segunda-feira, 24 de julho de 2023

Dicas de Escrita (Como Descrever a Aparência de um Personagem) – 1 –


Os personagens completos e dinâmicos fisgam os leitores e conduzem o enredo de uma história, mas descrevê-los do jeito certo pode ser um belo desafio. Porém, com um pouquinho mais de esforço, você conseguirá detalhá-los e envolver a quem estiver lendo. O primeiro passo é conhecer o personagem que criou e pensar em quais características podem impactar na descrição. Em seguida, escreva a descrição extraindo os melhores detalhes do personagem.

Conhecendo o personagem

1. Faça uma ficha de personagem para criar um personagem completo. 

É necessário saber tudo sobre os personagens principais e, por essa razão, uma ficha de personagem será a melhor a forma de elaborar um bom personagem. Coloque tudo que for possível: descrições físicas, passado, profissão, interesses, medos, passatempos, etc.

Você pode criar a sua própria ficha ou usar uma planilha, que pode ser encontrada na internet.

Comece com o básico, como altura, forma, cor do cabelo e dos olhos. Em seguida, descreva outras características físicas, como a postura ou quais particularidades únicas o personagem tem, e veja como o passado, os interesses e o estilo de vida impactam na descrição.

No caso dos personagens principais, dê o maior número de detalhes possível na ficha. Embora essas informações possam não aparecer na história, é importante conhecer bem os personagens.

DICA DE ESPECIALISTA
Grant Faulkner, MA (Escritor)
Leve em consideração a motivação do personagem. Como autor, você deve saber o que motiva o seu personagem. Ele não é apenas um aglomerado de descrições físicas ou psicológicas, mas sim uma alma que vaga pelo mundo. O que o personagem deseja e por qual motivo ele não atinge o objetivo?

Descreva todos os objetos que permanecem no caminho dele.

2. Crie um esboço do personagem para ter uma imagem como referência. 

Desenhe-o o melhor que puder, identificando os atributos físicos. Escreva notas na página que falem sobre o passado, os interesses e outras informações descritivas que quiser colocar.
Esse é um jeito mais improvisado de elaborar o personagem.
Não será problema usar mais de uma técnica. Pode ser útil fazer o esboço do personagem e também criar uma ficha de personagem.

3. Encontre uma foto para referência (método alternativo).

Pode valer a pena reunir fotos de pessoas, lugares e coisas que o inspirem na hora de escrever. A base do personagem pode ser algum conhecido ou ainda uma pessoa famosa que tenha a aparência perfeita para ele. Use aquilo que traz inspiração, como a foto, quando for escrever a descrição. 

Quando usar fotos como referência, guarde-as em algum arquivo (digital ou físico).

4. Identifique o que torna o personagem único. 

Todo personagem tem particularidades que os diferenciam. É possível usá-las para ajudar o leitor a ter uma noção melhor do personagem. Dê uma ênfase maior a essas peculiaridades do que às descrições básicas, mencionando uma cicatriz no rosto em vez do tamanho dos lábios, por exemplo.

Outro exemplo: o personagem pode ter uma pinta em forma de coração, um diastema grande (espaço entre os dentes) ou mancar visivelmente.

As particularidades ajudam a facilitar a identificação dos personagens principais e também se pode usá-las para caracterizar mais facilmente os personagens secundários.

5. Faça uma lista com descrições concretas para o personagem. 

Você não precisa usar todas na história, mas será bom ter uma lista de frases descritivas mais específicas sobre o personagem. Mesmo assim, é mais vantajoso incorporar os melhores detalhes dentro da história. Veja alguns exemplos:

Uma tatuagem de um diamante abaixo dos cílios distraía de seus olhos verde-mar.

As pernas dele tremiam como se fossem pernas-de-pau.

Quando o vento sopra, o cabelo dele envolve o rosto como uma chama.

6. Evite o uso de clichês para descrever as características do personagem (ou ele próprio). 

Essa questão vale tanto para a maneira como introduz a descrição quanto às palavras que usa para descrevê-lo.

Exemplo: o clichê mais usado para começar a descrição de um personagem é a “técnica de espelho”, ou seja, quando você faz o personagem se descrever em frente a um espelho. Não faça isso!

Outros exemplos de clichês de descrição: “vermelha como uma rosa”, “frio como gelo” ou “cego como um morcego”.

DICA DE ESPECIALISTA
Lucy V. Hay (Escritora Profissional)
Os personagens que não seguem esteriótipos são sempre mais interessantes. Se você já assistiu Brooklyn 99, o Capitão Holt é um homem negro e gay, mas a personalidade dele é o oposto de qualquer esteriótipo que usam para esse tipo de personagem. Muitas pessoas assistem ao programa só para vê-lo em ação.
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continua...

Fonte:

domingo, 23 de julho de 2023

Dorothy Jansson Moretti (Álbum de Trovas) 28

 

Francisco José Pessoa (Nem tudo que parece é…)

Era janeiro naquela borbulhante cidade maravilhosa. A madrugada acabara de abrir a porta para o novo dia. O sol ainda se espreguiçava. Na sala de parto da Maternidade São Lucas, um dueto comemora a liberdade. Cosme e Damião separam-se pela primeira vez após tranquila hibernação uterina. Palmadinhas providenciais — cenho franzido —, e logo um sorriso largo de mãe primípara dá boas-vindas aos recém-natos.

