sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Mensagem na garrafa – 37 -


António José Barradas Barroso
Parede/Portugal

A JANELA DO MEU QUARTO

Abro, no quarto, a janela,
de manhã, de madrugada,
tenho uma vista tão bela,
tão serena, tão singela,
que a alma fica enamorada.

O sol desponta, defronte,
em luzinha tão travessa,
que até o verde do monte
brilha mais, no horizonte
deste dia que começa.

E a brisa surge, teimosa,
num breve correr, risonho,
beija a erva, abraça a rosa,
sopra a folhinha, ansiosa,
vem carregada de sonho.

Já há pombos arrulhando,
são dois, à volta, no chão,
ele, a beleza mostrando,
ela, vaidosa, acenando
ora num sim, ora não.

Lancei, por todo o lugar,
umas quantas vitualhas
que os pardais, a saltitar,
buscam fazer um manjar
daquelas poucas migalhas.

E o gato, cheio de cobiça,
perante tanto alvoroço,
pensa, com certa preguiça,
que, nesta calma mortiça,
já tem, à frente, o almoço.

As folhas das oliveiras
no quintal, à minha frente,
viram-se ao sol, faceiras,
abrem-se de mil maneiras,
sorriem pra toda a gente.

Longos minutos me quedo
sem pensar na despedida
porque há uma flor sem medo
que desvenda o seu segredo,
despertando para a vida.

Ergue-se como um farol
na linda cor que irradia
e, por isso, a aquece o sol
quando escuta o rouxinol
lançar trinos de alegria.

Então, fica-me, dessa hora,
olhos erguidos aos céus,
a certeza de que, agora,
ao ver uma nova aurora,
eu digo obrigado a Deus.

Depois desta comunhão
é, com saudade, que parto,
rezo uma última oração
e fecho, com lentidão,
a janela do meu quarto.

Monsenhor Orivaldo Robles (Desculpe, sim?)

“Homo sum, humani nihil a me alienum puto” (Sou homem, nada do que é humano eu considero estranho a mim). A sentença é de Terêncio (185-159 a. C.), poeta e dramaturgo romano. Posto no fim da oração, como é praxe em latim, um curioso verbete nada tem a ver com o que algum apressadinho imaginou. É só a primeira pessoa singular do modo indicativo do verbo “putare”, sinônimo de pensar, achar, considerar. Terêncio afirmava que, sendo humano, ele não se via como melhor do que ninguém. Qualquer falta cometida por alguém ele também poderia cometer.

Aprendi essa verdade na infância. Estou convencido que não existe barbaridade praticada por outrem que eu não possa repetir. Não sou melhor que os outros. Nem tinha por quê. Estou sujeito ao erro como qualquer mortal. 

Alguém modificou um pouco o dito de Terêncio. É comum ouvirmos: “Sou humano; tenho o direito de errar”. Nada disso. Ninguém tem direito de errar. O erro não é um direito, mas uma trágica possibilidade da condição humana. Bom seria que nunca fizéssemos maldade nenhuma. Infelizmente, não é assim. Porque nossa natureza foi ferida pelo pecado, praticamos mais facilmente o mal do que o bem. Não corrija uma criança; deixe-a crescer sem limites para ver o que acontece.

Desde cedo temos que combater o mal que nos alicia. Se não for combatido, ele cresce e se refina. Se não fazemos esforço para vencê-lo, ele vai grudando-se em nós até se tornar conatural. Como arbusto que cresce sem escora nem poda, torna-se árvore adulta, sim, mas torta. Aí, meu amigo, pode esquecer. O tempo solidifica os vícios. Não à toa nosso povo inventou um provérbio engraçado: “O diabo é sábio não por ser diabo, mas por ser velho”.

A sabedoria cristã recomenda pelejar sem trégua contra nossa tendência ao pecado. Falar de pecado hoje é politicamente incorreto. Parece coisa de gente atrasada. Só que não adianta, nossa natureza está sempre sujeita à possibilidade de pecar. No início desta semana, o papa Francisco pregou: “Nós somos homens em tensão. Somos também homens contraditórios e incoerentes, pecadores, todos. Mas homens que querem caminhar sob o olhar de Jesus. Nós somos pequenos, somos pecadores, mas queremos militar sob a bandeira da cruz […]. Nós somos egoístas. Queremos, no entanto, viver uma vida agitada por grandes aspirações. Renovemos a nossa oblação ao eterno Senhor do universo para que, com a ajuda da sua Mãe gloriosa, possamos desejar e viver os sentimentos de Cristo, que se esvaziou a si mesmo”.

Sei bem do que Francisco está falando. Há décadas venho lutando contra o velho homem que, segundo o apóstolo Paulo (Ef 4,22), carregamos dentro de nós. E como ele resiste! Há anos eu devia tê-lo vencido. De muitos pecados o Senhor me livrou por pura bondade. Mas meu estopim curto – o sangue espanhol dos antepassados – esse continua a me pregar peças. Até nesta altura da vida.

Não tenho problema em reconhecer meus erros. Nem me constrange pedir desculpas. Porém é enfadonho repetir aquilo que, há muito, eu já devia ter superado. Ainda bem que Deus me cercou de pessoas compreensivas. Tantas vezes pedi desculpas (até perdão, e em público, como podem testemunhar os que me conhecem), que já podiam ter-se cansado.

Meus pedidos sempre foram sinceros e doloridos. Só quem o carrega é que sabe quanto dói este pobre barro de que somos feitos.

