domingo, 1 de outubro de 2023

Virgínia Woolf (A Duquesa e o Joalheiro)

Oliver Bacon morava no alto de uma casa que dava para o Green Park. Tinha ali um apartamento; cadeiras com os ângulos retos salientes - cadeiras cobertas de couro. Sofás preenchiam os vãos entre as janelas - sofás cobertos de tapeçarias. As janelas, as três largas janelas, tinham sua adequada quota de filó bem discreto e cetim com figuras. O aparador de mogno salientava-se discretamente com os conhaques, uísques e licores corretos. E da janela do meio ele olhava lá embaixo os tetos luzidíos dos carros da moda amontoados nas estreitas ruas de Piccadilly. Era impossível imaginar uma posição mais central. Às oito da manhã viria seu café na bandeja, trazido por um criado; o criado desdobraria seu robe carmesim; com suas unhas compridas e pontudas ele abriria as cartas, extrairia convites brancos e grossos nos quais em áspero relevo se erigiam gravados de duquesas, condessas, viscondessas e ilustres senhoras. Depois tomaria banho; depois comeria suas torradas; depois leria seu jornal ao fogo flamejante e luzente dos carvões elétricos.

"Veja só, Oliver", diria ele, dirigindo-se a si mesmo. "Você que começou a vida numa ruela sórdida, você que..." e olharia para suas pernas, tão elegantes naquelas calças perfeitas; para suas botas; e suas polainas. Tudo muito bem-feito, brilhando; cortado no melhor pano pela melhor tesoura de Savile Row. Frequentemente porém ele se despia de tudo e voltava a ser o moleque de uma ruela sórdida. Certa vez tinha pensado que este era o cúmulo de sua ambição - vender cachorros roubados a mulheres elegantes de Whitechapel. Certa vez fizera isso. "Oh, Oliver , sua mãe se lamentou. "Oh, Oliver! Quando é que você vai tomar juízo, meu filho?"... Depois ele foi parar atrás de um balcão; vendeu relógios baratos; depois levou a Amsterdã uma preciosa encomenda... A essa memória ele exultava - o velho Oliver se lembrando do jovem. Sim, ele se dera bem com os três diamantes; e também houve a comissão sobre a esmeralda.

Depois disso foi para a sala privativa nos fundos da loja em Hatton Garden; a sala com as balanças, o cofre, as grossas lentes de aumento. E depois... e depois... ele exultava. Se aproximava das rodas de joalheiros que na tarde quente discutiam preços, minas de ouro, diamantes, informes da África do Sul, um deles punha um dedo do lado do nariz e, quando ele passava, murmurava: "Hum-m-m". Não era mais do que um murmúrio; não mais que uma cutucada no ombro, um dedo no nariz, um zumbido que corria pelo aglomerado de joalheiros em Hatton Garden numa tarde quente - há tantos anos! Mas ainda assim Oliver sentia aquilo a lhe descer pela espinha, a cutucada, o murmúrio que queria dizer: "Olhem só - ali vai ele — o jovem Oliver, o jovem joalheiro". Jovem então ele era mesmo. E se vestia cada vez melhor; e teve, primeiro, um cabriolé; e depois um carro; primeiro foi no balcão, nos teatros, e depois em poltrona na plateia. E teve uma vivenda campestre em Richmond, a cavaleiro do rio, com rosas vermelhas em treliças; de manhã cedo mademoiselle colhia uma e a pendurava em sua lapela.

"Assim que", disse Oliver Bacon, levantando-se e esticando as pernas. "Assim que..."

Ele ficou em pé, por baixo do retrato de uma velha senhora em cima da lareira, e ergueu as mãos. "Mantive minha palavra", disse ele, pondo as mãos bem juntas, palma contra palma, como se lhe prestasse homenagem. "E ganhei a aposta." Era isso mesmo. Era o joalheiro mais rico da Inglaterra; mas seu nariz, que era comprido e flexível, como uma tromba de elefante, parecia dizer quando tremia estranhamente nas narinas (sendo todo o nariz, e não apenas as narinas, que parecia tremer) que ele ainda não estava satisfeito; ainda farejava alguma coisa enterrada um pouco mais adiante. Imagine um porco gigante num pasto cheio de trufas; após desenterrar uma aqui, outra ali, ele continua a farejar sob a terra, um pouco mais longe, uma trufa maior e mais escura. Assim (Oliver fuçava pela rica terra de Mayfair procurando outra trufa, maior e mais escura, um pouco além.

Espetou então a pérola na sua gravata, para depois se encasular em seu vistoso sobretudo azul; pegou as luvas amarelas, a bengala; e balançava-se ao descer a escadaria, um pouco farejando, um pouco vendo por seu longo e afilado nariz ao sair de casa e ingressar em Piccadilly. Pois ele ainda não era um homem triste, um homem insatisfeito, um homem que procura alguma coisa escondida, apesar de ter ganho a aposta?

Balançava-se ligeiramente ao andar, como o camelo no zoo – e balança de um lado para o outro ao andar pelos caminhos de asfalto superlotados de donos de armazéns e esposas comendo de sacos de papel e jogando na trilha pedacinhos de papel prateado amarfanhado. O camelo despreza os merceeiros; o camelo está insatisfeito com seu quinhão; o camelo vê o lago azul e a fímbria de palmeiras diante dele. Assim o grande joalheiro, o maior joalheiro de todo o mundo, balançava-se descendo por Piccadilly, vestido na maior perfeição, com suas luvas, com a bengala; porém ainda insatisfeito, até chegar à loja escura e pequena, que era famosa na França, na Alemanha, na Áustria e em toda a América - a lojinha sombria numa rua que sai da Bond Street.

Atravessou-a a passos rápidos, como de hábito, e sem falar, muito embora os quatro homens, os dois mais velhos, Marshall e Spencer, e os dois rapazes, Hammond e Wicks, já estivessem lá plantados, por trás do balcão, e o olhassem com inveja ao passar.

Era tão só mexendo um dedo de sua luva cor de âmbar que ele reconhecia a presença deles. E lá se foi e fechou por trás de si a porta de sua sala privativa. A seguir destrancou o gradil da janela, Entraram os gritos da Bond Street; e o ronronar do tráfego afastado. A luz dos refletores atrás da loja se irradiava para cima. Numa árvore tremiam seis folhas verdes, pois era junho. Mas mademoiselle. tinha se casado com Mr. Pedder da cervejaria local - ninguém agora lhe espetava mais rosas na lapela.

"Pois é", semissuspirou, semirroncou, "pois é,.."

Depois ele pressionou uma mola na parede e lentamente começou a se abrir a forração de madeira por trás da qual ficavam os cofres de aço, cinco, não, seis ao todo, todos de aço polido.

Virou a chave; abriu um; depois outro. Ambos revestidos de um fundo de veludo vermelho escuro; ambos contendo joias: braceletes, colares, anéis, tiaras, coroas ducais; pedras soltas em conchas de vidro; rubis, esmeraldas, pérolas, diamantes. Tudo em segurança, em tranquila cintilação, porém ardendo eternamente com sua própria luz comprimida.

"Lágrimas!", disse Oliver, olhando as pérolas. "Sangue do coração!", disse ele, olhando os rubis. "Pólvora!", continuou, esparramando os diamantes, que assim faiscavam uns contra os outros. "Pólvora suficiente para explodir Mayfair - alto, alto, alto no céu!" Jogou a cabeça para trás e fez um som como um relincho de cavalo ao dizer isso.

Obsequiosamente o telefone tocou em sua mesa, numa voz baixa e abafada. Ele fechou o cofre.

"Em dez minutos", disse. "Antes, não," E sentou-se à sua mesa e olhou para as cabeças dos imperadores romanos estampadas na manga de sua roupa. E que de novo se despiu e uma vez mais tornou-se o garotinho que jogava bola de gude na ruela onde aos domingos vendiam-se cachorros roubados. Tornou-se aquele garotinho matreiro, astuto, de olhos como cerejas molhadas: que metia as mãos em enfiadas de tripas; que as mergulhava em panelas onde fritavam peixe; que ia em meio às multidões se safando. Era magro, ágil, seus olhos pareciam pedras lambidas. E agora - agora - os ponteiros do relógio se arrastavam. Um, dois, três, quatro… A duquesa de Lambourne esperava a seu bel-prazer; a duquesa de Lambourne, filha de uma centena de condes. Esperaria por dez minutos numa cadeira ao balcão. Esperaria a seu bel-prazer. Esperaria até que ele estivesse pronto para vê-la. Olhou para o relógio em seu estojo de couro. O ponteiro andava. E a cada avanço o relógio lhe servia - assim lhe parecia — patê de joie gras; um copo de champanhe; outro de um fino conhaque; um charuto de um guinéu. O relógio os punha ao lado dele na mesa, enquanto os dez minutos se escoavam. Ele então ouviu passos lentos e leves que se aproximavam; um farfalhar no corredor. A porta se abriu. Mr. Hammond se achatou contra a parede.

"A senhora duquesa!", anunciou.

E, achatado contra a parede, lá ficou esperando.

Oliver, se levantando, pôde ouvir o farfalhar do vestido da duquesa que vinha pelo corredor, que logo assomou, enchendo a porta, enchendo a sala com o aroma, o prestigio, a arrogância, a pompa, o orgulho de todos os duques e duquesas inflados numa só onda. E, como a onda se quebra, assim também quebrou-se ela ao sentar-se, vindo espraiar-se e derramar-se e cair sobre o grande joalheiro Oliver Bacon, cobrindo-o de cores faiscantes, rosa, verde, violeta; e de odores; e iridescéncias; e raios disparados dos dedos, raios que acenavam das plumas, que se irradiavam da seda; pois ela era muito grande, muito gorda, toda apertada em tafetá cor-de-rosa e já não mais na flor da idade. Como um guarda-sol de muitos gomos, como um pavão de muitas penas, fecha seus gomos, recolhe as penas, assim ela decresceu e fechou-se, já afundando na poltrona de couro.

