partir, foi ter com a caseira da quinta, que andava no arranjo da sua casa. Em cima de uma caixa estava uma roca com estopa, e a menina pegou nela para se entreter:

– Menina, não pegue nessa roca; pode meter alguma pua pelas unhas, e olhe que faz grandes dores.

A velha continuou a governar a sua casa, quando sentiu um grito; veio ver o que era. Era a menina que tinha caído desmaiada, sem sentidos. Deu-lhe a cheirar alecrim, alfazema, mas ela não voltava a si. Apoquentada com aquela desgraça, escondeu a menina, e logo que anoiteceu foi deitá-la na tapada real; pôs-lhe uma almofada para recostar a cabeça e cobriu-a com uma manta, fingindo que estava ali a dormir. Passado outro dia foi lá ver se a menina teria dado acordo de si. Nada. Calou-se muito calada e voltou para sua casa.

O príncipe costumava sempre andar à caça, e num dia recolheu-se àquela tapada, porque lhe anoiteceu depressa; mas foi grande o seu espanto quando descobriu ali uma menina muito formosa, a dormir, sozinha. Esteve primeiro a olhar para ela muito tempo; já se sentia apaixonado, e quis acordá-la; ela estava corada e risonha, mas não se movia. O príncipe quis acordá-la porque bem conhecia que não estava morta, queria-lhe falar. Foi tudo impossível. Ali ficou junto dela, e todas as vezes que podia, fingia que ia para a caça, mas não fazia senão vir sentar-se para o pé da menina que ele já amava com loucura. Só o criado que o acompanhava é que sabia do segredo. O príncipe vinha à corte de fugida só quando era preciso, e tornava para a tapada, onde guardava a menina adormecida, que ainda assim veio a ter três filhos.

As crianças foram crescendo, e cada vez se tornavam mais encantadoras; mas o príncipe tinha uma grande pena da mãe estar naquele estado. Um dia andando um dos pequeninos a brincar em cima da cama, começou a pegar nas unhas da mãe, e por acaso, sem saber como, fez-lhe saltar da unha a pua que causara aquela doença. O príncipe, que estava ali, ficou maravilhado por vê-la mexer-se logo e começar a falar e a beijar os filhos, como se tivesse voltado à vida. O príncipe contou-lhe tudo como se tinha passado até ali, e disse-lhe que os seus três filhos se chamavam Cravo, Rosa e Jasmim. A rainha já andava desconfiada daquelas ausências do filho, e tratava de ver se descobria alguma coisa.

Uma ocasião o príncipe teve de ir a uma grande feira, e perguntou à sua namorada se queria que lhe trouxesse de lá alguma coisa; depois de muitas instâncias sempre disse:

– Pois traz-me de lá uma saia de esquilhas.
   
Não havia lá isso, mas o príncipe mandou-a fazer de propósito; era uma saia cheia de guizos, que tilintavam. A menina ficou muito contente com a lembrança. Mas a rainha que maquinava a sua vingança, e que pelo pajem que acompanhava o filho já sabia tudo, fez com que o príncipe se demorasse muitos dias na corte. O filho com medo do génio ruim da rainha não dizia nada, mas andava cheio de saudades; foi de uma vez que ela lhe ouviu um suspiro:

– Ai de mim

Cravo, Rosa e Jasmim.

Isto lhe confirmou a verdade; a rainha chamou o pajem e disse-lhe:

– Vai já, quando não mando-te matar, e traz-me aqui o menino Cravo. Diz lá à minha nora que é ordem do príncipe, que me contou tudo.

O pajem trouxe o menino; mas a velha rainha entregou-o à criada dizendo:

– Ensopa-me esse menino para o jantar.

Quando o filho estava jantando, e com fastio, porque andava muito triste, a mãe disse-lhe:

– Come, come, que teu é.

Passados dias a rainha deu ordem ao pajem para ir buscar a menina Rosa. Seguiram-se as mesmas coisas. Depois deu ordem para lhe trazer o menino Jasmim. O príncipe já andava doente, e a velha rainha, dizia-lhe sempre à mesa:

– Come, come, que teu é.

Por fim não contente ainda desta vingança, mandou dizer à nora, que viesse à corte, porque a queria casar com o seu filho. A menina que já andava morta de saudades, por se ver sem os seus filhos, vestiu-se à pressa com sua saia de esquilhas, e partiu para a corte. A rainha estava à espera dela e assim que a viu, deixou-a entrar para um corredor, e lançou-lhe as unhas furiosa para a afogar. A menina lutou para ver se lhe escapava, e quanto mais lutava, mais barulho fazia a saia de esquilhas.

O príncipe, que estava de cama, assim que ouviu aquele som lembrou-se de sua mulher e levantou-se para ir ver o que era. Viu a rainha querendo estrangular a nora. Chamou gente; e foi então que se soube das ordens que a rainha tinha dado para matarem os netos. O príncipe ainda ficou mais aflito e começou a gritar:

– Ai de mim
Cravo, Rosa e Jasmim!

Foi então que a criada da cozinha disse que não tinha cumprido as ordens da rainha, e que tinha escondido os meninos. A rainha foi condenada, e o pajem sentenciado à morte, e a cozinheira em paga foi feita dama da nova rainha.
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Notas Comparativas

O vestido com escamas de ouro com que a menina escapa à ferocidade da sogra é a Aurora depois que brilha vencendo a escuridade maligna da Noite. É um tipo geral deste ciclo novelesco.

No conto hindu intitulado Surya Bai, da coleção Old Deccan Days, de M.Frere, a menina fica com um sono letárgico por causa de um espinho, e é lançada num poço por outra mulher que a vê amada por um príncipe.

Sobre o caráter mítico deste conto pode aplicar-se a consideração de Husson sobre o citado conto hindu: «Temos nesta narrativa o novo exemplo do mito da mulher picada por um espinho ou por uma ponta aguda, e caindo em um sono letárgico de que é tirada por um príncipe amoroso.

Um outro mito se lhe sobrepõe, o de uma rival ou irmã ciosa, que personifica a hostilidade da escuridão contra a luz da primavera contra o inverno; e nesta fase de desenvolvimento novas peripécias se manifestam entre uma morte aparente e um regresso persistente à vida». (La chaine traditionnelle, p. 109).

Nos Contos populares portugueses, Lisboa, 1879, o conto XXXV, Os Sapatinhos Encantados versa sobre um sono letárgico com algumas relações no fim com o nosso.


Fonte:
Wikisource

Sonetos Satíricos I

Libreria Fogola Pisa
ÁLVARO ARMANDO 
Helena Ferraz de Abreu (Rio de Janeiro RJ 1906-1979) .

Herbert Moses

-
Pequenino. Apelidam-no "mosquito".
Não perde coquetel ou festa de arte.
Anda aos pulinhos, como periquito,
E pula, ao mesmo tempo, em toda parte!

Não há banquete em que, com qualquer fito
Ou sem nenhum, não diga o seu aparte.
E discursos faria, ao infinito,
Se um turista chegasse, lá de Marte!

Aos jornalistas tudo acerta, ajeita.
Se da ABI na doce presidência
Hábil e sutilmente se grudou,

A própria oposição bem o respeita,
Pois tem que se curvar ante a evidência:
Até o Getúlio foi e... ele ficou.

(Obs: ABI – Associação Brasileira de Imprensa)

ARTUR AZEVEDO 
(Artur Nabantino Gonçalves de Azevedo (São Luís MA 1855-1908)

Tertuliano, o paspalhão
 

-
Tertuliano, frívolo peralta,
Que foi um paspalhão desde fedelho,
Tipo incapaz de ouvir um bom conselho,
Tipo que, morto, não faria falta;

Lá um dia deixou de andar à malta
E, indo à casa do pai, honrado velho,
A sós na sala, diante de um espelho,
À própria imagem disse em voz bem alta:

— Tertuliano, és um rapaz formoso!
És simpático, és rico, és talentoso!
Que mais no mundo se te faz preciso?

Penetrando na sala, o pai sisudo,
Que por trás da cortina ouvira tudo,
Severamente respondeu: — Juízo!

PADRE CORREIA DE ALMEIDA

A Dança dos Partidos

 -
Os dous estragadíssimos partidos
Ocupam a seu turno a governança;
E nós imos vivendo da esperança
De ver os nossos males combatidos.

Os quinhões são de novo repartidos,
Toda vez que se dá qualquer mudança,
Se aquele outrora encheu, este enche a pança
E os clamores do povo são latidos.

Se as velhas leis têm sido violadas,
Estando nossas crenças abaladas,
Novas leis não darão melhores normas.

Palavras eu não sei se adubam sopa,
Mas a fala do trono é que não poupa
Reformas e reformas e reformas.

FRANCO DE SÁ
Joaquim Mariano Franco de Sá (Alcântara/MA – 1807 – 1851)

A Esbelta

-
A "Esbelta", o alvo dos suspiros nossos,
É fada vaporosa, é flor das flores;
Em vez de carne, vestem-na vapores,
É leve a rapariga, só tem ossos.

Os caniços do lago são mais grossos
Que as canelas gentis dos meus amores;
Tem nas lindas bochechas menos cores
Que a seca múmia quando sai dos fossos.

Ah! ditoso mancebo, eu te prometo
Que se hoje, noivo, trêmulo, desmaias,
Beijando a anágua que lhe encobre o espeto,

Talvez, quando marido, morto caias
Vendo surgir o pálido esqueleto
Da espessa nuvem de umas oito saias.

JOINVILE BARCELOS (RS)

Benedito Salgado

-
Vai às aulas e às feiras, lê, patina,
Namora, odeia os militares. Tersos
Os seus sonetos, nos jornais dispersos,
João dos Anzóis "pomposamente" assina.