A felicidade dela se liquefaz em duas gotículas de lágrima. O pai assistira ao parto, atônito. Sua mudez fazia com que a cabeça agradecesse os parabéns dados pela equipe médica. Nem pensava na despesa dobrada que enfrentaria. Machista de se gabar, não cabia em si de contentamento por ser pai de dois machos. E de uma só tacada!

Pai de gêmeos, a comemoração foi dobrada. Três colegas de repartição, sem a estrela-guia, foram visitar os rebentos do amigo tal fizeram os Reis Magos. Um levou duas garrafas de cana da serra; outro, dois galetos assados e farofa; um terceiro, dois sacos médios de laranjas já cortadas em cruz. A comemoração varou a madrugada.

Cosme e Damião até a adolescência eram gêmeos também no vestir. Com o passar dos tempos, eles aos poucos, se separam mais uma vez em busca das suas individualidades. Chegada a época do alistamento militar, Cosme passa de primeira no teste de aptidão física. Incorpora-se nas fileiras do Glorioso. Damião é dispensado por não alcançar nota mínima nos testes físicos. E assim o destino constrói um abismo entre os dois.

Não tinham outros irmãos. Os dois, sendo filhos machos de uma só tacada, preenchiam o orgulho varonil do pai, que alardeava as qualidades deles, tanto na repartição quanto no bar do Pedim, onde se reunia com os amigos depois do expediente da sexta-feira.

Muda-se o curso do rio, mas não o destino das águas. Cosme dá baixa do serviço militar apesar do convite para engajar. A vida na caserna moldara sua disciplina. Guardou suas economias para matricular-se numa academia de boxe. Ser profissional desse esporte era seu sonho.

Damião, igualmente, poupou sua mesada para também matricular-se numa academia - de balé - sem que o pai soubesse. A mãe, sua confidente, estava ciente dos projetos do filho.

Cosme torna-se um aplicado atleta, ambição de ganho dos empresários.

— “Esse garoto vai longe", confessava seu treinador com um sorriso largo.

À noite, quando se reuniam para jantar, o pai ouvia com orgulho os relatos do Cosme sobre o treinamento do dia. Damião observava e palpitava vez ou outra para se fazer presente à conversa: — Pai, no Centro Comunitário vai haver um curso de dança que é dado por uns gringos. Ouvi dizer que eles oferecem bolsa de estudo para o exterior.

— Gringo ensinando samba.? Só faltava essa!

— Não, pai, é dança clássica. O senhor já ouviu falar em Lago dos Cisnes?

— Não ouvi e tenho raiva de quem já ouviu! Meu negócio é gafieira e samba no pé.

A conversa foi perdendo o rumo para o bem de Damião.

— Já saiu o resultado do bicho? Corre ali na banca e confere minha pule, diz o pai, desconversando.

Nessa noite, o pai machão não fechou os olhos. A tal da dança clássica não parava de zunir nos seus ouvidos. Na repartição, todos notavam seu abatimento. Na sexta-feira, não bateu o ponto no bar do Pedim. Quisera esconder-se dele mesmo, tamanha era a vergonha que o molestava.

Damião conseguiu matricular-se no curso da Comunidade com total apoio da genitora. Logo, logo, destaca-se entre os aprendizes de bailarino. Os gringos, de fala enrolada, apostaram no garoto. Mesmo a contragosto, o pai foi admitindo a ideia da tal bolsa de estudo. São Petersburgo, eis o destino do Damião.

Após três anos de comunicação com a família senão através de cartas, Damião confirma seu retorno ao Brasil.

No dia aprazado, toda a turma dirige-se ao "Tom Jobim". Chegam com duas horas de antecedência para curtirem o sobe e desce dos pássaros de prata.

- Vô, compra pipoca. Pedia angelicalmente Sofia, filha única de Cosme.

O avô coruja lhe presenteava com dois sacos da guloseima, um com casca, outro sem casca. E a carregava fraternalmente nos braços. Eis que surge no portão de desembarque, para espanto de toda a família, não somente o passageiro esperado. Damião trouxera, a tiracolo, sua mulher e dois filhos machos, feitos de uma só tacada. Era o presente não prometido para o pai.

E nova comemoração dobrada foi feita pelos colegas de repartição ao avô de gêmeos. Um levou duas garrafas de cana da serra; outro, dois galetos assados e farofa; um terceiro, dois sacos médios de laranjas já cortadas em cruz. E a comemoração varou a madrugada.

Fonte:
Enviado pelo autor.
Francisco José Pessoa de Andrade Reis. Isso é coisa do Pessoa: em prosa e verso. Fortaleza/CE: Íris, 2013.

Rubem Penz (O perigo e seus riscos: a palavra morde)

Muito já confundi estes dois conceitos: perigo e risco. Porém, bastou uma historinha contada por um especialista em segurança para que nunca mais me referisse a um pelo outro. Disse-me o amigo que, quando estamos a dois metros de um grande cão feroz, há sempre perigo. Mas, se entre nós e ele houver uma grade, ou ele estiver contido por uma coleira, como manda o bom senso, ou uma focinheira, como manda a lei, o risco cai para perto de zero. Resta algum risco porque todo equipamento de segurança pode apresentar eventualmente falhas, ou mesmo nós podemos nos arriscar ao desrespeitar as normas de segurança. Com o cão solto na rua (ambiente sem controle), quando formos expostos, perigo e risco serão iguais. Fatais, inclusive.

