sábado, 23 de novembro de 2024

Erigutemberg Meneses (Cascata de versos) 02

 

José Feldman (A Última Noite de Natal)

Era uma véspera de Natal na cidade. As luzes coloridas piscavam nas janelas, e as vitrines das lojas estavam adornadas com enfeites brilhantes e delicadas árvores de Natal, mas para João, um homem idoso de cabelos brancos e mãos enrugadas, tudo isso parecia distante, quase irrelevante. Ele caminhava lentamente pelas ruas, seu coração pesado com a solidão que o acompanhava como uma sombra.

As ruas estavam repletas de famílias, risadas e abraços calorosos, mas João se sentia como um espectador em um mundo que não o incluía. Ele parou em frente a uma vitrine que exibia uma bela mesa posta, com pratos finamente decorados e presentes embrulhados com cuidado. A cena o fez lembrar de tempos passados, quando sua casa estava cheia de vida e alegria, repleta de vozes familiares e risadas. Agora, tudo o que restava eram memórias.

Continuou seu passeio, observando as luzes refletindo na água acumulada em poças. O cheiro de pinheiro e canela pairava no ar, misturado ao aroma de castanhas assadas e chocolate quente. Cada passo que dava parecia ecoar em seu coração, um lembrete doloroso de sua solidão. Ele desejou que, ao menos, alguém o reconhecesse, que alguém o olhasse nos olhos e dissesse que ainda se importava.

Após algumas horas vagando pelas ruas, ele decidiu voltar para casa. A caminho, as paredes de sua pequena casa pareciam ainda mais frias. Assim que abriu a porta, uma onda de calor e amor o atingiu. Sua fiel companheira, Mila, uma cachorrinha de velhos cabelos grisalhos, com seus 17 anos de idade, estava à espera. Os olhos dela brilhavam com alegria ao vê-lo, e ela foi em direção a seus pés, abanando o rabo com entusiasmo. Para João, Mila era a única que sempre esteve ao seu lado, que nunca o abandonou.

Sentou-se no sofá, e Mila se acomodou sobre suas pernas, como fazia sempre. O calor do corpo dela confortava o coração de João, que, mesmo em meio à solidão, encontrava consolo na presença da sua amiga. Ele acariciou sua cabeça, sentindo a suavidade de seu pelo. Mas, à medida que o tempo passava, uma inquietação começou a crescer dentro dele. Algo não parecia certo.

Ele olhou para Mila e, de repente, percebeu que seu pequeno peito não subia e descia. O coração de João afundou. Ele a chamou, mas não houve resposta. Com mãos trêmulas, ele a pegou e a colocou em seu colo, mas a sua fiel companheira não reagiu. O desespero tomou conta dele ao perceber que Mila havia partido.

As lágrimas escorriam pelo seu rosto enrugado enquanto ele a segurava, a dor da perda se misturando à solidão que já o consumia. Ele havia prometido que nunca a abandonaria, que sempre estariam juntos. Agora, ele se sentia perdido, sem saber como seguir em frente.

Com o coração pesado, João, segurando Mila em seus braços, em meio ao luto, começou a rezar. Com a voz embargada, pediu a Deus que o levasse também, que o levasse para estar com sua fiel amiga, onde quer que ela estivesse. Ele não queria viver em um mundo sem ela, sua única companheira que sempre o amou incondicionalmente.

“Meu Deus,” ele murmurou, “leve-me para onde ela está. Eu prometi que nunca a deixaria sozinha. Se for possível, que eu possa encontrá-la novamente.”

As palavras saíam de seu coração, um apelo de um homem que já não tinha mais a quem recorrer. O som da cidade lá fora se tornava distante, enquanto sua alma se unia em um último desejo. Ao sentir a ausência de Mila, ele sabia que o amor verdadeiro não se extingue com a morte.

Então, como se Deus tivesse ouvido sua prece, João sentiu uma paz inexplicável invadir seu ser. Seu coração, que tantas vezes havia carregado a tristeza da solidão, começou a desacelerar. Ele olhou para Mila, agora tão serena em seus braços, e um sorriso triste surgiu em seu rosto. Em um último suspiro, ele se deixou levar, o peso da vida desaparecendo enquanto se reunia com sua querida companheira de tantos anos.