Ama o truco, o bilhar, jogos diversos.
Ah! Viver no "xadrez" (que bela sina!!),
Tendo ao lado uma cândida menina,
Bons patins, bons autores e bons versos.

Vive alheio aos jurídicos assuntos.
Provas de exame nós "colamos" juntos,
Eis por que ainda não levamos pau.

Prega aos caloiros tímidos na Escola:
"Não tenham medo, aqui tudo se 'cola',
'Cola-se' até solenemente — o grau!"

MOACYR PIZA
Moacyr Toledo Piza (São Paulo, 1891 – 1923)

O Cartola

(a Cardoso de Almeida)

Pança, asneira, bazófia, parolice;
Parolice, bazófia, asneira, pança:
— Eis o que revelou desde criança,
E o que há de revelar até a velhice.

É um realejo, que jamais descansa,
A remoer sempre o que Leroy já disse.
Ninguém, a um tempo, faz tanta tolice;
Ninguém tanta tolice a um tempo avança!

Pingue de enxúndias mas de miolos pecos,
Lembra, na linha, o Conselheiro Acácio,
Superando, em idéias, cem Pachecos!

Nunca um raio de luz lhe entrou na bola.
Pensa o leitor que pinto algum pascácio?
— Engana-se, leitor, pinto o Cartola.

MÚCIO TEIXEIRA
Múcio Scevola Lopes Teixeira (Porto Alegre/RS, 1857 — 1926)

O Girafa

-
Borrar papel, Girafa!, é teu fadário,
Contra a honra de toda a gente séria;
Oh! alma pustulenta e deletéria...
Oh! ente nauseabundo e salafrário!

Ontem... entre os rebeldes, mercenário,
Hoje... parece mesmo uma pilhéria!
Qual vende o leito crapulosa Impéria,
A pena alugas por qualquer salário.

Jornaleiro metido a jornalista,
Dos vícios teus a criminosa lista
Verás aqui... e para além te empurro!

Por andares na berra, estás na barra;
Pois hoje a Musa em teu focinho escarra,
"Doutor na asneira, na ciência burro!"

ROCHA PITA
Sebastião da Rocha Pita (Salvador/BA, 1660 —1738)

Soneto da Desdentada

-
Pondero a emudecida formosura
De Fílis sem temer que impertinente
Possa no meu soneto meter dente
Pois carece de toda a dentadura.

Se por cobrir a falta esta escultura
Tão muda está que não parece gente,
Estátua de jardim será somente
Se de pano de rás não for figura.

O senhor secretário quer que a creia
Bela sem dentes, eu lho não concedo;
Desdentada é pior do que ser feia;

E em silêncio só pode causar medo,
Ser relógio de sol para uma aldeia,
Para um povo estafermo de segredo.

RUBENS PEDROSO (RS)

Toda e Qualquer Semelhança...


Descomunal, vastíssima senhora,
Imensamente gorda. Ela é feliz
Chacoalhando essa banha a toda hora,
Metendo em toda parte o seu nariz.

Mesmo gorda, é uma "fina" salafrária:
Sabe mentir como poucas ante um juiz.
E é cínica, é safada e ordinária,
E mais coisas, talvez... que não se diz.

Monumento de enxúndia e de rancor,
De veneno e maldade inchada está.
Não é mulher, é um monstro, é um horror.

E na cova, onde um dia ficará,
Até o mais faminto verme roedor
Sua gordura com nojo deixará.

TAPAJÓS GOMES
Manoel Tapajós Gomes (Belém/PA, 1884 – ?)

Amador Cobra

-
Este "enorme colega" (assim define-o
Outro colega, espirituosamente),
Não garanto, mas deve ser parente
Dalgum poste da Light, consangüíneo.

É professor e aluno juntamente,
Tem prática, traquejo, raciocínio,
E onde quer que ele esteja tem domínio
Só pela altura... que faz medo à gente.

É muito alto, demais, o nosso Cobra
E embora assim comprido, ele não dobra
Apesar, meus leitores, dos pesares...

Isto de altura é coisa que acontece,
Mas o Cobra, palavra que parece
Um sobrado de três ou quatro andares!

Fonte:
http://www.elsonfroes.com.br/sonetario/satirico.htm

Irmãos Grimm (A Parceria do Gato e o Rato)

Um gato tinha feito o conhecimento de um rato, e tinha dito que ele fez amor e amizade, enfim o rato concordou em casar com ele e viver juntos.

"Mas temos que pensar sobre o inverno, porque senão passam fome," disse o gato. "Tu, ratinho, não pode se aventurar em todos os lugares, finalmente pego em uma armadilha."

Seguindo, então, esse conselho pró-ativa, comprou um pote de manteiga. Mas então ele introduziu o problema de onde ele iria manter até que, após longa reflexão, o gato disse:

– "Olha, o melhor lugar é a igreja. Aqui ninguém se atreve a roubar nada. É sob o altar e não tocá-lo até que seja necessário.”

Então, o pote foi armazenado de forma segura. Mas o tempo não tinha passado muito quando, um dia, o gato parecia tentar o doce e disse ao rato

"Alô, Rato! Um primo meu me fez padrinho de seu filho que nasceu. Apenas um garotinho com manchas de pele branca marrom, e quer-me para levá-lo à pia batismal. Então, hoje eu tenho que sair, você cuida da casa.”

-" Muito bem", respondeu o rato, "Vai-te em nome de Deus, e se você receber algo bom para comer, lembre-se de mim. Eu também gostaria de beber um pouco de vinho do partido.”

Mas foi tudo mentira, é que o gato não tinha primo que lhe pediu para ser o padrinho. Ele foi direto para a igreja, rastejou até o pote de gordura, começou a lamber e lamber até a camada externa.

Em seguida, aproveitou a oportunidade para dar um passeio sobre os telhados da cidade, em seguida, colocar no sol, lambendo os bigodes sempre que ele se lembrava da panela de gordura. Não ia voltar para casa até escurecer.

– "Bem, você está de volta," disse o rato," certamente deve ter tido um bom dia."

- "Nada mal", respondeu o gato.

– "Qual o nome que eles deram à criança?," perguntou o rato.

— Em cima já era! disse o gato bem tranquilamente.

— Em cima já era?, gritou o rato, — esse é um nome muito original e incomum, ele é comum na sua família?

— O que significa isso? disse o gato, — não é pior do que Ladrão de migalhas, como chamam os seus afilhados.

Não passou muito tempo e o gato foi tomado por um outro acesso de saudade. Ele disse para o rato:

— Você precisa me fazer um favor, e mais uma vez administrar a casa sozinho por um dia. Fui novamente convidado para ser padrinho, e, como a criança tem um anel branco ao redor do pescoço, não posso recusar. O bom rato concordou, mas o gato subiu por trás das paredes da cidade e foi até a igreja, e devorou metade do pote de banha.

— Não há nada melhor do que algo que se guarda para si mesmo, disse ele, e estava muito satisfeito pelo seu dia de trabalho.

Quando ele chegou em casa o rato perguntou:

— E com que nome a criança foi batizada?

— Metade já foi, responde o gato.

— Metade já foi? O que você está dizendo? Nunca ouvi esse nome em minha vida, aposto qualquer coisa que ele não está no calendário!

A boca do gato logo começou a verter água por mais algumas lambidas.

— Todas as coisas boas acontecem três vezes, disse ele, — fui convidado para ser novamente padrinho. A criança é bem negra, tem apenas as patas branquinhas, mas só essa diferença, ela não tem um único pelo branco em todo o corpo, e isso acontece apenas uma vez todos os anos, você vai me deixar ir, não vai?

— Em cima já era!, Metade já foi! Respondeu o rato, — esses são nomes estranhos, e me fazem ficar preocupado.

— Você fica em casa, disse o gato, — com seu fraque de pele cinza escuro e de cauda longa, e fica imaginando coisas, é por isso que você não sai durante o dia. Durante a ausência do gato o rato limpou a casa, e colocou tudo em ordem, mas o gato guloso esvaziou totalmente o pote de banha.
   
— Quando tudo tiver acabado eu vou conseguir sossegar um pouco, disse para si mesmo, e bem alimentado e gordo ele não voltou para casa até o anoitecer. O rato de imediato perguntou qual era o nome que haviam dado para a terceira criança.

— Ele não vai lhe agradar mais do que os outros, disse o gato.

— Ele se chama Acabou tudo.

— Acabou tudo? gritou o rato, — esse é o nome mais bizarro que eu já vi! Nunca vi esse nome nem impresso. Acabou tudo, o que isso pode significar? E ele balançou a cabeça, se enrolou todo, e deitou para dormir.

Desse dia em diante ninguém convidou o gato para ser padrinho, mas quando o inverno chegou e não havia mais comida fora para comer, o rato se lembrou do que tinham guardado, e disse:

— Venha aqui, gatinho, iremos até o nosso pote de banha que nós guardamos em caso de emergência — e vamos nos deliciar com ele.

— Sim, respondeu o gato, — você irá se deliciar assim como você se delicia colocando a sua língua delicada para fora da janela. Saíram em seguida, mas quando chegaram, o pote de banha certamente ainda estava no lugar, mas estava vazio.

— Meu Deus, disse o rato, — agora estou vendo o que aconteceu, agora tudo ficou bem claro! Você sim é um verdadeiro amigo! Você devorou todo ele quando você foi convidado para ser padrinho. Em cima já era, depois Metade já foi e depois...

— Quer segurar a sua língua, gritou o gato, — nem mais uma palavra, ou eu comerei você também.

- "Foi," já estava na boca do rato pobre. Ele não podia suportar a palavra, e não foi mal lançado, o gato saltou sobre ele, agarrou-o, engoliu todinho.

Assim são as coisas deste mundo.