Vou adiante e afirmo: quando escrevemos uma mensagem (ou um artigo, uma crônica, um mero bilhete) há sempre perigo. Vários perigos. Podemos ser pouco claros, dúbios, desastrados ao formular as frases. Podemos cometer injustiças por desconhecimento, fazer injúrias por ignorância, incorrer em perjúrio por descuido. Podemos ser ofensivos e, ao ofender, colocarmo-nos em uma posição indefensável. Podemos revelar segredos para os quais juramos fidelidade. Podemos magoar quem amamos e, desastre completo, colocar a reciprocidade a perder. O perigo ronda as palavras.

Se você agora está com medo, é bom que tenha, mesmo. Porque não importa o que se faça, o perigo de escrever "tal um cão feroz para nossa integridade física" não some jamais. Tudo o que fazemos é contornar e dominar os riscos. Ler, reler e ler mais uma vez, talvez depois de um tempo. Ler em voz alta. Desconfiar da escrita, ela é traiçoeira, podem nos escapar descuidos. Pensar na responsabilidade de um texto impresso ou, pior, publicado, sobre o qual jamais se poderá fugir. Respeitar este ato sagrado que se chama comunicação. Garantir-se diante dele.

A equação entre perigo e risco só se resolve ao reconhecer a existência de um e ter controle sobre o outro. Palavra morde. É de sua natureza. Mas, como viver sem elas?

Fonte:

Vanice Zimerman (Poemas Escolhidos) 8


AS MÃOS QUE COLHERAM AS UVAS...

Feito, finas rendas que com o tempo
Tornaram-se translúcidas e, aos poucos
Desapareceram,
As mãos que colheram as uvas,
Permanecem vivas, pulsando
Nas lembranças de outras mãos
Colhendo uvas em um antiga ritual
Árduo e encantado,
Mantendo a tradição de colher com cuidado e,
Carinho, e assim extrair
Dos doces cachos, o vinho...
As mãos que colheram as uvas,
Vivas permanecem em vinícolas,
E na solitária garrafa escura, ao lado do queijo.
E também, em telas
E no olhar de quem, curioso
As observa ao alcance das mãos
Em um fim de tarde, repleta
De cores, amor e silêncio...
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CHAVE DO TEMPO

Tarde de inverno,
Imóvel no arame
Ele continua
O prendedor de roupas
Silencia-se
Sem a companhia
Do lençol ou da camisa branca...
Em sua geometria
Ostenta as marcas
Do sol, da chuva
E das noites frias...
A ferrugem
Com seus tons cobriu seu metal,
E a boa parte de sua madeira
Foi tingida com a passagem
Do pôr do sol e do amanhecer
Prendendo com suas pontas
Lembranças de ontens -
Admirável sua resistência,
Quase, dobra-se à rotina
Das horas, dias e anos -
Mas, a essência permanece
Misteriosa
Chave do Tempo...
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JANELA AZUL

Na pausa do olhar
A poesia, devagarzinha
Alisa e desliza
Na janela de madeira azul
De nós trabalhados pela
Passagem do tempo
São imóveis olhares...
Há uma rústica e desbotada
Interação entre os tons de azul
Que se mesclam à madeira-
Na pausa do olhar
A delicadeza
Das mãos, agora, invisíveis
Que tantas vezes
Entreabriram a janela...
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LEMBRANÇAS DE MINAS GERAIS

De manhãzinha -
Janela entreaberta
À mesa de madeira
Pequenas flores perfumam
A caneca de ágata,
Recebendo os tênues raios de sol,
Enquanto o gato se espreguiça
À soleira da porta -
Distancia-se o som do trem,
Sinto o aroma de café
Que evola do antigo bule azul,
Emoldurando
O despertar da vida
Em poesias e nas alegres
Borboletinhas brancas -
Manhã de primavera
Desperta em Minas...
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RISCOS E RABISCOS

Riscos
Na mesa de madeira,
    Rabiscos nos tijolos
    Do fogão a lenha...

Desenhos no vidro
Nublado da janela,
Linhas curvas e retas
Na cadeira de palha
Marcam presença,
Pincelando ausências,
Enquanto a chuva risca
Mais um fim de tarde...
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RODA DE FIAR

As lembranças tecidas em lãs,
Algodão e linho aquietam-se
E observam a antiga roda de fiar,
Transformando a palha em ouro -
"Rumpelstíltskin"...
A roca
Lembra? leme de um barco
Roda da Vida, num contínuo movimento
De fibras em fios,
As mãos invisíveis do Tempo
Ainda permanecem
A mover a roda de fiar - tecer destinos
Delicados fios entrelaçando
Sonhos e vida -
Enquanto,
Uma, curiosa, gota de sangue
Desliza no fuso...
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TEXTURAS

Aconchega-se
À toalha de seda lilás
Ao bule branco,
Mesclam-se luz e sombra
Em dobras,
Tecidas na delicada seda -
Um labirinto...
Ao toque da porcelana
A sensação
De uma atemporal imagem,
Uma tala, um devaneio -
Saudade.
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Fonte:
Enviado pela poetisa.
Vanice Zimerman y Gustavo Henao Chica. Saudade… . Curitiba/PR: Nogus Ed., 2021.

Renato Benvindo Frata (Farinha de Festa, ingratidão do tempo)

Nasceu Maria de Jesus, ascendeu à escola pela merenda e se tornou mulher desde nova, passando a "prosear" com nove anos: primeiro com o mascate rendeiro que lhe deu vestido pra compensar a dor e o espanto sanguinolento da defloração; com meninos da escola em troca de balas doces pra amenizar as lombrigas; com rapazotes de lanches comprados na venda; com homens para matar a fome diante de um prato de sarapatel e com velhos nos alpendres, em busca de pouso e para recostar o corpo mirrado, "pruquê proseá é a coisa mais boa da vida..." Dizia sem medir sentimentos, coração curtido ao sol da vida ingrata.

