quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Fernando Sabino (O Encontro Marcado)


A Procura

A história de Eduardo Marciano nos é contada por um narrador que parece ser muito próximo da personagem, pois acompanha passo a passo a sua trajetória e conta com o domínio de quem conhece tudo sobre o rapaz. É o que chamamos de narrador em terceira pessoa. Esse narrador abre a história propondo um pacto com o leitor, chamando-o a participar do que vai contar: "Que significava o quintal para Eduardo?". Mais do que depressa queremos saber a resposta e, conhecendo - a, queremos saber mais sobre o garoto que parecia ter toda a liberdade para ser feliz e, no entanto, não a tinha. Sua primeira derrota já aparece no início do relato: a galinha de estimação Eduarda, vira o almoço de domingo.

Eduardo era filho único. Fazia de tudo para manter sempre seu lugar de destaque naquela família. era mimado, cheio de vontades e de atrevimentos, estava sempre a testar o limite das pessoas, como qualquer garoto de sua idade. Os pais não sabiam muito bem como lidar com as estranhezas temperamentais do filho, que amolava a empregada, esperneava para ir à escola, chantageava por qualquer coisa. Uma vez descobriu que arranhando o rosto deixava os pais atônitos. Pronto! Por qualquer bobagem machucava-se até sangrar. Era um desespero de menino mimado, prenúncio de um jovem sem limites.

Eduardo sempre precisava de um desafio para atingir alguma conquista. Certa vez, interessou-se por uma colega da escola que era ótima aluna. Foi o prenúncio da paixão, pela menina e pela vontade de ultrapassar seus limites. Estudou até conseguir o primeiro lugar na sala, ao lado de Lêda, a garota das notas boas. Alcançando assim o objetivo, Lêda deixa de ser o alvo de suas atenções. O episódio deu a Eduardo a medida exata de suas possibilidades. estava, então, com onze anos.

Tinha todas as curiosidades de sua época, como a descoberta de sua sexualidade, por exemplo. Estava sempre atento para as novidades, quem dormia com quem, quem tinha doença, com quem tinha pego...

Era um garoto precoce. Logo cedo destacou-se por seu talento na escrita; inscreveu-se numa maratona intelectual e ganhou o segundo lugar, um prêmio em dinheiro que foi buscar no Rio de Janeiro. Ficou por lá gastando o dinheiro do prêmio até acabar.

"Saiu pela rua, mão no bolso, sentindo que naquele momento começava a viver. Pobreza, fome, miséria_ tudo era preciso, para tornar-se escritor. Escrevera um conto em que dizia isso, mandara para um concurso de contos". Ganhou algum dinheiro como premiação e tirou disto uma lição: "Na vida tudo seria assim, a solução se apresentando imediatamente, mal começasse a buscá-la, gozando assim as dificuldades do problema? Na vida tudo lhe seria assim."

Assim foi que Eduardo enfrentou a vida, sempre achando que a solução se apresentaria a ele quando precisasse. A história, porém, vai mostrar o contrário. Eduardo consegue articular com certa facilidade seus interesses, mas nem sempre seu interior está em paz, a busca por esse momento será o fio com que o narrador tecerá a intriga.

Um episódio marcante na vida de Eduardo foi o suicídio de um amigo, o Jadir. Esse rapaz tinha uma família complicada, o pai bebia, a mãe era meio desregrada, a irmã era saliente, o que bastava para que não fosse uma boa companhia aos olhos de dona Stefânia. Um dia antes, Eduardo comentava com Jadir que, às vezes, tinha vontade de morrer. Falaram sobre suicídio, cada um emitiu sua opinião. Eduardo dizia que era covardia, a menos que se fizesse um estrago louco antes, algo que o marcasse na História. Jadir dizia que "- quem quer morrer mesmo, não pensa em nada disso, só pensa em morrer." Acabou dando tiro no peito. Isso naturalmente tirou o sono de Eduardo por muito tempo.

Ao contar a história de Eduardo, o narrador fornece um retrato dos costumes de uma época, em especial o preconceito próprio de uma cidade ainda provinciana em que o sujeito está a mercê de julgamentos preestabelecidos, especialmente em relação ao comportamento de um determinado grupo social. É o que acontece com a interferência de Dona Stefânia no namoro de Eduardo com Letícia, por exemplo. Para ela a menina não é uma boa companhia ao filho. Isso certamente porque não se simpatizou com a liberdade que a mãe dava à garota.

Seu Marciano resolve ficar sócio de um clube, onde certamente o filho terá uma vida mais saudável. Eduardo decide fazer natação e em pouco tempo é um dos melhores em sua categoria. Sentia prazer com as vitórias, "Uma espécie diferente de emoção - a de poder contar consigo mesmo, e de saber-se, numa competição, antecipadamente vencedor." Foi um vitorioso, mas sua obstinação deixava o pai preocupado, sempre às voltas com o estudo de Eduardo. Formar-se era um valor para seu Marciano, uma promessa que Eduardo não cumpriu. No colégio, não foi bom aluno. Era questionador, rebelava-se contra a estrutura da instituição, acabou formando-se aos empurrões. Certa vez o monsenhor do colégio chama-lhe a atenção, após uma briga que teve com o colega Mauro. Eduardo foi atrevido, mas o seu argumento era forte. Não foi expulso, mas Monsenhor Tavares imprimiu-lhe uma pergunta que ele só pôde, de fato, responder muitos anos depois: "Você acredita em Deus?"

Eduardo decide que será escritor. Seu Marciano o apresenta a Toledo, um escritor seu amigo, que será uma espécie de ídolo para o rapaz. por seu intermédio, Eduardo inicia-se na leitura de grandes escritores. Para Toledo, "A arte é uma maneira de ser dentro da vida. Há outras... É uma maneira de se vingar da vida. Assim como se você procurasse atingir o bem negativamente, esgotando todos os caminhos do mal. É preciso ter pulso, é preciso ter estômago." Por toda a trajetória de Eduardo e seus amigos, a voz narrativa evidencia o gosto de uma geração pela leitura e o interesse, em especial de Eduardo, pela palavra escrita e pelas descobertas que se podem fazer com o conhecimento literário. Apesar disso, a luta que Eduardo empreende para ser um escritor não se festiva. ele não consegue escrever o romance que tanto quer.

Chega, afinal, o tempo da formatura do colégio. Uma nova etapa se descortina para Eduardo e seu grupo, um mundo que eles desconhecem está prestes a se impor. Na despedida, Eduardo, Mauro e Eugênio decidem marcar um encontro dali a quinze anos, naquele mesmo lugar. Cada um segue seu destino em busca do grande encontro consigo mesmo.

Eduardo leva uma vida boêmia, o que implica pouco estudo, pouco trabalho e muita aventura. Ele e os amigos estão sempre desafiando o perigo. O mundo está vivendo os reflexos da segunda guerra mundial. A ideologia dos oprimidos é a voz geral que permeia os discursos da rapaziada. Do grupo, Mauro é o rebelde mais entusiasmado. Discursa em lugares públicos, gera polêmicas, uma espécie mais de modismo que de luta política. Eduardo começa a escrever artigos para o jornal e a incorporar um novo grupo de amigos. Juntos, Eduardo, Mauro e Hugo têm uma vida mais ou menos desregrada e audaciosa. Bebem muito desafiam a cidade, buscam um destino. Hugo acaba sendo professor; Mauro, médico. Eduardo arranja um bom emprego público no Rio de Janeiro, por via dos auspícios de seu futuro sogro ministro.

Tudo começa quando conhece Antonieta, num baile no automóvel Clube. Apesar de todas as diferenças entre eles, iniciam um namoro que vai acabar em casamento.

O Encontro

Eduardo não dá conta de nenhum tipo de relacionamento; nada que implique um convívio consegue tirar o rapaz de seu individualismo exagerado. A trajetória de seu casamento serve de pretexto para um questionamento sobre os padrões dessa instituição .Os casais se desagregam, sempre em busca de um conhecimento pessoal que está longe de se alcançar nesse romance. Conforme Eduardo caminha em busca desse encontro, outros desencontros se sucedem na narrativa. Sempre a bebida é o anestésico para os males de Eduardo. Há sempre um pretexto para estar longe do compromisso com Antonieta. Ora são os amigos do bar, ora é Neusa, a vizinha insinuante, ora são os encontros clandestinos com Gerlane, a nova namorada, tudo mostrando a incapacidade de assumir a vida como ela se apresenta. Até o filho com Antonieta lhes escapa. Eduardo parece estar sempre na contramão de seu destino.

O relacionamento do casal, desde o início, aponta para um desencontro. ela é uma moça rica, de pai influente na política. Ele é de uma família de classe média. Ela mora no Rio de Janeiro, a capital. Ele é de Belo Horizonte, uma cidade ainda marcada pelo provincianismo. ela sabe o que quer, ele se apresenta sempre em perspectivas. Não há entre eles brigas ou discussões acirradas, apesar do comportamento irreverente e descompromissado do rapaz; nesse relacionamento percebe-se que Antonieta é o elemento que tenta a harmonia do casamento. Procura compreender o temperamento depressivo de Eduardo e tenta ajudá-lo, mas ele sempre se mostra incapaz de qualquer reflexão. Nessa relação, evidencia-se o crescimento pessoal de Antonieta e a estagnação comportamental de Eduardo, um sujeito sem referências. Ela acaba desistindo da relação e parte para cuidar de sua vida. ele fica perdido em sua nova vida de solteiro e de desencontros.

A trajetória de Eduardo está sempre marcada por alguma perda. Além de sua galinha Eduarda e de seu amigo Jadir, morre seu Marciano, sem mesmo que ele pudesse estar presente. Rodrigo, um amigo do tempo da natação, morre afogado, preso às ferragens do avião que pilotava. Morre seu filho, ainda no ventre de Antonieta. Vítor, casado com Maria Elisa morre tragicamente atropelado. Essa perda também deixa Eduardo muito abalado, principalmente pelo inusitado dos fatos. Uma semana antes do acidente, Vítor esteve com Eduardo e contou-lhe sobre um exame médico que havia feito e que dera um resultado fatal, um câncer, mas que estava errado pois haviam trocado sua radiografia do pulmão com o de outra pessoa. Nesse ínterim, Vítor fez uma promessa, caso conseguisse sarar. Estavam discutindo exatamente se a promessa deveria ser cumprida, mesmo que sua "cura" se desse pela via do engano. Para Eduardo, a morte do amigo foi uma fatalidade. A própria trajetória de Eduardo evidencia uma morte lenta e gradual dos sentimentos e atitudes diante da vida.

Em O Encontro Marcado, acompanhamos o crescimento de Eduardo, e com ele, o da cidade. No entanto, só, em sua volta a Belo Horizonte após a separação é que ele se dá conta disso: "Encontrou a cidade diferente, mudada. Agitação pelas ruas, prédios novos, gente andando para lá e para cá, como se realmente tivesse urgência de ir a qualquer parte."

Há na descoberta de Eduardo, um prenúncio de que seu olhar começa a se voltar para o exterior. Vejamos se isso de fato acontece.

Eduardo percebe a cidade diferente, sem talvez o encanto de sua juventude. encontra os amigos, Mauro está casado e Hugo parece feliz como professor. Continua um intelectual, cada vez mais se dedica ao estudo acadêmico, vive rodeado dos alunos. Eduardo comparece ao encontro marcado e encontra o ginásio em férias. Os dois amigos não compareceram. "Saiu da cidade como de um cemitério".