Fonte:
http://pt.wikisource.org/wiki/Contos_de_Grimm/O_gato_e_o_rato

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 29 – 27 de setembro de 1887

A semana que há passado...
Deixe leitor que me escuse,
E de um falar tão usado
Abuse também, abuse.

Há passado, hão carcomido...
Hão, hão, hão, hão posto em tudo,
Hão, hão, hão, hão recolhido...
Estilo de tartamudo.

Ai, gosto! ai, cultura! ai, gosto!
Demos um jeito e outro jeito:
Venha dispor e há disposto
Venha dispor e há desfeito.

Mas usar de uma maneira
Até reduzi-la ao fio,
Não é estilo, é canseira;
Não dá sabor, dá fastio.

Porém... Já me não recordo
Do que ia dizer. Diabo!
Naveguei para bombordo,
E fui esbarrar a um cabo.

Outro rumo... Ah! sim; falava
Da outra semana. Cheia
Esteve de gente escrava,
Desde o almoço até a ceia.

Projetos e mais projetos,
Planos atrás de outros planos,
Indiretos e diretos,
Dois anos ou cinco anos.

Fundo, depreciamento,
Liberdade nua e crua;
Era o assunto do momento,
No bond, em casa, na rua.

Pois se os próprios advogados
(E quem mais que eles?) tiveram
Debates acalorados
No Instituto, em que nos deram

Uma questão — se, fundado
Este regime presente,
Pode ser considerado
O escravo inda escravo ou gente.

Digo mal: — inda é cativo
Ou statu liber? Qual seja
Correu lá debate vivo,
Melhor dizemos peleja.

Mas peleja de armas finas,
Sem deixar ninguém molesto:
Nem facas, nem colubrinas,
Digesto contra Digesto.

Uns acham que é este o caso
Do statu liber. Havendo
Condição marcada ou prazo,
Não há mais o nome horrendo.

Outros, que não são sujeitos
Ferozes nem sanguinários,
Combatem esses efeitos
Com argumentos contrários.

Eu, que suponho acertado,
Sempre nos casos como esses,
Indagar do interessado
Onde acha os seus interesses,

Chamei cá do meu poleiro
Um preto que ia passando,
Carregando um tabuleiro,
Carregando e apregoando.

E disse-lhe: “Pai Silvério,
Guarda as alfaces e as couves;
Tenho negócio mais sério,
Quero que m'o expliques. Ouves?”

Contei-lhe em palavras lisas,
Quais as teses do Instituto,
Opiniões e divisas.
Que há de responder-me o bruto?

— “Meu senhor, eu, entra ano,
Sai ano, trabalho nisto;
Há muito senhor humano,
Mas o meu é nunca visto.

“Pancada, quando não vendo,
Pancada que dói, que arde;
Se vendo o que ando vendendo,
Pancada, por chegar tarde.

“Dia santo nem domingo
Não tenho. Comida pouca:
Pires de feijão, e um pingo
De café, que molha a boca.

“Por isso, digo ao perfeito
Instituto, grande e bravo:
Tu falou muito direito,
Tu tá livre, eu fico escravo “.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Pedro Salgueiro (Aleine)

O caso se deu na época em que eu buscava desesperadamente Aleine. Desde o início da tarde haviam me expulsado, pois cometi a imprudência de perguntar por ela. Fui abandonado numa passagem de nível, quando o trem diminui a marcha, logo após aquele aguaceiro de fins de maio. Vaguei pela linha férrea, na esperança de escutar algum apito ou sentir qualquer chacoalhar nos trilhos; enfim desisti e tomei certo caminho secundário que descia rumo a um imenso vale — bem ao longe uma cordilheira azulzinha quase se confundia com a linha do horizonte. Demorei a encontrar sinal de vida, apurando o ouvido ao mínimo indício de vento; de vez em quando, esfriava a cabeça com água de um córrego ou subia numa pedra para buscar qualquer povoação.

Já no final da tarde distingui, de cima de um carvalho, a fumaça de uma chaminé — andei mais alguns quilômetros para avistar a torre de uma igreja. Apressei o passo, querendo chegar no começo da noite — planejava misturar-me com algumas vacas que seguiam na direção do vilarejo. Encontrava-me na entrada quando notei a placa de advertência: “Estamos de mudança”. Tudo tinha sido tão estranho — desde que fui obrigado a descer daquele trem — que não me dei conta do absurdo da situação: eu, procurando minha mulher que havia sumido misteriosamente, fui me deparar com um lugarejo perdido, e logo na entrada era recebido por tal advertência.

Esqueci pela primeira vez Aleine e perambulei por ruas escuras, apenas iluminadas com raros lampiões dependurados em árvores no meio da rua. Esgueirava-me pelas sombras dos muros, evitando assim a claridade — com medo de ser reconhecido (o que, hoje lembrando, seria mais um absurdo em meio a tantos: pois como poderiam me reconhecer se nunca eu havia andado por aquelas paragens, tão ermas e distantes da cidade em que nasci!?). Pareciam não me notar, apenas ficavam mais sérios — cerravam os olhos e carregavam o semblante, como certos pais ainda hoje fazem para repreender os filhos pequenos quando eles cometem qualquer danação. Paravam a conversa no meio, interrompiam jogos de cartas, mudavam de calçada ao ter de cruzar comigo — não se dirigiam a mim, é verdade, mas eu sentia neles um certo medo, um vago receio da minha presença. Subi em uma grande árvore para passar a noite — não me arriscava a dormir desprotegido em qualquer banco da praça. Não conseguia pregar olhos, o medo e a excitação dos últimos dias mexeram com meus nervos — e as noites não me permitiam um minuto de descanso. Aproveitei a calma da madrugada para pensar em Aleine, e já sonhava com um novo encontro quando ouvi vozes distantes: confabulavam, discutindo não sei que assunto, pois o vento de vez em quando mudava de direção para em seguida trazer novamente os sussurros; trepei num galho mais alto da árvore e então pude avistar ao longe uma pequena assembleia. Juntavam galhos, acendiam tochas (em quase todas as casas, sinais de mudança: malas nas calçadas, carroças sendo cobertas, mulheres ajeitando as crianças) — formavam uma enorme fogueira, enquanto discutiam apontando em várias direções.

De repente um medo tomou conta de mim, as pernas tremiam, o suor cobrindo meu corpo inteirinho: pensei rápido, um desespero invadindo meus pensamentos; saltei ligeiro da árvore e disparei na mais apressada carreira de que minhas pernas foram capazes, no rumo oposto ao da claridade. Corri a madrugada inteira, subi e desci serras, encontrei nova estrada — sempre me afastando.

Hoje não me arrisco a perguntar por Aleine, apenas observo disfarçadamente os rostos femininos em meio à multidão. Não olho muito para não despertar suspeitas, pois sei que — enquanto eu a procuro — muitos fariam de tudo para me impedir de chegar a ela.

(Pedro Salgueiro, Inimigos)

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Pedro Salgueiro

Pedro Rodrigues Salgueiro (Tamboril, 1964) tem editados os livros de contos O Peso do Morto (1995), O Espantalho (1996), Brincar Com Armas (2000), Dos Valores Do Inimigo (2005) e Inimigos (2007), além de Fortaleza Voadora (2006), de crônicas. Premiado diversas vezes: Prêmio de Contos da Biblioteca Nacional para obras em curso, 1997; Osmundo Pontes de Literatura, 1997; Radio France Internationale (Concurso Guimarães Rosa de Literatura, 1999), e muitos outros. Participa de algumas coletâneas, como Antologia Literária da UECE (1996); Talento Cearense em Contos (1996); Geração 90: Manuscrito de Computador – Org. Nélson de Oliveira (2001); Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século – Org. Marcelino Freire (2004); Contos Cruéis: As narrativas mais violentas da literatura brasileira contemporânea – Org. Rinaldo de Fernandes (2006); e Quartas Histórias: Contos baseados em Narrativas de Guimarães Rosa, 2006). Organizou, em parceria, o Almanaque de Contos Cearenses (1997). Editor, com Jorge Pieiro, da revista Caos Portátil: Um Almanaque de Contos. Uma antologia de seus contos, Dos Valores do Inimigo, foi indicada pela Universidade Federal do Ceará para o vestibular em 2005 e 2006. Tem inéditos Inimigos (Premiado pelo I Edital de Literatura da Fundação Cultural de Fortaleza (2006) e Movimento Esperado.

Com o volume de contos Brincar Com Armas, assume Pedro Salgueiro lugar de destaque no conto cearense, embora O Peso do Morto e O Espantalho já tivessem merecido elogios de críticos do Ceará e do Brasil. Dividida em dois “livros”, o primeiro em seis partes, cada uma com quatro histórias, a obra apresenta unidade temática, de ambiente e de linguagem. Talvez seja equivocada a ideia de unidade temática em livro de contos. Apesar disso, pode-se ver neste terceiro compêndio de narrativas curtas de Pedro Salgueiro como temas primários a morte, a trama da morte, a proximidade da morte (a velhice, por exemplo), o medo da morte e o destino. A morte e as manifestações dela emanadas, como o medo, a paranoia, ou seus motivos, como a vingança. Em “A Volta” o protagonista “sabia que um dia eles o pegariam”. Eis nestas palavras o núcleo da narrativa: a morte, o destino, “o desfecho de tudo”. E a desgraça de fato aconteceu. O homem volta à cidade para morrer, para cumprir o seu destino. Por isso, nem “se assustou quando ouviu o primeiro estampido”. É o Destino das tragédias gregas, de Sófocles. Tinha de acontecer. O narrador-protagonista de “O Olhar” narra uma vingança: tarde morta, com gritos de crianças vindos de bairros distantes, a chegada de trem. Da janela da hospedaria avista a esquina da farmácia. As facadas e o olhar do morto. Em “O Pânico”, narrado na primeira pessoa do feminino, por uma repórter, mais uma vez a morte é o motivo da história, é o próprio enredo. Cenas rápidas de filme, em tempo breve, alguns minutos. O oposto de “Coronel, Coronel”, no qual se observa um drama interminável, uma situação de conflito duradouro e não uma só ação. A loucura instalada na vida de um antigo militar, a quem a meninada das ruas achincalhava aos gritos de “Coronel, coronel, cabeça de pastel”. Alguns contos tratam exatamente da velhice, da caduquice, da solidão dos idosos. Como a de Olga, em “Soluço antigo”. Os velhos são sempre abjetos, como em “Ausência”. Solitário, o velho já não podia dividir com a esposa a sombra do benjamim na calçada, nem o quarto do casal e muito menos espantar os meninos que roubavam goiabas no quintal. Tudo é passado: o tabuleiro de damas, o almanaque velho, as cadeiras de balanço, a caneca de alumínio no beiço do pote, o velho penico de ágata. Tudo é apenas solidão e velhice.