"Bom dia, Mr. Bacon", disse a duquesa. Estendeu-lhe a mão que saiu pela abertura da luva branca. Oliver, ao apertá-la, inclinou-se todo. Quando suas mãos se tocaram, forjou-se mais uma vez o elo que os unia. Eram amigos, contudo inimigos; ele era mestre, ela, senhora; cada qual enganava o outro, precisava do outro, temia o outro, cada qual sentia isso e sabia disso a cada vez que se apertavam as mãos assim, nessa salinha recuada com a luz branca lá fora e a árvore com suas seis folhas e o barulho da rua na distância e por trás deles os cofres.

"E hoje, duquesa - em que lhe posso ser útil?", perguntou afavelmente Oliver.

A duquesa abriu seu coração, escancarou seu coração particular. Com um suspiro, mas sem palavras, ela tirou da bolsa um saquinho comprido de couro envernizado - que parecia um furão amarelo e magro. De uma abertura na barriga do furão ela deixou cair pérolas - dez pérolas. Que rolaram pela abertura na barriga do furão - uma, duas, três, quatro - como ovos de um pássaro celestial.

"É tudo que me resta, caro Mr. Bacon", gemeu ela. Cinco, seis, sete - rolaram para baixo, pelas encostas dos vastos flancos montanhosos que desciam formando um vale estreito entre os seus joelhos — a oitava, a nona e a décima. Lá agora se acamavam no brilho do tafetá flor de pêssego. Dez pérolas.

"Do cinturão de Appleby", disse em tom lamentoso. "As últimas... as últimas mesmo."

Oliver esticou a mão para apanhar entre o indicador e o polegar uma das pérolas. Bem redonda, bem lustrosa. Mas seria verdadeira ou falsa? Estaria ela mentindo de novo? Será que ainda se atrevia?

Ela então cruzou nos lábios seu dedo recheado e roliço.

"Se o duque soubesse...", sussurrou. "Foi um pouco de má sorte, caro Mr. Bacon..."

De novo na jogatina, será?

"Aquele vilão! Aquele trapaceiro!", sibilou ela.

O homem de osso malar saltado? Um mau elemento. E o duque era corretíssimo, reto que nem um poste; de costeletas; era capaz de picá-la em pedacinhos, de deixá-la trancada no porão, se soubesse - sei lá do quê, pensou Oliver e olhou para o cofre.

"Araminta, Daphné, Diana", lamentou-se a duquesa. "É para elas."

As senhoritas Araminta, Daphné e Diana - suas filhas. Ele as conhecia; adorava-as. Mas era Diana que ele amava.

"O senhor sabe de todos os meus segredos", disse ela, olhando de soslaio. Lágrimas escorreram; lágrimas caíram; lágrimas, como diamantes, absorvendo pó de arroz nos sulcos de sua face de cerejeira florida.

"Meu velho amigo", murmurou ela, "velho amigo."

"Velho amigo", repetiu ele, "velho amigo", como se lambesse as palavras.

"Quanto?", perguntou ele.

Ela cobriu as pérolas com sua mão.

"Vinte mil", sussurrou.

Mas seria verdadeira ou falsa, a que ele havia pegado? Ela já não tinha vendido - esse cinturão de Appleby? Ia chamar Spencer ou Hammond. "Leve esta e teste", diria. Esticou-se para alcançar a sineta.

"O senhor vai aparecer amanhã?", ela instou, ela interrompeu. "O primeiro-ministro - Sua Alteza Real..." Ela parou. "E Diana", acrescentou.

Oliver retirou a mão da sineta. Olhou além dela, para os fundos das casas de Bond Street. Mas viu, não as casas de Bond Street, e sim um rio ondulado; com trutas e salmões que se erguiam; e o primeiro-ministro; e ele também; de colete branco; e então Diana. Baixou os olhos para a pérola em sua mão. Mas como poderia testá-la, à luz do rio, à luz dos olhos de Diana? Já a duquesa não desgrudava os olhos dele.

"Vinte mil", gemeu. "Palavra de honra!"

A honra da mãe de Diana! Ele puxou para si seu talão de cheques; e tirou do bolso a caneta.

"Vinte", escreveu, Depois parou de escrever. Os olhos da senhora idosa do quadro — da velha, sua mãe — o fitavam.

"Oliver!", ela o advertiu. "Tenha juízo! Não seja bobo!"

"Oliver! suplicou a duquesa - agora era "Oliver", e não "Mr. Bacon". "Você passará todo o fim de semana?"

Sozinho nos bosques com Diana! Galopando a sós pelos bosques com Diana!

"Mil", escreveu e assinou.

"Aqui está", disse.

E eis que se abriram todos os gomos do guarda-sol, todas as plumas do pavão, a radiância da onda, as espadas e lanças de Agincourt, quando ela se levantou da poltrona. E os dois velhos e os dois moços, Spencer e Marshall, Wicks e Hammond, achataram-se por trás do balcão a invejá-lo quando ele a conduziu até a porta da loja. Ele, abanando-lhes na cara sua luva amarela, e ela com sua honra - um cheque de vinte mil libras assinado por ele — firme nas mãos.

"Serão falsas ou verdadeiras?", perguntava-se Oliver, fechando a porta da sala privativa. Lá estavam elas, dez pérolas sobre o papel mata-borrão da mesa. Levou-as até a janela para as manter sua lente na luz... Aquilo então era a trufa que ele tinha retirado da terra! Podre no centro - podre no cerne!

"Perdão, minha mãe!", suspirou, erguendo as mãos, com que contritas, para a velhota do quadro. E voltou a ser o garotinho da ruela onde aos domingos se vendiam cachorros.

"Pois", murmurou ele, pondo as palmas das mãos bem juntas, "vai ser um fim de semana inteiro.”

Fonte:
Virginia Woolf. Casa mal assombrada e outras histórias. Publicado em 1948.
Disponível em Domínio Público.

Daniel Maurício (Amar é) – 1


Não incomodes
A lua
Ela é pássaro
Da noite
Que voa
Fazendo corte
Ao apaixonado
Olhar.
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Me prove
Com teus olhos,
Mas
Só me beijes,
Se estiveres
Disposto
A me amar.
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Dos olhos polacos
Choramingam
Histórias.
Mas são
Dos lambrequins
Quase esquecidos
Que as lembranças
Gotejam.
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Mesmo
Com o coração ferido
A ela
Só cabia a amar
Pois era a única veste
Que cobria
A nudez
Da sua alma.
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Amor
Com
Amor
Se
Transborda.
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Como quem guarda
Um presente precioso
Me guardei
Me guardei
Aguardei…
Me dei conta
Do passar do tempo
E prazerosamente,
A ti,
Me desembrulhei.
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Na ausência
De palavras
Colhi
Com meu abraço
As úmidas pétalas
Que desfolhavam
Dos seus olhos.
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Na
Magreza
Dos olhos dele
Sinto n' alma
A dor
Da
Fome.
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Ah, Essas catedrais
Que se levantam!
Enquanto meus olhos
Se encantam
Silenciosamente
Uma prece escapa
Mesmo
Sem eu saber.
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Mãe.
"Patas",
Não me destes.
Mas "garras"
Tinhas de sobra.
Me ensinastes
A viver.
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Me guardo
Em tua
Eternidade
Assim
Em ti
Sempre
Existirei.
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A tua alegria
"Passarinheira"
Me fez até esquecer
De que a vida é
Passageira
E contigo
Mil planos rascunhei.
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Me acostumei a
Te chamar
De amor
Mas hoje
É outra
Pessoa
Que me responde.
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Com uma pitada de sal
Tempero
Minhas saudades
Assim
Mesmo com
O avançar da idade
Elas permanecerão
Com o mesmo sabor.
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Ah!
Como
Adoro
Passarinhar
Entre
As tuas
Pétalas.
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Abra-me
O teu céu
Que te mostrarei
As delícias
Do meu paraíso.
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A chuva
Passou
Deixando
No chão
Rastros
De esperança.
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Ah!
Essa tua lonjura!
Sedento por ti
Navego
Em mim mesmo.
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Hoje, a saudade fez um
Barulho no meu peito
Queria de todo jeito
Te trazer para perto de mim.
Abraço o teu perfume
Beijo o teu sorriso
Como se estivesse contigo
Em silêncio vendo passar o rio.
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No varal do tempo
Sequei os lenços
Da saudade
Brisa leve
Que me invade
Me tornei
Um pedacinho
De você.

Fonte: Daniel Maurício. Amar é. Curitiba: Ed. do Autor, 2021.  
Enviado pelo poeta.

Marques de Carvalho (Complicações psicológicas)

Velas soltas, bandeira encaixada no mastro grande, o minúsculo iate de Alfredo singrava galhardo as aguas do Guajará, em rumo do oceano.

Manhã clara, duma beleza diáfana e prazenteira. O rio tinha cintilações prateadas, fluindo numa suavidade infinita. Aqui e ali, para os lados da foz, os panos das embarcações tapuias espalmavam-se no horizonte, destacadas em vivo contraste sobre o azul esplendente do céu. Em terra, traquinando, borboletas enormes polvilhavam sobre os aningais das margens a luminosa poeira das asas pintalgadas. E toda a vida das matas levantava-se em gorjeios, grasnidos e aromas.

A bordo do Nymphéa, na diminuta coberta, acabara agora mesmo o serviço do café matinal. Xícaras disseminadas pelos bancos da amurada rescendiam ainda do alegre cheiro da infusão escaldante; e já os cigarros de ótimo Bragança fumegavam, — enquanto ao ruído da palestra juntava-se, à meia-nau, o ranger dos moitões e cabos do velame desfraldado.