Na volta, faz uma parada em Juiz de fora, revê lugares e pessoas que já não dizem mais nada para ele e segue de volta ao Rio. Começa sua peregrinação interior, na tentativa de se encontrar. aos poucos, vai filtrando a vida e reconstituindo o fio de sua identidade: "Agora via em volta que seu mundo era dos outros também, carregando cada qual a sua cruz _ pobres criaturas de Deus. E como eram simpáticas, essas criaturas. Nada de sordidez que via antes em cada olhar, da miséria em cada gesto, o cotidiano sem mistério, a surpresa adivinhada em cada corpo, o segredo assassinado em cada boca."

Reencontra-se com Eugênio, agora frei Domingos. Passa a visitá-lo no convento, onde parece sentir um pouco de alento. Perambula pela cidade, revê Neusa, que diz estar esperando um filho seu. Eduardo não consegue assumir essa nova situação e a moça decide não ter o filho. Aos poucos, Eduardo vai se desligando das relações com as pessoas e a cidade. Toma uma atitude, afinal, a seu favor. Desliga-se do emprego, deixando assim, a sua vaga para o colega Misael. Dá seus livros para o filho desse amigo, rapaz interessado em literatura e deslumbrado com Eduardo, como certa vez, ele o fora com Toledo. Desfaz-se do apartamento e empreende uma grande viagem... na busca e compreensão de si mesmo.

Fonte:
http://www.resumosdelivros.com.br

A. A. de Assis e Elisabeth Souza Cruz (Vaivém do Riso: trovas) Primeiro Volume


Ímpares – A. A. de Assis
Pares – Elisabeth Souza Cruz

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Conversa iniciada em 22-7-11
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1.
Quando moço, acesa a chama
despia-se ante a gatona,
agora veste o pijama
deita de lado... e ronrona.
2.
O meu vizinho se poupa
já que o cansaço é normal...
Quando fala: "Tira a roupa!",
tira a roupa do varal!
3.
Em que aperto o bom velhinho,
de assanhado, se enfiou:
chamou pra cama o brotinho,
e ela, malvada, aceitou...
4.
Brotinho assanhado inventa
mil jogadas para o amor
e o velhinho até que tenta,
mas sai sempre perdedor!!!
5.
Deu desespero no Adão
por ser um “ele” sem “ela”...
Ganhando a dita, o chorão
perdeu a paz... e a costela!
6.
Pode quem quiser falar
pois ninguém sabe o que diz,
tendo a mulher para amar
o homem ficou foi... feliz!
7.
Jamais se viu nesta vida
marido preso em gaiola...
A mulher é mais sabida:
põe-lhe no dedo uma argola!
8.
O homem de argola, também,
ao machismo não se furta:
– faz da mulher seu refém
e a mantém na rédea curta!
9.
De um homem para a mulher
que pede ajuda na pista:
– Desculpe... Se ajuda eu der,
vão me chamar de machista...
10.
A coisa é séria, querido,
tem mulher que é mulher macho...
quando manda no marido
faz dele gato e capacho!
11.
Porém chiar é bobeira...
Quem manda mesmo é a mulher;
tanto é que desde a primeira
faz do marido o que quer...
12.
Bobeira?!... Maior bobeira
é o salário do operário
que trabalha a vida inteira
e não fica milionário!
13.
Também na fauna a justiça
é às vezes discricionária:
dá mole ao bicho-preguiça,
explora a abelha operária...
14.
Falando em exploração,
nunca vi maior babado...
a mulher do capitão,
como explora o rebolado!!!
15.
Lá vai o siri-patola,
todo prosa, a rebolar...
Num puçá se enreda e enrola:
vira petisco de bar!
16.
Falando num bom petisco,
quem não se arrisca, não prova,
como é bom correr o risco
de preparar uma trova!!!
17.
Cinquentão já sou na trova;
na idade, quase oitentão...
Evito, pois, pôr-me à prova:
em museu não entro não!...
18.
Eu também tô quase nessa
e em loja de raridade,
se eu entro, saio depressa
pois pareço antiguidade!
19.
Essa tal de antiguidade
a mim me causa estranheza:
quando perde a utilidade,
é aí que vira riqueza...
20.
Estranheza, caro Assis,
é o que a gente vê "na praça"....
tem gente que pede bis
se uma injeção for de graça!!!
21.
“Ah, que surpresa gostosa!”,
diz a velhinha, feliz,
quando o velho, todo prosa,
dá no couro... e pede bis!...
22.
Buzinando o caminhão,
surpresa boa é a do otário
que dá tempo ao ricardão
para se esconder no armário!
23
Otário simples, legal;
nada faz que prejudique.
O duro é aguentar o tal
do otário metido a chique!...
24.
Com a trova vinte e quatro
me ocorreu agora a ideia:
– ninguém vai mais ao teatro,
pois perde o "acento" a plateia!
25.
Problemas há no momento
em que muda a acentuação.
– De tudo tirem o acento,
porém do “cágado” não!...
26.
O hífen de vice-prefeito,
por certo, não caiu, não,
pois logo depois do pleito
sempre dá separação!
27.
Se acaso se visse o vice
futricando o titular,
um baita disse-me-disse
logo iria se espalhar...
28.
Nunca vi maior tolice
futricar a vida alheia,
pois quem faz disse-me-disse
vai cair na própria teia!
29.
Você sabe o que é que é “teia”?
Não sabe?... Deixo explicado:
– E’ a casca de barro e areia
com que se cobre o “teiado”...
30.
Ra! Ra! Ra! Falando em barro
lembrei da antiga moringa...
água fresquinha! Eu me amarro
e a minha saudade vinga!!!
.
31.
Era uma era inocente,
e a vida era pitoresca:
– um tempo em que toda gente
mantinha a moringa fresca...
32.
Sem juntar alho e bugalho,
quando se fala em moringa,
já me lembrei do baralho,
pois és Assis... meu curinga!
33.
Curinga eu sei que não sou,
mas tenho uns truques sagazes...
– Em meu nome o pai botou
o “aaa”, isto é, três “ases”..
34.
Três "ases"... assim eu digo:
– Um "A" dizendo Alquimia;
O "A" seguinte que é de Amigo
e mais outro "A" de alegria!
35.
Chega manso, pede abrigo,
pede grana... e eu vejo claro:
esse é o tal de caro amigo
que em verdade é amigo caro!...
36.
O tipo acima descrito
custa caro e é um desacato...
Mas amigo "Assis", bendito
é simplesmente um barato!
37.
Certos tipos importantes
parecem Marte – um deserto:
vistos de longe, brilhantes;
cascalho apenas, de perto!...
38.
Brilhantes?!! - Pois sem trabalho,
sem ramo profissional,
a moça arranjou um galho
no "distrito" e... é federal!!
39.
Troca o sábio a esposa culta
pela moça apimentada...
– No instante em que a ardência avulta,
cultura não conta nada!
40.
Numa troca de "mulé",
o "mané" ficou na mão,
que a moça que dava "pé"
tinha um baita sapatão!
41.
Nervoso e agressivo quando
alguém lhe pisa no pé,
diz ele: – Estarás pensando
que eu não sou burro, ó mané?...
42.
Na trova há constatação:
- Assim como o português,
que traz muita inspiração,
o "mané" sempre tem vez!
43.
Súbito um rato matreiro
fungou no pé do Mané.
– Supôs ser de queijo o cheiro...
Quis provar... era chulé!
44.
Do teu queijo eu tiro um naco
pois a minha ideia logra...
mudo de pau pra cavaco,
que tal falarmos de... sogra?
45.
Na hora do desespero,
vale tudo, oh Deus, que horror...
Vale até, sem exagero,
chamar a sogra de “amor”!
46.
Sei também de um desespero,
pois o genro, de mutreta,
pôs pimenta no tempero
e a sogra ficou zureta!
47.
Faltam-lhe os “tchans” da “zelite”,
talvez escola e que-tais...
Mas no “tempero”, acredite,
a danadinha é demais!
48.
Tempero lembra cozinha
e a tua trova... "a penosa",
aquela da tal galinha
que no garfo era bem prosa!
49.
Diz ao garfo, humilde, a faca:
– Rema, rema, remarré...
Eu sou fraca, fraca, fraca,
mas corto mais que a cuié...
50.
Quando tem panela cheia
no fogão da cozinheira
sempre acaba em briga feia
que o patrão quer dar "rasteira" !!
51.
Felizardo é o cara esperto
que vai no mato morar.
Lá não tem patrão por perto
nem sogra no calcanhar...
52.
É verdade! Uma mamata
morar longe de patrão...
só não se pode é na mata
ficar na moita.... sem cão.
53.
Bem pior é um menestrel,
quando lhe apura a barriga,
na moitinha, sem papel,
ter que usar folha de urtiga...
54.
Querido.. eu não faço intriga,
mas veja a situação:
na moita, anda dando briga,
por dinheiro em cuecão!!
55.
Tudo o mais é mera intriga,
fabulazinha bizarra...
– O chato é ser a formiga
“cantada” pela cigarra!
56.
E por falar em cantada
quem canta seu mal espanta?
Eu sou tão desafinada
que nem galo se levanta!!!
57.
Quando o galo nega raça
e precoce o caldo entorna,
a frangona, por pirraça,
dá-lhe um ovo... de codorna!
58.
Eu falo e tenho respaldo,
pois em canja de galinha,
para aumentar mais o caldo,
pegue a sopa da vizinha!.
59.
Alarme no galinheiro.
– Será que há gambá na granja?...
– Bem mais grave: é o cozinheiro
que avisa: “Hoje vai ter canja!”...
60.
E foi tamanho o brigueiro,
pois dona "Gala" se zanga,
já que o galo, que é frangueiro,
logo quis salvar a "franga"!
61.
Fui à feira a fim de frango;
frango fresco ali faltava.
Fiquei fulo e ao fim meu rango
foi farofa, alfafa e fava.
62.
A minha ideia não míngua,
e eu lhe mando "plantar fava",
pois compondo um trava língua,
minha própria língua trava!
63.
Calma aí, não fique brava
com a minha brincadeira...
Se quiser, eu planto fava,
batatas, a horta inteira...
64.
Assis... eu não me detenho
e agora pego carreira:
– quero ver teu desempenho
se "plantares bananeira"!!!
65.
Nada há que mais atraia
a molecadinha arteira
que moça de minissaia
quando planta bananeira...
66.
Tu és um sujeito esperto,
(mas só peço que não caias)
quando estiveres bem perto
das moças perdendo as saias!!!
67.
Disse o esperto garotinho
na forçada confissão:
– Olhei pelo buraquinho...
mas não vi “o” da moça não!
68.
Por falar em confissão,
confessa a moça (e reclama):
- Tão pesado é o meu patrão
que quebrou a minha cama!
69.
O funcionário e a patroa
a um baile foram... “ficaram”.
O patrão soube: largou-a,
e os pôs na rua: “dançaram”!
70.
Com duplo sentido, a "dança"
é palavra que marcou:
– nem sempre quem dança, cansa...
mas quem se cansa... dançou!
71.
Até pra fazer pecados
é necessário ser jovem.
Adões e Evas cansados,
nem mesmo as maçãs os movem...
72.
As maçãs, "na velha idade",
lembram uvas, e o idoso,
olhando as "boas" (maldade!),
– Acançá-las?! É penoso!!!
73.
Conhaque no aperitivo,
conhaque na sobremesa...
– E’ assim que o velhinho, ativo,
mantém a velinha acesa!
74.
"Sopre a velinha , sem dó!"
e, na festinha animada,
sopraram tanto a vovó
que ela ficou resfriada!
75.
– Sopre o trombone sem DÓ,
diz a velhinha ao regente...
– Se mande pra LÁ, vovó,
e cuide de SI... SOL-mente!
76.
Assis, neste DÓ RÉ MI,
a trova pede uma pala:
– como é que eu estando aqui,
ouço tanto a sua fala?
77.
Se no dorré não faz sol,
nem também no lami si,
no remi lá do fá-rol
faz redó relá solmi...
78.
No dó ré que a gente inventa,
Antonio Augusto, tem dó!!!
Já vamos para as oitenta
numa brincadeira só!
79.
Enquanto você topar,
sigamos, então, sem medo.
Vamos brincar de brincar,
até cansar do brinquedo...
80.
O desafio me empolga,
eu topo qualquer parada....
E não preciso de folga
porque eu ando eletrizada!