            O enredo de algumas histórias é subliminar, escondido, envolto numa espécie de casca, numa aura de mistério. Em “O Sobrado” o leitor se vê diante do inexplicável, para a ciência e para a fé: uma criança, um bebê, se assusta sem motivo aparente, ao ser conduzida por certa rua. Suas reações estranhas, de choro imotivado, são o ponto de partida da narrativa. Ao final sabe o leitor de uma tragédia ocorrida há tempos: um avô havia caído de uma janela naquela rua. No entanto, mesmo depois de “descoberto” o motivo do susto do bebê ainda se ouvia um choro baixo de criança. Igualmente estranha é “Na Estrada”. Às vezes não se trata exatamente do “estranho”, de que fala Todorov, porém do não-explícito, como no final de “No Carnaval”. Em outras páginas do livro se pode ler uma crônica do patético e do humorístico, como em “A Catraca”.

Exceção feita a alguns contos “policiais” ou de acidentes fatais, como “O Pânico”, “A Rosa Encarnada” e o que dá título ao volume, mais urbanos, o ambiente das narrativas de Brincar Com Armas é quase sempre o “lugarejo” do sertão, a pequena cidade e seus arredores, poucas vezes nomeado, a não a mítica Papaconha, do Livro Segundo. Gumercindo Freire, o protagonista de “A Volta”, entrava pela rua principal de uma cidadezinha. No seu passeio em busca do passado (ou do destino), avista a praça vazia, um benjamim, as calçadas. Caminhava para o desfecho de sua história. Há toda uma descrição-narração do trajeto do personagem, desde o trem, quando avistou os primeiros telhados pela janela do trem.

 Em quase todos os contos há uma rua empoeirada e deserta, a bandinha, a festa do padroeiro, um galo a cantar, a copa de um benjamim, o mercado, a mercearia, a torre da igreja vista da janela do trem, a estação, a calçada, lamparinas de querosene nas casas, uma bodega no final da rua, o cajueiro torto no meio da praça. O velho militar de “Coronel, Coronel” saía para a calçada para enxotar os moleques. Fazem parte deste cenário todo um passado sertanejo: o leite mugido, o açude, as mudas de roupa, as cangalhas e jiraus do alpendre, a trave da janela, a cacimba, a lua da sela do cavalo.

            No Livro Segundo, que se pode chamar do “ciclo Papaconha”, todo narrado em primeira pessoa, as narrativas estão ambientadas num fim de mundo, num sovaco de serra, na mata, num lugarejo escondido no sopé de uma serra, numa cidadezinha insignificante. Embora sejam diversos os narradores, ao leitor parece estar diante de um só narrador épico. Os contos, mesmo se lidos fora da ordem no livro, são como capítulos de romance.

            Um dos narradores estocou armas, montou um observatório. Outro cavou trincheiras no jardim, um túnel, à espera do inimigo. Na verdade, um inimigo imaginário, lendário. “O inimigo imaginário que aguardavam desde o começo dos tempos”, e que “jamais viria, pois ele estava dentro deles mesmos, em seus medos”. Tudo obsessão, como se vê na narração de três semanas de busca da verdade sobre o desvio da linha férrea. Minuciosa busca em antigos papéis na prefeitura (“O Trem”). A busca dos inimigos do passado. Para tanto, o personagem escreveu Os Cadernos da Papaconha. Um “lunático daqui” montou um observatório e havia mais de três anos observava o suposto inimigo. Havia anos planejava novas estratégias. Em “Os Prisioneiros” o narrador vê espiões nos vagabundos, que são presos e açoitados com galhos de urtiga. Como se vê, os personagens-narradores quase sempre se julgam lúcidos, em busca da verdade, enquanto para eles os outros são doidos, lunáticos. Na verdade, são todos loucos ou narram como se loucos fossem. Em “O Batedor” o narrador reconhece que “estava perdendo o juízo”. São todos paranoicos. O título geral, se se tratasse de um romance, até poderia ser “Homens Assustados” ou “O Paranoico” ou simplesmente “Paranoia”.

            Pode-se ver a raiz destas histórias numa espécie de síntese, como se fosse um apontamento do próprio contista, na página 168: “Transcrevi alguns dos fatos com minha letra para que não fossem totalmente destruídos pelo tempo; também havia histórias incompletas que busquei completar com outros achados mais ou menos coincidentes em assunto, grafia e até na maneira de contar, depois costuradas para parecerem uma sequência; na verdade eram descontínuas e retratavam várias versões do mesmo problema, pois, pelo que tudo indicava, foram muitos os indivíduos que se ocuparam em registrar falatórios, lendas e fofocas a cerca do ocorrido (se é que um dia realmente aconteceu algo)”.

            E a aldeia móvel? Em “Os Loucos da Papaconha” os habitantes “arrastam” a aldeia no rumo dos povoados. Como o faziam os índios brasileiros, em fuga ou em busca de lugares mais seguros, mais propícios à vida. Ou em busca do paraíso, da terra-sem-mal. No entanto, em que tempo viviam esses personagens das histórias de Pedro Salgueiro? Possivelmente no início do século XX, pois alguns deles seguiram o bando de Lampião. No entanto, na maior parte do livro não se vislumbra nenhum indício de tempo histórico. Seria, então, um tempo mítico, lendário, não real, o tempo da espera do inimigo que costumava ser confundido com mendigos e até ciganos. Todo estranho na cidade poderia ser um espião. A desconfiança, o medo, a paranoia estão presentes em todos os narradores.

Os contos de Brincar Com Armas são narrados ora na primeira, ora na terceira pessoa, quer seja ela testemunha, quer narrador onisciente ou escondido. Os diálogos são exceções, como em “Na Estrada”, no qual se encontram diálogos internos dentro da narração. Em “A Culpa” há até uma explicação para a ausência de diálogos. “Os dois não se falavam desde o triste dia: ele com suas dores e seus cabelos brancos; ela com suas vergonhas, suas culpas. Calaram-se, como se houvessem compreendido a inutilidade das palavras, o quanto elas poderiam agravar tudo aquilo”. Por isso, o silêncio dos personagens dentro de casa, na amplidão da casa, sempre a vagar (o rapaz) pela casa noite adentro.

                A linguagem é a da narração espontânea, sem rodeios, objetiva, seja na primeira, seja na terceira pessoa, sem descrições longas e enfadonhas e sem aqueles tradicionais e vulgares diálogos diretos, tão frequentes na literatura regionalista ou regionalizada de alguns prosadores.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

domingo, 26 de janeiro de 2014

Carolina Ramos (Delimitando Santos)



Formatação do poema sobre:
Pintura a óleo sobre tela, por Linaldo Cardoso. Barco de pesca na Ponta da Praia/Santos
A concha é Cidade de Santos, em 1888, por Benedito Calixto.
 
Fontes:
Artmajeur (tela de Linaldo Cardoso)
Museu Benedito Calixto
Carolina Ramos. Destino: poesias. SP: EditorAção, 2011.

Carolina Ramos (Crônica Poética à Cidade Amada: SANTOS – Terra da Liberdade e da Caridade)

 Vem, forasteiro! Desce comigo a Serra. Olha lá para baixo. Não...não é miragem! Há de fato, uma linda cidade escondida por detrás da neblina. A minha cidade! E com que orgulho digo que esta cidade, que é minha, é também encantamento, história e tradição!

Um dos mais importantes pedaços do nosso Brasil! Por que? A ti, que vens de fora, evito falar dos seus encantos. Hás de travar contato com eles, daqui a um nada!

Disse-te que a minha cidade é História. Sim, foi lá que muita coisa começou! Muita coisa de suma relevância para o destino da nacionalidade.  Para  o meu...e para o teu destino!

Minha terra natal tem sangue índio – Enguaguaçu era chamada, antes que lhe dessem o nome protetor de Todos os Santos. Por fim, sei que adivinhaste, chamaram-na simplesmente Santos – A Princesa do Mar! Desse mar que se amansa e que lhe beija os pés de areia, cobrindo-os de rendas, enciumado do abraço do sol e de seu carinho ardente!

Santos! Berço augusto de tanta gente ilustre! Não, não citarei nomes, cujo rol transcende os limites desta folha. Filhos insignes que carregam consigo a nobreza do berço!

Ninho de poesia, minha Santos gerou poetas da mais alta inspiração! Que menos não lhe permitiria o festival de mago encantamento que musa lhes oferecia.

Ah! As auroras rosadas desta linda Santos, prenúncio dos mais cálidos e luminosos dias! E os crepúsculos incomparáveis?! E as noites?! Veludosas noites refulgentes de jóias! Noites feitas para os idílios, para os sonhos! Noites feitas para o amor!