E assim, naquela noite de Natal, João e Mila partiram juntos, lado a lado, em um último abraço eterno. Na quietude daquele momento, eles encontraram o que tanto buscavam: a certeza de que, onde quer que estivessem, nunca mais estariam sozinhos.
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MORAL:
O sofrimento das pessoas idosas, como João, que se sentem abandonadas por parentes e amigos, é uma realidade dolorosa e muito frequente e muitas vezes invisível na sociedade. À medida que envelhecemos, as relações podem mudar, e muitos idosos enfrentam a solidão em um momento em que mais precisam de apoio e companhia.

A falta de tempo se torna uma desculpa comum, mas, para o idoso, essa ausência pode se traduzir em solidão profunda e tristeza. A sensação de que não são mais úteis é dolorosa e pode levar a um ciclo de desânimo e depressão. Videochamadas e mensagens podem ajudar, mas nada se compara ao calor de uma visita pessoal. Para muitos idosos, a falta de interação face a face amplifica a sensação de abandono, fazendo-os sentir que seus entes queridos estão longe não apenas fisicamente, mas também emocionalmente.

A tristeza da perda de um companheiro fiel, como no caso de João, pode ser devastadora, lembrando-os da fragilidade de suas relações e da inevitabilidade da morte. A história de João e Mila é um reflexo da realidade de muitos idosos que enfrentam o abandono e a solidão. É um chamado à empatia e à ação, lembrando-nos da importância de cultivar relações significativas e de cuidar daqueles que nos deram tanto ao longo de suas vidas. Cada gesto de amor e atenção pode fazer uma diferença significativa na vida de um idoso, ajudando a transformar a solidão em conexão e esperança.

Fontes: 
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: IA Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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Bianca Cidreira Cammarota (Cinza)

Amanheci, esperando o sol brilhar em meu rosto. Mas não. Do cinza-chumbo nas nuvens carregadas, meu semblante mais uma vez se entristeceu. Sim... desde aquele Fatídico dia, quando as sombras espreitavam os corações, o sol não mais aqueceu mentes e almas. Ele se recolheu diante do horror que se normatizava e se normalizava em seus filhos.

O cinza-claro indicava as horas matinais e vesperais, dia interminável com muitos amanheceres monocráticos. Sem calor vivificador, apenas o mormaço apodrecendo as últimas esperanças dos que ansiavam pelo sol, enquanto fervilhava a insana maldade dos sonhos fanáticos, concretizados em filosofias macabras e ações infernais.

O cinza das cinzas de vidas escurecia no firmamento, descendo tom a tom, paulatinamente, tão imperceptível que ninguém mais discernia a partida do resto da claridade. As olheiras obscuras, escuras como a noite. O sorriso branco, afiado como presas. As mãos feitas para doar tomando tudo e a todos em um punho. O discurso odioso outrora mudo bradava agora pelos ventos da ignorância. O eu egoísta se incorporava ao nós narcisista e virulento, rugindo em sua individualidade coletiva e corporativa. Monumentos de ferro pendurados em pescoços, tingidos do sangue dos que se foram.

As horas correm com a fuligem escurecida, agora. A negridão da noite anunciada para toda uma vida, enfim, cobre os dias, sob os aplausos fanatizados dos ignorantes, Da minha janela, estranhamente as estrelas piscam para mim, saudações frias, luzes brancas, lembranças fantasmagóricas de sóis ardentes de outros tempos. Elas cintilam. Elas pulsam. Elas gritam.

Então, num rompante súbito, a lua cheia rasga o oceano noturno, explosão dourada inconcebível, uma aurora esplendorosa, gelada, mas ardente em sua luminosidade. Tinge o manto estelar em rajadas vermelhas, violetas, laranjas e douradas flamejantes.

Meu coração bate novamente em uníssono com aqueles sóis distantes, com o nosso sol vestido em trajes limares. Ele existe... Sempre esteve lá, mesmo encoberto pela noite dos monstros e pelas cinzas dos covardes.