Fonte:
Livro enviado por A. A. de Assis

Dalton Trevisan (Maria Pintada de Prata)


Num estilo que parte dos lugares-comuns da linguagem urbana brasileira, recriados pela introdução de originalíssimas metáforas, Dalton Trevisan conseguiu criar uma marca própria como ficcionista.

Mas o que verdadeiramente fascina em seus contos é a construção de um cenário comum para os mesmos: Curitiba. Cidade feroz - símbolo de todas as grandes cidades brasileiras - em suas ruas mal-iluminadas as pessoas espreitam as outras, em busca de uma companhia para a noite.

Alguém já disse que na Curitiba de Dalton Trevisan as pessoas vivem apenas para o amor.Apenas que esse amor curitibano não tem nada a ver com aquele amor que pressupomos autêntico.

A humanidade gerada pelo ventre disforme de Curitiba não tem autenticidade: sua forma de amar é degradada, feita de erros, instinto bestial, medo, ressentimento, tédio, traição, vingança e crime.

MARIA PINTADA DE PRATA

Grandalhão, voz retumbante, é adorado pelos filhos. João não vive bem com Maria - ambiciosa, quer enfeitar a casa de brincos e tetéias. Ele ganha pouco, mal pode com os gastos mínimos.

Economiza um dinheirinho, lá se foi com a asma do guri, um dente de ouro da mulher. Ela não menos trabalhadeira: faz todo o serviço, engoma a roupinha dos meninos, costura as camisas do marido.

Inconformada porém da sorte, humilhando o homem na presença da sogra.Para não discutir ele apanha o chapéu, bate a porta, bebe no boteco. Um dos pequenos lhe agarra a ponta do paletó:

- Não vá, pai. Por favor, paizinho.

Comove-se de ser chamado de paizinho. Relutante, volta-se para a fulana: em cada olho um grito castanho de ódio.

- O paizinho vai dar uma volta.

Tão grande e forte, embriaga-se fácil com alguns cálices. Estado lastimável, atropelando as palavras, é o palhaço do botequim.

E, pior que tudo, sente-se desgraçado, quer aconchego do corpo gostoso da mulher.

Mais discutem, mais ele bebe e falta dinheiro em casa. Maria se emboneca, muito pintada e gasta pelos trabalhos caseiros.

Desespero de João e escândalo das famílias, a pobre senhora, feia e nariguda, canta no tanque e diante do espelho as mil marchinhas de carnaval.

Os filhos largados na rua, ocupada em depilar sobrancelhas e encurtar a saia - no braço o riso de pulseiras baratas.Com uma vizinha de má fama inscreve-se no programa de calouros:

- Sou artista exclusiva - ufana-se, com sotaque pernóstico. - A féria é gorda!

Aos colegas de rádio oferece salgadinhos e cerveja. João escapole pelos fundos, envergonhado da barba por fazer. Volta bêbado e Maria tranca a porta do quarto, obrigado a dormir no sofá da sala.

Noite de inverno, o filho mais velho, ao escutá-lo gemer, traz um cobertor.

- Durma, paizinho.

A cada sucesso de Maria - o quinto prêmio de marchinha, o retrato no jornal, a carta com pedido de autógrafo:

- Ela ainda recebe vaia - é o comentário de João. - Com uma boa vaia ela aprende!

Ó não - essa aí quem é de cabelo oxigenado? Acompanhada a casa, horas mortas, pelo parceiro de vida artística. Ora o cantor de tangos, ora o mágico de ciências ocultas.

Demora-se aos beijos na porta e as mães proíbem as crianças de brincar com os dois meninos. João sabe que é o fim - dona de casa que tinge o cabelo não é séria. Vai dormir puxado na lenha, encolhido na enxerga imunda, a garrafa na mão.

Dois dias fechado (assusta-lhe a própria força e jamais bate nos filhos), urra palavrão e desfere murro na parede. Maria faz as malas e, sem que os pequenos se despeçam de João, muda-se para casa dos pais.

Lá deixa os meninos e amiga-se com um pianista de clube noturno. Mais uma bailarina, que obriga os clientes a beber. O pianista, vicioso e tísico, toma-lhe o dinheiro e, se a féria não é gorda, ainda apanha.

Cansada de surra, volta à casa dos pais. Então a velha sai em busca de João e sugere as pazes.

- Ela que fique onde está. Não quero Maria nem pintada de prata.

Despedido da fábrica por embriaguez, sobrevive com biscates. Ao vestir o paletó, da manga surge uma cobra e, aos berros, lança-o no fogo.

Aranha cabeluda morde-lhe a nuca; inútil esmagá-la com o sapato, de uma nascem duas e três - enrodilha-se medroso a um canto e esconde nos joelhos a cabeça.

Domingo recebe a visita dos filhos, enviados pela sogra. Divertem-se no Passeio Público a espiar os macaquinhos. O pai compra amendoim e pipoca, que os três mastigam delicados.

Afasta-se de mansinho e, atrás de uma árvore, empina a garrafa saliente no bolso traseiro da calça - as mãos cessam de tremer. Os meninos desviam os olhos: sapato furado, calça rasgada, paletó sem botão. Alisando a mão gigantesca:

- Não, paizinho. Não beba mais, pai.

Lágrimas correm pelo narigão de cogumelo encarnado. Despede-se com sorriso sem dentes. Esquina gorgoleja a cachaça até a última gota.

Em delírio na sarjeta, recolhido três vezes ao hospício. A crise medonha da desintoxicação, solto quinze dias mais tarde. Mal cruza o portão, entra no primeiro boteco.

Maria cai nos braços do mágico de ciências ocultas e, proibida de cantar com voz tão horrorosa, consola-se no tanque de roupa.

Nem o amante nem os velhos querem saber dos piás, internados no asilo de órfãos.

Cada um aprende seu ofício e, no último domingo do mês, com permissão da freira, vão bem penteadinhos à casa do pai.

Ainda deitado, curte a ressaca; com alguns goles sente-se melhor. Os pequenos varrem a casa, acendem o fogo, olhinho irritado pela fumaça. No almoço apresentam café com pão e salame rosa.

Sentado na cama, o pai contenta-se em vê-los comer. Sorri em paz, um deles enxuga-lhe o suor frio da testa.

Sem coragem de abandoná-lo, os filhos a seu lado durante a noite: fala bobagem, treme da cabeça aos pés, bolhas de escuma espirram no canto da boca.

Os meninos adormecem, ouvindo o ronco feio do afogado. O maior acorda no meio da noite, vai espiar o pai em sossego, olho branco.

Fala com ele, não se mexe. Tem medo e chama o irmão:

- O paizinho morreu.

Sem chorar, encolhidos na beira da cama, à escuta dos pardais da manhã.

Fonte:
- Webvestibular
- 20 Contos Menores”, Editora Record – Rio de Janeiro, 1979, pág. 43.

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 341)

Uma Trova Nacional
Uma Trova Potiguar

O contraste que amargura
a maioria indefesa
é uns, com tanta fartura,
e tantos sem pão na mesa!
–CLARINDO BATISTA/RN–

Uma Trova Premiada

2002 - “Rádio” Ouro Fino/MG
Tema: MENINO DA PORTEIRA - 1º Lugar.

Vi meu drama retratado
numa canção boiadeira;
se a saudade é o boi malvado,
sou "menino da porteira"!
–PEDRO ORNELLAS/SP–

Uma Trova de Ademar

No lamaçal da favela,
tomba a criança sem vida...
Era esse o destino dela
e o de uma bala perdida!...
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Com esse encanto expressivo,
que de modéstia se veste,
NATAL é um presépio vivo
que Deus armou no Nordeste !
–ÉLTON CARVALHO/RJ–

Simplesmente Poesia

Céu Peregrino
–BRASIGÓIS FELÍCIO/GO–

Quanto sonho
e quanta ilusão
hei empenhado
em perder para o futuro
o sopro dos dias
que tenho tido!

Tenho vivido
como Sísifo absurdo,
para tudo cair no olvido
em que tudo cai,
ao fim de tudo.

Hoje sou peregrino
do céu que posso ter
à luz de um sol que É.

Estrofe do Dia

O globo girando sobra
mas seu eixo continua,
e o homem se perpetua
pela dimensão da obra,
o banco da morte cobra
com juros e correção,
e essa terrível inflação
um só real não perdoa,
passa a vida o tempo voa
nas asas da ilusão.
–JOMACI DANTAS/PB–

Soneto do Dia

Confessional
–GLAUCO MATTOSO/SP–

Amar, amei. Não sei se fui amado,
pois declarei amor a quem odiara
e a quem amei jamais mostrei a cara,
de medo de me ver posto de lado.

Ainda odeio quem me tem odiado:
devolvo agora aquilo que declara.
Mas quem amei não volta, e a dor não sara.
Não sobra nem a crença no passado.

Palavra voa, escrito permanece,
garante o adágio vindo do latim.
Escrito é que nem ódio, só envelhece.

Se serve de consolo, seja assim:
amor nunca se esquece, é que nem prece.
Tomara, pois, que alguém reze por mim…

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Machado de Assis (O Alienista) XI – O Assombro de Itaguaí; XII – O final dos § 4º.


CAPÍTULO XI - O ASSOMBRO DE ITAGUAÍ

E agora prepare-se o leitor para o mesmo assombro em que ficou a vila ao saber um dia que os loucos da Casa Verde iam todos ser postos na rua.

—Todos?

—Todos.

—É impossível; alguns sim, mas todos...