De irrepreensível corte, a nave oferecia interior e externamente uma perfeição de linhas e uma limpeza completa. Nela estava a mirar-se, orgulhoso, o proprietário, ali deitado, à popa, em fina rede branca de fio de carretel. Eis a sua maior dita, viajar no pequeno iate, veleiro e gracioso. Nem a certeza dos bens pecuniários herdados anos antes, nem a sedução das valsas em que rodopiara outrora pelos salões à moda, enlaçando frágeis bustos de morenitas embriagantes, — tiveram jamais para Alfredo semelhante dom de encantamento, esta vertigem inefável, que recebia ao deslizar, à flor das ondas, caminho do Atlântico, a bordo da sua adorada miniatura de navio. Era, com efeito, um júbilo veemente e incomparável, uma sensação de liberdade, que o exaltava em deliciosos arroubos. Julgava-se então um ser à parte, um privilegiado da vida, — predestinada criatura para quem o dinheiro, longe de tornar-se elemento de desequilíbrio mental, com a alucinação das grandezas, fora apenas o meio de realizar aspirações de isolamento que o afastassem, com intervalos felizes, do convívio comum. E cada vez que assim velejava sobre a agua, na manhã triunfal, suas conversas com o mestre eram menos uma palestra coordenada, do que expansões da alma entusiasmada por estas fugas marítimas, em meio á rude gente da faina.

O mancebo sorvia em largos goles a brisa esperta do largo; e, impelindo a rede com o bico do pé de encontro ao anteparo metálico da amurada, exclamava num solilóquio enlevado:

— Voga, Nymphéa! Voga, meu iate! Além, numa enseadazinha da costa assoalhada e calma, — é o sossego infinito que nos aguarda: a ti, os beijos cadenciados das vagas; a mim, os ósculos da única mulher verdadeiramente sincera que já encontrei!

E seus olhos, percorrendo a coberta, beijavam também, com ternuras de pai, os âmbitos do iate.
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Podia-se afirmar que estava ali um homem verdadeiramente experimentado. Herdeiro único de grande fortuna, que o pai amoedara na vida comercial, em Belém, Alfredo vira-se emancipado, independente e cheio de saúde, aos 20 anos de idade.

Os primeiros tempos decorridos após a morte de seu progenitor foram para ele uma incessante peregrinação pelos mais remotos países. Sequioso de novidade, partira da terra paraense com a pasta pejada de cartas de ordens sobre bancos de além-mar e a alma transbordante da ânsia de tudo ver e fruir. A febre do açodamento juvenil espicaçava-lhe a indômita curiosidade. Viajou toda a Europa, num grande gozo de intelectual aproveitado. Passou depois ao Oriente, cujo exotismo tamanhas tentações lhe oferecera desde a adolescência; e assim percorreu estranhos países de lenda, rebuscando embalde as fantasias dos poetas nas decepções da desilusória realidade. Mas, cansado o próprio ideal, tornou à civilização do Ocidente, cujas requintadas complicações ainda mais o intrigaram, após a recente digressão às terras do paganismo.

De toda a parte, surgiam-lhe dúvidas ponderáveis, — terríveis incógnitas dos problemas sociológicos, que a sua alma, de tendências equitativas, em vão queria resolver. Onde está a justiça, na prática humana?

Esta hesitação, esta irresoluta indecisão que nada satisfazia, bem lhe dava a entender quão mesquinhas e oscilantes são as bases em que a sociedade assenta os princípios com os quais pretende reger-se. Chegou-lhe então o primeiro engulho do primeiro enfaro (tedioso): aos 25 anos!

Foi por causa desta decepção que resolvera fugir da Europa. Embarcou para o novo mundo, em direção aos Estados Unidos. A princípio, teve um deslumbramento sem par. Aquela admirável atividade das populações operárias, congregadas à voz do capital onipotente em torno às fornalhas, às bigornas, às maquinas, às retortas, — aquela atividade única chegou a dar-lhe vertigens de entusiasmo. Ali ele encontrava, enfim, o ideal da raça humana, buliçosa na incessante produção, colmeia enorme compenetrada de que a rapidez da vida não permite mais um instante de folga sem prejuízo imediato.

Contudo, um curto exame de poucos dias revelou-lhe que os mesmos vícios de origem lá campeavam também, trazidos no sangue europeu. A matéria podia agir com afinco maior; mas o espírito sofria de idênticas enfermidades, — a sede das aspirações irrealizadas, o embate dos preconceitos, a agrura das competências políticas e industriais, toda a emaranhada engrenagem das misérias de um século de egoística injustiça a arrastar e esmagar os fracos, os desprotegidos, os simples.

Abalou, por isso, terras afora. Veio à América Central, — emblema da inconstância da vida na inconstância dos seus governos e leis. Sem deter-se, ultrapassou o istmo, desceu mais ao sul, transpondo os alcantis dos Andes, e remirou as faces emaciadas na fria onda marulhosa do estreito de Magalhães. Além, nos países de idioma espanhol, aguardava-o uma surpresa dolorosa. Habituara-se a ouvir tratarem-nos de republiquetas e foram, na maioria, fortes nações progressistas que se lhe depararam. Onde pensava achar povos depauperados e cidades estacionárias, encontrou uma raça viril e ardorosa, e capitães magníficos, e belos núcleos urbanos, de feição moderna, amplamente revolvidos e reedificados sob a direção de patriotas inteligentes. E a convicção de que, mais uma vez, andara errada a balofa ignorância do chauvinismo brasileiro, trouxe-lhe aos olhos duas lágrimas sinceras e uma nova desilusão ao fundo da alma angustiada.

Foi após este derradeiro desgosto que regressou ao Brasil.
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Vogava sempre a embarcação, águas abaixo, impelida na dupla força do vento e da correnteza. Andava na claridade do espaço a hilariante alegria dos belos domingos nortistas. A natureza em torno possuía, nessa manhã, uma aparência de tranquilidade edênica, propícia às meditações de Alfredo.

Sempre estendido na rede, a balançar-se, fumando consecutivas cigarrilhas, o moço passava em revista, no caleidoscópio da alma, as peregrinações de antanho. Como essa quadra agitada sumira-se fugace! Perdia-se agora nos longos esbatidos das simples recordações da primeira juventude. Viagens; vai-vém do bulício humano em grandes centros populosos; cavalgadas pelas lezirias do Tejo e nas estepes russas; ascensões alpinas; travessias perigosas de barrancos na Pérsia e cataratas americanas, — tudo ficava atrás, sem saudades, na meia sombra dos fatos abandonados, para cuja observação o tempo lhe assinalava um sítio impessoal, de simples espectador desiludido.

Só lhe interessava agora o presente, que ele resumia no iate e em certa caboclinha, amante estremecida. Para esta última eram os seus garbos de cavalheiro e os seus mais assíduos pensamentos de namorado. De que servia o passado, se representava apenas a sombra de emoções extintas? A própria lembrança de antigos amores não tinha mais a força de desviar-lhe a atenção por longos minutos nem de arrancar-lhe um suspiro mais acentuado. E, contudo, se, noutros tempos, alguém lhe afirmasse que tal houvera de suceder, quiçá arriscasse ouvir esperta reprimenda!

Fossem lá dizer-lhe que as seduções da tapuia paraense, mimosa e ingênua, — duas vezes adorável pela graça e pela ignorância tímida, — seriam capazes de o transportar aos requintes da ventura, absorvendo-o de corpo e alma, perenemente, e purificando-o dos primitivos contatos como numa piscina miraculosa... Protestaria de certo, e com veemência. Mas a realidade era essa, entretanto...

No decorrer das viagens, claro está que o amor, — ao menos o que pensamos dever ser o amor, aos 25 anos, — ocupou-lhe boa parte dos sonhos e vigílias. O seu álbum de recordações amorosas oferecia uma admirável série complexa de perfis femininos, coleção cosmopolita, que abrangia desde a irresistível parisiense até a fascinante baiadeira, da mousmé, estranha na coloração estridente dos garridos arrebiques, á simples gentia sul-americana, melancólica e bondosa na sua passividade fatalista. E havia também flores de opostos climas, fitas, amuletos, cartas, — um delicado museu de objetos desbotados, trescalando o vago odor das coisas esquecidas.

Era tudo isto que desfilava pela mente de Alfredo, nesse mesmo instante. Aprazia-lhe, às vezes, no capricho da sua volúpia, evocar assim antigas épocas e rememorar passadas peripécias prazenteiras, para melhor fruir a atual ventura do seu grande e saboroso amor da maturidade. Nenhuma paixão fora comparável a esta, que tamanhas atenções lhe merecia. Das sensações antigas, nem o ressabio lhe ficara, ao toque do intenso afeto de hoje, tão fundo lhe invadira a alma, com a subjugação abençoada de predileta tirania. E por vezes, revolvendo papéis velhos, quedava-se interdito, quase envergonhado, ao lobrigar uma florzinha murcha ou triste cacho de cabelos descorados; interdito, por ter-lhes esquecido a procedência, envergonhado de havê-los guardado por tanto tempo, assim avaramente, quando nem o coração conservara o sentimento que os tornara valiosos, nem a memória volúvel pudera reter-lhes a lembrança.

Tudo passara, na dissolvência dos sonhos, na voragem dos anos. Ilusões patrióticas e entusiasmo pelos gozos instáveis, tragara-os o tempo, impassivelmente. Alfredo não lamentava este resultado; pelo contrário, sentia-se feliz ao verificar que o coração, liberto de antigas peias, estava apto a consagrar toda a energia afetiva ao doce culto de um só amor, espontâneo e livre, no seio olente da floresta compassiva.