Caldeirão Poético LXXII


Colbert Rangel Coelho
Pitangui/MG, 1925 - 1975, Rio de Janeiro/RJ

O LUAR DE MINHA TERRA

Neste luar de minha terra vejo
matizes de saudade pelo espaço,
na evocação do meu primeiro beijo,
na timidez do meu primeiro abraço.

Este luar desperta meu desejo
e volto à juventude; e, passo a passo,
eis-me à beira do cais, no rumorejo
de um passado feliz que eu mesmo traço.

À tua espera, minha grande ausente,
pelo facho de luz que vem da serra,
vejo que surges como antigamente.

E, quando surges, neste mesmo cais,
revivem no luar de minha terra
noites distantes que não voltam mais.
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Colombina 
(Adelaide Schloenbach Blumenschein)
São Paulo/SP, 1882 – 1963

ESSE AMOR...

Há um abismo entre nós. E apesar dessa falta
de ventura e de paz, nosso amor continua...
Cada dia é maior, é mais forte e mais alta
e imperiosa a paixão que em nosso sangue estua.

Longe de ti, meu ser emocionado exalta
em rimas de ouro e sol — cada carícia tua!
E em meu verso, integral, canta, fulge, ressalta
o infinito de amor que o teu nome insinua...

Não me podes amar como eu quisera. É certo.
Mas não existem leis, nem certidões, nem peias,
quando os teus olhos beijo e as tuas mãos aperto.

Tardas... Mas, quando vens, eu sinto que me queres,
que pela minha voz, pelo meu beijo anseias,
e sou a mais feliz de todas as mulheres!
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Gentil Fernando de Castro
Cruzeiro/SP, 1899 – 1963, Rio de Janeiro/RJ

NO ÚLTIMO ENCONTRO

Custa-me muito te dizer, mas digo,
porque é preciso, de qualquer maneira:
do que era, e sempre foi, do bem antigo,
já quase nada resta, sem que eu queira.

Fundas mágoas, eu sei, trazes contigo
e não hás de sofrer a vida inteira.
O amor deve ser bênção, não castigo,
e ainda mais luz, talvez, quando é cegueira.

De tudo que passou, fique a saudade:
na sua silenciosa eternidade
os sonhos dos que amaram, viverão.

Toda saudade é uma segunda vida...
E, mesmo o amor que deixa uma ferida,
deixa um resto de sol no coração.
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Hecilda Clark
Porto Alegre/RS, 1897 –  1990,  Rio de Janeiro/RJ

CORAÇÃO

Não tenho culpa deste amor fremente
em seu ritmo ardoroso, acelerado...
Tudo em redor de mim, convulsionado,
e eu viva e amando o amor, tão loucamente!

Quando assomaste sonhadoramente,
o coração, que fora imunizado
contra todo o impossível; rebelado,
se apaixonou por ti, como um demente!

E nada o demoveu se, nem cansaço
sentiu, nesse correr vertiginoso
que nos conduz à morte a cada passo...

Vivo de amar-te, alucinadamente,
aos apelos do teu amor grandioso...
— Coração de Poeta é impenitente...
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Rômulo Cavalcante Mota
Rio de Janeiro/RJ

SE NÃO FORES...

O instante da partida se avizinha...
Pensavas ir embora de surpresa;
sem dar adeus, ias talvez, sozinha,
deixando-me coberto de tristeza...

Já não és meu amor, já não és minha...
No entanto, o adeus faz parte da nobreza;
não podes esquecer que, em beijos, tinha
aos meus braços teu corpo de princesa...

No delírio nervoso dos lamentos
eu te ofereço, mesmo por momentos,
lírios divinos, bálsamos de amores.

Faço versos, sacio os teus desejos,
de nossas bocas nascerão mais beijos
e serei teu escravo... SE NÃO FORES...
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Swami Vivekananda
Índia, 1863 – 1902 

A PARTIDA

Lembro-me bem de quando foste embora,
o mar sereno e o calmo sol de estio...  
Um bando de gaivotas, erradio,
dizia coisas pelo céu em fora...

Dolente ondulação de um vento frio
beijava os lábios da manhã sonora;
porém, ao ver-te à tolda do navio,
penso no adeus... e tudo me apavora!

Eu te abracei, o coração gemendo,
os lábios macerados; mãos tremendo
estrangulavam-me profundas mágoas...

Um silvo agudo!... Colhem-se as amarras...
Há lenços brancos em torções bizarras...
E lá se foi a nau cortando as águas...

Fonte: Vasco de Castro Lima. O mundo maravilhoso do soneto. 1987.

Antonio de Trueba (O madeiro da forca)


I
A grande montanha de Colisa, que se ergue entre as Encartações de Biscaia, e a demarcação jurídica de Castela, era na idade média uma espécie de Tebaida, onde faziam vida penitente alguns anacoretas, aos quais se atribui a edificação do santuário que a coroa.

Sendo eu criança, e caminhando com minha piedosa mãe por uma montanha das Encartações, paramos a descansar, ao descobrir o vale onde habitávamos. 

Era por uma tarde aprazível de verão. O sol escondia-se por detrás dos montes, que recortavam o horizonte, e nas quebradas das serras ouviam-se os chocalhos do gado, que descia ao vale; embaixo, na planície, saíam as raparigas  das herdades, e pondo à cabeça as suas bilhas, dirigiam-se, cantado, à fonte do Castanhal, para que seus pais e irmãos achassem em casa água fresca, quando, ao soar o toque da oração, lançando ao ombro as enxadas, e rezando as Ave-Marias, se encaminhassem para o lugar.

Do cimo do outeiro coberto de fragrantes margaridas, brancas de neve, onde minha mãe e eu estávamos sentados, contemplando o nosso querido e formoso vale, em um de cujos extremos avistávamos, meia oculta por frondoso arvoredo, a nossa aldeia ainda mais querida e saudosa, descobria-se o santuário de Colisa.