—Todos. Assim o disse ele no ofício que mandou hoje de manhã à Câmara

De fato o alienista oficiara à Câmara expondo: — 1': que verificara das estatísticas da vila e da Casa Verde que quatro quintos da população estavam aposentados naquele estabelecimento; 2° que esta deslocação de população levara-o a examinar os fundamentos da sua teoria das moléstias cerebrais, teoria que excluía da razão todos os casos em que o equilíbrio das faculdades não fosse perfeito e absoluto; 3° que, desse exame e do fato estatístico, resultara para ele a convicção de que a verdadeira doutrina não era aquela, mas a oposta, e portanto, que se devia admitir como normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades e como hipóteses patológicas todos os casos em que aquele equilíbrio fosse ininterrupto; 4o que à vista disso declarava à Câmara que ia dar liberdade aos reclusos da Casa Verde e agasalhar nela as pessoas que se achassem nas condições agora expostas; 5° que, tratando de descobrir a verdade científica, não se pouparia a esforços de toda a natureza, esperando da Câmara igual dedicação; 6º que restituía à Câmara e aos particulares a soma do estipêndio recebido para alojamento dos supostos loucos, descontada a parte efetivamente gasta com a alimentação, roupa, etc.; o que a Câmara mandaria verificar nos livros e arcas da Casa Verde.

O assombro de Itaguaí foi grande; não foi menor a alegria dos parentes e amigos dos reclusos. Jantares, danças, luminárias, músicas, tudo houve para celebrar tão fausto acontecimento. Não descrevo as festas por não interessarem ao nosso propósito; mas foram esplêndidas, tocantes e prolongadas.

E vão assim as coisas humanas! No meio do regozijo produzido pelo ofício de Simão Bacamarte, ninguém advertia na frase final do § 4º, uma frase cheia de experiências futuras.

CAPÍTULO XII - O FINAL DO § 4º.

Apagaram-se as luminárias, reconstituíram-se as famílias, tudo parecia reposto nos antigos eixos. Reinava a ordem, a Câmara exercia outra vez o governo sem nenhuma pressão externa; o presidente e o vereador Freitas tornaram aos seus lugares. O barbeiro Porfírio, ensinado pelos acontecimentos, tendo "provado tudo", como o poeta disse de Napoleão, e mais alguma coisa, porque Napoleão não provou a Casa Verde, o barbeiro achou preferível a glória obscura da navalha e da tesoura às calam idades brilhantes do poder; foi, é certo, processado; mas a população da vila implorou a clemência de Sua Majestade; daí o perdão. João Pina foi absolvido, atendendo-se a que ele derrocara um rebelde. Os cronistas pensam que deste fato é que nasceu o nosso adágio:—ladrão que furta ladrão tem cem anos de perdão;—adágio imoral, é verdade, mas grandemente útil.

Não só findaram as queixas contra o alienista, mas até nenhum ressentimento ficou dos atos que ele praticara; acrescendo que os reclusos da Casa Verde, desde que ele os declarara plenamente ajuizados, sentiram-se tomados de profundo reconhecimento e férvido entusiasmo. Muitos entenderam que o alienista merecia uma especial manifestação e deram-lhe um baile, ao qual se seguiram outros bailes e jantares. Dizem as crônicas que D. Evarista a princípio tivera idéia de separar-se do consorte, mas a dor de perder a companhia de tão grande homem venceu qualquer ressentimento de amor-próprio e o casal veio a ser ainda mais feliz do que antes.

Não menos íntima ficou a amizade do alienista e do boticário. Este concluiu do ofício de Simão Bacamarte que a prudência é a primeira das virtudes em tempos de revolução e apreciou muito a magnanimidade do alienista, que ao dar-lhe a liberdade estendeu-lhe a mão de amigo velho.

—É um grande homem, disse ele à mulher, referindo aquela circunstância.

Não é preciso falar do albardeiro, do Costa, do Coelho, do Martim Brito e outros especialmente nomeados neste escrito; basta dizer que puderam exercer livremente os seus hábitos anteriores. O próprio Martim Brito, recluso por um discurso em que louvara enfaticamente D. Evarista, fez agora outro em honra do insigne médico—"cujo altíssimo gênio, elevando as asas muito acima do sol, deixou abaixo de si todos os demais espíritos da terra".

— Agradeço as suas palavras, retorquiu-lhe o alienista, e ainda me não arrependo de o haver restituído à liberdade.

Entretanto, a Câmara que respondera o ofício de Simão Bacamarte com a ressalva de que oportunamente estatuiria em relação ao final do § 4°, tratou enfim de legislar sobre ele. Foi adorada sem debate uma postura, autorizando o alienista a agasalhar na Casa Verde as pessoas que se achassem no gozo do perfeito equilíbrio das faculdades mentais. E porque a experiência da Câmara tivesse sido dolorosa, estabeleceu ela a cláusula de que a autorização era provisória, limitada a um ano, para o fim de ser experimentada a nova teoria psicológica, podendo a Câmara antes mesmo daquele prazo mandar fechar a Casa Verde, se a isso fosse aconselhada por motivos de ordem pública. O vereador Freitas propôs também a declaração de que, em nenhum caso, fossem os vereadores recolhidos ao asilo dos alienados: cláusula que foi aceita, votada e incluída na postura apesar das reclamações do vereador Galvão. O argumento principal deste magistrado é que a Câmara legislando sobre uma experiência científica, não podia excluir as pessoas dos seus membros das conseqüências da lei; a exceção era odiosa e ridícula. Mal proferira estas duas palavras, romperam os vereadores em altos brados contra a audácia e insensatez do colega; este, porem, ouviu-os e limitou-se a dizer que votava contra a exceção.

—A vereança, concluiu ele, não nos dá nenhum poder especial nem nos elimina do espírito humano.

Simão Bacamarte aceitou a postura com todas as restrições. Quanto à exclusão dos vereadores, declarou que teria profundo sentimento se fosse compelido a recolhê-los à Casa Verde; a cláusula, porém, era a melhor prova de que eles não padeciam do perfeito equilíbrio das faculdades mentais. Não acontecia o mesmo ao vereador Galvão, cujo acerto na objeção feita, e cuja moderação na resposta dada às invectivas dos colegas mostravam da parte dele um cérebro bem organizado; pelo que rogava à Câmara que lho entregasse. A Câmara sentindo-se ainda agravada pelo proceder do vereador Galvão, estimou 0 pedido do alienista e votou unanimemente a entrega.

Compreende-se que, pela teoria nova, não bastava um fato ou um dito para recolher alguém à Casa Verde; era preciso um longo exame, um vasto inquérito do passado e do presente. O Padre Lopes, por exemplo, só foi capturado trinta dias depois da postura, a mulher do boticário quarenta dias. A reclusão desta senhora encheu o consorte de indignação. Crispim Soares saiu de casa espumando de cólera e declarando às pessoas a quem encontrava que ia arrancar as orelhas ao tirano. Um sujeito, adversário do alienista, ouvindo na rua essa noticia, esqueceu os motivos de dissidência, e correu à casa de Simão Bacamarte a participar-lhe o perigo que corria. Simão Bacamarte mostrou-se grato ao procedimento do adversário, e poucos minutos lhe bastaram para conhecer a retidão dos seus sentimentos, a boa-fé, o respeito humano, a generosidade; apertou-lhe muito as mãos, e recolheu-o à Casa Verde.

—Um caso destes é raro, disse ele à mulher pasmada. Agora esperemos o nosso Crispim.

Crispim Soares entrou. A dor vencera a raiva, o boticário não arrancou as orelhas ao alienista. Este consolou o seu privado, assegurando-lhe que não era caso perdido; talvez a mulher tivesse alguma lesão cerebral; ia examiná-la com muita atenção; mas antes disso não podia deixá-la na rua. E, parecendo-lhe vantajoso reuni-los, porque a astúcia e velhacaria do marido poderiam de certo modo curar a beleza moral que ele descobrira na esposa, disse Simão Bacamarte:

—O senhor trabalhará durante o dia na botica, mas almoçará e jantará com sua mulher, e cá passará as noites, e os domingos e dias santos.

A proposta colocou o pobre boticário na situação do asno de Buridan. Queria viver com a mulher, mas temia voltar à Casa Verde; e nessa luta esteve algum tempo, até que D. Evarista o tirou da dificuldade, prometendo que se incumbiria de ver a amiga e transmitiria os recados de um para outro. Crispim Soares beijou-lhe as mãos agradecido. Este último rasgo de egoísmo pusilânime pareceu sublime ao alienista.

Ao cabo de cinco meses estavam alojadas umas dezoito pessoas; mas Simão Bacamarte não afrouxava; ia de rua em rua, de casa em casa, espreitando, interrogando, estudando; e quando colhia um enfermo levava-o com a mesma alegria com que outrora os arrebanhava às dúzias. Essa mesma desproporção confirmava a teoria nova; achara-se enfim a verdadeira patologia cerebral. Um dia conseguiu meter na Casa Verde o juiz de fora; mas procedia com tanto escrúpulo que o não fez senão depois de estudar minuciosamente todos os seus atos e interrogar os principais da vila. Mais de uma vez esteve prestes a recolher pessoas perfeitamente desequilibradas; foi o que se deu com um advogado, em quem reconheceu um tal conjunto de qualidades morais e mentais que era perigoso deixá-lo na rua. Mandou prendê-lo; mas o agente, desconfiado, pediu-lhe para fazer uma experiência; foi ter com um compadre, demandado por um testamento falso, e deu-lhe de conselho que tomasse por advogado o Salustiano; era o nome da pessoa em questão.

—Então parece-lhe...?

—Sem dúvida: vá, confesse tudo, a verdade inteira, seja qual for, e confie-lhe a causa.

O homem foi ter com o advogado, confessou ter falsificado o testamento e acabou pedindo que lhe tomasse a causa. Não se negou o advogado; estudou os papéis, arrazoou longamente, e provou a todas as luzes que o testamento era mais que verdadeiro. A inocência do réu foi solenemente proclamada pelo juiz e a herança passou-lhe às mãos. O distinto jurisconsulto deveu a esta experiência a liberdade.

Mas nada escapa a um espírito original e penetrante. Simão Bacamarte, que desde algum tempo notava o zelo, a sagacidade, a paciência, a moderação daquele agente, reconheceu a habilidade e o tino com que ele levara a cabo uma experiência tão melindrosa e complicada, e determinou recolhê-lo imediatamente à Casa Verde; deu-lhe todavia um dos melhores cubículos.

Os alienados foram alojados por classes. Fez-se uma galeria de modestos; isto é, os loucos em quem predominava esta perfeição moral; outra de tolerantes, outra de verídicos, outra de símplices, outra de leais, outra de magnânimos, outra de sagazes, outra de sinceros, etc. Naturalmente as famílias e os amigos dos reclusos bradavam contra a teoria; e alguns tentaram compelir a Câmara a cassar a licença. A Câmara porém, não esquecera a linguagem do vereador Galvão, e, se cassasse a licença, vê-lo-ia na rua e restituído ao lugar; pelo que, recusou. Simão Bacamarte oficiou aos vereadores, não agradecendo, mas felicitando-os por esse ato de vingança pessoal.

Desenganados da legalidade, alguns principais da vila recorreram secretamente ao barbeiro Porfírio e afiançaram-lhe todo o apoio de gente, de dinheiro e influência na corte, se ele se pusesse à testa de outro movimento contra a Câmara e o alienista. O barbeiro respondeu-lhes que não; que a ambição o levara da primeira vez a transgredir as leis, mas que ele se emendara, reconhecendo o erro próprio e a pouca consistência da opinião dos seus mesmos sequazes; que a Câmara entendera autorizar a nova experiência do alienista, por um ano: cumpria, ou esperar o fim do prazo, ou requerer ao vice-rei, caso a mesma Câmara rejeitasse o pedido. Jamais aconselharia o emprego de um recurso que ele viu falhar em suas mãos e isso a troco de mortes e ferimentos que seriam o seu eterno remorso.