Não espero mais o amanhecer no batente da janela. A aurora nasce em meus olhos.

A aurora sou eu.
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A autora é de Aracaju/SE

(esta crônica obteve o 2. Lugar no Concurso de Crônicas Adulto Nacional “Foed Castro Chamma”, em 2020, com o tema Aurora)

Fontes: Luiza Fillus/ Bruno Pedro Bitencourt/ Flávio José Dalazona (org.). III Concurso Literário “Foed Castro Chamma 2020”. Ponta Grossa/PR: Texto e Contexto, 2021. Livro enviado por Luiza Fillus.
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Vereda da Poesia = 164 =


Trova de
SILVANA S. CAÚMO
São Paulo/SP

Pra chegar onde cheguei,
foi bem longa a caminhada,
muitos tombos eu levei,
mas, por Deus fui compensada.
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Poema de 
SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESSEN
Lisboa (1919 – 2004) Porto

Cantata de paz

Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar
Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar

Vemos, ouvimos e lemos
Relatórios da fome
O caminho da injustiça
A linguagem do terror

A bomba de Hiroshima
Vergonha de nós todos
Reduziu a cinzas
A carne das crianças

D'África e Vietnam
Sobe a lamentação
Dos povos destruídos
Dos povos destroçados

Nada pode apagar
O concerto dos gritos
O nosso tempo é
Pecado organizado.
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Trova de
ALOÍSIO ALVES DA COSTA
Umari/CE (1935 – 2010) Fortaleza/CE

Quando o amor se faz lembrança
e a solidão nos invade,
ou se vive de esperança,
ou se morre de saudade…
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Soneto de
VICENTE DE CARVALHO
Santos/SP (1866 – 1924)

Velho tema (III)

Belas, airosas, pálidas, altivas,
Como tu mesma, outras mulheres vejo:
São rainhas, e segue-as num cortejo
Extensa multidão de almas cativas.

Têm a alvura do mármore; lascivas
Formas; os lábios feitos para o beijo;
E indiferente e desdenhoso as vejo
Belas, airosas, pálidas, altivas...

Por quê? Porque lhes falta a todas elas,
Mesmo às que são mais puras e mais belas,
Um detalhe sutil, um quase nada:

Falta-lhes a paixão que em mim te exalta,
E entre os encantos de que brilham, falta
O vago encanto da mulher amada.
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Trova de
APARÍCIO FERNANDES
Acari/RN, 1934 – 1996, Rio de Janeiro/RJ

Bodas de Ouro!  Nosso beijo
retrata nossa ventura:
o que lhe falta em desejo,
hoje lhe sobra em ternura...
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Soneto de
MÁRIO QUINTANA
Alegrete/RS (1906 – 1994) Porto Alegre/RS

A Rua dos Cata-ventos (VII)

Avozinha Garoa vai contando
Suas lindas histórias, à lareira.
"Era uma vez... Um dia... Eis senão quando..."
Até parece que a cidade inteira

Sob a garoa adormeceu sonhando...
Nisto, um rumor de rodas em carreira...
Clarins, ao longe... (É o Rei que anda buscando
O pezinho da Gata Borralheira!)

Cerro os olhos, a tarde cai, macia...
Aberto em meio, o livro inda não lido
Inutilmente sobre os joelhos pousa...

E a chuva um'outra história principia,
Para embalar meu coração dorido
Que está pensando, sempre, em outra cousa…
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Trova de
PROFESSOR GARCIA
Caicó/RN

Saudade – no fim do dia, 
já sei por que me dói tanto: 
aumenta a melancolia, 
dobra as dores do meu pranto! 
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Poema de 
JOSÉ PEDRO DA SILVA CAMPOS D’OLIVEIRA
Moçambique (1847 – 1911)

A Uma Virgem
(Improviso)

Motora dos meus martírios!
Causa da minha saudade!
Ingênua e casta deidade!
Minha terna inspiração!
Condoi-te da triste sorte
Do jovem que te ama tanto,
Que por ti verte agro pranto
Gerado no coração!
Rasga-me o peito, se queres,
E vê nele a intensa chama,
Que há três anos o inflama
Em cruas dores, sem fim...
De padecer já cansado
Vou sentindo a morte dura
Arrastar-me à sepultura,
E na flor da idade assim!...