Entramos a falar daquela ermida, e minha mãe, que tinha uma fé santa e cega nas tradições religiosas, que brotam e vivem à sombra dos santuários das montanhas, sem que possam os séculos alterar-lhes o viço e a frescura, prendeu-me a atenção, e comoveu-me deveras a alma contando-me o que, a meu turno, vou contar-vos.

Vivia nas solidões de Colisa um santo ancião, chamado Cosme, que passava uma terça parte da sua existência entregue à adoração e glorificação de Deus, e o restante guiando e socorrendo os viajantes, que atravessavam aquelas montanhas; e isto pela razão de que, naquele tempo, como as guerras de partidos ensanguentassem de contínuo os vales, fugiam deles os caminhantes, e transitavam pelos montes mais desertos, e afastados do comercio dos homens. 

Sempre que Cosme socorria algum viandante extraviado, ou extenuado de fome e cansaço, ao soar o toque de Trindades na igreja de Valmaseda, que se avistava lá em baixo, no pé da montanha, aparecia-lhe um anjo, que lhe sorria amorosamente, e que logo se remontava ao céu, deixando-o imerso em mística alegria.

Um dia, de manhã, estando os montes cobertos de mui densa névoa, saiu Cosme da miserável choça, onde vivia vida penitente, e pôs-se a divagar por aqueles bosques espessos e fragosos, a ver se encontrava alguns caminhantes, que neles se houvessem extraviado, e, de repente, deu de cara com uns poucos de homens, que levavam outro manietado.

— Porque vai preso esse infeliz? – lhes perguntou ele.

— Porque é um grande criminoso, a quem a justiça condenou à morte. – lhe responderam.

— Quem as faz paga-as. - disse o anacoreta, dando tréguas à sua compaixão.

Os executores da justiça de Valmaseda detiveram-se mais acima, numa encruzilhada, pegaram num grande madeiro seco, que, havia muitos anos, estava estendido ao lado do caminho, fixaram as extremidades desse madeiro seco nos primeiros galhos de duas árvores paralelas, lançaram um laço ao pescoço do criminoso, e suspenderam-no daquela forca improvisada, voltando a Valmaseda apenas se certificaram de que ele tinha expirado.

II
Nesse mesmo dia em que, por sentença do tribunal de Valmaseda, foi enforcado um grande criminoso, no caminho de Colisa, salvou Cosme da morte muitos viandantes, que, sem o seu auxílio, seriam devorados pelas feras, ou se teriam despenhado nos precipícios daqueles temerosos desvios, então mais temerosos do que nunca, por causa da espessura do nevoeiro.

Recolheu-se à sua morada, agradecendo a Deus o haver-lhe dado forças para socorrer os seus irmãos, e, apenas chegou, feriu-lhe o ouvido o toque da oração, que soou, lento e solene, na longínqua torre da igreja de Valmaseda. — O anjo porém não lhe apareceu naquela noite!

O santo ermitão encheu-se de terror, com a lembrança de que teria ofendido a Deus, visto que o anjo se furtava aos seus olhos; mas por mais que pesou as palavras, que proferira, as suas obras e pensamentos de todo o dia, não lhe foi possível atinar com o agastamento do Senhor.

Aquela noite passou-a toda em continua oração; chorou, macerou o corpo, pediu a Deus perdão e misericórdia para as suas faltas, e logo que raiou a aurora, como a montanha se conservasse coberta de espessa névoa, saiu em auxílio dos caminhantes.

De repente achou-se na encruzilhada, e ao ver diante de si a forca, da qual pendia ainda o cadáver do criminoso, justiçado no dia antecedente, recuou cheio de repugnância e movido de espanto; e levantando a vista acima do cadáver, que estava preso da corda, viu o anjo pousado no madeiro da forca. 

O anjo, longe de lhe sorrir então amorosamente, como de costume, olhava-o com semblante severo e carregado.

Cosme parou; e conquanto ignorasse qual fosse a sua culpa, lançou-se de joelhos, sobressaltado e cheio de terror, ergueu as mãos para o anjo, e implorou perdão e misericórdia.

— Cosme! – disse-lhe então o anjo, – incorreste no desagrado do Senhor e precisas fazer grande penitência para recuperar a sua proteção. Ontem, em vez de confortar e consolar o desgraçado, que está pendente desta forca, escarneceste-o, e olhaste com indiferença para a sua tribulação. Desprende o seu cadáver da forca, sepulta-o em sagrado, e lançando em seguida esse madeiro aos ombros, leva-o pelo mundo, e seja ele o único travesseiro, em que descanses a cabeça.

— E poderei eu ainda um dia obter o perdão da minha culpa? – exclamou Cosme lavado em pranto de arrependimento.

— Sim, – lhe tornou o anjo – quando desse madeiro brotar um ramo verde, é que o Senhor te perdoou.

Dito isto, subiu o anjo ao céu, cercado de músicas misteriosas e de brilhantes resplendores.

Cosme acercou-se animosamente do cadáver suspenso da forca, desprendeu-o e deu-lhe sepultura; pegando em seguida no madeiro, cujos extremos se apoiavam nos primeiros galhos de duas árvores fronteiras, foi com ele aos ombros pelo mundo, segundo as indicações, que o anjo lhe havia dado.