— O que é que me está dizendo? perguntou o alienista quando um agente secreto lhe contou a conversação do barbeiro com os principais da vila.

Dois dias depois o barbeiro era recolhido à Casa Verde.— Preso por ter cão, preso por não ter cão! exclamou o infeliz.

Chegou o fim do prazo, a Câmara autorizou um prazo suplementar de seis meses para ensaio dos meios terapêuticos. O desfecho deste episódio da crônica itaguaiense é de tal ordem e tão inesperado, que merecia nada menos de dez capítulos de exposição; mas contento-me com um, que será o remate da narrativa, e um dos mais belos exemplos de convicção científica e abnegação humana.
–––––––––––––
continua… Capitulo XIII, final – Plus Ultra!
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Fonte:
ASSIS, Machado de. O Alienista.

Assis Brasil (Concerto Campestre)


Concerto Campestre, de Luís Antonio de Assis Brasil, é, numa definição redutora, uma alegoria sobre um tempo (meados do século passado) e um lugar (as fronteiras vazias dos pampas) do Rio Grande do Sul e que o autor apresenta em plena decadência moral, social e política.

Há os nascidos ali e os intrusos, e todos giram à volta do Major Antônio Eleutério de Fontes que, cansado de mandar e ser obedecido, delega na esposa, D. Brígida, a sua prepotência para se dedicar ao mecenato da música. Faz isso com tanta generosidade que não se conhece nas aldeias e cidades mais próximas quem possua orquestra própria (a Lira Santa Cecília) de melhor qualidade. Com dois filhos boçais e uma filha bonita, Clara Vitória, o Major transfere para a sua orquestra grande parte do seu afeto e do seu dinheiro, para desespero silencioso de D. Brígida, que não se resigna a que se gaste tanto dinheiro com a música, mas que não pode, por dever social, hostilizar publicamente o marido. Assim, tudo parece correr sobre as rodas: há dinheiro, a orquestra já toca afinada e até há um fazendeiro rico e de boa figura para casar com Clara Vitória; e há um padre que tudo abençoa: a música e a felicidade, o amor, o bem-viver, a boa comida. Há um senão: um maestro femeeiro arranjado pelo padre, que o Major instalou no quarto de hóspedes, ao lado do quarto da filha. O resultado desta vizinhança foi catastrófico. Curiosamente, é o Major quem reage de forma mais violenta: expulsa Clara Vitória grávida, dá cabo da Lira Santa Cecília e ia dando cabo do fazendeiro que julgou ser o responsável pela afronta, para sorte do Maestro, a quem só restou fugir.

É uma narrativa realista tradicional, do ponto de vista da linguagem e da estrutura da obra.

O que logo ressalta em Concerto Campestre é o conhecimento da história, na sua multiplicidade de envolvências. E é esse conhecimento que provoca no leitor a certeza que está revivendo a verdade de um tempo e de um lugar que, tratada sob a forma de ficção, toca as fronteiras mágicas do fantástico. Daí, o encantamento deste livro, apoiado por uma escrita de grande rigor formal, que respira, alegoricamente, ao ritmo musical, fraseado por andamentos que alternam, por oposição, entre o suave e o forte, entre o trágico e o cômico, entre o sossego lírico e a inquietação dos medos.

Com esse rigor narrativo, Assis Brasil define as personagens do seu romance, através de traços fortes, porventura caricaturais, tornando-as paradigmáticas das diversas classes sociais que povoam os pampas do Rio Grande do Sul de então e que o autor descreve de forma radiográfica. E assim, ele imbrica as personagens nas sucessivas situações a que estão sujeitas, sem nunca perder a sua colocação no tempo ou no lugar e não deixando que estes se sobreponham ao desenvolvimento dos conflitos. Para tanto utilizou "pinceladas" de envolvência discretas, mas suficientemente definidoras de um surpreendente sentido plástico.

Flui mansa a narrativa de Concerto campestre e nela se inserem informações, indicando que muitas outras haviam sido, até então, subtraídas. Anunciam, ao fim de capítulo, uma situação de crise que irá determinar a continuação do relato sem que, no entanto, ocorram mudanças no seu ritmo.

O primeiro capítulo narra a chegada do Maestro na fazenda e de seus progressos frente à orquestra; brevemente, de suas relações com a família do estancieiro. Nas últimas linhas, informa, e quase nada o fizera prever, da paixão de Clara Vitória por ele.

O segundo capítulo retoma o dia em que o Maestro chegou para narrar dos primeiros interesses de Clara Vitória: espiara pela fresta da cortina enquanto ele, sentado, esperava que o fazendeiro lesse a carta que trazia. Os repetidos encontros e as palavras trocadas e o perceber-lhe os movimentos no quarto ao lado vão arquitetando os sentimentos.

Nas últimas linhas do segundo capítulo, a inesperada revelação: o esgueirar-se de Clara Vitória fora de casa para entrar no quarto do Maestro e lá ficar até de madrugada. Então, novamente, a volta da narrativa para um momento anterior e, assim completar o que não fora dito e, outra vez, tratar dos sucessos da orquestra para terminar o terceiro capítulo com uma nova revelação.

São três momentos da narrativa em que, primeiramente é anunciado um fato inesperado, abruptamente como um relâmpago, levando a um retorno no tempo e a um relato linear que o irá completar, mostrando o quanto Concerto campestre é um romance de exímia construção. Também feita de alguma graça, de alguma crítica, do sábio dizer dessa música que se eleva nos campos, da sedução do personagem feminino, buscando seu destino para, então, aceitar-lhe os desígnios.

O que torna Concerto campestre um momento de extraordinária vitalidade, no conjunto notável da ficção de Luiz Antonio de Assis Brasil, é a transfiguração de duas vertentes, ambas presentes desde seus primeiros textos.

A primeira é a vertente crítica, que vem do desejo de revisar a História, com notado influxo social.

Em Concerto campestre, curiosamente, a vertente crítica não se mostra apenas como formulação discursiva, mas como forma de conceber o mundo. Ao invés de seguir apenas a racionalidade mimética da narrativa tradicional, Assis Brasil acolhe, na lógica do texto, mundos simultâneos que alteram as passagens entre o universo mimético e real e a insurgência do sonho, do alegórico e do espectral. A oposição real-imaginário, como captação de matéria ficcional determina, por sua vez, a articulação da novela como forma acabada e redonda, semelhante ao poema, onde cada elemento ocupa um determinado espaço, não podendo ser alterado ou substituído.

Se pela vertente irônica Concerto campestre pune a sociedade e os costumes com a ironia, o pastiche, a paródia, ao mesmo tempo que relata o debater-se inútil das vítimas, fantoches de um mundo decaído, pela segunda vertente, a obra instaura o grotesco como manifestação formal de uma ordem de mundo essencialmente barroca. As antíteses poderosas deslocam-se da forma tradicional e compõem a ordenação do universo novelesco, como se pode ler fartamente através das articulações das personagens e dos demais elementos narrativos. A seleção de episódios, por sua vez, manifestam as oposições desses mundos em que a chuva de sangue é o castigo bíblico: a ordem fora rompida. A fantasmagoria da videira, o caráter sepulcral da tapera onde Clara Vitória será confinada pelo pai, deixam claro tratar-se de texto que trabalha a alegoria barroca.

Mais uma vez, chama a atenção o modo hábil como Assis Brasil apresenta suas personagens, sempre justificadas pela ação que realizam. Não obstante, o narrador experiente dos romances anteriores surpreende o crítico ao deformá-las propositadamente, acentuando-lhes os traços definidores. Essa deformação caricaturesca, própria da sátira, transforma os entes humanos em marionetes rígidas, a moverem-se mecanicamente.

Note-se, porém, que na Estância de Fontes, o jogo das distorções grotescas não é gratuito. Pode-se entendê-lo como montagem parodística e, portanto, como paródia de uma literatura edificante que se mostra, no caso, pervertida. E essa é a sua qualidade. O cômico deformante impõe mais a reflexão do que o riso. E se, no início da narrativa, julga-se perceber no aguçamento caricatural das personagens o zelo de um crítico da sociedade, como ensina Kayser, os acontecimentos irão mostrar que o grotesco, como categoria da estética barroca, reside propriamente na mistura de coisas incompatíveis: de um lado, os dramas mais cruéis da vida; de outro, o riso contrafeito das máscaras.

Em Concerto campestre o autor ultrapassa a crítica à sociedade: farsa e tragédia, máscara e face não se deixam separar. Não obstante, a máscara deixa a face - e isso ocorre quando Clara Vitória e o Maestro encolhem-se diante das circunstâncias, reconhecendo seus limites e sua pequenez. Resistindo ao desespero, separam-se, embora mantendo um amor sem projetos, desejo epifânico de que tudo terminasse bem. A experiência dolorosa do Maestro, no decorrer dos concertos na Estância, fizera-o ver o fosso que separava os dois mundos, o dos pardos e dos pobres e o mundo dos brancos e ricos, cujos códigos ele jamais poderia atingir. Como na commedia del'arte, a fuga dos amantes para além da sociedade, dos amigos, da lei, de tudo converte-se em fuga do mundo. Os pressentimentos, as súbitas consciências da insânia cometida, a relação conflituosa entre o Vigário, Deus e os escravos, que mais sofriam do que pecavam, confirmam a alegoria dos mundos antagônicos.

Entretanto, a confusão entre aparência e realidade decorre também da própria concepção dos sentidos e de seus deslocamentos: se ouvir, isso não é com a orelha, é com a alma, e se ouve-se também com os olhos, como dizia o músico Rossini, certamente um alter-ego do escritor, Concerto campestre tem de ser lido como um poema. A frase melódica, a harmonia formal recobrem, paradoxalmente, o jogo de distorções grotescas nessa comédia moralizante contra a natureza cruel do homem.

Resumo

A história acontece numa fazenda do interior gaúcho, em meados do século XIX. O fazendeiro e charqueador é o Major Antônio Eleutério de Fontes, casado, dois filhos, uma filha, Clara Vitória.

O fazendeiro mantém em sua propriedade rural uma pequena orquestra, vista por alguns de seus vizinhos como uma extravagância absurda, um desperdício de dinheiro.

O livro explica que o Major acumulou recursos contrabandeando gado e vendendo aos dois lados da Guerra dos Farrapos.

Passando por sua fazenda, dois índios missioneiros, músicos, encantaram o Major com seus instrumentos. Interessado, a partir daí, cada vez mais, por música, o Major acaba montando a orquestra, tendo contratado como regente um mineiro conhecido por 'Maestro'. A escolha deste sujeito foi feita a partir da indicação do vigário de São Vicente, povoado próximo à fazenda: o vigário queria livrar o Maestro de complicações amorosas. A orquestra recebe o nome de Lira Santa Cecília e causa indignação em D. Brígida, esposa do Major.

Todavia, D. Brígida tem como grande preocupação encaminhar o casamento da filha Clara Vitória.

Na propriedade de Antônio Eleutério há um lugar com poderes místicos, o 'boqueirão': trata-se de uma tapera, local ermo e de difícil acesso, que, no entanto, dá excelentes uvas, onde ninguém costuma pisar.