E podes ser tão tirana,
Que possas ver indif´rente
D´anos de´nove somente
Morrer o teu trovador?!
Ai! Não! Alenta-me a vida,
Reprime esta dor infinda
Dando-me só, virgem linda,
O teu puro e casto amor!...

(obs: foi mantida a grafia original)
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Trova Humorística de 
WANDA DE PAULA MOURTHÉ
Belo Horizonte/MG

Bebe a sogra mais que Baco
e, tendo um gênio de cão,
consegue armar um barraco
maior que meu barracão!
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Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Esperança

Enquanto há vida, eu sei, há esperança
que é uma das virtudes teologais,
foi isso que aprendi desde criança
e na verdade não esqueci jamais.

As outras são: o amor que não se cansa,
e a fé, que todo dia eu tenho mais!
E aí, querida, está minha confiança:
juntos faremos nossos esponsais!

Vou esperar o quanto for preciso,
certo de que não perderei o juízo,
até o dia que você me amar.

E nesse dia eu serei tão feliz,
que vou levar você até a Matriz,
e sob bênçãos, vamos nos casar!
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Trova de
ZAÉ JÚNIOR
Botucatu/SP, 1929 – 2020, São Paulo/SP

Se esse teu brilho me cega,
me condena à escuridão,
saibas que a luz não renega
a sombra que faz no chão!
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Hino de 
SÃO TOMÉ/PR

Quando os homens rasgaram um dia
Os mistérios do velho sertão
Entenderam por certo que havia
Um poder incomum neste chão
Visionários, a voz da esperança.
Numa luta de ardor e de fé
Na paisagem da verde pujança
Projetaram à luz São Tomé

ESTRIBILHO
Na mata virgem deslumbrante,
Rio dos Índios o solo a irrigar
A cachoeira borbulhante
Um poema de amor a entoar,
É tão belo, neste recanto.
Outro igual asseguro não há
São Tomé que eu amo tanto,
É orgulho do meu Paraná.

A riqueza brotando imponente
Desta terra de cor peculiar
A mostrar o valor de tua gente
No labor de uma faina invulgar
Na cadência marcada dos passos
Deste povo que ruma seguro
Carregando alegria nos braços
Para um grande soberbo futuro.
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Trova Premiada de
RITA MARCIANO MOURÃO 
Ribeirão Preto/SP

Tu nasceste nesta rua,
eu nasci além dos mares,
mas foi sempre a mesma lua
que juntou nossos olhares!
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Recordando Velhas Canções
SOLIDÃO 
(samba-canção, 1961) 
Adelino Moreira

Não, não quero mais o seu amor
Chega de amar, chega de dor
E de esperar em vão

Quando desperto
E vejo o leito vazio
Eu sinto frio no coração

Não, não quero mais ficar sozinha
Já Estou cansada de esperar
Acalentando a promessa
De que um dia
Você vem para ficar

Quem não tem direito ao amor
Não deve amar
Para não sofrer
Para não chorar

Veja meus Deus
A triste sorte minha
Na solidão do quarto
Eu beijo o seu retrato
E vou dormir sozinha
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Trova de
LUIZ DE CARVALHO RABELO
Natal/RN

Foi ao criar a "ternura",
que Deus, sabendo-a tão mansa,
colocou-a, ingênua e pura,
nos olhos de uma criança!...
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A. A. de Assis (A Massa da discórdia)


A. A. de Assis (Antonio Augusto de Assis) é de Maringá/PR
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O pastel ali, esfriando, desafiando a imaginação criativa dos seis

Na hora do recreio havia sobre a mesa um prato de pastéis. Seis professores na sala, sete pastéis. Cada boca serviu-se do seu bocado, a refeição ideal para o horário. O copo de chá gelado completava a merenda. Mas o pastel estava provocativamente delicioso, deixando no gogó dos comilões aquele irresistível gostinho de quero mais.