Santos! Terra excelsa dos Andradas! Que fidalgo lugar te reservam os anais da História! Basta lembrar que em teu seio germinou a semente da liberdade, cujo grito eclodiu à beira do Ipiranga e o eco estendeu aos quatro cantos do nosso imenso Brasil! Santos abolicionista, empenhada em quebrar algemas e a secar o pranto de uma raça valorosa e sofrida!

“Porta aberta para o mar...” Braços amplos, escancaradamente abertos a quantos adentrem seus limites, em busca de abrigo ou, simplesmente descontração, nas horas preguiçosas que o leito morno e amplo de suas praias lhes oferece. Lá no alto, a Senhora do Monte Serrat abençoa a paisagem, emoldurada de jardins floridos, e abençoa também a todos que desfrutam dessas benesses e as respeitam.

O porto de Santos? Turbulento, embora, é, nada mais, nada menos, que o primeiro e maior porto da América Latina! Onde  navios encostam seus cansaços, após a faina incessante de transportar sonhos que alimentam esperanças de um povo raçudo e laborioso, de alma sempre empenhada em vencer.

 Nosso brasão, afirma convicto: “Á Pátria ensinei Caridade e Liberdade”.

Pode haver mais nobre lema, para pautar a conduta dos filhos desta terra privilegiada e muito especial?!

Fecha os olhos, forasteiro... Fecha os olhos a tudo que te pareça de algum modo negativo. Perfeito mesmo, só Deus! E, entre Deus e os admiráveis encantos que nos legou, impossível evitar a ação de criaturas, por Ele mesmo criadas, nem sempre corretas, nem sempre santistas e não raro, nefastas. Esquece-as, por favor! É assim em qualquer canto da terra!

            Creio que basta, Se abusei das exclamações admirativas, perdoa-me, também.  Hás de convir, leitor amigo, que não poderia ser diferente. E não me chames de piegas, peço-te. O excesso de amor pode, sim, conduzir a pieguismos, mas, põe-te no meu lugar. Farias certamente o mesmo! Duvidas? Então vem comigo. Desçamos a Serra juntos. Terás certeza de que não exagero.

            Minha Santos  pode não ser a “ Cidade Maravilhosa”, contudo, que maravilhosa cidade é a minha Santos! 

            Vem!... Mas... pisa com respeito este chão santista! E, principalmente, pisa com muito ... muito Amor!

 Vem!...
 
(Santos -  468 anos)
 
Fonte:
Cronica enviada pela autora
Imagem = http://www.issoesantos.com.br

Marcial Salaverry (Jardins de Santos)

Jardins da praia de Santos...
Por vezes o homem colabora com a Natureza,
aumentando a natural beleza...
Pelos jardins santistas passeando,
a beleza dos gramados admirando,
o incrível colorido das flores apreciando...
As fontes... os repuxos d’água... induzem a meditar...
Existem locais para dançar...
Bucólicos recantos, convidam a namorar...
Locais para entretenimento,
fazendo a felicidade
para as crianças de qualquer idade...
Seus playgrounds com brinquedos,
recebendo as crianças em seus folguedos...
As mesas para jogos mais avançados,
para alegria dos aposentados...
Pelos jardins de Santos passear,
é algo para o turista sempre relembrar...
Em seus bancos sentar...
Não apenas para descansar,
mas para o misterioso mar apreciar...
As garças... gaivotas... em seu lindo voar...
O por do sol aguardar,
para os olhos deliciar ...
E também para namorar...
O fim da tarde... induz ao romance...
Jardins de praia de Santos...
Não é atoa que são chamados,
tidos e havidos como os maiores
e mais belos do mundo...
Viver em Santos...
Estar em Santos...
Sempre será um privilégio…

Eunice Tomé (Canais de Santos – Nossas referências)

 Praia José Menino - 1902
Pintura de Benedito Calixto.
Todas as cidades têm seus ícones. Entre os vários marcos que Santos possui, sem dúvida alguma, os canais são os mais referenciais. São como colunas vertebrais que sustentam a parte física de seu traçado, vindas de dentro para fora, do centro para a orla.

Engendrado o projeto pelo engenheiro sanitarista Saturnino de Brito, solução para o fluxo de águas servidas, seu criador nem imaginava que, por outro lado, suas funções seriam ampliadas como outros meios: de comunicação, de marco simbólico, de brincadeiras e de visual urbanístico.

Vale a pena trabalhar com essa idéia e pensar a obra com olhos poéticos e saudosistas. Quem foi criança em tempos idos, teve, principalmente os meninos, a oportunidade de pegar peixinhos no interior dos canais, pular de um lado para outro e de se perder na longitude de suas águas que avançavam para o mar em dias de maré cheia e de chuva. Esse é um dos registros memoráveis de uma geração inteira, que fugia aos olhos da mãe e, curtindo a liberdade, entrava naquele espaço de prazeres sem fim, inclusive viajando nos barquinhos de papel que chegavam até a barra e atingiam os oceanos.

Na fase juvenil, as beiras ou pontes do canal eram os pontos de encontro dos garotos, que sentavam nas grades para jogar conversa fora e trocar as suas experiências de descobertas de um mundo novo. Era como um santuário, onde eles confessavam que já eram homens adultos, com todos os hormônios a aflorar. Nem tudo era pureza, mas comparando com o momento atual, sem dúvida, eram sacanagens permitidas.

Como marco de comunicação, os santistas costumam dizer que moram no canal 1, 2, 3..., quando na verdade residem em ruas próximas, transversais ou paralelas aos canais. É uma forma de situar, como se dissessem o nome do bairro ou da região. Isso também acontece com os turistas que pouco conhecem o desenho do município, mas acabam por localizar-se pelos canais que cortam toda a avenida da praia.

A sua numeração define ainda, em seu entorno, alguns points marcantes e conhecidos de todos e acabam por ser referências de baladas, de esportes, lazer, ginástica, gastronomia e, bem recentemente, de passeios ciclísticos. Turmas e grupos de jovens também são denominados e conhecidos por esses marcos simbólicos, às vezes havendo até disputa entre eles.

Embora todos os sete canais (sem contar alguns menores que deságuam nos principais) tenham semelhanças em seu visual, cada qual conta com suas diferenças – um tipo de árvore que o ladeia (os jamboleiros do canal 3), uma altura maior mais, uma abertura mais ampla, maior ou menor quantidade de pontes para pedestres e veículos, que cruzam de um lado a outro, e outros tantos detalhes característicos. Todos com sua personalidade própria, completamente integrados ao aspecto urbano.

Os moradores mais velhos, aqueles que têm tempo de refletir sobre a vida e seus enigmas, param para olhar aquelas águas passadas e que, repetidamente, chegam ao mar, em fluxos e refluxos, levando não só dejetos, mas tantos sonhos, lembranças e alegrias. É como um ritual de passagem, onde pela canalização fossem ocorrendo fenômenos de purificação e renovação.

Tudo vai mudando, inclusive as gerações. Só os canais ficam como personagens oculares e guardiões da cidade, nesses cem anos de existência. Seus traçados, como vimos, são mais que marcos físicos. São como veias que singram o corpo e a alma dos santistas.

Fonte:
http://www.geocities.ws/maniadeler_1/cronicas.html

Diego Galluzzi (Poema para Minha Cidade)

Porto de Santos 1888. Pintura de Benedito Calixto
Aquela pequena porção de água
Que contornava a orla e cobria a areia
Trazia junto de mim e a beira de ti
Aquele segundo de canção eterna
A melodia da minha vida inteira
Dizia no instante que eras única ali
Aqui, ali, somos!

E até hoje Santos, eu não sabia...
Que tu me dizias tanto!

Do último andar das tuas pedras
Ergue-se os teus últimos olhos
Colados no papagaio que sobe
E nessa passagem eu sinto
Que tu passas dentro de mim
O sol se põe e apareço crescendo
Nas fotos dos teus jardins...

Ah Santos, como é bom
Ser pouco diante de tanto!

Se é desse chão que a poesia brota
Nos teus canais e abraços ao mundo
Como brilha o Sol nos orvalhos de tua manhã
Sobre os senhores e as senhoras do teu coração
A palavra só, a ti não comporta
Mas lança uma flecha para o amanhã
Assim, por aqui te vejo, cresço e me lanço...

Por que Santos...
Não te amar tanto?

Fonte:
http://praladomundo.blogspot.com.br/2008/01/poema-para-minha-cidade.html

Marcial Salaverry (Orquidario Municipal)

Santos... cidade charmosa e gostosa...
Além de suas praias... seus jardins,
em prosa e verso cantados...
Encontramos um lindo local...
O Orquidário Municipal...
Em suas aléias passear,
para poder apreciar
o que tem a Natureza,
em sua total beleza,
para nos mostrar...
Árvores frondosas... centenárias...
Animais de origens várias...
Tucanos coloridos... voam atrevidos...
Temos o dourado mico leão ...
que se livrou da extinção...
gansos... marrecos... cisnes...
peixes multicores...
Os macacos brincalhões,
sempre conquistam corações...
Ah!!! As exposições de orquídeas...
Em suas formas e cores extasiantes...
Verdadeiros encantos fascinantes...
O Orquidário Municipal conhecer...
É com a Natureza conviver...
É mais feliz o dia ter...
Não podemos nos esquecer,
de que é necessário a Natureza amar...
E no Orquidário passear...
É esses laços de amizade estreitar…

Cora Coralina (Cidade de Santos)

Pintura de Benedito Calixto
Sombras de Martim Afonso.
Brás Cubas, Navarro, Anchieta.
Mangue pestilento.
Tabas do íncola bravio.
Brasil novo, minha gente.

Revivo os dias do Brasil passado,
nestas praias de Santos,
batidas de sol e beijadas pelo Atlântico.

Evocação do burgo, inicial e rude.
Uma coroa de terra, ressaindo do escuro charco,
cerrada de morros inóspitos, agressivos.
Pântano, mangue, praias submersas, o lagamar.