III
Andava Cosme pelo mundo com o madeiro da forca ao ombro, e toda a gente o escarnecia e fugia dele horrorizada. Uma noite, tendo perdido a esperança de encontrar asilo entre os homens, penetrou num bosque, esperando encontrá-lo no meio das feras, e vendo uma luzinha através da espessura, encaminhou-se para ela, e deu consigo à porta de uma cabana, onde uma velhinha dormitava, junto do lume.

— Santinha, – disse ele à velha, com voz suplicante - deixe-me, pelo amor de Deus, passar aqui esta noite.

— Não pode ser, – lhe tornou a velha - porque tenho dois filhos, que são bandidos, e que devem chegar dentro de uma hora; se aqui o encontrassem, com certeza o matavam.

Cosme confiava piamente na promessa, que o anjo lhe tinha feito de que o senhor lhe perdoaria, e como visse que o madeiro da forca não tinha sinais, que indicassem que estava para rebentar, de onde se depreendia que vinha ainda longe o momento da sua morte, insistiu em pedir à velha que lhe desse pousada, no que ela, por último, conveio, esperando conseguir dos filhos que o não assassinassem.

Estava Cosme exausto de forças e, retirando-se para um canto da choupana, pousou no chão o madeiro da forca, e deitou sobre ele a cabeça.

Condoída a velha de o ver descansar em travesseiro tão duro, ofereceu-lhe um feixe de cheirosa erva do monte, mas Cosme o recusou, dizendo: — ofendi o Senhor, dizendo a um criminoso a quem levavam à forca: “quem as faz, paga-as”, e para que o Senhor me perdoe, vou pelo mundo carregado com este madeiro, que deve ser o único descanso da minha cabeça, até que dele brote um ramo verde, que será o sinal de que o Senhor me perdoou.”

— Ai! – exclamou a velha, rompendo num choro inconsolável - se é tão difícil para quem se arrepende e unicamente pecou por palavras o alcançar o perdão do Senhor, quanto o não será para esses infelizes, que, como os meus filhos, pecam todos os dias por palavras e obras, e não têm no coração um vislumbre sequer do arrependimento.

O ancião adormeceu com a cabeça deitada no madeiro da forca. Uma hora depois, chegaram os bandidos, e ao verem-no, arrancaram dos punhais para o assassinar.

A mãe, porém, contou-lhes a história daquele ancião, e pediu-lhes de joelhos que, longe de o matarem, se arrependessem, como ele, das suas enormes culpas.

— Pois bem, perdoe-se-lhe a vida, – responderam os bandidos, fazendo entrar os punhais na bainha, e acrescentaram, soltando uma gargalhada de escárnio: — Quanto ao arrependimento, havemos de o ter quando brotar o tal ramo verde desse madeiro seco.

Principiaram os bandidos a cear. Quando acabaram, dirigiram a vista para o canto da cabana onde dormia o velho, e viram, com assombro, que do madeiro seco tinha brotado um ramo verde e mimoso! Romperam então em amargo pranto, rogando a Deus que lhes perdoasse as suas culpas.

Ao som de tais vozes acordou Cosme, e ao ver que do madeiro seco tinha brotado uma vergôntea verde e louçã, expirou de alegria; e o anjo baixou, sorrindo amorosamente, a tomar conta da sua alma, e a levá-la consigo para o céu.

Fonte:
Antonio de Trueba. Contos escolhidos. Publicados postumamente originalmente em 1927. Disponível em Domínio Público.

Graciliano Ramos (História de uma guariba*)

— Um domingo destes, contou Alexandre aos amigos, vesti o guarda-peito e o gibão, cobri-me com o chapéu de couro, acendi o cachimbo, pus o aió a tiracolo, peguei a espingarda, resolvido a desenferrujá-la, se aparecesse caça graúda. Saí pelo terreiro, dei umas voltas nos arredores, andei, virei, mexi, afinal entrei numa vereda, subi a ladeira dos preás e, sem encontrar bicho que merecesse uma carga de chumbo e um dedal de pólvora, cheguei à imburana, perto da cerca de ramos. Aí, como o calor apertasse, tirei o aió, o chapéu, o gibão e o guarda-peito, estirei-me no chão e passei uma hora de papo para cima, fumando e pensando nos aperreios deste mundo velho. Sentia-me bem triste, meus amigos, bem desanimado. Eu, homem de família, nascido na grandeza, criado na fartura, tendo o que precisava, do bom e do melhor, estava por baixo, muito por baixo: deitado em garranchos e folhas secas, a cabeça num travesseiro de couros dobrados. Fui-me amadornando, o cachimbo me caiu dos dentes, fiquei assim meio leso, nem adormecido nem acordado, vendo e ouvindo as coisas em redor e misturando tudo a casos antigos. De repente uns gritinhos finos me chamaram a atenção. Esfreguei os olhos, sentei-me, espalhei aquelas embrulhadas que se juntavam no meu interior. E enxerguei uma espécie de velho barbudo saltando, fazendo caretas, guinchando e assobiando, como se mangasse de mim. 

Atentando na visagem esquisita, reconheci uma guariba. Levei mais que depressa a lazarina ao rosto, mas não pude atirar: o animal sacudia-se danadamente, sem oferecer alvo. Depois saltou por cima de uma touceira de macambira e virou fumaça. Larguei-me atrás dele, andei meia hora examinando marcas de pés no chão, ramos quebrados, cabelos nas cascas dos paus. Na verdade eu estava com pouca sorte naquele dia: os sinais diminuíram, tomaram diversas direções, sumiram-se completamente. Aí os gritinhos e os assobios voltaram. Pareciam vir de todos os lados, e eu não conseguia adivinhar onde se escondia a peste do bicho. Disse comigo, arreliado:

— “Aqui há mandinga, na certa. Das coisas deste mundo nunca tive medo, com os poderes de Deus, mas em negócios de feitiçaria não entro. Fujo e entrego os pontos. Deve andar na vadiação pelo menos meia dúzia de guaribas.” 