Farinha de festa virou e se deitava com quem se dispusesse compensar o agrado. Cotovelos fincados no balcão a vender o corpo por dose de vermute, que dona de classe não bebe pinga e nem cospe no pé do freguês. Que fiar torcendo fio ou rendar trama de renda, que nada; não era mulher de consumir os dedos na roca, nos bilros e nos alfinetes.

"Pra quê trabaiá se proseá é bem mais melhor de bão”. Empinava o nariz e saía faceira à caça de aventura.

Ficou velha aos dezessete. Nem o corpo magro de mostrar ossatura, nem os cambitos riscados de espinhos que de sensual tinham nada impediram embuchamentos por causa das prosas, mas conseguiu que vingasse o João Antonio Leandro Altevir de Jesus. Os outros, sem dar sinal, escorreram pernas abaixo quando ainda do tamanho de fiote de sagui, tão fraquinhos, e ficaram ali mesmo na areia que não compensava enterrar. O choro de mãe vinha, ficava e se ia qual ave de arribação, o outro dia era outro dia.

Colocou logo um bando de nome no menino - e colocaria mais se o do homem do registro deixasse - não lhe sabendo o pai, vai que um deles por agrado o acolhesse por filho, e a ajudasse cuidar? Mas quê: queriam só prosear. E o proseio que podia ser rápido num cisco do trisco quando se engana patroa, ou demorado de dormir juntando coisa com coisa - mas nada de agarrar querência ou afeição resultava só a ingratidão da vida que passa como foguete de São João, pois quenga farinha de festa nunca recebe arreglo. - Desgraçada a vida de quenga.

Hoje, cabeça assentada e sobrenome Assunção do Espírito Santo ganhado de Malaquias no casamento com tudo o de direito mediante promessa de respeito, jeito e prosa gostosa que à casada se obriga, Toinha senta à porta, roca num dia fiando e, com almofada no outro entre as pernas rendando, abre sem pensar a goela e canta: "Fia, fia minha roda/ Pra acabá com esse algodão/ Pra fazer muita roupinha/Pra dona da fiação", e: "Olê muié rendeira/ Olê muié rendá/ Tu me ensina a fazê renda/Que eu te ensino a namorá" Nem lhes sabe o preço da mercadoria quando chega o mascate que paga miúdo. E sai se rindo o vadio. Vida fuleira a de rendeira.

Olha para o tempo, céu quarado - será que vem chuva? -, põe reparo nos urubus que se assentam no galheiro da peroba acolá e suspira arretada, mãos na anca. Levanta e vai quentar o grude do Malaquias que lhe manda levar as partes para prosearem gostoso antes do sono chegar.

Maria de Jesus Assunção do Espírito Santo não carece de passado, não carece de futuro. Por pirraça fia o fio cantando, tece renda rendando; assim, engana com trabalho o tempo malvado. Fia fios de canção, tece trama de sons, remata fios de renda em tons.

Fonte:
Enviado pelo autor.
Renato Benvindo Frata. Azarinho e o caga-fogo. Paranavaí/PR: Eg. Gráf. Paranavaí, 2014.

Marcelo Spalding (Dicas de Escrita) Diferenças entre Novela e Romance

"A novela é a história de um personagem, o romance é a história de um assunto": as diferenças entre novela e romance
Marcelo Spalding

Para quem deseja escrever narrativas longas, é importante saber a diferença entre dois gêneros que são comumente confundidos: a novela e o romance. Entender que há essa divisão, entender o que a gente está fazendo enquanto autor, vai ajudar vocês a finalizar e a escrever uma narrativa longa.

Podemos pensar em cinco aspectos para diferenciar esses dois gêneros: extensão, núcleos narrativos, complexidade dos personagens, final e diálogos/vozes.

É uma ideia comum pensar que o romance se difere da novela, principalmente, pela quantidade de páginas, no entanto o fato do romance ser mais extenso, em geral, acima de 150, 200 páginas, é uma consequência da sua forma, é uma consequência da sua estética.

Um dos principais pontos para se atentar acerca da distinção é em relação aos núcleos narrativos. O conceito de núcleo narrativo se dá a partir de um protagonista e dos personagens secundários à sua volta, no qual ele tem um problema que deve ser solucionado ao longo da trama. Esses núcleos, cada um deles tem os seus conflitos, tem os seus protagonistas, tem os seus dilemas. No romance, geralmente, há mais de um núcleo narrativo, enquanto a novela abarca apenas um núcleo bem desenvolvido e, caso haja outros, esse são menores e acontecem em função do protagonista.

A complexidade dos personagens, ou melhor, a quantidade de personagens complexos, é um fator determinante para discernir o romance da novela (e vice-versa). A presença de personagens mais profundos e multifacetados é maior no romance, enquanto a novela se encarrega de retratar as "vísceras" apenas de um ou dois personagens (um par). O personagem complexo é um personagem mais completo, ele precisa de mais espaço para se desenvolver.