A bota ferrada do conquistador
avança imperativa e audaz.
Na baliza do trabuco alçado
a planta firme do negro,
os artelhos ágeis e sutis do índio.
Apontando o mostrador do Tempo.
Traçando rumos à História do futuro,
os vultos austeros de Nóbrega,
José de Paiva, Anchieta.

O descobridor valente avança destemido.
Vence Paranapiacaba e, alargando trilhas,
sobe lentamente, decidido.
Conquista a serrania imensa.
Firma-se no Planalto,
e gesta Piratininga.

Revejo os dias do Brasil passado
nesta cidade autêntica no estilo lusitano.
Nestas velhas igrejas de barroco original.
Nestas ruas estreitas, desiguais.
Nestas frentes vestidas de azulejos.
Nos portais de pedra destas casas de beirais.

Revivo as eras do Brasil primevo
nestas ruas de Santos, de nomes legendários:
Manoel da Nóbrega, Brás Cubas,
Fernão Dias, Tibiriça, Anchieta.
Escola de Sagres... Caravelas e veleiros.
Naus do descobrimento.
Mestres marinheiros,
reis dos mares oceanos.Marujos e gajeiros.
Velho Portugal de meus avós.
Rudo tronco ancestral, genealólico.
Minas e bandeiras, cidades e forais.
Unidade de raça, de língua, de ética, de costumes.

Heredos e atavismos, nômades e sedentários...
Assimilação e repulsa.
Afro, luso, ameríndio.
Tateio entre as raças donde provenho
para o desconhecido dos destinos.

Combatendo a mim própria,
procuro conjugar estranha sensação
de ser e de não ser...
Afro, lusitano e bugre
- sou a herança hesitante de vós três.
Praias de Santos...
Íncolas e lusos.
Fidalgos e plebeus.
Negros da Costa d'África.
Piratas e salteadores.
Traficantes e bastardos.
Frades e judeus
pisaram estas areias
e se acoitaram nestes recantos.

Imagem:
Braz Cubas lê o foral de vila, documento régio que eleva Santos à categoria de vila.

sábado, 25 de janeiro de 2014

Teófilo Braga (Contos Tradicionais do Povo Português) O Surrão

Recolhido no Algarve

Era uma vez uma pobre viúva, que tinha só uma filha que nunca saía da sua beira; outras raparigas da vizinhança foram-lhe pedir, que na véspera de S. João deixasse ir a sua filha com elas para se banharem no rio. A rapariga foi com o rancho; antes de se meterem no banho, disse-lhe uma amiga:

– Tira os teus brincos e põe-os em cima duma pedra, porque te podem cair na água.

Assim fez; quando estavam a brincar na água passou um velho, e vendo os brincos em cima de uma pedra, pegou neles e deitou-os para dentro do surrão.

A rapariga ficou muito aflita quando viu aquilo, e correu atrás do velho que já ia longe. O velho disse-lhe que entregava os brincos, com tanto que ela os fosse buscar dentro ao surrão. A rapariga foi procurar os brincos, e o velho fechou o surrão, com ela dentro, botou-o às costas e foi-se de vez. Quando as outras moças apareceram sem a sua companheira, a pobre viúva lamentou-se sem esperança de tornar a achar a filha. O velho, ao passar a serra, abriu o surrão e disse para a pequena:

– Daqui em diante hás de me ajudar a ganhar a vida; eu ando pelas ruas, a pedir, e quando disser:

Canta surrão,
Senão levas com o bordão…

– Tens de cantar por força. Toma tento.
   
Por toda a parte onde o velho passava todos ficavam admirados daquela maravilha. Chegou a uma terra, aonde já chegara a notícia de um velho que fazia cantar um surrão, e muita gente o cercou para se certificar. O velho depois que viu que já estavam bastantes curiosos, levantou o pau e disse:

– Canta surrão,
Senão levas com o bordão…

Ouviu-se então um canto que dizia:

– Estou metida neste surrão,
Onde a vida perderei;
Por amor dos meus brinquinhos
Que eu na fonte deixei.

As autoridades tiveram conhecimento daquele caso, e trataram de ver onde é que o velho pousava; foram ter com uma vendeira, que se prestou a deixar examinar o surrão quando o velho estivesse dormindo. Assim se fez; lá encontraram a pobre rapariga, muito triste e doente, que contou tudo, e então é que soube do caso da viúva a quem tinham furtado a filha. A pequena saiu com as autoridades, que mandaram encher o surrão de todas as porcarias, de sorte que quando o velho foi ao outro dia mostrar o surrão, este não cantou; deu-lhe com o bordão, e então derramou-se pelo chão toda aquela porcaria que o povo lhe obrigou a lamber, sendo dali levado para a cadeia, e a menina foi para casa de sua mãe.
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Notas Comparativas

A lenda cristã de Sta. Margarida, engolida por um Dragão, representa a luz solar escondida pela noite. Pertence a este ciclo, como observa Tylor, a história do Petit Chaperon rouge, em França e Inglaterra: «Na Alemanha as velhas conservam-no com toda a sua pureza. Segundo a sua narrativa, o lobo engole a encantadora criança, vestida com o seu brilhante manto de cetim vermelho, e a sua avó; mas elas saem incólumes da barriga do animal que um caçador abriu enquanto ele dormia. Acha-se um conto parecido na coleção de Grimm, em que se pode igualmente reconhecer o mito do sol. Como no Petit chaperon rouge, abre-se a barriga do lobo e enche-se-lhe de pedras». Tylor, Civilisation Primitive, t. I, p. 390.

Aparece em francês nos Contes populaires lorrains de Emm. Cosquin, L'homme au pois; e em Fernán Caballero, El zurrón que cantaba. Sobre o caráter mítico deste conto, aplicamos o dito de Gubernatis:

«O saco representa um importante papel na tradição do herói escondido ou perseguido; este saco é a Noite, ou a nuvem (o inverno), etc.» Mythologie Zoologique, t. I, p. 255 e seg. E em outra passagem, acrescenta: «Achamos aqui não somente a heroína é a Aurora...» (p. 259).

Nos romances populares portugueses há donzelas metidas em esquifes de vidro ou deitadas ao mar em cofres. Nos costumes domésticos, as crianças são intimidadas com a ameaça de um velho que as leva em um saco. O surrão é o saco de couro das tradições indo-europeias e dos costumes jurídicos da penalidade simbólica medieval.


Fonte:
Wikisource

Irmãos Grimm (Rapunzel)

Era uma vez um casal que há muito tempo desejava inutilmente ter um filho. Os anos se passavam, e seu sonho não se realizava. Afinal, um belo dia, a mulher percebeu que Deus ouvira suas preces. Ela ia ter uma criança!

Por uma janelinha que havia na parte dos fundos da casa deles, era possível ver, no quintal vizinho, um magnífico jardim cheio das mais lindas flores e das mais viçosas hortaliças. Mas em torno de tudo se erguia um muro altíssimo, que ninguém se atrevia a escalar. Afinal, era a propriedade de uma feiticeira muito temida e poderosa.

Um dia, espiando pela janelinha, a mulher se admirou ao ver um canteiro cheio dos mais belos pés de rabanete que jamais imaginara. As folhas eram tão verdes e fresquinhas que abriram seu apetite. E ela sentiu um enorme desejo de provar os rabanetes.

A cada dia seu desejo aumentava mais. Mas ela sabia que não havia jeito de conseguir o que queria e por isso foi ficando triste, abatida e com um aspecto doentio, até que um dia o marido se assustou e perguntou:

- O que está acontecendo contigo, querida?

- Ah! - respondeu ela. - Se não comer um rabanete do jardim da feiticeira, vou morrer logo, logo!

O marido, que a amava muito, pensou: "Não posso deixar minha mulher morrer… Tenho que conseguir esses rabanetes, custe o que custar!"

Ao anoitecer, ele encostou uma escada no muro, pulou para o quintal vizinho, arrancou apressadamente um punhado de rabanetes e levou para a mulher. Mais que depressa, ela preparou uma salada que comeu imediatamente, deliciada. Ela achou o sabor da salada tão bom, mas tão bom, que no dia seguinte seu desejo de comer rabanetes ficou ainda mais forte. Para sossegá-la, o marido prometeu-lhe que iria buscar mais um pouco.

Quando a noite chegou, pulou novamente o muro mas, mal pisou no chão do outro lado, levou um tremendo susto: de pé, diante dele, estava a feiticeira.

- Como se atreve a entrar no meu quintal como um ladrão, para roubar meus rabanetes? - perguntou ela com os olhos chispando de raiva. - Vai ver só o que te espera!

- Oh! Tenha piedade! - implorou o homem. - Só fiz isso porque fui obrigado! Minha mulher viu seus rabanetes pela nossa janela e sentiu tanta vontade de comê-los, mas tanta vontade, que na certa morrerá se eu não levar alguns!

A feiticeira se acalmou e disse:

- Se é assim como diz, deixo você levar quantos rabanetes quiser, mas com uma condição: irá me dar a criança que sua mulher vai ter. Cuidarei dela como se fosse sua própria mãe, e nada lhe faltará.

O homem estava tão apavorado, que concordou. Pouco tempo depois, o bebê nasceu. Era uma menina. A feiticeira surgiu no mesmo instante, deu à criança o nome de Rapunzel e levou-a embora.

Rapunzel cresceu e se tomou a mais linda criança sob o sol. Quando fez doze anos, a feiticeira trancou-a no alto de uma torre, no meio da floresta.

A torre não possuía nem escada, nem porta: apenas uma janelinha, no lugar mais alto. Quando a velha desejava entrar, ficava embaixo da janela e gritava:

- Rapunzel, Rapunzel! Joga abaixo tuas tranças!