Uns risinhos safados me responderam pela direita e pela esquerda, por diante e por detrás. Fiz o pelo-sinal, rezei o credo, agarrei-me à Virgem Maria e dispus-me a entrar em casa. Aquela história começava a azucrinar-me. Ora sim senhores. Acreditam vossemecês que não acertei o caminho? É exato, achei-me numa atrapalhação, areado pela primeira vez na vida, completamente desorientado. Incrível, meus amigos, a coisa mais espantosa que até hoje me aconteceu. Ali pertinho de casa, com o sol nas alturas, as árvores iluminadas, tudo muito claro, perdido no mato, eu, um sujeito costumado a varar capoeira no lombo de bicho brabo. Não podia haver disparate maior. Tenho vergonha de contar isto. Nunca me vi, antes ou depois, em situação igual. Se pudesse fumar, descansar, espairecer uns minutos, talvez conseguisse livrar-me do embaraço, arrumar as ideias que me fervilhavam no espírito.

Infelizmente o cachimbo tinha ficado debaixo da imburana. E, sem chapéu, aguentando a quentura do meio-dia num verão puxado, sentia o miolo derreter-se e a vista escurecer. Decidi acompanhar os rastos da guariba, na esperança de que eles me levassem a alguma estrada. Não levaram. Tomei outro rumo. Trabalho perdido: uma confusão dos pecados. E, à toa, joguei-me para a frente, embirando-me nos cipós, furando-me os espinhos, falando assim cá por dentro: — “Agora nem volto nem torço. Nesta marcha vou até o fim do mundo. Todo o caminho dá na venda.” 

Andei uma légua, pouco mais ou menos. Os assobios e os gritos desapareceram. Ri-me de mim mesmo, achando graça naquela trapalhada: — “Isto não tem pé nem cabeça. Sonhei, provavelmente, estive sonhando e variando. Peguei no sono, levantei-me sem acordar direito e corri de um lado para outro, vendo e ouvindo coisas que não existem.” 

Pensando assim, entrei num carreiro que me pareceu conhecido. Encontrei uma cerca de ramos e um formigueiro de formiga branca, subi uma ladeira, alcancei o alto de um monte, onde topei a imburana. Bem. Respirei aliviado: era ali que eu tinha adormecido pela manhã. Estava perto de casa, a umas quinhentas braças ou menos. Procurei os couros que havia largado no chão e não percebi nem sombra deles. 

— “Que diabo é isto?” perguntei cá comigo. 

E comecei a arear-me de novo, julguei que talvez a imburana não fosse o pé de pau visto poucas horas antes. No meio da desordem enxerguei na terra folhas secas e gravetos espalhados. Tinha-me deitado ali, de papo para o ar, sem dúvida. Mas onde estavam meus arreios? Era o que eu não podia saber. Tudo naquele dia me andava pelo avesso. Disse baixinho: — “Valha-me Nossa Senhora do Amparo.

Com certeza desci hoje da cama com o pé esquerdo e não fiz as minhas orações em regra! Foi por isso que o demônio se soltou e buliu comigo.” Deitei-me, resolvido a descansar um instante, porque o calor não era deste mundo e a cabeça me ardia desesperadamente. Fechei os olhos, tornei a abri-los, chateado: aquele desconchavo todo e por fim o desaparecimento dos picuás não me deixavam sossegar. 

Nessa altura, descobri lá em cima, quase escondida na folhagem da imburana, a guariba escanchada num galho, vestida no guarda-peito e no gibão, com o chapéu na cabeça. Trazia o aió a tiracolo. Meteu a mão nele, tirou o corrimboque, bateu a pedra de fogo, acendeu o cachimbo, e pôs-se a fumar regalada, balançando-se. Os senhores já viram bicho fumar? Era cada baforada que ninguém imagina. Pafo! pafo! pafo! Perdi os estribos com semelhante desaforo, gritei: — “Seiscentos diabos!” E levantei a espingarda: queria botar as coisas em pratos limpos, saber se aquela infeliz era vivente de fôlego ou alma penada. Aí se deu um caso extraordinário. A guariba conheceu as minhas intenções, pregou-me o olho e falou desse jeito: — “Seu Alexandre, vamos fazer um negócio? Vá criar seus filhos, que eu vou criar os meus.” 

Atirou-me lá de cima o cachimbo, o aió, o gibão, o guarda-peito e o chapéu. Fiquei assombrado, de queixo caído, nem tive coragem de atirar. Aceitei a proposta e deixei que a desgraçada fosse embora em paz.
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* Guariba = Denominação comum a vários macacos da América do Sul e Central, com cinco espécies no Brasil. Corpulentos mas ágeis, caracterizam-se pela cabeça maciça e pelo queixo barbado dos machos. Em algumas espécies o macho é preto e a fêmea amarelo-escura; em outras o macho é ruivo e a fêmea, quase preta. Andam em bandos de 12 ou mais, saltando de galho em galho sob o comando do macho mais velho. Usam a cauda com grande habilidade.

Fonte: Graciliano Ramos. Histórias de Alexandre. Publicado originalmente em 1944. Disponível em Domínio Público. 

quinta-feira, 16 de novembro de 2023

José Feldman (Analecto de Trivões) 17

 

Mensagem na Garrafa – 36 –


Antonio Roberto de Paula
Maringá/PR

DA MINHA JANELA

Da minha janela vejo a ponta da Catedral. Já passei por tantas janelas, mas tenho a sorte ou a graça de Deus de sempre vislumbrar parte deste Sputnik de concreto. Hoje, cá onde me encontro, só vejo a cruz. Este símbolo católico me persegue e a cada dia o defino de uma maneira. Já me rebelei com a ostentação e já me emocionei com a fé construtora desta comunidade.