Sobrara no prato um pastel, o sétimo, sobre o qual pousavam gulosos os olhos dos seis candidatos a saboreá-lo. A boa educação, contudo, não permitia que nenhum dos presentes se apossasse do cujo. Melhor se tivesse vindo a conta certa, assim aquela sobra não perturbaria o recreio. O pessoal conversava para distrair, entretanto a tentação era demais. Seis olhares espetando o pastel, de longe. Ah, esses bons modos…

Poderia alguém ter sugerido um sorteio. No papelzinho, no palitinho, no par ou ímpar. Qualquer coisa, desde que se definisse a quem caberia o apetitoso conjunto de carne e massa. Ninguém tinha coragem de fazer a sugestão, com medo de ser chamado de fominha.

E o solitaríssimo pastel ali se oferecendo, cheiroso, fofucho. Poderiam reparti-lo em seis pedaços. Parecia, porém, que todos achavam tal solução deselegante. Além disso, a quem caberia a azeitona? Pois é: tinha uma azeitona no enredo, para atrapalhar. Dividir uma azeitona em seis pedaços seria operação deveras complicada. Falaram de futebol, de política, de tudo. Os olhares continuavam fixos no prato. Cada parceiro na esperança de que os outros cinco saíssem da sala. Ficando sozinho, o premiado comeria o último pastel sem constrangimento algum. Mas quem disse que sairia alguém dali? Havia unanimidade na gula.

Chegaram a desejar que entrasse na sala um sétimo professor, a fim de engolir a massa da discórdia e resolver de vez o impasse. O pastel ali, esfriando, desafiando a imaginação criativa dos seis. Nenhum deles ao menos se atrevia a confessar o que estava pensando. Percebia-se apenas pelo jeitão meio vesgo. Ou era isso que uns acreditavam estar percebendo nos demais.

Tocou a sino, acabou o recreio. Última esperança de que voltasse todo mundo para o trabalho deixando apenas um na sala do lanche. Ninguém quis ser o primeiro a sair. Saíram juntos, os seis.

Minutos depois a moça da cozinha veio recolher a garrafa de chá, os copos e o prato. Pensou lá com seus temperos: “Uai, acho que o pastel não agradou… até deixaram sobra…” E sem mais indagações comeu ali mesmo o desprezado, para desocupar o prato. Alimento aliás muito providencial, visto que ela havia acordado de madrugada e o café da manhã já estava mesmo pedindo reforço.
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 (Crônica publicada no Jornal do Povo)

Fonte: Texto enviado pelo autor 

sexta-feira, 22 de novembro de 2024

José Feldman (Guirlanda de Versos) * 9 *

 

Sammis Reachers (Temos fome, fome de Esperança)

Uma pintura do inglês George Frederic Watts, atualmente exibida na famosa Tate Galery de Londres, apresenta uma significativa alegoria: uma mulher com os olhos vendados, sentada sobre o globo terrestre, tendo em suas mãos um alaúde. Todas as cordas do instrumento musical estão arrebentadas, menos uma. A mulher aparenta estar atenta à música tirada desta única corda – essa corda é a Esperança.

Vivemos tempos sombrios. A desesperança, seja ela em utopias materialistas ou religiosas campeia, alimentada pelas brasas do ódio que insiste em bradar de sarjetas a tronos, passando por (quase) todas as tribunas. O diagnóstico é triste e a pílula, difícil de engolir: nossa sociedade está doente. Doente da alma, ferida em seu humanismo no que ele tem de mais nobre e fraternal; doente de suas fés religiosas, com o uso distorcido de suas mensagens de paz para fins interesseiros e intolerantes. 

O que vemos por aí é maniqueísmo que se chama: a crença de que o bem puro e o mal puro se digladiam. Mas quem é o mal? O mal é o próximo, o outro, nunca eu. Fácil, não? Mas somos humanos, e pelo entendimento bíblico, seres transidos de fios de mal e bem, acertos e erros – sim, a Bíblia e a maioria das grandes religiões mundiais nos referem como seres em processo, cuja jornada é a própria formação. Livres em nossas circunstâncias, que nos limitam em parte e em parte condicionam, mas são impotentes para aniquilar o que temos de divino. E esse toque “divino”, fino fio que nos mantém de pé, frágil filamento que nos une uns aos outros, que conduz (para nós, através de nós e a partir de nós) uma certa pulsante corrente elétrica, é a Esperança.