O final do romance, curiosamente, não é o ápice. É um enfraquecimento [momento de reorganização], o romance tem seu o ápice um pouco antes do final. Já a novela, derivada da tragédia, tem o clímax como ponto alto da narrativa, em seu encerramento, característica que a assemelha ao conto. Deve-se fazer oficinas e estudar as técnicas do conto porque elas vão ser muito úteis para desenvolver suas novelas.

O último aspecto a se considerar, os diálogos, as vozes, parte do conceito de polifonia do filósofo e teórico, Mikhail Bakhtin. O romance possui diversas vozes ativas em sua narrativa, seja pelos diálogos, alternância de narrador, ou até pela presença de outros gêneros textuais no próprio romance (notícias, poemas, cartas, etc.). A novela, por sua vez, não possui toda essa multiplicidade: pensando a novela como história de um personagem, nós vamos ter a voz do personagem; ele vai dialogar, é claro, mas o espaço narrativo, o espaço discursivo principal está com o protagonista.

O estudo de conceitos literários e da escrita é essencial para quem deseja embarcar não apenas na escrita de narrativas longas, mas também de outros gêneros textuais.

Fonte:

sábado, 22 de julho de 2023

Daniel Maurício (Poética) 56

 

Sílvio Romero (O Preguiçoso)

(Folclore do Pernambuco)

Havia um homem muito preguiçoso que nada fazia. 

Um dia veio um velho e pediu-lhe rancho em casa; o velho cansou-se de lhe bater na porta e nada do homem se animar a levantar-se para abrir a porta. Ao final, desenganado, o velho pediu à dona da casa que lhe guardasse ali uma toalha que levava, mas que a não abrisse. 

O velho seguiu seu caminho. A mulher guardou a toalha, mas teve curiosidade e abriu-a. Apareceu logo uma grande mesa com tudo quanto é de bom e melhor de que a mulher se regalou. Ela escondeu a toalha, e, quando o velho veio procurar a toalha, a mulher deu-lhe outra em vez da sua. 

Chegando o velho em sua casa, mandou a toalha se estender e a toalha quieta. O velho calou-se e no outro dia foi à casa do preguiçoso e deixou lá ficar uma cabra pedindo-lhe que a guardassem até a sua volta, mas que tivessem o cuidado de não lhe dizer: «Berra, cabra!» 

O velho retirou-se. 

A mulher foi e disse: «Ora, isto é mistério; aqui temos novidade! Berra, cabra!» 

Entrou a cabra a berrar e começou a cair muito dinheiro de ouro e prata da boca da cabra. Logo que a mulher viu isto, trocou a cabra por outra, e quando o velho veio saiu enganado. 

Chegando em casa mandou a cabra berrar, e nada, e nada! Percebeu que estava enganado e calou-se. 

Chegou por fim um trabalhador do velho e lhe pediu ao amo o seu jornal. Respondeu o velho: «Meu filho, eu não tenho, mais dinheiro; mas dou-te um porrete, que aqui tenho, que te há de fazer feliz.»

O rapaz recebeu o porrete e seguiu. Foi ter justamente na casa do preguiçoso. Pediu rancho e deu o porrete para guardar. 

A mulher trocou o porrete por outro, e no dia seguinte o moço disse: «Dê-me o meu porrete, que me quero ir.» 

porrete entrou a dar bordoadas de criar bichos no marido e na mulher. Puseram-se eles a gritar, e o rapaz ficou admirado de ver aquela virtude do porrete.

A mulher aflita gritou: «Meu senhor, mande seu porrete parar, que eu lhe dou o que me deu o velho para guardar. 

O moço disse: «Para, porrete, e tudo pra cá!» 

porrete parou, e a mulher entregou ao rapaz a toalha e a cabra. O moço tudo recebeu e voltou para casa do seu amo, e lhe contou o que se tinha dado com ele na casa do preguiçoso. 

O velho então lhe disse: «Esta toalha e esta cabra têm virtude; quando tiveres fome, estende esta toalha, e te há de aparecer comida da melhor; e esta cabra quando berra bota dinheiro pela boca.» 

O rapaz ganhou o mundo com seus três presentes.

Fonte:
Sílvio Romero. Contos populares do Brasil. Lisboa/Portugal: Nova Livraria Internacional, 1885.
Disponível em Domínio Público.
Atualização do português por J.Feldman

Caldeirão Poético LXV


CAROLINA RAMOS
Santos/SP

Calçadão de Minha Rua…

Alvinegra passarela
em mosaicos definida…
sempre que passo por ela,
a repassar me convida.

Calçadão de minha rua,
a imitar ondas do mar…
à luz do sol ou da lua,
aonde irás me levar?!

Meu destino, irrelevante,
me fez boa caminheira
e assim vou seguindo adiante,
até quando Deus o queira!

Calçadão de minha rua,
talvez que em dia já breve,
minha vida, que se estua,
não te pise… nem de leve!

E, então, guardarás silente,
nos mosaicos desgastados,
passos meus… passos de ausente
… marcas de passos passados..
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DOROTHY JANSSON MORETI
Três Barras/SC, 1926 – 2017, Sorocaba/SP

Enlevo

Às vezes, quando a insônia bate à porta,
envolvo a mente em requintados véus,
e nela deixo apenas o que importa
para elevar meu pensamento aos céus.

Afasto a lógica indistinta e torta
que quer ligar-me ao jugo dos incréus,
e imersa na Poesia, que conforta,
de olhos cerrados “vejo” os meus troféus.

Cada um deles revela , em minha história,
o momento fugaz de alguma glória
que conquistei ao dom que Deus me deu.