Suas aspirações de reformas radicais, seus impulsos para a propaganda em prol dos ideais regeneradores da sociedade, perderam também o ardor militante de outrora. Evidentemente, a noção de uma justiça exata é o paradoxo mais estranho que a razão ilógica do homem criou num dia de sarcasmo, para o próprio engodo. Então, de nada valia esbaforir-se em santo frenesi, conclamando a necessidade da restauração dos princípios equitativos. A maldade humana predominaria para todo o sempre, irresistível, vencedora. Restava-lhe, pois, submeter-se ao embate da onda larga da convenção. E, vencido, era nos arcanos de um novo amor que ele, ao mesmo tempo incrédulo e piedoso, levado velozmente pelo minúsculo iate, na clara manhã ensolarada, ia buscar o doce bálsamo dos beijos sinceros, o supremo conforto para as tremendas desilusões que as complicações psicológicas lhe proporcionaram.

Fonte:
João Marques de Carvalho. Contos do Norte. Belém/PA: Typographia Elzeveriana, 1907.
Disponível em Domínio Público

Dicas de Escrita (Como escrever histórias) – 7

A REESCRITA


A maneira mais comum de contar uma história é por escrito. Mesmo no cinema, antes de o filme ser feito, uma infinidade de papéis são utilizados: tratamento, sinopse, escaleta... então agora que revisamos o enredo, os personagens e as situações da história que queremos contar, é hora de voltar a sentar-se e reescrever toda a história.

Já vimos como era importante apresentar um texto sem erros ortográficos, mas, mesmo que seja um texto não literário, é preciso ir um pouco mais longe. nunca será mal um jogo de palavras ou uma metáfora. Pense que os outros não precisam apreciar aquele texto que você acabou de entregar a eles com tanto entusiasmo.

Use uma escrita simples, concisa e não retórica. Na primeira leitura deixe claro o que está acontecendo na história. Se um texto literário é ou não um ensaio complexo sempre dificulta a leitura e pode nos fazer “perder”, não vamos acompanhar a história e acabar pensando em outra coisa. Tendemos a pensar: Todos nós podemos escrever sujeito + verbo + predicado e demonstrar o quão habilidosos somos, complicamos frases.

– As frases geniais. Por que colocar o assunto no final da frase? Por que usar uma forma verbal composta? Tive uma professora de escrita criativa que, quando se tratava de corrigir os textos que tínhamos, ela recomendou que tivéssemos sempre dois documentos do Word. Um deles seria o texto que estaríamos trabalhando e o outro seria chamado de algo como "minhasfrasesgeniais.doc". Lá nós colaríamos essas frases que nos parecem ótimas, mas não são compreendidas.

– Não abuse de figuras literárias. Use-as com moderação, intenção e traição, mas nunca recarregue o texto.

– Reescrever é o processo mais difícil. Consiste em corrigir todos os erros que estamos detectando e reanalisando o texto novamente. Geralmente acontece que, a cada leitura, corrigimos novamente. Não se preocupe, é normal, embora para alguns escritores se torna uma obsessão, um ciclo infinito a partir do qual eles pensam que eles nunca sairão. A reescrita também é a parte mais frustrante para a maioria dos escritores, embora haja alguns que gostem, a maioria prefere a parte da criação pura. Hitchcock, por exemplo, protestou nos dias de filmagem. Ele disse que já tinha visto o filme na cabeça, mas acabou lendo.

No final da reescrita você deve ter certeza absoluta de que cada palavra do seu texto é o que é porque não pode ser outro. Voltemos ao exemplo da senhora atravessando a rua. Senhora? Mulher? Dama? Fêmea?
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continua, final…

Fonte:
Pedro A. Ramos García. Cómo contar historias. in www.mailxmail.com . acesso em 26.11.2020. Tradução do espanhol por J.Feldman

Aparecido Raimundo de Souza (Silhueta disforme)

 

DE REPENTE EUSTÁQUIO se viu apalermado e sem voz. Completamente afônico. Acordou assim, sem saber o real motivo do que havia acontecido. Tentou chamar pela mãe. Nenhuma palavra lhe veio em socorro. Pulou da cama, assustado. Correu ao banheiro. De frente para o espelho, escancarou a boca em uma dezena de “ois e ais,” e nada.  Só via os movimentos dos maxilares. Nenhum som. Um apavoramento momentâneo invadiu seus olhos. Os arregalados da surpresa o deixaram perplexo. Mudo, paralisado, aparvalhado. O que teria causado tal transtorno? Como ficara impossibilitado e sem poder fazer uso das cordas vocais?  

Tentou se lembrar da noite anterior. O que fizera? Com quem estivera? Bebera algo além da conta? Ainda que tivesse se excedido, passado dos limites, o silêncio que lhe invadia não poderia simplesmente tolher a sua comunicação. Sua consciência trabalhava apressada. “Calma, muita calma nessa hora – disse de si para consigo. Isso não pode estar acontecendo.” Mas, naquele momento, o fato se fazia real. Sólido, de teor autêntico e palpável. Na sexta-feira, depois que saíra da faculdade tentou colocar as ideias em ordem. Encontrara-se com Bárbara, sua namorada. Ela o esperava num barzinho em frente ao prédio principal onde ambos estudavam.

Ele cursava direito e a jovem optara por medicina. Para Eustáquio faltava um ano, enquanto para sua futura cara metade, dois, além da residência. “Não se apavore, não se desespere nessa hora – repetiu. Isso é um pesadelo, uma brincadeira de gosto alienígena.” Lembrou que deixou a sala de aula, passou pela biblioteca, devolveu um livro que pegara sobre “Introdução ao Estudo do Direito do professor Teófilo Cavalcante.” Yara, a atendente, na hora em que ele saia, correu a avisá-lo de que havia esquecido o celular. Agradeceu a garota com um cordial “Obrigado, linda” e seguiu em frente.
 Do trajeto até o pórtico principal de acesso à via pública ligou para Bárbara:
— Oi, “mor.” Saindo. Está no bar, em nosso cantinho preferido?
Bárbara respondeu prontamente:
— Sim, “mor”, à sua espera. Acabei de ver você.
Acenou com a mão para o rapaz e completou:
— Pedi um suco de manga, seu preferido.
— Ok. Falou para o Moacir não “pegar pesado,” no gelo?
Essas foram às palavras proferidas entre a portaria da faculdade até o momento de atravessar o burburinho movimentado de carros e ônibus e galgar o pórtico que levava ao bar.

“Trajetou” o percurso sem pressa. Entrou no estabelecimento empurrando a portinhola “vai e vem.” O bar do Moacir lembrava um típico “saloon” do velho oeste norte-americano, assemelhado aqueles dos filmes de cowboy dos tempos de Butch Cassidy, Jesse James e Ringo. Do balcão, Moacir, ao vê-lo, acenou. Ele devolveu o cumprimento. Ao divisar Bárbara entre os fregueses, apressou os passos e a abraçou com carinho e ternura. Trocaram, em contínuo, um longo e apaixonado beijo:
— Minha linda!   
— Olá gatinho, tudo bem?
Bárbara em menos de uma semana completaria vinte e dois anos, enquanto ele entraria na casa dos trinta no próximo mês.

Corria o final de agosto e setembro prometia uma série de novos adventos. O principal deles: o noivado, no dia em que apagaria as três dezenas de velinhas com todos os amigos dele e dela, numa recepção previamente contratada num cerimonial próximo de onde moravam. Bárbara residia no mesmo bairro que Eustáquio, duas quadras da esquina dele. No mesmo percurso, vinte minutos da faculdade. Haviam se visto pela primeira vez quando ele se acidentara com a moto que acabara de comprar e precisou passar pela UPA. Bárbara trabalhava na enfermaria da unidade. Em resumo: foi amor aos primeiros curativos.

Desde então, nunca mais se largaram. O pedido de namoro veio em seguida, numa festividade reservada apenas às famílias envolvidas. O amor parecia ser eterno e sempre se renovava essa certeza com uma série de beijos calientes, abraços demorados e os encontros de todos os dias (sempre no bar do Moacir) ou nas horas de estudos, na biblioteca da faculdade ou no refeitório:
— Eu te amo, Bárbara.
— Eu te amo, Eustáquio.
Diante do espelho, a se ver recordando o dia anterior, notadamente pensando em Bárbara, sorriu, matreiro: “Eu te amo, Barbara.”

Desta vez, porém, só os gestos dos lábios se fizeram positivos. O som da voz acometido por alguma coisa inexplicável, morrera no fundo da garganta: “Bárbara, eu te amo.” O imensurável do distúrbio repentino pesou tenebroso no reflexo que a superfície polida e metalizada grudada na parede acima da cuba insistia reverberar: “Eu te amo, Bár....” sem sequer terminar o que pretendia, desceu do segundo andar acelerando os pés. No piso inferior, tropeçou com Lolita, a empregada, finalizando a mesa com os preparativos para o café da manhã:
— Patrãozinho, o que é isso? Precisa usar óculos...

Eustáquio devolveu a serviçal um “sai da frente” aos berros. Porém, ela nada ouviu, enquanto ele, transtornado, e aos prantos, corria em direção à cozinha buscando pela mãe. Adentrou pulando nos braços da genitora:
—  Oi filho, o que houve?
Dona Fernanda percebeu, nesse momento, que algo atípico e inabitual adejava e crescia em desacordo. Até aquela manhã bonita, nunca vira seu filho tão agitado, além, claro, do choro espasmódico que fazia as lágrimas em profusão banharem o rosto da criatura de forma aterradora.