É preciso esperançar. Acreditar contra nossas diferenças, resistir contra os flagelos e os flageladores, os verdugos à serviço da exclusão e do maniqueísmo. Suas agendas não são as nossas; sua estreiteza não no diz respeito. Martin Luther King, o grande pastor e líder civil da mais singular expressão, assevera: “Devemos aceitar a decepção finita, mas nunca perder a esperança infinita”. E conclui: “Se eu ajudar uma pessoa a ter esperança, não terei vivido em vão”.

Aquela única corda da alegoria de Watts, citada no início deste texto, fio solitário, é na verdade uma ponte. Sim, é uma ponte de Esperança, fio a co-ligar e conduzir o homem (indivíduo e sociedade), e cabe a cada um de nós o papel de seus arautos, de pontífices (construtores de pontes) para nosso próximo.
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Sammis é poeta, escritor, antologista e editor. Licenciado em Geografia com especializações em Metodologia do Ensino e Gestão Escolar, atua em redes públicas de ensino de municípios fluminenses. É de São Gonçalo/RJ.

Maurício Cavalheiro (O pintor de auroras)

Não conheço quem o supere nos pincéis. Não conheço quem consiga retratar com delicadeza e precisão todos os pormenores em tela. É impossível plagiar os matizes que utiliza. Ninguém, nem Monet, nem Van Gogh, Taraborelli ou qualquer outro gênio da história da arte, conseguiu se aproximar da perfeição.

De todas as telas sobre amanheceres que pintou, guardei algumas em minha memória.

Ele retrata as auroras com todos os detalhes pertinentes a cada estação. Na primavera, por exemplo, a delicadeza dos pincéis anuncia a última estrela espiando os primeiros fios solares despertarem flores e joaninhas, enquanto o riacho desassossegado escorrega da colina. Abelhas e beija-flores coletam néctar e polinizam. 

No verão, atribui cores mais intensas à aurora para registrar o sol acordando mais cedo e encontrando gatos voltando da noitada. As borboletas brincam sem se assoberbar pela beleza de seus vestuários. Os passarinhos sinfonizam orações e inauguram o voo do amanhecer.

Na aurora outonal, os matizes são gris ao reproduzirem a chuva tamborilando o telhado para desafiar o sol. O hálito fresco da brisa arrepia o arvoredo. Preguiçosamente, as nuvens se deslocam e permitem que o astro rei reassuma o comando. O cachorro brincalhão corre atrás do coelho assustado.

No inverno, o sol nasce devagarinho, tímido, e vai diluindo, aos poucos, o orvalho que aveluda o rendilhado das aranhas. O vento, indomesticável, assobia canções polares. As nuvens são cachecóis que envolvem a montanha.

Da janela do meu quarto, nessa casa sem requintes, mas aconchegante, observei e observo as telas desse grande artista. Da janela do meu quarto, observo as magníficas obras de arte produzidas por... Deus.
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O autor é de Pindamonhangaba / SP

(esta crônica obteve o 1. Lugar no Concurso de Crônicas Adulto Nacional “Foed Castro Chamma”, em 2020, com o tema Aurora)

Fontes: Luiza Fillus/ Bruno Pedro Bitencourt/ Flávio José Dalazona (org.). III Concurso Literário “Foed Castro Chamma 2020”. Ponta Grossa/PR: Texto e Contexto, 2021. Livro enviado por Luiza Fillus.
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Vereda da Poesia = 163 =


Trova de
ARTHUR THOMAZ
Campinas/SP

O profeta idealiza
o futuro, em previsões…
E o poeta o finaliza
colorindo-o de ilusões…
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Poema de 
APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA
Vila Velha/ES

Visível

Choro lágrimas de saudade...
não há lenço que resista
a minha necessidade
de mantê-lo no bolso,
seco e limpo... limpo e seco... 