Fiz da Catedral a representação maior do meu amor por Maringá. E, como contraponto, ao ver esta imponente armação de cimento, me culpo por não buscar novos caminhos.

Os anos passam e estes pensamentos antagônicos estão comigo. Tantas janelas, ângulos, olhares. Importantes e parcas vitórias, derrotas providenciais e uma luta diária igual a muitas outras de muitos outros. Um céu de paradoxos me invade.

Meus olhos já não enxergam tanto como antes, mas hoje me atenho mais a detalhes. Os horizontes ainda estão lá. A cidade cresceu e pela minha janela não posso descortinar tantas possibilidades. Mas elas ainda existem. Penso em aumentar meu campo de visão, mas esta paisagem encanta, conforta e acomoda. Dia, noite, sol, néon, roncos, silêncio, chuva, grama, asfalto, árvores, flores, carros, casas, muros, placas. Tudo confusamente ordenado. Uma natureza feliz com a invasão.

Da minha janela vejo a ponta da Catedral, os prédios, o verde. Vejo uma cidade que buzina, acelera, avança. Cidade clara e obscura. Planejamento, estética, beleza física. Cidade desorganizada de ideias e objetivos, o espírito coronelista ainda a rondá-la, resquícios da ”fazendola iluminada”, expressão utilizada nos anos 70 para chamá-la de provinciana. Maringá canção, artística, polo, vigorosa. Da minha janela vejo Maringá com mil olhos sem saber quais são verdadeiros.

Da minha janela vejo gente que nasce e morre, ri da vida e chora pela morte, comemora e sofre, conta vantagens e percalços. Gente que ama e odeia, que sonha e tem os pés no chão. Gente do bem e do mal. Gente nem tão boa e nem tão má assim. Gente que me completa e me esvazia, que me faz ser doce e amargo, sereno e turbulento.

Da minha janela vejo esta vida passar como deve ser, na essência, a paisagem de todas as janelas de todos os lugares. Concluo que aqui ou em qualquer outro “lá” não intensificaria ou reduziria minhas emoções. Posso ter outros campos de visão, mas o eu que me leva não vai me deixar porque os mil olhos vão estar sempre atentos. Seja onde for, o antagônico e o paradoxo vão estar comigo. Vai sempre existir a ponta de uma Catedral.

Milton S. Souza (Tempo de amar)

Depois de uma coexistência pacífica de muitos anos, o meu coração e a minha razão entraram em atrito. Parece que tudo começou por causa de um amor estranho que penetrou sorrateiramente no meu coração. Por causa deste amor, o coração passou a bater mais forte. E as suas batidas ecoaram por todos os sentidos, modificando as costumeiras e repetidas reações. Foi então que a razão resolveu entrar em campo para tentar virar o jogo. E surgiram os conflitos, com a razão condenando os rumos do coração e o coração reagindo forte para tentar justificar seu ritmo alucinado e colorido.

A razão precisou falar muito alto para fazer os ecos das suas ponderações penetrarem nos ventrículos entupidos de flores e de suspiros do meu coração apaixonado. Com muita paciência, ela tentou mostrar para o coração que ele não tinha mais idade para paixões violentas e descabidas. E que os amores impossíveis sempre deixavam, no seu final, a terra arrasada e um dilúvio de lágrimas e arrependimentos. Durante várias horas, a razão bateu na mesma tecla, tentando, com as suas palavras ponderadas, reduzir a quantidade de suspiros do meu irreconhecível coração. Foi então que o coração acalmou um pouco o seu ritmo e, deixando todos os sentidos perfilados e calados, passou a se defender.

- Fique sabendo, razão, que durante a vida inteira eu fui dominado pelas tuas diretrizes e nunca mudei o ritmo das minhas batidas para não desrespeitar os rumos traçados para todos os sentidos. Muitas vezes eu recebi, através do olhar, mensagens diretas para avançar rapidamente algum sinal, mas me contive e continuei respeitando as normas. Com isso, porém, eu deixei de viver muitas alegrias. E fui vendo o tempo passar sem grandes emoções e sem jamais sentir o sabor diferente de uma paixão. Agora, porém, tudo mudou.

- Eu estou apaixonado, sim. E não aceito as tuas insinuações sobre idade e outras mais. O amor não tem idade. E se este amor parece impossível para mim, nada e nem ninguém poderá mudar o meu ritmo de batimento. Eu não posso obrigar alguém a me amar. Mas esta pessoa também não pode impedir que eu a ame com todas as forças que tenho. O amor pode ser impossível. Mas me faz feliz. E me faz bater mais forte todos os dias. E faz com que o ritmo alucinado das minhas batidas levem esta felicidade que transborda de mim para todos os sentidos. E me faz sonhar, cada vez mais, com soluções possíveis para este amor impossível. Por tudo isso, razão, e ainda mais pela proximidade com o Dia dos Namorados, tu podes economizar os teus conselhos e as tuas lamúrias: eu não vou parar de amar e de cultivar esta esperança de que este amor, algum dia, deixe de ser impossível para mim...