Com o tempo, a Lira Santa Cecília vai ficando famosa: os concertos na fazenda são concorridos, a orquestra vai tocar em Rio Pardo. O Major compra novos uniformes e aumenta o salário dos músicos. Até aqui o livro é quase uma crônica, relatando amenidades e curiosidades.

Eis que aparece o nó da trama: Clara Vitória, a única filha, já encaminhada para o casamento com o Silvestre Pimentel, sobrinho e possível herdeiro de um fazendeiro vizinho que está doente, apaixona-se pelo Maestro. Em retrospectiva, a obra nos mostra Clara Vitória, enquanto posava, mesmo sem vontade, de futura esposa de Silvestre Pimentel, fazia visitas noturnas ao alojamento do Maestro, passava lá a noite, voltando para seu quarto pouco antes do amanhecer.

O segundo elemento em importância da orquestra, um músico velho e experiente, apelidado Rossini, sabe do caso e, amante de óperas, prevê um final operístico para a história.

A tensão da obra aumenta quando Clara se descobre grávida. Vai escondendo de todos enquanto é possível; ao visitar a parteira, vê que não é mais possível interromper a gravidez. Numa audição da orquestra, Clara passa mal. O vigário desconfia, pressiona a menina, ela confessa. O vigário já desconfiava de algo, mas não imaginava que a história envolvesse o Maestro. Chama Silvestre para antecipar o casamento. O noivo topa. Vai à fazenda com a mesma proposta, que é rechaçada de imediato pelo Major. Até que D. Brígida descobre: 'Você está grávida!'.

Segue-se uma consternação na família. D. Brígida dá uma surra em Clara que é protegida pelas criadas. O Major sai para fazer 'o que deve ser feito': justiça. Mas, todos eles - o Major, D. Brígida, os familiares - pensam que o pai da futura criança é o noivo Silvestre Pimentel. O Major vai à casa de Silvestre para matá-lo. Silvestre tenta dialogar, mas o major atira, atingindo o ex-noivo. Volta para casa e avisa D. Brígida que matou o sujeito. Mais tarde, descobre-se que Silvestre apenas ficara ferido. Antônio Eleutério toma as decisões: expulsa Clara Vitória de casa, obrigando-a a viver sozinha no boqueirão; proíbe qualquer pessoa, com exceção do capataz, de aproximar-se do local, mantendo inclusive vigilância armada; não mais permite a citação do nome de Clara na residência.

Em meio a este desenredo familiar, tudo em volta se transtornou. D.Brígida não sabe o que faz da vida; o Major passa os dias solitário, quieto, tendo inclusive desativado a orquestra Lira Santa Cecília. O Maestro, na impossibilidade de ver Clara, abandona a fazenda e vai para Porto Alegre. Seu amigo Rossini ainda faz previsões: 'Ainda não ocorreu o último ato desta ópera. E eu não quero perder'.

O Maestro e Rossini tentam sobreviver em Porto Alegre. Numa noite, abandonando uma ópera no meio do espetáculo, o Maestro pergunta a Rossini, que conhecia o final da história: 'Como termina?'. 'Em casamento', responde o amigo. Enquanto o Maestro angustiava-se em Porto Alegre, sofrendo pela separação de Clara, o Major Antônio Eleutério ia definhando, já perdendo a razão. E Clara vivia solitária, exilada na tapera abandonada, vivendo consigo mesma, com a natureza que a cercava e com imagens do passado, confusas em sua mente. Ajudada somente pela criada, Clara tem seu bebê: é uma menina.

Num momento mágico, o Maestro redescobre a partitura de uma música que compusera para Clara. Toca a peça na missa em Porto Alegre, horrorizando o Bispo, Despedido, retorna com Rossini e os outros músicos à estância do Major. A ressurreição da Lira Santa Cecília reanima o Major. Mas Antônio Eleutério já está definitivamente perturbado. Ordena um concerto no qual ele é o único assistente. Briga com a mulher, que resolve abandoná-lo. Em meio a uma chuva, na presença do vigário, vendo seu mundo desmoronado, suicida-se. O maestro dirige-se ao 'boqueirão'. Rossini aplaude, como se estivesse na platéia de uma ópera. Final feliz:

Ela foi até a margem, tirou a roupa e lavou-se. Estava assim, meio submersa, refrescando-se na delícia da tarde, quando sentiu que alguém vinha em sua direção, atravessando as águas. E logo soube quem era, sempre saberia dali por diante, pelos anos afora: não precisou cobrir-se, nem correr de vergonha, apenas abriu os braços e entregou-se ao primeiro beijo de todos os beijos de sua longa vida.

Fonte:
Passeiweb

terça-feira, 20 de setembro de 2011

A. A. de Assis (Trovas Ecológicas) - 19

Teófilo Braga (O Caldo de Pedra)


Um frade andava ao peditório; chegou à porta de um lavrador, mas não lhe quiseram aí dar nada. O frade estava a cair com fome, e disse:

– Vou ver se faço um caldinho de pedra. E pegou numa pedra do chão, sacudiu-lhe a terra e pôs-se a olhar para ela para ver se era boa para fazer um caldo. A gente da casa pôs-se a rir do frade e daquela lembrança. Diz o frade:

– Então nunca comeram caldo de pedra? Só lhes digo que é uma coisa muito boa.

Responderam-lhe:

– Sempre queremos ver isso.

Foi o que o frade quis ouvir. Depois de ter lavado a pedra, disse:

– Se me emprestassem aí um pucarinho.

Deram-lhe uma panela de barro. Ele encheu-a de água e deitou-lhe a pedra dentro.

– Agora se me deixassem estar a panelinha aí ao pé das brasas.

Deixaram. Assim que a panela começou a chiar, disse ele:

– Com um bocadinho de unto é que o caldo ficava de primor.

Foram-lhe buscar um pedaço de unto. Ferveu, ferveu, e a gente da casa pasmada para o que via. Diz o frade, provando o caldo:

– Está um bocadinho insosso; bem precisa de uma pedrinha de sal.

Também lhe deram o sal. Temperou, provou, e disse:

-Agora é que com uns olhinhos de couve ficava que os anjos o comeriam.

A dona da casa foi à horta e trouxe-lhe duas couves tenras. O frade limpou-as, e ripou-as com os dedos deitando as folhas na panela.

Quando os olhos já estavam aferventados disse o frade:

– Ai, um naquinho de chouriço é que lhe dava uma graça...

Trouxeram-lhe um pedaço de chouriço; ele botou-o à panela, e enquanto se cozia, tirou do alforge pão, e arranjou-se para comer com vagar. O caldo cheirava que era um regalo. Comeu e lambeu o beiço; depois de despejada a panela ficou a pedra no fundo; a gente da casa, que estava com os olhos nele, perguntou-lhe:

– Ó senhor frade, então a pedra?

Respondeu o frade:

– A pedra lavo-a e levo-a comigo para outra vez.

E assim comeu onde não lhe queriam dar nada.

Fontes:
Projeto Vercial
Imagem = http://www.cm-almeirim.pt/

Teófilo Braga (1843 – 1924)


Joaquim Teófilo Fernandes Braga (Ponta Delgada, 24 de Fevereiro de 1843 — Lisboa, 28 de Janeiro de 1924) foi um político, escritor e ensaísta português. Estreia na literatura em 1859 com Folhas Verdes. Licenciado em Direito pela Universidade de Coimbra, fixa-se em Lisboa em 1872, onde leciona literatura no Curso Superior de Letras (atual Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa). Da sua carreira literária contam-se obras de história literária, etnografia (com especial destaque para as suas recolhas de contos e canções tradicionais), poesia, ficção e filosofia, tendo sido ele o introdutor do Positivismo em Portugal.

Teófilo Braga nasceu na cidade de Ponta Delgada, ilha de São Miguel, nos Açores, filho de Joaquim Manuel Fernandes Braga, oriundo de Braga, engenheiro militar e oficial do exército miguelista e posteriormente professor de Matemática e Filosofia no Liceu de Ponta Delgada, e de Maria José da Câmara Albuquerque, natural da ilha de Santa Maria. Os pais estavam ligadas a famílias da aristocracia. O pai fazia parte da expedição miguelista enviada para os Açores no início da Guerra Civil Portuguesa, tendo sido feito prisioneiro na tomada da ilha de São Miguel pelas forças liberais e desterrado para a ilha de Santa Maria, onde conheceu a futura esposa, originária da melhor aristocracia daquela ilha.

Foi o último dos sete filhos do primeiro casamento de seu pai, dos quais cinco faleceram na infância. A mãe também faleceu precocemente a 17 de Novembro de 1846, quando Teófilo tinha apenas 3 anos de idade. A sua morte, e a má relação que teria com a madrasta, com quem seu pai casou dois anos depois, marcaram decisivamente o seu temperamento fechado e agreste.

Iniciou muito cedo actividade profissional, empregando-se na tipografia do jornal A Ilha, de Ponta Delgada, no qual também colaborou como redator. Nesse período colaborou com outros periódicos da ilha de São Miguel, entre os quais os jornais O Meteoro e O Santelmo.

Frequentou o Liceu de Ponta Delgada e em 1861 partiu para Coimbra, cidade em cujo Liceu concluiu o ensino secundário. Apesar de ter saído de Ponta Delgada com a intenção de cursar Teologia e enveredar por uma carreira eclesiástica, em 1862 optou pela matrícula no curso de Direito da Universidade de Coimbra.

Enquanto estudante em Coimbra, face a uma ajuda paterna insuficiente, trabalhou como tradutor e recorreu a explicações e à publicação de artigos e poemas para financiar os seus estudos. Fortemente influenciado pelas teses sociológicas e políticas positivismo, cedo aderiu aos ideais republicanos.

Aluno brilhante, quando em 1867 terminou o curso foi convidado pela Faculdade de Direito a doutorar-se, o que fez defendendo em 26 de Julho de 1868 uma tese intitulada História do Direito Português: I: Os Forais. Contudo, a sua pública adesão aos ideais republicanos levaram a que fosse preterido quando em 1868 concorreu para professor da cadeira de Direito Comercial na Academia Politécnica do Porto. O mesmo sucedeu em 1871 quando concorreu para o cargo de lente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

Fixou-se então em Lisboa, iniciando a sua actividade como advogado e, nesse mesmo ano de 1868, casou com Maria do Carmo Xavier, irmã de Júlio de Matos, de quem teve três filhos. Tanto a esposa como os filhos faleceram muito jovens, ela em 1911, os filhos antes dessa data, sendo pois já viúvo e sem filhos quando ascendeu ao cargo de Presidente da República.

A 18 de Maio de 1871 foi um dos doze signatários[8] do programa das Conferências Democráticas do Casino Lisbonense, interrompidas por uma portaria do também açoriano António José de Ávila, ao tempo presidente do Governo.

Em 1872, concorreu a lente da cadeira de Literaturas Modernas do Curso Superior de Letras, sendo provido no lugar na sequência de um concurso onde teve como opositores Manuel Pinheiro Chagas e Luciano Cordeiro.

No Curso Superior de Letras dedica-se ao estudo da literatura europeia, com destaque para os autores franceses, e iniciou uma carreira académica que o levou a publicar uma extensa obra filosófica fortemente influenciada pelo positivismo de Auguste Comte. Essa influência positivista foi decisiva no seu pensamento, na sua obra literária e na sua atitude política, fazendo dele um dos mais destacados membros da geração doutrinária do republicanismo português.