Rapunzel tinha magníficos cabelos compridos, finos como fios de ouro. Quando ouvia o chamado da velha, abria a janela, desenrolava as tranças e jogava-as para fora. As tranças caíam vinte metros abaixo, e por elas a feiticeira subia.

Alguns anos depois, o filho do rei estava cavalgando pela floresta e passou perto da torre. Ouviu um canto tão bonito que parou, encantado.

Rapunzel, para espantar a solidão, cantava para si mesma com sua doce voz.

Imediatamente o príncipe quis subir, procurou uma porta por toda parte, mas não encontrou. Inconformado, voltou para casa. Mas o maravilhoso canto tocara seu coração de tal maneira que ele começou a ir para a floresta todos os dias, querendo ouvi-lo outra vez.

Em uma dessas vezes, o príncipe estava descansando atrás de uma árvore e viu a feiticeira aproximar-se da torre e gritar: "Rapunzel, Rapunzel! Joga abaixo tuas tranças!." E viu quando a feiticeira subiu pelas tranças.

"É essa a escada pela qual se sobe?," pensou o príncipe. "Pois eu vou tentar a sorte…."

No dia seguinte, quando escureceu, ele se aproximou da torre e, bem embaixo da janelinha, gritou:

- Rapunzel, Rapunzel! Joga abaixo tuas tranças!

As tranças caíram pela janela abaixo, e ele subiu.

Rapunzel ficou muito assustada ao vê-lo entrar, pois jamais tinha visto um homem.

Mas o príncipe falou-lhe com muita doçura e contou como seu coração ficara transtornado desde que a ouvira cantar, explicando que não teria sossego enquanto não a conhecesse.

Rapunzel foi se acalmando, e quando o príncipe lhe perguntou se o aceitava como marido, reparou que ele era jovem e belo, e pensou: "Ele é mil vezes preferível à velha senhora…." E, pondo a mão dela sobre a dele, respondeu:

- Sim! Eu quero ir com você! Mas não sei como descer… Sempre que vier me ver, traga uma meada de seda. Com ela vou trançar uma escada e, quando ficar pronta, eu desço, e você me leva no seu cavalo.

Combinaram que ele sempre viria ao cair da noite, porque a velha costumava vir durante o dia. Assim foi, e a feiticeira de nada desconfiava até que um dia Rapunzel, sem querer, perguntou a ela:

- Diga-me, senhora, como é que lhe custa tanto subir, enquanto o jovem filho do rei chega aqui num instantinho?

- Ah, menina ruim! - gritou a feiticeira. - Pensei que tinha isolado você do mundo, e você me engana!

Na sua fúria, agarrou Rapunzel pelo cabelos e esbofeteou-a. Depois, com a outra mão, pegou uma tesoura e tec, tec! cortou as belas tranças, largando-as no chão.

Não contente, a malvada levou a pobre menina para um deserto e abandonou-a ali, para que sofresse e passasse todo tipo de privação.

Na tarde do mesmo dia em que Rapunzel foi expulsa, a feiticeira prendeu as longas tranças num gancho da janela e ficou esperando. Quando o príncipe veio e chamou: "Rapunzel! Rapunzel! Joga abaixo tuas tranças!," ela deixou as tranças caírem para fora e ficou esperando.

Ao entrar, o pobre rapaz não encontrou sua querida Rapunzel, mas sim a terrível feiticeira. Com um olhar chamejante de ódio, ela gritou zombeteira:

- Ah, ah! Você veio buscar sua amada? Pois a linda avezinha não está mais no ninho, nem canta mais! O gato apanhou-a, levou-a, e agora vai arranhar os seus olhos! Nunca mais você verá Rapunzel! Ela está perdida para você!

Ao ouvir isso, o príncipe ficou fora de si e, em seu desespero, se atirou pela janela. O jovem não morreu, mas caiu sobre espinhos que furaram seus olhos e ele ficou cego.

Desesperado, ficou perambulando pela floresta, alimentando-se apenas de frutos e raízes, sem fazer outra coisa que se lamentar e chorar a perda da amada.

Passaram-se os anos. Um dia, por acaso, o príncipe chegou ao deserto no qual Rapunzel vivia, na maior tristeza, com seus filhos gêmeos, um menino e uma menina, que haviam nascido ali.

Ouvindo uma voz que lhe pareceu familiar, o príncipe caminhou na direção de Rapunzel. Assim que chegou perto, ela logo o reconheceu e se atirou em seus braços, a chorar.

Duas das lágrimas da moça caíram nos olhos dele e, no mesmo instante, o príncipe recuperou a visão e ficou enxergando tão bem quanto antes.

Então, levou Rapunzel e as crianças para seu reino, onde foram recebidos com grande alegria. Ali viveram felizes e contentes.

Fonte:
http://www.grimmstories.com/pt/grimm_contos/rapunzel

Machado de Assis (Gazeta de Holanda) N.° 28 – 20 de setembro de 1887


Quando tudo em paz corria
Cai uma nuvem prenhada
De chuva e de ventania,
De saraiva e trovoada.

E cai lá naquela banda
Do paço dos senadores,
O melhor paço da Holanda,
Boa pedra, arminho e flores.

Inda se fosse no paço
Dos deputados, vá feito;
Embora sendo embaraço,
Caía no próprio leito.

Pois se este paço figura
Ao pé do velho senado,
Que afigura e transfigura,
Como ele, o que lhe é levado,

Certo é que é mais dada a zona
Aos temporais desabridos;
Quem lá vai mete-se em lona,
Oleado e outros tecidos.

Mas, no senado, em verdade,
Posto não seja o primeiro
Exemplo de tempestade,
Nem talvez o derradeiro,

Causa espanto, porque tudo
Parecia que ia andando,
Não inteiramente mudo,
Mas lentamente calando.

Vai então, como eu buscasse
Saber por algum amigo,
Maneira com que explicasse
Este singular perigo,

Achei um vizinho, um magro,
Um que não tem este olho;
Chamá-lo-ia Meleagro,
Di-lo-ia autor de algum molho,

Se não parecesse abuso
Esse recurso mofino,
Mofino, mas não escuso...
Os versos têm seu destino!

Tenho sido belo, às vezes,
Só por exigi-lo a rima;
Chama-se a um homem Menezes
Quando não passa de um Lima.

Mas, qualquer que seja o nome
Do vizinho consultado,
Fui lá p'ra matar a fome
E saí esfomeado.

Procurei-o, como disse,
E no meio da palestra
Aconteceu que surgisse
Uma questão grave e mestra:

Se o senado é que governa
Ou a câmara. O sujeito,
Querendo passar-me a perna,
Tira estas vozes do peito:

“— Dizem que a câmara baixa,
Conforme a prática inglesa,
Assim como tem a caixa
Da receita e da despesa,

“Rege a política, e forma
Os homens à sua imagem,
Que é essa a única norma
Da parlamentar viagem.

“Sendo, porém, cousa certa
Que os ingleses querem antes
Achar sempre a porta aberta.
Dos comuns representantes.

E comuns há que padecem,
Se a boa sorte lhes falta,
E após os pais que falecem
Vão para a câmara alta,

“Onde é menor o trabalho,
Sessões curtas, pouca vida,
Galho do poder, mas galho
De folha amarelecida;

“Cá buscamos o senado;
E se o que há mais forte e fino
Tem ali lugar marcado
É que ali mora o Destino”.

Fonte:
Obra Completa de Machado de Assis, Edições Jackson, Rio de Janeiro, 1937.
Publicado originalmente na Gazeta de Noticias, Rio de Janeiro, de 01/11/1886 a 24/02/1888.

Paulo de Tarso Pardal (O Dorso do Livro)

Comi uma barata inteira. Ouvi o estado da morte quando a esmaguei com o pé. Juntei os pedaços na palma da mão, separei pata por pata e distribui-as pelas bordas do prato. A gelatina amarela e as asas ficaram no centro, formando um girassol, que girava com o meu olhar na solitária escura.

Estou aqui a trinta e dois milhões de traços. Tenho uma terrível angústia quando percebo que não existe mais espaço para fazer um só risco na parede. Conto o tempo por esses traços. Cada sono é um risco. Existem trinta e dois milhões de traços que conto a cada quatro sonos. É o que posso fazer para não ficar doido. Não sei a quantos dias equivalem os trinta e dois milhões de traços. Nos primeiros trinta e dois mil, eu ainda sabia o equivalente em dias. Mas tive que me abster de contá-los porque os traços, a partir de um certo sono, passaram a ser mais vitais para mim do que os dias. Por isso, não sei há quantos anos estou. Sei que há trinta e dois milhões de riscos.

Os traços na parede são a minha vida. Lembro que nos dez mil traços recordei a última rua por onde passei antes de vir para cá. Todos os acontecimentos que ocorreram naquele dia eu marquei com um risco. Tenho uma traço para o poste, outro para o ônibus, outro para a calçada, outro para o cigarro, outro para dono do bar, outro para uma mulher que bebeu comigo, outro para o balcão, outro para o sangue. Com eles fiz o meu universo – o mundo são riscos. Não posso ficar sem eles. Acho que ainda sei pensar porque tenho os traços, por isso eles são mais importantes do que os dias, que não sei mais como são. Não sei o que fiz para estar aqui. Sei que existe um traço no meio da parede, maior do que os outros, que deve significar algo importante, mas não me lembro mais. Devo ter, agora, só um pedaço do cérebro – aquele que sabe contar os trinta e dois milhões de riscos a cada quatro sonos: não sei pensar além disso.

Depois que eu comer a barata, vou dormir pensando no prazer de fazer mais um traço na parede.

Eles pensam que já morri: há trinta e dois traços que não me mandam comida: por isso comi uma barata inteira: azar dela!

Eles têm medo de mim. Acham que virei bicho, que não precisam mais gastar comida com um bicho.