A insônia vai fugindo lentamente…
E em canção de ninar macia e quente,
me entrego inteira aos braços… de Morfeu
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FRANCISCO NEVES MACEDO
Natal/RN, 1948 – 2012

Amigo! Um irmão que a gente escolhe…

Fazer escolhas, nesta minha vida,
é o dia a dia que se faz dever,
e quando eu erro vem todo um sofrer,
mas, se a escolha é banal, fica esquecida.

Um carro, um disco, um anel, uma bebida,
uma mulher, um livro para ler,
a nossa fé, time para torcer,
uma viagem, um som, uma comida.

Fiz tantas vezes essa escolha errada,
usei o livre-arbítrio para nada!
mas, quem está na chuva, que se molhe…

Há uma escolha que é definitiva,
e eu me baseio nesta afirmativa:
Amigo é aquele irmão que a gente escolhe.
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HAROLDO LYRA
Fortaleza/CE

Coisificadas

Hoje é comum mulher tirar a roupa
pra revelar nas bancas de jornal,
despudoradamente o colossal
segredo da virtude, já tão pouca.

Desnuda-se, aos apelos do mural;
na crapulosa folha a pose louca
que a revista conduz de boca em boca
e faz dessa mulher coisa venal,

que assim exposta nua à sordidez;
dependurada à espreita do freguês,
nem percebe aonde e como vai chegar.

Mas chega ao pai, os sonhos carcomidos,
por ver da filha os garbos preteridos,
e oferecida a quem puder pagar.
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LUIZ OTÁVIO
Rio de Janeiro/RJ, 1916 – 1977, Santos/SP

O Ideal

Esculpe com primor, em pedra rara,
o teu sonho ideal de puro artista!
Escolhe, com cuidado, de carrara
um mármore que aos séculos resista!

Trabalha com fervor, de forma avara!
Que sejas no teu sonho um grande egoísta!
Sofre e luta com fé, pois ela ampara
a tua alma, o teu corpo em tal conquista!

Mas, quando vires, tonto e deslumbrado,
que teu labor esplêndido e risonho
ficará dentro em breve terminado,

pede a Deus que destrua esse teu sonho,
pois nada é tão vazio e tão medonho
como um velho ideal já conquistado!…
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OLGA MARIA DIAS FERREIRA
Pelotas/RS

Meus Conflitos

Amargo pranto escorre em minha face,
enorme dor sufoca este meu peito,
saudade imensa, já, não mais desfaz-se,
nem abandona as sombras do meu leito..

A nuvem negra deste desenlace,
mostra-me a cor de nosso lar desfeito,
e luto intenso em minha alma faz-se,
na falta deste amor… quase perfeito..

Ah, meus conflitos já cristalizados,
revelam mágoas, dores e pecados,
numa constância e impertinência louca…

Pelos momentos, já, ultrapassados,
por tantos sonhos por nós dois sonhados,
nesta saudade… beijo a tua boca!
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Fonte:
Ademar Macedo. Mensagens Poéticas. 2012.

Goulart Gomes (Fazenda Solidão)

Mormente o chão ficar dessa tez, que nem asa de graúna, mode o piche chamado asfalto, as coisas pouco mudaram. Desta varanda, donde meu pai espichava os ossos, na madorna depois do almoço, só se enxergava ocre, cor de terra pisada e estrume de boi, até o horizonte.

As coisas se eternizavam. Mal o sol acordava já os galos seguiam seu rastro. Nós, depois. Dentes limpados com folha de juá e o cheiro de estrume saudava, antes do vapor do bule de café. Pilado ali mesmo, com porretadas firmes: tum - tum – tum - creque - tum - tum - tum - creque. 

E o resto do dia era relando o traseiro na sela da montaria, catando gado como quem cata piolho, nas carapinhas do sertão, entre um e outro aboio.

— Pintado, Pintado! Malhada, Malhada! Estrelinha, Estrelinha! Tinhoso, Tinhoso! Ê, gado, ê gado!

A bênção do Velho Chico, matando a sede, lavando roupas e almas. Honra, não, que essa só sangue afoga, todo caboclo sabe.

Mas falava do almoço, e meu pai nele.

Comida vária, cachaça e pimenta-de-cheiro. Malagueta, às vezes, de dar escorredeira nas ventas e água nos olhos. Isto para mim, que era moleque. Meu pai esmagava, mascava, ruminava, feito suas reses. Pior só seu rapé, misturado com folha moída de umburana e demais. Guardava-o numa bolsa, fixa na algibeira.

Mas falava do almoço, e meu pai nele.

Silêncio de sacristia. Sem camisa, não. Peito guardado do vento, por respeito e resguardo. Convém evitar espinhela caída. O velho à cabeceira, a mãe, da cozinha para a sala, no vai-e-vem de pratos, travessas e panelas de ferro. Todos os irmãos, presença obrigatória. E comida farta, como farta inda é. 

Só não os filhos, que nenhum Deus me deu. Irmão sempre procura desavença: uma carne mais torrada, a coxa do frango, a casca do pão... E meu pai sério por fora e sorrindo por dentro, hoje eu sei, dos nossos rompantes. Crescidos, tomaram rumos vários. Quase todos na querência de serem "doutores" de anel no dedo, e arribaram para não sei quantas e quantas capitais. As mulheres, casadoras e parideiras, hoje cuidam dos filhos seus. 

Eu por aqui me acoitei, vendo as coisas mudarem lentamente, cada vez mais grisalhos os cabelos. Até um pé de parabólica, que plantei, nasceu.