O infeliz tentou dizer que acordara anômalo ao seu estado costumeiro. Desenhou uma série de gestos com a destra. Dona Fernanda, entretanto, não dimensionou, de pronto, o que acontecia:  
— Filho, pelo amor de Deus, o que se passa? Lolita me socorre, por tudo quanto é sagrado. Lolitaaaaaaaa...
Lolita veio ligeira, indagando da patroa o que se passava. Ao vê-la, agitada e chorosa, entrou também em pânico, pondo-se os três a se debulharem em profunda convulsão:
— Lolita, pegue o meu celular lá em cima, na cabeceira da cama e ligue para o doutor Jair. Veja se meu marido já chegou ao escritório...
— Sim senhora, dona Fernanda.

— Peça que venha urgente. Nosso Eustáquio não está em... ande, filha de Deus, vá... deslanche...
— Estou indo, patroa... estou indo...
— Rápido, criatura... acelere, “despise” do freio. Voeeeeeeee...
Em vista do trânsito caótico, o doutor Jair demorou quase uma hora para conseguir retornar à sua residência. Ingressou às carreiras, tropeçando nos móveis, ao tempo em que resmungava impropérios os mais cabeludos:
— Que foi, Fernanda. O que aconteceu?
— Nosso filho Eustáquio!
— O que houve? Nosso rebento botou um ovo?

Dona Fernanda fuzilou o marido:
— Engraçadinho. Isso não é hora de fazer piadas. O assunto é sério.
Lolita com a história do ovo bailada pelo doutor Jair igualmente se abriu em franca e sonora gargalhada:
— Lolita, sua desmiolada. Onde está a graça?
A empregada, movida pela piada ouvida do seu senhorio, não atinou com a indagação. Respondeu o que lhe veio à língua solta:
— Que graça, dona Fernanda?  Que graça?!
— Dois imbecis, tenho diante de mim. Deixem as palhaçadas para depois. Jair, seu tonto de carteirinha. Nosso filho requer cuidados...
Subiram, em fila indiana, para o andar superior. À porta do quarto de Eustáquio, ficaram boquiabertos com o cenário.

O rapaz completamente pelado, dançava freneticamente com o traseiro virado para a porta. Bailava ao som de alguma música que só ele deveria estar ouvindo. A postura de seus requebros estrambóticos e bizarros, em expressão pessoal garbosa, lembrava, ainda que muito distante, a dança do ventre. Não havia ninguém no aposento. Contudo, o doutor Jair, cenho franzido, intrigado e “estupefatado” com aquele episódio burlesco e ridículo, embrabeceu a voz e esturrou:
— Fernanda, que “diabos” está acontecendo aqui? Quem é a vagabunda destrambelhada ao lado do nosso menino?

Dona Fernanda se encheu de razão. Inflamou as ventas. Se pudesse voaria no pescoço de seu marido:
— Jair, seu desgraçado, pare de piadas. Nosso filho precisa de ajuda. Vamos. Faça alguma coisa...
— Primeiro me diga quem é a rameira desqualificada que está ao lado dele. Se não estou velho demais, afirmo que não é a Bárbara. Como você permitiu essa imundície entrar aqui?
— Jair, seu infeliz dos infernos. Deixe de ser criança. Não vejo ninguém ao lado dele. Você pirou o cabeção? Bebeu? Fumou um cigarrinho do tinhoso?
— “Diabos”, mulher. Nosso filho está grudado numa piranha. Você me tira quase às barbas do trabalho para vir aqui e assistir uma droga dessas?

O surpreendente, o inverossímil. O inaudito pasmoso e insólito. Ao pronunciar a palavra “diabos” a devassa e promíscua rapariga desapareceu. Eustáquio, num segundo, voltou ao normal da voz sucumbida. De costas para os ali presentes, num impensado se virou de vez:
— Pai, mãe, o que fazem aqui?
“Desrecordara,” obviamente, que se transformara num Adão e caminhava para seus consanguíneos envoltos numa plateia nu em pelo. A pobrezinha da serviçal, atarantada e perturbada, sem saber onde enfiar a “estuporação,” foi a que mais se aperreou. Quando mirou o herdeiro dos seus patrões, tapou os olhos numa atitude envergonhadíssima. Empreendeu meia volta e debandou escadas abaixo em tremenda correria, e, aos espaventos do susto, vociferando enquanto se benzia:
— Puxou o pai. Jumento, jumento, jumentoooooooo!...    

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

sábado, 30 de setembro de 2023

Ademar Macedo (Ramalhete de Trovas) 12

 

Carolina Ramos (Tiní)

Bleu nunca foi esquecido, embora sua dona ganhasse, como prêmio um gatinho persa, também lindo demais!

Comprado em São Paulo, ainda pequenino, Tiní veio de trem junto comigo e minha mãe. E, já que passageiro clandestino, muito bem camuflado numa caixa de papelão cheia de buracos disfarçados.

Às tantas, durante a viagem, resolvido a rebelar-se contra a prisão, Tini desandou a miar. E, ai... o "palco" abriu-se! E haja sorriso amarelo, da mãe e da filha, para disfarçar o vexame...

Logo, tornou-se impossível esconder a verdade e decidimos enfrentar o pasmo dos demais passageiros, tirando Tini da caixa! Foi aquele alvoroço!

A graça e o fascínio, daquela belezura de gato, correram de banco em banco, logo conquistando a simpatia de todos. E todos, sem exceção, queriam ver de perto aquela coisinha linda que até aos mais sisudos encantava!

Quando, algum tempo depois, o guarda trem adentrou o vagão para picotar as passagens, a cumplicidade geral, solidária, muito contribuiu para camuflar a presença do gatinho clandestino que, por sua vez, quieto e calado, parecia ter noção da gravidade daquele suspense vivido por tantos.

Foi justamente assim que aquela bolinha de pelo, rajada e macia, deixou o planalto e, despercebida, chegou, sem maiores problemas, à nova residência, nesta Santos praiana, para amenizar os dias cinzentos daquela menina ainda bastante machucada pela ausência daquele inesquecível gatinho azul, guardado para sempre na saudade.

Tini, tornando menos doída a lembrança de Bleu, passou a ser meu companheiro de estudos. Cúmplice, em tempos de provas, ajudava-me a despistar meu pai que, altas madrugadas, percebendo-me acordada ao ver, por debaixo da porta a luz acesa, entrava intempestivamente no quarto e surrupiava os livros espalhados ao redor da filha desobediente. E apagava as luzes, deixando-me às escuras, para que eu dormisse.

Tini, por sua vez, alheio, ou solidário às circunstâncias, lambia as patinhas, com cara de sonso, como se nada de errado houvesse acontecido à sua frente. Em autodefesa, logo aprendi a calçar as frestas da porta. Embora... ao descobrir o engodo, vez ou outra, meu querido pai me surpreendesse com um livro nas mãos, levando-o consigo. Contudo, meu querido pai não sabia que o livro que de fato me interessava já fora antes estrategicamente escondido debaixo do travesseiro, de onde só sairia findo o "perigo".

Hoje, analiso não ter sido rebeldia a desobediência daquela menina, que viria a se repetir algumas vezes mais. E ao entender melhor o que acontecia, reconheço, hoje, não ter sido nada fácil tentar equilibrar as exigências de boas notas, com a disciplina imposta por um pai severo.

Constato, também, vir de longa data essa minha fixação pelas horas produtivas das madrugadas, o que ainda hoje me furta períodos preciosos de sono. As madrugadas de ontem, sempre dedicadas aos estudos e as de agora, à digitação. Tudo, e, em qualquer tempo, porque "eu nasci assim", como diria Jorge Amado. E, mesmo não sendo Gabriela, assim espero continuar a viver e a pavimentar com letras as ruas que traçam meu destino, enquanto Deus o permita.

Nos cenários de ontem, Tini, por sua vez, após as broncas de meu pai, continuava a lamber as patinhas, como quem lavasse as mãos, com cara de sonso, solidário, ou simplesmente alheio a tudo. Como se nada de errado houvesse acontecido à sua frente.

Fonte: Carolina Ramos. Meus Bichos, Bichinhos e… Bichanos. Santos/SP: Ed. da Autora, 2023.
Enviado pela autora.

Luiz Poeta (Poemas Escolhidos) – 18 –


DE - SEN - VELHECER


Desenvelheço toda vez que me retoco
E a maquiagem que me dou, não me desmente,
Ela é o presente de um passado que eu evoco,
Quando meu foco é viver mais intensamente.

Rejuvenesço quando pinto meus cabelos
Mas alguns pelos denunciam minha idade,
Minha saudade nunca cede aos meus apelos...
Sem atropelos, chega com suavidade.

É impressionante essa leveza cristalina
Que as retinas não contêm, quando algum pranto
Faz meu encanto mais feliz dobrar a esquina,
Mas me deixar algumas notas de acalanto.

Que bom cantar... toda canção tem o poder
De me fazer amar o tempo em que a poesia
Sempre se alia à energia de viver
E compreender o meu amor com alegria.

Minto e desminto minha dor mais escondida
E enquanto há vida num canto da solidão,
A pulsação do meu amor sempre revida,
Quando, atrevida, a dor convida-me à razão.

Desenvelheço ao zombar do meu espelho,
Quando um joelho me impede de levantar...
O meu olhar vê, nos meus olhos, o fedelho
Que eu sempre fui, vendo um espelho se quebrar.

Sorrir me leva ao que me enleva e me abençoa,
Minha alma voa, pois é preciso sonhar
E para amar é só criar um sonho à toa,
Pois é tão boa a sensação de não chorar.

Rejuvenesço, eu mereço este momento
De ver o vento expondo as pétalas no ar,
Pois toda vez que o vento cria outro rebento,
Eu polinizo um novo tempo em meu olhar.
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LABAREDA

Teu amor se chega quando te incendeias,
Quando quem tu amas se virtualiza,
Quando a paixão permite que tu creias
Que há mais que um desejo em tua pele lisa.

O amor é lágrima que não desliza
No espasmo da dor das vísceras latentes,
Quando um riso tênue surge e nem avisa
Que há mais amor na dor que só tu sentes.