Depois deste veemente discurso, o coração foi aplaudido de pé por todos os outros sentidos (se é que sentido tem pé!). E a razão, de cabeça baixa  (se é que razão tem cabeça!) e rabinho no meio das pernas, resolveu sair do ar para dar uma reciclada nos seus conceitos. Desde então, o coração passou a ditar as ordens dentro de mim: eu sigo amando muito, tanto as pessoas certas quanto as pessoas erradas, pois acredito que o amor faz milagres. E é exatamente o milagre da felicidade que eu continuo buscando todos os dias, colecionando momentos felizes para, com paciência, colorir este sonho que o meu coração tanto acalenta.

Dorothy Jansson Moretti (Trovas ao entardecer) – 5


A gaivota, no rochedo,
as ondas no leva-e-traz
tentando fazer-lhe medo:
Perfeita imagem da paz.
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Angustiada, a natureza
chora a esperança perdida...
- Ouve-lhe a voz de tristeza,
dá-lhe a mão enquanto há vida!
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Ao termo de um rumo incerto,
minha alma triste suspira
vendo o horizonte deserto
do seu oásis de mentira.
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Brilha a lua, e eu, saudosa,
sinto em transe apaixonado,
a presença vaporosa
de tua sombra ao meu lado.
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Contra o medo e a insegurança,
eu ergo a minha muralha;
e se algum deles me alcança,
a esperança me agasalha.
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Coração, toma cuidado!
Ainda vais te machucar,
teimando em bater errado
por quem não quer te escutar!
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Da inconsequente aventura,
um momento de prazer,
rouba, às vezes, na loucura,
todo o encanto de viver.
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Das primaveras que tive,
sem lágrimas, sem desgosto,
saudosa sombra ainda vive
em cada ruga em meu rosto.
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De minha felicidade
naquela ilusão de outrora,
teu retrato e uma saudade
é tudo que resta, agora.
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Em seu murmúrio confuso,
meu coração quer dizer
que vem novo amor, intruso,
fazer-me outra vez, sofrer.
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Em teu coração fechado
eu sou fantasma indigente
que em castelo abandonado,
arrasta a sua corrente.
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Entre escolhos e asperezas
que ameaçam minha bonança,
eu singro o mar de incertezas
no barquinho da esperança.
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Esta saudade-agonia
não sei de onde se origina;
não sei onde principia,
só sei que jamais termina.
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Fui rei, depois fui escravo.
o tronco espoliou-me a glória;
e curto até hoje o travo
de mancha negra na história,
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Na ampulheta a areia finda,
e ao termo de nossas vidas,
queremos que o tempo ainda,
resgate as horas perdidas.
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Na obsessão alucinada
de te querer, me magoo,
qual ave de asa quebrada
teimando em alçar o voo.
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Nessa atitude tão fria,
mal disfarças a verdade;
é a calma que prenuncia
o fragor da tempestade,
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No combate a qualquer vício,
todos devemos lutar.
Ninguém é isento ao suplício
de ver um filho afundar.
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Perdido em mar de sargaços,
inerte, já nada enfrento;
sou, distante dos teus braços,
veleiro a que falta o vento.
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Perscruto o teu belo rosto,
mas nessa inútil procura,
para aumentar meu desgosto,
nele não vejo ternura.
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Por mais que o torture a fome,
bravo filho do nordeste,
não foge à dor que o consome,
enquanto há vida no agreste.
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Tentamos sempre encobrir
o que nos vai dentro d'alma;
Tu simulando explodir,
eu a fingir que estou calma.
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Teu sangue que dizes "feio"
tem magia em profusão:
É o mesmo sangue de um seio
que nutriu nossa nação.
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Velho castelo arruinado,
tua torre ainda em pé,
lembra-me um sonho arrasado
que teima em manter a fé.

Fonte: Dorothy Jansson Moretti. Painel do entardecer. Cachoeirinha/RS: Texto Certo, 2013. Enviado pela trovadora. 

Irmãos Grimm (O compadre da morte)


Um homem muito pobre tinha doze filhos e era obrigado a trabalhar noite e dia para alimentá-los. Quando então, o décimo terceiro filho veio ao mundo, ele não sabia o que fazer diante de tanta preocupação, então, ele correu para o meio da estrada, e decidiu pedir à primeira pessoa que ele encontrasse para ser o padrinho do seu filho. O primeiro que ele encontrou foi o bom Deus que já havia trazido muita alegria ao seu coração, e Deus disse a ele, "Pobre homem, eu tenho compaixão por ti. Eu irei segurar a criança durante o batismo, e irei cuidar dela e a farei feliz enquanto viver." 

O homem disse, "Quem você é?" 

"Eu sou Deus." 

"Então, eu não quero tê-lo como padrinho," disse o homem; "o senhor favorece os ricos, e deixa que os pobres passem fome." 

Assim disse o homem, porque ele não conhecia a sabedoria com que Deus reparte a riqueza e a pobreza. Então, ele saiu de perto do Senhor, e foi embora.

Então, o diabo chegou perto dele e disse, "O que você está procurando? Se você me aceitar como padrinho do teu filho, eu darei a ele ouro e fartura e todas as alegrias do mundo também." 

O homem perguntou, "Quem você é?" 

"Eu sou o Filho do Cão." 

"Então, eu não quero tê-lo como padrinho," disse o homem; "você engana as pessoas e as leva para o mau caminho." 

Ele continuou andando, e em seguida veio a morte caminhando em direção a ele com as pernas atrofiadas e foi logo dizendo, "Aceite-me como seu padrinho."

O homem perguntou, "Quem você é?" 

"Eu sou a morte, e eu torno todos os homens iguais." 

Então, o homem disse, "Você, sim, é que está certa, você leva tanto os ricos como os pobres, sem fazer distinção; você será o padrinho." 

A morte respondeu, "Eu farei teu filho rico e famoso, pois aquele que me tem como amigo nunca lhe faltará nada." 