Em 1878 fundou e passou a dirigir com Júlio de Matos a revista O Positivismo. Nesse mesmo ano iniciou a sua ação na política ativa portuguesa concorrendo a deputado às Cortes da Monarquia Constitucional Portuguesa integrado nas listas dos republicanos federalistas. A partir desse ano exerceu vários cargos de destaque nas estruturas do Partido Republicano Português.

Em 1880 passou a colaborar com a revista A Era Nova. Nesse mesmo ano, com Ramalho Ortigão, organizou as comemorações do Tricentenário de Camões, momento alto da articulação do Partido Republicano, de onde sai com grande prestígio. As comemorações camoneanas foram encaradas por Teófilo Braga como uma aplicação do projeto positivista de substituir o culto a Deus e aos santos pelo culto aos grandes homens.

A partir de 1884 passa a dirigir a Revista de Estudos Livres, em parceria com Teixeira Bastos, um seu antigo aluno no Curso Superior de Letras que se revelaria como um dos principais divulgadores do positivismo em Portugal.

Colaborou ainda no jornal humorístico A Comédia Portuguesa, começado a editar em 1888.

Em 1890 foi pela primeira vez eleito membro do diretório do Partido Republicano Português (PRP). Nessa condição, a 11 de Janeiro de 1891 foi um dos subscritores do Manifesto e Programa do PRP, em cuja elaboração colaborara. Este manifesto, e a sua apresentação pública, precederam em três semanas a Revolta de 31 de Janeiro de 1891, no Porto, à qual Teófilo Braga, como aliás a maioria dos republicanos lisboetas, se opôs.

Em 1 de Janeiro de 1910 torna-se membro efetivo do diretório político, conjuntamente com Basílio Teles, Eusébio Leão, José Cupertino Ribeiro e José Relvas.

A 28 de Agosto de 1910 é eleito deputado republicano por Lisboa às Cortes monárquicas, não chegando contudo a tomar posse por entretanto ocorrer a implantação da República Portuguesa.

Por decreto publicado no Diário do Governo de 6 de Outubro do mesmo ano é nomeado presidente do Governo Provisório da República Portuguesa saído da Revolução de 5 de Outubro de 1910. Naquelas funções foi de facto chefe de Estado, já que o primeiro Presidente da República Portuguesa, Manuel de Arriaga, apenas foi eleito a 24 de Agosto de 1911.

Quando Manuel de Arriaga foi obrigado a resignar do cargo de Presidente da República, na sequência da Revolta de 14 de Maio de 1915, Teófilo Braga foi eleito para o substituir pelo Congresso da República, a 29 de Maio de 1915, com 98 votos a favor, contra um voto de Duarte Leite Pereira da Silva e três votos em branco. Sendo um Presidente de transição, face à demissão de Manuel de Arriaga, cumpriu o mandato até ao dia 5 de Outubro do mesmo ano, sendo então substituído por Bernardino Machado. Foi a sua última participação na vida política ativa.

Já viúvo quando da sua eleição, após o mandato, Teófilo Braga, que desde que enviuvara passara a ser um misógino enfiado na sua biblioteca, isolou-se, dedicando-se-se quase em exclusivo à escrita. Faleceu só, no seu gabinete de trabalho, a 28 de Janeiro de 1924

Obras

A vasta obra de polígrafo de Teófilo Braga cobre áreas vastas, da poesia e da ficção à filosofia, à história da cultura e à historiografia crítico-literária, e excede os 360 títulos, não contando com os artigos dispersos pela imprensa da época. Abrange temas tão diversos como o da História Universal, História do Direito, da Universidade de Coimbra, do teatro português e da influência de Gil Vicente naquela forma de manifestação artística, da Literatura Portuguesa, das novelas portuguesas de cavalaria e do romantismo e das ideias republicanas em Portugal. Também inclui artigos de polémica literária e política e ensaios biográficos, como o referente a Filinto Elísio.

Como investigador das origens dos povos, seguiu a linha da análise dos elementos tradicionais desde os mitos, passando pelos costumes e terminando nos contos de tradição oral, que lhe permitiram escrever obras como Os Contos Tradicionais do Povo Português (1883), O Povo Português nos seus Costumes, Crenças e Tradições (1885) e História da Poesia Portuguesa, obra em que levou anos a trabalhar, procurando as suas origens nas várias épocas e escolas.

A presença de Teófilo Braga no pensamento português é pautada pela forma como defendeu o ideal positivista, que alcançara considerável projeção da segunda metade do nosso século XIX. Todavia, na fase inicial da sua evolução intelectual, Teófilo foi um pensador romântico. Daí o seu interesse pelas manifestações espirituais do povo português, desde a literatura à religião, à arte, às tradições e aos costumes, aspecto que aliás nunca abandonaria a sua conformação intelectual, mesmo depois da adesão ao positivismo. A esta fase pertencem obras como História da Poesia Popular Portuguesa (1867); Romanceiro Geral (1867-69); Contos Populares do Arquipélago Açoriano (1869); História do Direito Português -- Os Forais (1868); História da Literatura Portuguesa - Introdução (1870).

Nesta fase, marcado por um intrínseco patriotismo, que nunca o abandonaria, partiu em busca do espírito do seu povo, que julgava poder encontrar no período anterior ao triunfo da monarquia absoluta e dos modelos de inspiração clássica, na linha de Michelet e de Vico. Em Vico, dissera Teófilo ter encontrado o interesse pelo estudo das tradições das raças, através dos símbolos com que a humanidade exprimia as suas aspirações, traduzidas nos contos populares, nos mitos, nas lendas, nas alegorias, nas fábulas.

Assim prosseguiu até à década de setenta em que, mergulhado o país na conjuntura política do fontismo, se deixou envolver pela dinâmica das ideias de Augusto Comte. Desde então, o universo das suas preocupações alarga-se com a atenção que passa a dedicar à sociologia e à organização política das sociedades, norteado pelo poderoso ideal republicano. Deixa-se então seduzir pelo triunfalismo positivista, defendendo que à segunda metade do século XIX estava destinada a realização plena da última fase do espírito, com a entrada final da consciência no estado positivo e com a consequente transformação pacífica das instituições políticas e sociais, que, a não operar-se, geraria fenómenos revolucionários de trágicas consequências . Entre as obras mais marcantes deste período contam-se:Traços Gerais de Filosofia Positiva (1877) e Sistema de Sociologia (1884).

Daí também o seu crescente interesse pela história das ideias -- neste caso das ideias republicanas -- e das instituições, com relevo para a sua monumental História da Universidade de Coimbra (1892-1902). À luz de uma concepção unilinear e universalizante, deitando o passado no leito precursor do estado positivo e do republicanismo, considerou, na sua História Universal-Esboço de Sociologia Descritiva (1879-82) que a história era uma «filosofia concreta, na qual a parte narrativa é a escolha dos factos e a filosofia é a conexão íntima que os explica», traçando as vias e os meios «por onde cada presente procede de cada passado». A confluência necessária entre a história e a filosofia radicava na necessidade de deduzir, através da multiplicidade dos factos «as leis gerais, e por assim dizer, orgânicas da vida», as quais, uma vez submetidas à grande síntese, permitiriam descortinar a realização do que chamava «a lei primária que dirige o movimento fatal».

Assim, atribuiu tanto à história universal como à história de Portugal um curriculum bem ordenado, da infância à maturidade, e num defendido paralelismo entre a filogénese e a ontogénese, rumo a um estado final em que o espírito humano renunciaria, definitivamente, à indagação do absoluto, tendência característica dos seus momentos de infância, aprendendo antes a circunscrever os factos, no domínio estrito da observação e da experimentação, com posterior coordenação geral que à filosofia positiva incumbiria. Curiosamente, essa história, a partir do estado positivo, atingira o seu cume, sendo então o progresso nada mais do que o desenvolvimento da ordem, e assim, a historicidade dos fenómenos sociais era admitida na medida em que sublinhava a perenidade desse último e definitivo degrau da evolução.

Deve notar-se, no entanto, que o positivismo de Teófilo, como de um modo geral o positivismo em Portugal, não acompanhou em tudo as ideias de Comte. Em primeiro lugar nunca nos deixámos seduzir pelo ideal conteano de um estado ditatorial e de um governo forte, inimigo do sufrágio. Sob este ponto de vista Teófilo bateu-se arduamente pelos ideais de uma democracia republicana.

Por outro lado, também não colheram entre nós as teses conteanas sobre a religião da humanidade, predominando antes um vincado anticlericalismo. Nestes dois aspectos, Teófilo seguiu mais as ideias de Littré que as do pai do positivismo.

Finalmente, é de sublinhar o esforço a que se entregou, nos Traços Gerais de Filosofia Positiva, para completar o sistema de Augusto Comte, chamando a atenção para a importância da psicologia, a que Comte não atendera.

No positivismo, na sua extraordinária base científica, na classificação ordenada e hierarquizada dos saberes, desde a matemática à sociologia encontrou, como ele próprio escreveu, a possibilidade de «dar disciplina a esse desalento, o fazer-nos compreender, através dos actos descoordenados das pessoas, a marcha evolutiva das coisas, livrando-nos da fascinação revolucionária que nos levaria à desgraça».

Por isso se orientou para a tarefa de colocar as instituições políticas de acordo com a nova consciência do século, liberto das tentações revolucionárias que animavam os socialistas seus companheiros da Geração de 70, com relevo para Antero e Oliveira Martins, marcando-o o primado da «questão política». Preocupava-o o facto de o estado da consciência moderna estar em manifesta dessincronia com as instituições políticas vigentes em Portugal, vendo o nascimento dessa mesma consciência no século XVII europeu, marcado pelo apogeu das ciências.

Esse foi o projeto que norteou a sua História das Ideias Republicanas em Portugal, e de um modo mais geral, toda a sua filosofia da história: «A história, determinando com clareza o advento das ideias democráticas, levará os espíritos dirigentes à previsão da marcha para uma formação política não remota; e dessa previsão resultará uma maior coordenação política do trabalho, e desse trabalho uma revivescência nacional».

Determinismo e previsibilidade, por um lado, ordem e progresso pelo outro, tais eram as balizas fundamentais com que enquadrava o movimento das sociedades.

Todavia, a questão que legitimamente se coloca a partir de um esquema desta natureza é a da liberdade de disposição dos indivíduos e dos grupos. A liberdade para Teófilo é directamente proporcional à capacidade de compreender e dar expressão às necessidades de evolução orgânica da humanidade, rematando em texto síntese da sua História Universal - Esboço de sociologia descritiva: «pela história se descobre o justo limite até onde o homem pode individualmente exercer ação sobre a sociedade; como um meio, a sociedade domina fatalmente o indivíduo nos costumes, nas noções usuais, pela forma das instituições, mas por seu turno, o homem reage sobre esse meio transformando-o, elevando-o, convertendo os seus movimentos empíricos em racionais».

Queria isto dizer que os fenómenos sociais podiam ser dirigidos nas mesmas condições em que a natureza submetia ao homem os fenómenos físicos e químicos. Por isso, o conhecimento era a primeira condição da liberdade e do combate social eficaz e progressivo, realçando a exigência de uma liberdade que se pratica e se exerce, seja pela liberdade de consciência que se expressa na liberdade dos cultos, seja pela liberdade de ensino, pela liberdade de imprensa, pela liberdade política e pela liberdade civil, facetas, cada uma a seu modo do que chamou «liberdade filosófica».