Acho que daqui a trinta e dois riscos eles vão abrir a porta que há trinta e dois não abrem e, neste momento, vou mordê-los e engoli-los, como faço com esta barata. Daqui a trinta e dois traços, vou ficar livre de gritos do meu pensamento que ecoam desesperadamente nestas paredes, e eles vão notar que ainda não morri.

Daqui a trinta e dois gritos, depois que eu comer o primeiro homem, vou fazer o segundo contar os trinta e dois milhões de traços trinta e duas milhões de vezes. Só assim, poderei matá-lo também.

Enquanto os trinta e dois riscos não chegam, vou mastigar a última perna da barata que está no prato: trinta e duas milhões de vezes.

 (Paulo de Tarso Pardal, Margem Oculta)

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.

Nilto Maciel (Contistas do Ceará) Paulo de Tarso Pardal

Paulo de Tarso Vasconcelos Chaves (Russas, 1955) é contista, artista plástico, crítico literário e músico. Licenciado em Letras e mestre em Literatura Brasileira, pela Universidade Federal do Ceará. Professor de literatura em colégios e faculdades, atua na imprensa cearense como ficcionista e crítico literário. Tem editados os livros de contos Margem Oculta (Fortaleza: Edição Gráfica Oficina, 1995), Difícil Enganar os Deuses (Sobral: ASEL, 1999) e Do Pitoco (Fortaleza: Edições Livro Técnico, 2006); além da dissertação de mestrado O Espaço Alucinante de José Alcides Pinto (Fortaleza: UFC Edições, 1999), dos ensaios Pensaios (Fortaleza: O Curumin Sem Nome, 2000), Discurso do Imaginário (Fortaleza: Edições Livro Técnico, 2003) e Autores do Vestibular da UFC (Fortaleza: Edições Livro Técnico, 2005 e 2006), dos livros Sonetos (Fortaleza: Edições Livro Técnico, 2000), de poesias, e Pirralho (Fortaleza: Edições Livro Técnico, 2002), de partituras.

Os temas mais frequentes nas 27 composições das duas primeiras coleções de Paulo de Tardo Pardal são a loucura, a solidão, a passagem do tempo. O protagonista de “A asa que ri” se vê perseguido por asas-de-fogo. O narrador de “O dorso do livro” está preso “numa solitária escura”. O tom da narração, embora haja lógica na elaboração das frases, é o de quem raciocina pelas linhas tortas da loucura: “Comi uma barata inteira”; “Estou aqui há trinta e dois milhões de traços”; “Eles têm medo de mim”; “depois que eu comer o primeiro homem”. O ser fictício de “(Re)Verso” é chamado ora de poeta, ora de louco: “Anda pelo banheiro como uma barata tonta”. Cercado de sombras, vaga pela solidão da casa.

Há uma galeria ampla de personagens solitários nas peças ficcionais de Pardal. Além dos já mencionados, destacam-se o pintor de “Ludo ou lapidação do branco”, o ser fictício da obra intitulada “?”, o de “Água salgada” (“Tive a impressão de que só eu existia no mundo”.)

Em algumas composições o tempo é caótico; noutros, congelado, parado ou apenas lento. Há também um tempo acelerado. Nestes casos, os tempos verbais se misturam, se enredam, como se passado, presente e futuro fossem um só tempo. Em “O olhar” os dois personagens (Dona Maria José e ele) se perdem num labirinto de tempos verbais diversos: “Talvez ele nunca esqueça”; “ela entenderia”; “se ela precisasse”; “ele ficaria ali”; “teve vontade”; “talvez dormisse”; “estava quieta”. Há elaborações frasais curiosas, como no segundo parágrafo de “O sonho do gato”, em que os verbos não aparecem, como se o tempo tivesse parado: “O gato branco em cima do muro de três tipos de tinta: o branco do gato: o branco do cinza do muro: o branco da sombra brilhante dos pontos vermelhos”. Como se fosse uma pintura.

Às vezes a trama se dilata no tempo, como na peça “Margem oculta”: “de vez em quando”, “nunca teve”, “passou a percebê-lo”, “Kátia não foi bonita a vida toda”, “quando a conheci”, “quanto tempo durou”, “demorou anos”, “depois de algum tempo”. Há, ainda, o caso especial de “Camile”, cuja protagonista tem dúvidas até sobre o próprio nome: “Acho que me chamo Camile”. Sua dúvida maior, no entanto, é quanto à idade: “Devo ter dezessete anos”; “Quando ouço essa voz, disso eu tenho certeza, tenho cinco anos”.

Alguns seres fictícios de Pardal estão sempre sonhando, lembrando sonhos, vivendo em função deles ou do passado. Veja-se o poético conto “A menina do sonho azul”, no qual “todos tiveram o mesmo sonho”. Em “Difícil enganar os Deuses”, Mariana ora sonha com escuridão e vozes, ora “com todos os sonhos passados”. Nos seus sonhos estão as respostas para as suas dúvidas e dos outros. Finalmente “sonhou que ia morrer no sétimo dia”. Outro protagonista que vive em razão dos sonhos é o mendigo-louco Chico Galo Preto, de “O homem que conheceu o Inferno”. Após pedir um cafezinho ao padre, revela: “O meu sonho vai ser com o Galo Preto que vem me beliscar toda noite”. Há até uma narrativa intitulada “Sonho”. E gatos que sonham.

Os seres fictícios de Paulo de Tarso Pardal são prisioneiros da sociedade ou de si mesmos. Uns são mendigos; outros, maníacos e assassinos. O narrador de “O dorso do livro” vai enlouquecendo a cada risco que grava na parede, para significar um ato, um momento, “algo importante”. A protagonista de “Rastros de uma serpente” está presa e fala a advogado, provavelmente: “Sabe doutor, eu nunca matei ninguém não”. Camile está presa a uma pedra, no meio da porta da casa, agarrada a uma boneca. Como se não quisesse deixar de ser criança. O protagonista de “Mania”, sem nome explícito, se aprisionou a Mariana, se anulou, se perdeu de si mesmo: “Quando estou com Mariana, não penso, não sei onde estou”.

Há, ainda, pintores, que são retratistas dos outros, de paisagens, como se quisessem paralisar o tempo. Estão sós num mundo de cores e traços, como o narrador de “O mito da caverna” ou o de “Ludo ou lapidação do branco”.

O vento e a chuva, às vezes, são quase personagens, como fantasmas a rondarem os seres vivos. Camile insiste em ver a chuva, embora tenha medo de trovão. Da janela vê a chuva engrossar e um clarão no céu.  Em “A cidade mais eterna do mundo” Seu Salomão chorou tanto, quando soube da morte de Safira, que suas lágrimas aguaram todos os campos. Mais tarde, “um vento verde invadiu a sala, tomou conta de toda a casa, espalhou-se pela cidade inteira”. Em “A vida perdida de Lu” certa vez “caiu uma chuva de rosas vermelhas. Passaram três dias chovendo flores vermelhas”. Em “Difícil enganar os deuses” “o vento era cortante e forte”.

Os dramas se desenrolam em cidade grande ou lugarejos do Nordeste brasileiro, como o pequeno povoado de Nossa Senhora do Bom Parto, em “A visita de Sara”. Aqui e ali narradores pintam trechos de paisagens dessa região. E não esquecem o vocabulário regional (vassoura e uru de palha de carnaúba, siriguela, incelência, gasguito, embiocado), os costumes do sertão (plantações de milho, feijão e mandioca), sem que haja nisto nenhuma concessão ao velho regionalismo.

E, assim, tudo levaria o escritor a se apegar somente a esquemas neonaturalistas. Mas Pardal trafega também, e com muita competência, pelo realismo mágico, sobretudo no segundo volume.  Em “A cidade mais eterna do mundo”, ambientada no sertão, havia um homem de cento e oitenta e seis anos. Quando morreu Safira, a prostituta mais querida da cidade, o ancião chorou tanto que “não precisou inverno para as plantações”. O insólito se estabelece de vez, quando “um vento verde invadiu a sala” e “os meninos começaram a flutuar, a um palmo do chão: – Pai, eu estou voando!” Em “A menina do sonho azul” o clima estranho se instaura desde o início da narração: “Todos pressentiram que alguma coisa ia acontecer naquela noite”. O leitor é preparado para ler uma história estranha: “Naquela noite, todos tiveram o mesmo sonho: o mundo estava ficando azul”. Em “A vida perdida de Lu” o personagem-narrador se dirige a um ouvinte anônimo, um jornalista, chamado de senhor. Refere-se sempre à personagem Lu: “Quando os homens fazem amor com ela, eles se transformam em passarinhos”. E, como se também se dirigisse ao leitor, explica: “Sei que o senhor não acredita nisso, mas é verdade”. Isto é, o fantástico se mostra na primeira frase e se explica na segunda: um fato estranho à realidade, impossível de se realizar, mas real para o narrador. Mais adiante o personagem faz outra afirmação absurda: “Eu gosto mesmo é de me transformar em beija-flor. Fico bitocando (sic) as flores vermelhas”. Em “A visita de Sara” também desde o início o leitor pressente o fantástico, quando um imenso balão colorido caiu perto da igreja. E se encorpa a seguir: “Na hora em que Sara chegou em seu imenso balão de fogo, os homens sentiram uma necessidade imensa de fazer amor com suas mulheres”. O final da narrativa é o inverso do início: “Sara entrou no balão, no meio do fogo” e partiu. Em outra composição, Pardal presta homenagem ao contista Moreira Campos, citando exatamente o seu mais fantástico conto: “Dizem que os cães veem coisas”.

Fonte:
MACIEL, Nilto. Contistas do Ceará: D’A Quinzena ao Caos Portátil. Fortaleza/CE: Imprece, 2008.