Teu amor é filho dessa solidão
Tão silenciosa que, sutil, te habita,
Que afaga a pele do teu coração
Quando a emoção sufoca a dor que grita.

Teu amor se chega como um invasor
De múltiplas faces, múltiplos desejos...
Quando ele se vai, já replantou a dor
Feita de prazer que existe em cada beijo.

O amor é teu riso, quando ele se solta,
Mexe em teus anseios e se alimenta
Dessa fantasia livre à tua volta...
O amor só volta... quando tu te ausentas.
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LÍRICOS ANSEIOS

Falo de amor... sou redundante... Incorrigível!
Parece incrível, mas até nas reticências,
Evoco a musa mais etérea ... ou mais tangível,
Dessas que surgem das mais líricas essências.

Quando me expresso ao falar de um sentimento,
Sou como o vento, toco as pétalas do amor
E cada verso que me dou, é o momento
Mais Inefável desse encontro com essa flor.

Por excelência, adjetivo essa ternura
Que dura o tempo da mais pura abstração,
Meu coração, liricamente só procura,
O amor que cura minha dor de solidão.

É assim que canto o maior amor que sinto,
Não minto a dor, é impossível disfarçar,
Mas meu olhar desvenda sempre o labirinto
Do sonho extinto que eu preciso ressonhar.

Lírico e lúdico, desenho, brinco, exprimo
Meus mais sensíveis sentimentos, quando escrevo...
Jamais me atrevo a ser o outro, quando rimo,
Meu verso é primo do amor, em alto relevo.

Seja quem for a minha musa... não nomeio
Meus devaneios... eles só têm um destino:
Abençoar, com meu mais lírico enleio,
O riso leve dos anseios... de um menino.
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QUANDO A NOSSA DOR FAZ POESIAS

O amor é o nosso ponto de partida
em tudo que façamos... a razão
não sabe controlar um coração,
quando nossa emoção comanda a vida.

Não penses que só tu tens incertezas,
mágoas, medos, raivas... melancolias,
pois quando a nossa dor faz poesias,
copia simplesmente das tristezas.

Nem sempre o que te dói é o que perfura,
há pobres sem saber o que é pobreza
e quem é infeliz por natureza,
nem sempre compreende a alma pura.

A água não desgasta a pedra dura...
apenas acomoda-a em seu leito,
assim é o coração: só dói no peito,
quando não tem mais jeito, a amargura.

Doutor nenhum conserta a criatura,
poeta, sim, engana até a dor,
e engana-se a si mesmo...ele é doutor
em conversar com a dor com mais ternura.

Quem diz que é grão-mestre em autoajuda,
mas não pratica nada do que ensina,
semeia um amor que não germina,
retira a proteína que o acuda.

A vida tem um tempo, o destino
não manda nos desígnios de Deus,
por isto, aprimora os gestos teus
e ensina-te com cada desatino.

Nós somos seres únicos, porém
somente somos dignos de nós,
quando passamos ter a mesma voz
daqueles que só querem nosso bem.

Fonte:
Luiz Poeta. Nuvens de versos. Campo Mourão/PR: Ed. Jfeldman, 2020.

Monsenhor Orivaldo Robles (Minha delicada obsessão)

É bem possível que eu entre em uma loja de sapatos e saia exatamente da mesma forma que entrei, apenas com aqueles que calçam meus pés. Agora, quando entro em uma livraria, dificilmente conseguirei sair de mãos vazias.

Guardo comigo uma lista escrita e mental dos livros que ainda quero ler, sem contar aqueles que me surpreendem com suas cores, letras e prefácios pelas prateleiras.

A curiosidade em ler cada boa palavra escrita faz transbordar meu coração de euforia. Se eu pudesse, pedia para parar o mundo de vez em quando, só para ler horas seguidas despreocupadamente, longe das tarefas do dia-a-dia.

De uns tempos para cá notei que essa minha delicada obsessão traduz-se em uma simples palavra: compartilhar.

Quem escreve quer compartilhar suas experiências e impressões sobre o mundo que nos cerca e quem lê compartilha a certeza de que no peito de todos passam os mesmos sentimentos: amor, alegria, tristeza, esperança, compaixão, dentre tantos outros descritos de tantos modos.

Nem parece que o meu amor pela leitura começou quase que forçado. Assim que eu mudei de cidade, aos 13 anos, tirei nota baixa em uma prova na escola, meu pai me impôs um castigo de não sair de casa até que eu restabelecesse a boa média. Só que a prova de recuperação seria apenas no final do bimestre, ou seja, 2 longos meses me aguardavam em casa.

Não havia nada a fazer nas tardes quentes sem internet, smartphones, TV à cabo ou amigos na nova cidade desconhecida. Restou-me procurar pelos livros a ocupação para os solitários períodos de tédio, cumprindo a pena imposta, já que eu sempre fui péssima em desobediências.

Para minha felicidade, encontrei pelas incontáveis páginas editadas a companhia e o conforto para diversos outros momentos. A leitura começou a me conduzir por novos mundos, mostrando-me as inúmeras possibilidades de me expressar, a partir das incontáveis personagens e situações que passam pelo meu atento olhar. Os livros transformaram-se no alimento da minha alma.

Tive a capacidade de cometer um furto por esse amor: me apossei de um exemplar de poesias do Vinícius de Moraes da biblioteca da escola. Um dia decidi que só eu o lia, então ele seria mais útil na minha casa. Desde então me segue pelas diversas mudanças que fiz.

A verdade é que, num mundo em que tudo se acessa rapidamente através de telas reluzentes, o que me encanta é a usual página opaca com letras apertadas, a história contada sem pressa, a palavra milimetricamente posta para descrever os sentidos que movem a vida.

Na hora que todos os equipamentos eletrônicos devem ser desligados, é meu amigo fiel que permanece imóvel na palma da minha mão, ajudando-me a distrair dos calafrios dos pousos, decolagens e desavisadas turbulências.

Esse será meu refúgio até os meus últimos dias, porque se tenho poucos desejos para a velhice, certamente um deles traduz-se em estar rodeada pelos livros, bem acomoda na poltrona, lendo incansavelmente até quando meus olhos permitirem.

Dicas de Escrita (Como escrever histórias) – 6

AS SITUAÇÕES


Para contar histórias é fundamental criar situações. Você decide que a história transcorra em um bar de beira de estrada no início dos anos 80 na Espanha profundo ou em uma festa durante a véspera de Ano Novo do ano 1999. Escrever é tomar decisões e essas decisões têm consequências: embora o enredo e os personagens sejam os mesmos em ambas situações anteriores, a história resultante será diferente.

Como seria a sua história mudando o quadro espacial e temporal? Você se lembra da senhora atravessando a rua? E se transformássemos a rua em uma rodovia? Seria isso a mesma situação hoje de 20 anos atrás?

Se você fez a linha do tempo da sua história, aí você tem todas as situações que você teve proposta para o seu desenvolvimento. Pense em outras possibilidades. Tenha em mente que situações também devem responder ao esquema: abordagem, desenvolvimento e resultado.

Não importa quão linear seja a história, você sempre omitirá momentos (lembre-se: escrever é decidir), aqueles que não lhe interessam para o desenvolvimento. O importante é que esses saltos são executados suavemente, sem deixar no receptor a sensação de que dados estão faltando ou foram deliberadamente omitidos com a intenção de gerar intriga. Este último seria como um mágico vendo o truque.

Para finalizar a revisão das situações da sua história, é importante estimar o tempo que decorre do primeiro ao último. E, se houver, localize o tempo pulado. Como você os resolveu? Além disso, se a sua história acontecer por um longo período de tempo, e seus personagens não são imortais, eles deveriam envelhecer à medida que o ambiente muda
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continua…

Fonte:
Pedro A. Ramos García. Cómo contar historias. in www.mailxmail.com . acesso em 26.11.2020. Tradução do espanhol por J.Feldman

sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Varal de Trovas n. 588

 

Silmar Böhrer (Croniquinha) 92

Sons distantes, cães latindo, grilos cricrilando. Vicejam as hortaliças, eucaliptos estão gingando, pessegueiros, engalanados de flores. O perfume da viúva-alegre.

Os verdes estão contentes porque sentiram a chegada da estação-ternura, os humanos estão risonhos recebendo a primavera-inspiração. A bem-chegada floresce novas vidas, insufla ternos sentimentos, renova a sensação de viver.

O que seria a primavera senão esse manjar terreno-celestial de cores, sons, eflúvios embalados pela brisa dos caminhos, o aroma dos vergeis, o matizado dos banhadinhos, com hosanas na vibração do universo.

Cantai, avezinhas, - beija-flores, tico-ticos, corruíras, canarinhos, bem-te-vis, joões-de- -barro - , exultai com os novos dias embalsamando a prima estação. Lembrai que as calendas são passageiras. Vibrai, pois, trinai jubilosas.

Bem-vinda, primavera!

Fonte:
Texto enviado pelo autor

Caldeirão Poético LXVIII


Corina Rebuá

QUE INSÔNIA!


Como faz frio neste quarto agora!
A chuva bate em cheio na vidraça.
E o relógio da igreja, de hora em hora,
Soa. Há passos na rua... E a ronda passa...

Não consigo dormir. Como demora
Esta vigília que me torna lassa!
Se abro um livro, não leio. E lá por fora
Chove. Há passos na rua... E a ronda passa...

Dormes? Não creio... Eu sei que estás velando,
Porque eu pressinto que, de quando em quando,
Vem o teu corpo fluídico e me enlaça.

O relógio da igreja está batendo.
São quatro horas... Que insônia! Está chovendo.
Ouço passos na rua... E a ronda passa.
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Dimas Guimarães

CALEIDOSCÓPIO

Outrora, foste a pérola mais pura
e mais bela dos mares do Japão,
messe dourada, fonte de ternura,
o tesouro encantado de Jasão.