Fui eu quem fechou os olhos do velho, derradeira diligência, e atendi seu último desejo:

— Fio, panhe acolá uma ruma de terra do currá e me faça um trabisseiro. Quero suspirar com esse cheiro nas venta.

E assim foi. Tenho para mim que morreu contente, se morte é coisa que se alegre. Pensei de ver, também, filho meu crescendo como os pé-de-pau. Quem vai fazer meu travesseiro de estrume? Talvez Noêmia, servidora de forno, fogão e esteira.

— Alô.

— Alô. Ernesto? Como vai?

— Aqui, como Deus quer. E você?

— Bem, obrigada. Liguei porque Fábio vai fazer aniversário, sexta-feira, e queria lhe convidar para uma festinha que vamos fazer para ele. Você sabe, ele vai fazer dois anos... é o tempo que eu não lhe vejo.

— Carecia ter trabalho? Agradeço pela lembrança mas, você sabe, é uma tirada e tanto até aí. Fica para outra vez. Oportunidade não haverá de faltar, né?

— Está bem. Um abraço. Tchau.

— Outro. Até mais.

Não sei da tenência desse telefonema. Ela sabia que eu não iria. Certamente a saber se vivo estou. Dois anos, já. Dez anos que a conheço. Não fui e não vou. Ela devia de estar abancada aqui, tomando conta de mim e deste mundo de coisas. Mas não, preferiu os cinemas, as praias, os chópingues, as coisas da cidade. Viagem para a Europa, Estados Unidos, roupas caras, joias? Isto eu também podia lhe dar, e bem mais. E nem fazia questão de amor, que isso é coisa de poeta, bastava me aquentar o corpo. Mas não. Agora fica assim, ligando como quem faz caridade. Um marido que nem lhe tem serventia. Dizem que nem cria ele sabe fazer.

Dessa arte eu lhe dei conta, ela sabe, meses antes de se casar. Agora não lhe quero, nem que me desse o filho que já tem. Casou emprenhada, para amarrar o besta. Quem bem sabe? Deus escreve certo em arame farpado. 

Nem quero saber que fim leva essas terras, sem um dono, que um dia tudo se acaba. E acaba infestada de bandeiras vermelhas, ou cheia d'água. O sertão não vira mar? O sertão Todo não virá a amar? O ser tão mar não vira? O ser... não... vir... amar... tão - tão - tão. Zoada de porrada desamassando panela. Eu carecia mesmo era de não olhar tanto para trás. 

Ver, além de mim, um fruto, um futuro: um filho, para falar de seu pai aos seus filhos. Mas ela, já vai tarde!

— Noêmia! Bota a mesa pra janta que já tem lua! E bote dois travesseiros na cama, que hoje é sábado, dia de dormir mais tarde.

– Diacho de rede que me acaba as costas!

Fonte:
Goulart Gomes. Todo tipo de gente. Poético Edições, 2011.

Coelho Neto (O Príncipe de Laos)

Quando lhe disseram que o físico pedira, além da condução, uma guarda de fortes cavaleiros que lhe garantissem a vida nos andurriais (lugares ermos) assolados pelos bandidos e tantas moedas de ouro quantos fossem os dias que passasse no castelo, ergueu-se no leito o ríspido suserano bramindo, a apontar a arca em que guardava o tesouro :

— Dali não sai moeda para tão refalsado vilão! O que lamento é não ter forças para montar o meu ginete e empunhar uma lança, porque havia de mostrar-lhe como costumo responder a afrontas da ralé. Dali não sai moeda.

Disse e caiu no leito prostrado e gemendo.

Foi tamanho o furor, tão violento o arranque, tão despejados os movimentos do ancião que se lhe abriram as feridas do peito e o sangue jorrou a golfadas. Solícita e ligeira, a filha acudiu a tempo de estancar a copiosa hemorragia e, com palavras meigas e sossegadas, serenou o ânimo do pai contendo-lhe o sufocamento e os protestos coléricos da avareza e, para distrai-lo, à falta de menestrel ou jogral que lhe cantasse, ao som da rota, uma cantilena, tomando o fuso, a fiar, improvisou o romance do Príncipe de Laos.

“Logo que subiu ao trono o príncipe galhardo, o cavaleiro mais requintado e a melhor lança do reino, ordenou se fizessem grandes obras militares ao longo da fronteira, se dotasse a esquadra de navios possantes, se alistassem no exército os mancebos das principais famílias. Queria os jovens e de boa sombra, armados com esplendor para que todos que os vissem ficassem deslumbrados. Assim foi feito. Restauraram-se as muralhas, armaram-se galés altivas, escolheram-se os esbeltos infantes e os mais gentis cavaleiros.

“O que maravilhava, porém, não era a espessura das muralhas, não era o porte dos navios, nem era tampouco, o número da soldadesca, mas o fausto que em tudo se notava. As muralhas eram pintadas como paredes de paços, as naus andavam sempre enfeitadas, como em festa, com a campanha vestida de linho alvo, vergando remos que eram de sândalo; os infantes, mais pareciam donzéis de paço, vestidos de púrpura com arcos que trescalavam, escudos que eram baixelas, lanças com espículos de prata e que direi dos cavaleiros? Se os telizes (panos para sela) eram de trama de ouro, podeis imaginar como seria o mais.