O homem disse, "O batizado será no domingo que vem; esteja lá na hora certa." 

A morte apareceu, como havia prometido, e fez tudo que um padrinho tinha de fazer da maneira habitual.

Quando o garoto cresceu, o seu padrinho um dia apareceu e o convidou para que fosse com ele. Então, a morte o levou para uma floresta, e mostrou para ele uma erva que crescia por ali, e disse, "Agora você irá receber o presente do teu padrinho. Eu te farei um médico renomado. Quando fores chamado para atender um paciente, eu aparecerei para você.

Se eu ficar na cabeceira do doente, você poderá dizer com toda certeza que ele ficará bem e será curado, então, você dará a ele esta erva para que ele se recupere; mas se eu estiver nos pés do paciente, ele então, será meu, e você deverá dizer que não há solução para o caso dele, e que nenhum médico no mundo poderá salvá-lo. Mas jamais use a erva com outros propósitos, porque ela poder te fazer mal."

Não demorou muito e o jovem se tornou o médico mais famoso do mundo. Ele tinha apenas que olhar para o paciente e já sabia a condição dele imediatamente, se o doente iria se restabelecer, ou se o caso era de morte. 

E todos falavam muito nele, e dos lugares mais distantes as pessoas vinham consultá-lo, mandavam buscá-lo quando tinham alguma doença, e eles lhe davam tanto dinheiro que logo ele se tornou um homem rico. Então, aconteceu que o rei ficou doente, e o médico foi chamado, e teria de dizer se a recuperação seria possível.

Mas quando ele chegou perto da cama, a morte ali estava aos pés do rei enfermo, e a erva que poderia curá-lo não crescia. 

"Se eu conseguisse enganar a morte pelo menos uma vez," pensou o médico, "ele vai piorar se eu fizer isso, mas, como eu sou afilhado dela, ela fará de conta que não viu nada; vou arriscar." 

Ele então, pegou o doente, e o virou do outro lado, de modo que a morte ficou posicionada do lado da cabeceira. Ele deu ao rei um pouco de chá de erva para que ele tomasse, ele se recuperou e ficou são novamente.

Mas a morte se aproximou do médico, e parecendo estar muito contrariada, o ameaçou apontando-lhe o dedo, e disse, "Você passou dos seus limites; desta vez eu lhe perdoarei, porque és o meu afilhado; mas se fizeres isto novamente, isso vai lhe custar o teu pescoço, pois eu te levarei comigo."

Pouco tempo depois a filha do rei caiu terrivelmente doente. Ela era a única filha dele, e o rei chorava tanto noite e dia, que ele até começou a perder a visão dos olhos, e ele mandou para que soubessem que aquele que salvasse a sua filha da morte seria seu marido e herdaria a coroa. 

Quando o médico chegou à cabeceira da garota enferma, ele viu que a morte estava aos pés dela. Ele deveria ter-se lembrado do aviso que o seu padrinho havia lhe dado, mas ele estava tão encantado pela grande beleza da filha do rei, e pela felicidade de se tornar seu marido, que ele jogou ao vento todas as advertências.

Ele não percebeu que a morte lançava olhares furiosos para ele, que ela levantava as suas mãos para o alto, e o ameaçava com os punhos secos e fechados. Ele levantou a garota doente, e colocou a sua cabeça onde estavam os seus pés. Então, ele ministrou a ela um chá de ervas, e instantaneamente as bochechas dela começaram a ficar vermelhas, e a vida voltou para ela novamente.

Quando a morte viu que pela segunda vez ela havia sido desfalcada de suas funções, ela caminhou em direção ao médico com passos largos, e disse, "Está tudo acabado para você, e agora o teu destino está nas minhas mãos," e o segurou tão firme com as suas mãos frias que nem gelo, que ele não conseguiu resistir, e o conduziu para uma caverna que ficava debaixo da terra. 

Lá ele viu como milhares e milhares de velas estavam queimando em filas intermináveis, algumas grandes, outras na metade, e outras pequenas.

A todo momento uma vela se apagava, e outras continuavam queimando, e as chamas pareciam saltar de um lado e para outro em contínuas modificações. 

"Veja," disse a morte, "estas são as luzes das vidas dos homens que estão na Terra. As velas grandes são das crianças, aquelas que estão na metade são das pessoas que se casaram e estão iniciando uma nova vida, e as pequenas pertencem aos idosos; porém as crianças e os jovens frequentemente também tinham apenas uma vela minúscula." 

"Mostre para mim a luz da minha vida," disse o médico, e ele achava que ela seria ainda bem alta. 

A morte apontou para um toquinho de vela que estava ameaçando se apagar, e disse, "Veja, ali está ela."

"Ah, querido padrinho," disse o médico horrorizado, "acenda uma nova para mim, faça isso pelo amor que você tem por mim, para que eu possa aproveitar mais a vida, me tornar rei, e me casar com a bela filha do rei." 

"Não posso," respondeu a morte, "uma vela deve se apagar antes que uma nova seja acesa." 

"Então, coloque a vela velha em cima de uma nova, ela continuará queimando novamente quando a velha chegar no final," reclamou o médico. 

A morte fez de conta que iria cumprir o desejo do médico, e pegou uma vela nova e alta; mas como ela desejava se vingar, ela de propósito cometeu um erro ao fixá-la, e o pequeno pedaço de vela caiu e se apagou. Imediatamente o médico caiu no chão, e agora ele mesmo estava nas mãos da morte.

Fonte: Contos de Grimm. Publicados de 1812 a 1819. Disponível em Domínio Público.