E, sendo a mais perfeita criatura,
— flor adulta com ares de botão —
eras linda promessa de ventura,
gema rara da Líbia ou do Industão.

Mas veio o outono... As folhas amarelas
lembram extintos sonhos de donzelas...
Sonhos que o tempo rápido esfumou...

E, em vão, procuro pelo teu encanto,
e reparo — olhos úmidos de pranto —
nem a pureza o tempo conservou...
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Helena Collin

FELICIDADE

Por fazer-te feliz não me constranjo
em parecer-te excêntrica... ou vulgar.
Os meus tesouros de carinho esbanjo
sem prêmios nem louvores reclamar.

Sou capaz de ir ao céu na asa de um anjo
pedir a Deus a graça de perdoar
teus pecados de amor... E a lira tanjo
a teus pés, como um crente ao pés do altar!

Adivinho o que pensas e o que queres;
e, nesse amor, dando-te tudo, almejo
dar-te alto o amor de todas as mulheres.

E quando vier, um dia, a saciedade
apagar-te os incêndios do desejo,
terás de cada instante uma saudade!
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Iéda Lage Passos Guaraná

CONVITE NOTURNO

Vem! Sigamos, pelo ermo das distâncias,
o destino da Noite! Entre as boninas,
desatemos em véus de seda, as ânsias,
no aconchego macio das neblinas!

Taça a taça, bebamos as fragrâncias
do amor celestial que me propinas!
Embriagados, sem voz e relutâncias,
no alvo leito de relva das campinas!

Como tochas de fogo, redentoras,
as estrelas, ardendo de desejos,
soltam murmúrios de almas pecadoras.

Vem! Que a aurora não brilhe nos espaços!
Quero ser machucada nos teus beijos,
quero ser esmagada nos teus braços!
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Inocêncio Candelária

NÓS

Brincávamos nós dois o dia inteiro:
Você, linda criança, eu pequenino,
num mútuo bem-querer, num verdadeiro
mundo de flores, plácido e divino!

Sempre juntos, você foi quem primeiro
ensinou-me, de um modo peregrino,
viver, amar, ser bom, ser altaneiro,
minha loura boneca de menino...

Depois fui para longe... A nossa dita
o tempo transformou. Deus assim quer!
Fiquei moço e você ficou mulher...

E mulher, mais mimosa, mais bonita,
você é ainda a mesma em meu destino,
minha loura boneca de menino!
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Maria Nascimento Santos

FANTASIA


Meu sonho era fazer versos um dia...
E quando, às vezes, triste me encontrava,
fingia que chorava de alegria,
quando era de tristeza que eu chorava!...

E percebi que até numa poesia,
que entre lágrimas tristes me brotava,
como um divino toque de magia,
mesmo sofrendo, assim, me reanimava!

Foi tudo em vão, porque, fazendo versos,
eu nem notei que os meus sonhos dispersos
transcendiam meu mundo pequenino.

E, na angústia de quem sempre sofreu,
então, pergunto a Deus por que me deu
um sonho bem maior que o meu Destino...
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Maria Thereza Cavalheiro

CONTEMPLAÇÃO


O céu hoje parece um campo aberto,
todo de ovelhas mansas pontilhado...
O vento pastoreia, rumo incerto,
o seu branco rebanho, leve e alado...

O firmamento tem mais luz, por certo,
nesse esplendor azul de que é tomado,
para dar a impressão de que está perto
de nós o Ser Criador por nós amado.

Quantos segredos, quantos, que a razão
dos homens não consegue desvendar:
o mar, o céu, as matas — amplidão!

Esplêndida, infinita de beleza,
pudéssemos um dia revelar
as misteriosas leis da natureza!

Fonte: Vasco de Castro Lima. O mundo maravilhoso do soneto. Publicado em 1987.

Machado de Assis (Um dístico)

Quando a memória da gente é boa, pululam as aproximações históricas ou poéticas, literárias ou políticas. Não é preciso mais que andar, ver e ouvir. Já uma vez me aconteceu ouvir na rua um dito vulgar nosso, em tão boa hora que me sugeriu uma linha do Pentateuco, e achei que esta explicava aquele, e da oração verbal deduzi a intenção íntima. Não digo o que foi, por mais que me instiguem; mas aqui está outro caso não menos curioso, e que se pode dizer por inteiro.

Já lá vão vinte anos, ou ainda vinte e dois. Foi na Rua de S. José, entre onze horas e meio-dia. Vi a alguma distância parado um homem de opa, creio que verde, mas podia ser encarnada. Opa e salva de prata, pedinte de alguma irmandade, que era das Almas ou do Santíssimo Sacramento. Tal encontro era muito comum naqueles anos, tão comum que não me chamaria a atenção, se não fossem duas circunstâncias especiais.

A primeira é que o pedinte falava com um pequeno, ambos esquisitos, o pequeno falando pouco, e o pedinte olhando para um lado e outro, como procurando alguma coisa, alguém, ou algum modo de praticar alguma ação. Depois de alguns segundos foram andando para baixo, mas não deram muitos passos, cinco ou seis, e vagarosos; pararam, e o velho — o pedinte era um velho, — mostrou então em cheio o seu olhar espalhado e inquisidor.

Não direi o assombro que me causou a vista do homem. Já então ia mais perto. Cara e talhe, era nada menos que o porteiro de um dos teatros dramáticos do tempo, S. Pedro ou Ginásio; não havia que duvidar, era a mesma fisionomia obsequiosa de todas as noites, a mesma figura do dever, sentada à porta da plateia, recebendo os bilhetes, dando as senhas, calada, sossegada, já sem comoção dramática, tendo gasto o coração em toda a sorte de lances, durante anos eternos.

Ao vê-lo agora, na rua, de opa, a pedir para alguma igreja, assaltou-me a lembrança destes dois versos célebres:

Le matin catholique et le soir idolâtre,
Il dîne de l’église et soupe du théâtre.


(A manhã católica e a noite idólatra,
Ele janta de igreja e sopa do teatro.)


Ri-me naturalmente deste ajuste de coisas; mas estava longe de saber que o ajuste era ainda maior do que me parecia. Tal foi a segunda circunstância que me chamou a atenção para o caso. Vendo que pedinte e porteiro constituíam a mesma pessoa, olhei para o pequeno e reconheci logo que era filho de ambos, tal era a semelhança da fisionomia, o queixo bicudo, o jeito dos ombros do pai e do filho. O pequeno teria oito ou nove anos. Até os olhos eram os mesmos: bons, mas disfarçados.

É ele mesmo, dizia eu comigo; é ele mesmo, le matin catholique, de opa e salva, contrito, pede de porta em porta a esmola dos devotos, e o sacristão que lhe dê naturalmente a porcentagem do serviço; mas logo à tarde despe a opa de seda velha, enfia o paletó de alpaca, e lá vai ele para a porta do deus Momo: et le soir idolâtre.

Enquanto eu pensava isto, e ia andando, resolveu ele afinal alguma coisa. O pequeno ficou ali mesmo na calçada, olhando para outra parte, e ele entrou num corredor, como quem vai pedir alguma esmola para as bentas almas. Pela minha parte fui andando; não convinha parar, e a principal descoberta estava feita. Mas ao passar pela porta do corredor, olhei insensivelmente para dentro, sem plano, sem crer que ia ver qualquer coisa que merecesse ser posta em letra de impressão.

Vi meia calva do pedinte, meia calva só, porque ele estava inclinado sobre a salva, fazendo mentalmente uma coisa, e fisicamente outra. Mentalmente nunca soube o que era; talvez refletia no concílio de Constantinopla, nas penas eternas ou na exortação de S. Basílio aos rapazes. Não esqueçamos que era de manhã; le matin catholique. Fisicamente tirava duas notas da salva, e passava-as para o bolso das calças. Duas? Pareceram-me duas; o que não posso dizer é se eram de um ou dois mil-réis; podia ser até que cada uma tivesse o seu valor, e fossem três mil-réis, ao todo: ou seis, se uma fosse de cinco e outra de um. Mistérios tudo; ou, pelo menos questões problemáticas, que o bom senso manda não investigar, desde que não é possível chegar a uma averiguação certa. Lá vão vinte anos bem puxados.

Fui andando e sorrindo de pena, porque estava adivinhando o resto, como o leitor, que talvez nasceu depois daquele dia; fui andando, mas duas vezes, voltei a cabeça para trás. Da primeira, vi que ele chegava à porta e olhava para um lado e outro, e que o pequeno se aproximava; da segunda, vi que o pequeno metia o dinheiro no bolso, atravessava a rua, depressa, e o pedinte continuava a andar, bradando: Para a missa...

Nunca pude saber se era a missa das Almas ou do Sacramento, por não ter ouvido o resto, e não me lembrar também se a opa era encarnada ou verde. Pobres almas, se foram elas as defraudadas! O certo é que vi como esse obscuro funcionário da sacristia e do teatro realizava assim mais que textualmente esta parte do dístico: il dîne de l’église et soupe du théâtre.

De noite fui ao teatro. Já tinha começado o espetáculo; ele lá estava sentado no banco, sério, com o lenço encarnado debaixo do braço e um maço de bilhetes, na mão, grave, calado, e sem remorsos.

Fonte:
Machado de Assis. Contos esparsos. Publicado originalmente em A Quinzena, nº. 7, 1º. de julho de 1886.
Disponível em Domínio Público.

quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Edy Soares (Manuscritos (Di)versos) – 36: Os causos do meu pai

 

Geraldo Pereira (Os meus enganos)

Há coisas que acontecem comigo que o diabo duvida de costas, em noite de sexta-feira treze! São ligações telefônicas erradas, recebidas ou discadas ou são anotações de agenda trocadas na minha cabeça. Foi assim que compareci ao casamento de amiga minha, marcado para um dezenove qualquer do ano, sete dias antes e nada ou quase nada encontrei na igreja.