“Toda essa ostentação era apenas para a vista: nem as muralhas ofereciam resistência porque as pedras, mal assentadas, rolariam ao primeiro embate abrindo brechas ao inimigo, nem os infantes meneavam as armas e os cavaleiros só em torneios galantes escaramuçavam. O príncipe contentava-se com possuir exércitos e uma esquadra numerosa. Que lhe importava a imperícia do soldado e a inexperiência do marujo? Lá estavam os vistosos esquadrões e no molhe, velas abertas, a esquadra arfando.

Sucedeu que um monarca ambicioso, cujo reino confinava com o de Laos, resolveu levantar-se em armas contra o príncipe garrido e, estendendo em campo o seu valente exército e soltando nos mares a sua aguerrida frota, impôs-se com arrogância.

Foi então que um aio falou ao príncipe :

— Senhor, é tempo de fazerdes sair a vossa gente. Guarnecei as muralhas, confiai o comando da tropa a um general arguto, entregai a um hábil capitão a esquadra e facilmente fareis recuar o ousado que nos ameaça com afronta.

— Que! – exclamou o príncipe. – Queres que exponha os meus infantes, que tanta vista fazem com os seus uniformes de púrpura, as suas perneiras de prata, os seus escudos de aço brunido e as suas lanças ornamentadas, à gente rude e devassa que aí vem?  Hei de lançar ginetes preciosos e cavaleiros que levam no corpo tesouros em pedrarias contra uma horda de maltrapilhos? Achas que navios laminados a prata, abrindo velas de linho, foram feitos para abordar chavecos? Não! E deixou-se estar.

Chegou às muralhas a chusma bravia e logo foi iniciado o assalto.

No mar as galeras ricas sofreram o abalroo da frota inimiga e, uma a uma, foram soçobrando. Corre o aio ao palácio.

O príncipe admirava a sua gente de guerra que manobrava ao sol, num campo fechado. As escunas cintilavam, os cocares dos elmos eram de todas as cores e os cavalos, cabeando airosamente ao meneio dos cavaleiros, faziam rebrilhar os jaezes (ornato para as bestas) e as armas. Estrondavam os instrumentos, refulgia o aceiro. Que lindo!

— Senhor, tornou o áulico alarmado, enquanto vos extasiais no lustro da vossa gente o inimigo vareja os muros da cidade. Já se ouve o vozeio confuso, as tubas roucas ressoam, tinem armas nas ruas. Em pouco estarão convosco. Fazei sair a vossa gente. Que, ao menos, se defenda a vossa residência e o trono.

Não deu resposta o príncipe. Expor à morte aquele brilhante exército... E deixou-se estar contemplando o garbo luzimento dos infantes e dos cavaleiros.

Um tumulto assustou-o: era tarde. Quando se lembrou de bradar aos seus guerreiros, mãos brutas arrastaram-no e, manietado, cativo, lá foi o príncipe de Laos. “

Calou-se a donzela.

Soergueu-se o enfermo e, fitando os olhos na filha, que baixara a cabeça loura e retomara a meada e o fuso, bradou:

— Por Deus! E os guerreiros ?

— Os guerreiros...?

— Sim. Porque não saíram em defesa do seu soberano ?

— Porque ele não os tinha para batalhas, mas para simples encanto dos olhos.

— Essa agora! Guerreiros querem-se na luta, não são atores para divertimento de cortes. De que lhe serviu exército tão numeroso e tão rico se acabou em tamanha miséria nas mãos dos brutos?

— Lastimai-o, senhor: tinha mais amor às armas resplandecentes do que à pátria e à própria vida. Não tendes vós ali na arca moedas sem conta, barras de ouro e de prata, pedrarias e baixelas ? Não nutris nas vastas campinas tantos ginetes aderençados? Não dispondes de cavaleiros fiéis ao vosso comando? Entanto, a Morte ronda o castelo e, em breve, estará convosco, porque vos negais a ceder ao pedido do físico. Moedas amealhadas são economias que devem sair ao reclamo da necessidade. A formiga, no inverno, alimenta-se com o que recolheu no estio. Vale mais que um reino a vossa vida e, se sucumbirdes, ainda que vos forrem de ouro o túmulo e o incrustem de gemas, não deixareis de apodrecer como o animal que morre na charneca. Quem fica debruçado a contemplar tesouros esquece todos os deveres. A avareza é um crime. Se o príncipe houvesse atendido à voz do aio ainda seria rei e não estaria a gemer no fundo de uma masmorra, carregado de ferros.

– Que venha o físico! - bradou o príncipe. – Manda-lhe a condução e os cavaleiros e que lhe digam que, além das moedas do ajuste, terá ainda um vaso de ouro no dia em que eu puder vestir a couraça e brandir a faixa de armas. Exércitos querem-se em campo.

— E moedas em giro, quando é preciso. - disse a donzela. E, levantando-se para transmitir as ordens de seu pai, suspirou: Tivesse o príncipe ouvido as palavras do aio e ainda hoje seria rei do lindo país de Laos.

— E onde fica esse país? – indagou o velho interessado.

— Onde fica? Só os poetas o sabem, meu senhor, os poetas que tudo conhecem, porque a imaginação os leva a toda a parte. Hei de perguntar a um menestrel.

Disse e, sorrindo, saiu a transmitir as ordens necessárias para que fossem buscar o físico à montanha.

Fonte:
Disponível em domínio público.
Coelho Neto. Fabulário. Porto/Portugal: Livraria Chardron, de Ceio & Irmão, 1924.
Atualização do português por J.Feldman