É interessante notar que a filosofia da história unilinear e universalizante que perfilhou, na esteira de Comte, não matou no seu espírito a antiga tendência romântica, continuando nesta fase o seu trabalho a pesquisa dos factores que individualizariam a nossa raça (A Pátria Portuguesa - O Território e a Raça, 1894; O Povo Português nos seus Costumes, Crenças e Tradições, 1885), vindo a desenvolver a muito contestada teoria do moçarabismo, mediante a qual nos diferenciaríamos dos restantes povos da Península.

Aliás, a este respeito, deixou-se seduzir, na senda dos grandes espíritos portugueses da segunda metade do século XIX, pelo federalismo, mas, curiosamente, de «base étnica», ou «orgânica», relativa esta ao respeito pelas singulares características da raça portuguesa, nunca pondo em causa a soberania nacional, tema que desenvolve com mais pormenor na sua História das Ideias Republicanas.

Poesia

Visão dos Tempos (1864)
Tempestades Sonoras (1864)
Torrentes (1869)
Miragens Seculares (1884)

Ficção

Contos Fantásticos (1865) (eBook)
Viriato (1904) (eBook)

Ensaio

As Teocracias Literárias -­ Relance sobre o Estado Actual da Literatura Portuguesa (1865) (eBook)
História da Poesia Moderna em Portugal (1869)
História da Literatura Portuguesa [Introdução] (1870)
História do Teatro Português (1870 - 1871) - em 4 volumes
Teoria da História da Literatura Portuguesa (1872)
Manual da História da Literatura Portuguesa (1875)
Bocage, sua Vida e Época (1877)
Parnaso Português Moderno (1877)
Traços gerais da Filosofia Positiva (1877)
História do Romantismo em Portugal (1880)
Sistema de Sociologia (1884)
Camões e o Sentimento Nacional (1891)
História da Universidade de Coimbra (1891 - 1902) - em 4 volumes
História da Literatura Portuguesa (1909 - 1918) - em 4 volumes

Antologias e recolhas

Antologias: Cancioneiro Popular (1867)
Contos Tradicionais do Povo Português (1883)
O cancioneiro portuguez da Vaticana (eBook)
Floresta de vários romances (eBook)

Fontes:
wikipedia
Instituto Camões

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 340)

Uma Trova Nacional

–JEANETTE DE CNOP/PR–

Uma Trova Potiguar

Por mais, notória, a cultura,
que em versos, se vê, à prova,
é transformada em candura,
ante a ternura, da trova...
–FABIANO WANDERLEY/RN–

Uma Trova Premiada

2009 - Projeto-Vida Melhor/SP
Tema: PERDÃO - 2º Lugar.

Perdão é a esponja macia
que se passa numa ofensa
por se crer na luz do dia
contra a noite da descrença.
–NILTON MANOEL/SP–

Uma Trova de Ademar

Uma carícia envolvente,
quando no peito se inflama,
transforma-se em chama ardente
no coração de quem ama!
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Diz ser amarga a fatia
do pão que come, e nem vê
que do seu pão, cada dia,
quem faz a massa é você.
–ALICE ALVES NUNES/DF–

Simplesmente Poesia

Paixão
–VIVI VIANA/RN–

“Penso em ti...
Sonhos e medos atormentam meu ser
sofro a condenação por te querer
choro, gosto, quero, não quero...
E assim vive minha pobre alma
tentando desvendar
o livro do teu ser.”

Estrofe do Dia

Num sopro de nostalgia
a tarde flameja tensa
por cumprir sua sentença
de morrer no fim do dia,
a noite medrava fria
trazendo um raro torpor,
e não querendo se opor
em soluços pranteava;
a noite escura chorava
obrigando o sol se por.
–HÉLIO CRISANTO/RN–

Soneto do Dia

A Rua dos Cataventos
–MARIO QUINTANA/RS–

Dorme, ruazinha... E tudo escuro...
E os meus passos, quem é que pode ouvi-los?
Dorme o teu sono sossegado e puro,
Com teus lampiões, com teus jardins tranquilos.

Dorme... Não há ladrões, eu te asseguro...
Nem guardas para acaso persegui-los...
Na noite alta, como sobre um muro,
As estrelinhas cantam como grilos...

O vento está dormindo na calçada,
O vento enovelou-se como um cão...
Dorme, ruazinha... Não há nada...

Só os meus passos... Mas tão leves são
Que até parecem, pela madrugada,
Os da minha futura assombração…

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Pedro Ornellas (Trovas: Saudade é…) Parte 3 e 4


Trovas que Definem Saudade

41
Que este consolo recolhas
da existência consumida:
saudades são verdes folhas
nos ramos secos da vida...
Luiz Rabelo - Natal RN

42
Vou definir a saudade
e não sei se estarei certo:
saudade é aquela vontade
de que o longe fique perto.
Luiz Carlos Abritta – Belo Horizonte MG

43
Dia e noite em algazarra,
depois que te viu partir,
a saudade é uma cigarra
que não me deixa dormir...
Izo Goldman – São Paulo SP

44
A saudade é como o espinho
que entra no peito da gente:
no início – dói um pouquinho,
depois... dói profundamente!
Edmilson Ferreira Macedo - BA

45
Saudade é a areia moída,
que, devagar, grão por grão,
cai da ampulheta da vida
e pousa no coração.
Amélia Tomaz - RJ

46
Saudade, lembrança acesa,
não de um amor que passou,
mas, sim, com toda certeza,
daquele amor que ficou! ...
Antônio Vanzella - São Bernardo do Campo-SP

47
Saudade!... Raio de lua,
suprindo o Sol que brilhou...
Tábua solta, que flutua,
depois que o amor naufragou!
Waldir Neves – Rio de Janeiro RJ

48
Meu amor foi-se acabando...
mas a saudade chegou:
– chuva boa refrescando
o chão que o sol causticou.
Lilinha Fernandes – Rio de Janeiro RJ

49
Saudade! Bendita mágoa,
que inesperada nos vem,
cristalina gota d’água
dos olhos tristes de alguém.
Antídio Azevedo - RN

50
Vi teu retrato, revivo
um velho amor que foi meu...
A saudade é um negativo
de foto que se perdeu...
J. G. de Araújo Jorge – Nova Friburgo RJ

51
Presença eterna do ausente,
perfume em frasco vazado,
saudade é sombra incoerente
num coracão apagado.
Dorothy Moretti – Sorocaba SP

52
Saudade – rede vazia
a balançar tristemente...
ninando a melancolia
que dorme dentro da gente.
Anis Murad – Rio de Janeiro RJ

53
Saudade, uma imensa conta,
com juro que sempre dobra.
Se chega um dia a tal monta
vem a solidão e cobra!
Francisco Macedo – Natal RN

54
A saudade é um bem guardado
que nos volta, de repente,
num presente do passado,
quando o passado é presente.
Maria Nascimento Carvalho – Rio de Janeiro RJ

55
Saudade é a incontida ânsia
que me faz, sem ser peão,
querer domar a distância
no dorso de uma paixão!
José Ouverney – Pinda SP

56
Saudade, quase se explica
nesta trova que te dou:
Saudade é tudo que fica
daquilo que não ficou.
Luiz Otávio - Rio de Janeiro RJ

57
Saudade palavra doce
que traduz tanto amargor;
saudade é como se fosse
espinho cheirando a flor...
Bastos Tigre – Recife PE

58
Saudade é tarde chorando
um tempo em que foi aurora,
ao ver a noite levando
o brilho do sol embora.
Adélia Victória Ferreira – São Paulo SP

59
Quando estás longe, querida,
na minha angstia sem fim,
saudade é o nome da vida
que morre dentro de mim...
J. G. de Araújo Jorge – Nova Friburgo RJ

60
Saudade, ninguém por certo
a definiu deste jeito:
– saudade é um mundo deserto
que temos dentro do peito!
Dulce Siqueira - PE

61
Saudade – lembrança triste
de tudo que já não sou...
Passado que tanto insiste
em fingir que não passou!
Edgard Barcelos Cerqueira – Rio de Janeiro RJ

62
Saudade, sombra querida
de um alguém que já se quis...
Felicidade perdida,
final de um sonho feliz.
Edna A. de Souza – Resende RJ

63
Saudade - palavra triste -
que nos remete à alegria,
pois essa dor só persiste
em quem foi feliz, um dia...
Andra Valladares - Portugal

64
Saudade... uma velha estrada...
um rancho que o mato invade...
uma porteira quebrada...
um lar sem fogo... Saudade...
Esther dos Santos – Rio de Janeiro RJ

65
Saudade... Divina essência...
É tudo quanto ficou
do bem que à nossa existência
a vida trouxe e levou.
Ana Rolão Preto – Benguela, Angola

66
Toda saudade consiste
neste contraste evidente:
uma alegria tão triste
numa ausência tão presente.
João Rangel Coelho – Rio de Janeiro RJ

67
Saudade – estranha ilusão
que a solidão recompensa;
presença no coração
maior que a própria presença!
J. G. de Araújo Jorge - Nova Friburgo RJ

68
Saudade... perfume triste
de uma flor que não se vê.
Culto que ainda persiste
num crente que já não crê.
Menotti Del Pichia – São Paulo SP

69
Saudade, coisinha atoa
com que tanto me comovo,
lembrança de coisa boa
que se deseja de novo.
Vicente Guimarães –Rio de Janeiro RJ

70
Saudade é chuva caída
na calha do coração;
é centelha revivida,
em noite de escuridão!
Carlos Cunha – São Luís MA

71
Ao mesmo tempo em que mata,
mata e faz viver também...
Saudade é dor que maltrata,
maltrata fazendo bem!
Pedro Emílio de Almeida e Silva - RJ

72
És, saudade, realmente,
artesã que em hábil lida,
encaderna, no presente,
páginas soltas da vida...
João Paulo Ouverney – Pinda SP

73
Do nosso amor acabado
não pode esquecer, a gente...
Porque a saudade é o passado
que nunca sai do presente.
Lilinha Fernandes – Rio de Janeiro RJ

74
Saudade, meu bem, existe
nessa distância sem fim!
- É tudo aquilo de triste
que te separa de mim...
Aparício Fernandes – Acari RN

75
Saudade é o tempo guardado
dentro do peito da gente...
nó, que se dá no passado
e se desfaz no presente.
Francisco Pessoa – Fortaleza CE

76
Saudade!... Foto em pedaços,
que eu colei, com mão tremida,
tentando compor os traços
de quem rasgou minha vida!...
Waldir Neves – Rio de Janeiro RJ

77
Vou definir a saudade
em claro e bom português:
A saudade é uma vontade
de fazer tudo outra vez...
Ana Cecília Ferri Soares – SP

78
Saudade, luz pequenina,
nas sombras da solidão.
No entanto, como ilumina
as trevas do coração!
Maria Izabel Miranda – Rio de Janeiro RJ

79
Percorrendo triste rota,
só quem amou é que sente...
- A Saudade é uma gaivota
planando dentro da gente...
Pedro Melo – São Paulo SP

80
A saudade, uma constância
nos trilhos da solidão,
é um trem que apita à distância,
mas nunca chega à estação!...
João Freire Filho – Rio de Janeiro RJ

Fonte:
Trovas enviadas por Pedro Ornellas