Indaguei do flanelinha em bom português se havia por ali um enlace matrimonial e o menino, ávido pelo trocado que não chegou a receber, de pronto confirmou. Não perguntei pelo nome da noiva, porque quem toma conta de carro ignora esses detalhes, faz o seu papel no teatro da vida e nada mais. Entrei e havia pouca gente no templo, pessoas concentradas no meio dos bancos, em torno de um bebê. Era um batizado, na verdade e eu dei com os burros n’água!

Pior com o velório! É que morreu um homônimo de uma pessoa que conheço há muitos anos, da qual me afastei pelas circunstâncias do existir e não tive dúvidas, vesti o paletó, apertei a gravata e parti em direção ao cemitério considerado, também, um parque e que de parque nada tem. Identifiquei o lugar no qual se fazia o ritual da finitude e cumprimentei a todos. Não havia um conhecido que fosse! Notei uma certa estranheza, como se estivesse completamente fora do contexto e estava. Olhei para o homem largado à própria sorte e observei que usara bigode em vida, característica ausente no meu ilustre amigo. Do celular, mesmo, contei à minha dedicada secretária o impasse. Ouvi a recomendação necessária: “Volte! Ele nunca usou bigode!” Para a família, restou a perplexidade.  Afinal, eu nunca tinha visto o pobre do defunto!

Mas, durante uma reunião em Olinda, no convento do Carmo, tocou o telefone. Nunca atendo esse equipamento quando me ocupo. A oportunidade, porém, de ir à janela e dali apreciar o mar, para mim foi uma tentação irresistível. O interlocutor, então, se apresentou: “É Valter!” Há quem pense no prenome como uma identificação definitiva, como se fosse o único no mundo com aquela nomeação. Fiz um esforço de memória, associando a voz com o nome, mas foi debalde. E ele: “Você não está me reconhecendo?” Respondi com todo cuidado: “Estou começando a reconhecer! Aos poucos saberei de quem se trata!” Ai, complementou: “Sobrinho do finado Wilson!” Piorou tudo, inibiu todas as minhas associações! Desesperado, entretanto, explicou: “É Coruja!” “Bom! Coruja eu conheço!” E o diálogo prosseguiu! Tinha morado em minha rua nos tempos de menino e virou pastor, como tantos por ai!

De outra feita, pedi à telefonista que ligasse para amigo meu que dirige instituição importante e que havia me pedido fosse resolvida uma questão de seu interesse, para continuar o trabalho que vinha fazendo. Dei como indicação o prenome e mais o cargo que exerce. A moça, muito solícita aliás, fez a conexão e passou a ligação. Como tinha resolvido tudo, disse, de logo: “Fique tranquilo! Vamos continuar juntos nessa luta pelo social! Pela gente simples e pela educação!” Ouvi de meu interlocutor de ocasião uma exclamação que estranhei, francamente: “Por que você fez isso? Eu não lhe pedi! Eu não preciso disso! Vivo aqui de meu negócio e não me meto com nada que esteja na esfera do social!” Perdão, quase peço, pois que era da iniciativa privada e não tinha a menor relação com aquilo que lhe transmitia por telefone!

Uma vez, numa sexta-feira de Carnaval – já vai longe –, recebi telefonema de uma certa criatura que procurava pelo namorado, indagando: “André está?” Ora, não existe André por aqui e ninguém com namorada, mas não perdi a oportunidade: “Está no bar da esquina, completamente embriagado!” E ela: “Eu não acredito nisso não! Ele prometeu que iria comigo ao Galo!” E eu: “Você é a quinta pessoa que liga! Ele prometeu a mais quatro!” Não hesitou em responder: “Vou matá-lo!” Não o matou, certamente!

Fonte:
Geraldo Pereira. Fragmentos do meu tempo. Recife/PE. Disponível no Portal de Domínio Público

Goulart Gomes (Poetrix) IV

Poetrix é um poema com, no máximo, trinta sílabas métricas, distribuídas em apenas uma estrofe com três versos (terceto) e título que, quanto à sua forma e conteúdo, deve ser composto conforme dispõe a Academia Internacional Poetrix.

Formas múltiplas são linguagens poéticas criadas em contextos comunicativos e constituídas como derivações do poetrix; sua elaboração tem como características básicas o dialogismo, a intertextualidade, a polissemia da linguagem, amistosidade, ludicidade e conciabilidade.

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APÓS LAVAR OS PRATOS E
FECHAR A TORNEIRA DA PIA


epitáfio da morte:
o silêncio
é para os fortes
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  AROMA

pétalas no lago
o peixe vem aspirar
o perfume, e nada
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AS POMBAS

símbolos da paz
decolam e me alvejam.
Nego o milho
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BRUXA

escrever: palavras coser, cozer
poesia, linha e pão mistura
mergulho em seu caldeirão
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CAATINGA

madeira couro areia
na terra corre
sangue, nas veias
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DALI

em minhas noites
habitam teus sonhos
noites de Gala
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DITADO IMPOPULAR 2

águas passadas
nos movem
sozinhos
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EU ESCUTO GENTE MORTA 8: SCIENCE

entre a lama e o caos
nunca vi tanto urubu:
uma cerveja para ficar pensando melhor
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GAROA DE IPANEMA

Bethânia cantava, e Felipa Pais
“meus olhos já não estão
entre os mortais”
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GRAVIDEZ

pingos pousam no brilho
a mulher cresce
nasce o filho
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GULA

o amor nos devora
come a gente
de dentro para fora
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INCONFIDÊNCIAS PASCOAIS

sonhos enforcados
corpos esquartejados
longa travessia à terra prometida
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JANELA

não posso vê-la
saio
por ela
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LIBERDADE

vento frio
sopra onde quer
cão sem coleira
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NOITE DE GALA

Com as mãos, leria
tuas tatuagens e cicatrizes
- Poeta sem tato, me dizes
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PEDRO, ANTONIO E JOÃO

muita cachaça, pouca oração
na mão direita um terço
na esquerda, um quentão
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PEDROFILIA

em múltiplas formas
sua poesia
faz meu gênero
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POETRIX AOS MESTRES BANDEIRA

vou-me embora pra Bahia

todo mundo é “meu rei”
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PRETÉRITO MAIS QUE PERFEITO

passa o carrinho
sejam doces ou salgadas
pipocam saudades
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QUEBRA CABEÇAS

não me encaixo
por mais que peças
ainda que me esqueças
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UM POETA GUIA SEU VEÍCULO
NO TRÂNSITO DE SALVADOR
LEMBRANDO QUINTANA

ônibus atravancando meu caminho
eles, lotação
eu, unozinho
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campos de girassóis
quem deu a vida
por nós?

Fonte: Pedro Cardoso & Goulart Gomes. Poemas encolhidos. SP: Scortecci, 2022.
Enviado por Goulart Gomes.

Renato Frata (Não é pedir demais)

Lá fora, o sol bate nos quarenta e pode atropelá-lo.

O asfalto avistado ao longo, parece tremer em vapores. Homens com uniforme varrem com languidez, as flores dos ipês deixadas pela noite. Há entre elas tocos de cigarros e outros lixos que o povo insensato deixou na passagem, e ali no muro, ao descuido de alguém, uma torneira chora pingos amornados.

Parece olhos cansados de chorar, mas não, é de alegria que ela verte, já que uma poça formada escorre seu excesso até a guia e dali, em outra menor, segue na descida sem se importar com a quentura que enquanto a aquece, lhe arranca a alma. Esse pequeno fiapo de água escorrida, porém, à mercê da aventura vadia que lhe toma o brio, parece rir do sol pela contraposição do cá em baixo e nem liga se logo estará seco. Aliás, nem se apercebe... E a situação sol-calor, água-frio, me dá uma ideia. Aliás, alguém poderá dizer que de jerico.

Pois como aquele filete desmiolado de água a mim exposto, dispo-me de qualquer siso ou conceito e saio em sua direção. Não sei por que, mas inadvertidamente procuro sombras que me abriguem a calva. Amparo-me no muro, me aproximo, abaixo meu corpo e abro a torneira. Sorrio como quando fazia peraltagem e nem ligo para uma senhora de bolsa e sombrinha que passa em resfolego. Tem pressa e vai. Deixo a água vazar espirrando em meus sapatos sem me preocupar se logo o terei que engraxar.

Aguardo que a água esfrie e então, como aquele moleque de ontem, colho-a e ela, também peralta, brinca de escorrer de minhas palmas. Bebo-a do que sobra. Pego mais, refresco meu rosto e fico. O Eu-Água ganha vida, mas sinto que há um vazio entre nós. Talvez saudade de um passado que se escorre pela memória, tal como ela, pela guia, para morrer mais adiante.

Inspiro solerte, olhos brilhantes, tez acetinada, rejuvenescido. Mais pessoas passam. Umas estranham, outras sorriem concordando que a velhice permite, sim, certas loucuras. Fecho a torneira e dou dois passos para voltar, mas aí, paro. Contemplo o céu, volto agora o olhar à boca seca da torneira, à poça que ainda escorre em filete mais metro, menos metro abaixo, para a morte.

Indago: devo tirar os sapatos e sapatear a poça? Minha juventude repentina pede que sim, as sobrancelhas acinzentadas não deixam.

Então me consolo, mas penso: bem que você poderia estar aqui para partilhar comigo essa arte em que nós sorrindo, levaríamos suas mãos em concha a aparar um pouco de água e, enquanto você a saboreasse, meus olhos saboreariam sua linda face e o complemento que a faz bela por inteiro.

Não é pedir muito, é?

Fonte:
Texto enviado pelo autor