A todo instante
aumenta a ausência de você...
e todo mundo percebe
Somente você não vê,
A dor imensa que sinto.
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Trova de
LEÔNCIO CORREIA
Paranaguá/PR

Se o beijo guarda o perfume
de estranha, esquisita flor
é porque o beijo resume
a vida e a glória do amor.
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Soneto de
VICENTE DE CARVALHO
Santos/SP (1866 – 1924)

Velho tema (II)

Eu cantarei de amor tão fortemente
Com tal celeuma e com tamanhos brados
Que afinal teus ouvidos, dominados,
Hão de à força escutar quanto eu sustente.

Quero que meu amor se te apresente
— Não andrajoso e mendigando agrados,
Mas tal como é: — risonho e sem cuidados,
Muito de altivo, um tanto de insolente.

Nem ele mais a desejar se atreve
Do que merece: eu te amo, e o meu desejo
Apenas cobra um bem que se me deve.

Clamo, e não gemo; avanço, e não rastejo;
E vou de olhos enxutos e alma leve
À galharda conquista do teu beijo.
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Trova de
APARÍCIO FERNANDES
Acari/RN, 1934 – 1996, Rio de Janeiro/RJ

Cartas de amor, esquecidas,
contendo um pouco do Céu!
Dois corações, duas vidas
resumidas num papel!
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Soneto de
MÁRIO QUINTANA
Alegrete/RS (1906 – 1994) Porto Alegre/RS

A Rua dos Cata-ventos (VI)

Na minha rua há um menininho doente.
Enquanto os outros partem para a escola,
Junto à janela, sonhadoramente,
Ele ouve o sapateiro bater sola.

Ouve também o carpinteiro, em frente,
Que uma canção napolitana engrola.
E pouco a pouco, gradativamente,
O sofrimento que ele tem se evola...

Mas nesta rua há um operário triste:
Não canta nada na manhã sonora
E o menino nem sonha que ele existe.

Ele trabalha silenciosamente...
E está compondo este soneto agora,
Pra alminha boa do menino doente...
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Trova de
PROFESSOR GARCIA
Caicó/RN

A existência é dividida
em dois extremos da idade:
um, alvorada da vida,
outro, arrebol de saudade!
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Poema de 
CÉLIA EVARISTO
Lisboa/Portugal

Não domino…

Não domino o vento,
os sonhos,
o mar.

Não domino o tempo,
os dias
que teimam em passar.

Não domino a saudade
que, entretanto,
nasceu em mim.

Não domino a liberdade,
sou flor eternamente presa
ao teu jardim.

Não domino o ar que respiro
e as muitas vezes
que por ti suspiro.

Não domino o teu coração,
nem o meu coração domino,
quanto mais.

Porque se o dominasse,
e um dia te chamasse,
não fugirias jamais.
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Trova de 
WANDA DE PAULA MOURTHÉ
Belo Horizonte/MG

A realidade transponho
e vivo em mundo ideal...
Quero as mentiras do sonho,
não as da vida real!
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Soneto de 
AMILTON MACIEL MONTEIRO
São José dos Campos/SP

Cor de brasa

Num canto do jardim de minha casa
duas roseiras crescem, majestosas,
com flores rubras, lindas, cor de brasa
e aveludadas pétalas cheirosas.

Quem as plantou, não sei, mas bem me apraza
exaltar o valor das laboriosas
mãos que, com amor e jeito, deram asa
a que vingassem em formas primorosas.

Pois aprecio muito a mão que planta
e só por isso a entendo como santa,
merecedora de me abençoar!

Plantar é um beijo dado à Natureza,
que fica à nossa espera, com certeza,
para o mundo crescer e embelezar!
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Trova de
ZAÉ JÚNIOR
Botucatu/SP, 1929 – 2020, São Paulo/SP

A cadeira de balanço
balançou toda a família...
meu avô, no sono manso,
meu neto, em louca vigília!
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Hino de 
BENTO GONÇALVES/RS

Bento Gonçalves querida,
Bordada de parreirais,
Terra estuante de vida
Origem de nossos pais.

Bento Gonçalves querida,
Bordada de parreirais,
Onde o vinho borbulhante
Jorra jorra em cascatas reais.

Salve esta terra fecunda,
Que a mão divina criou
E com trabalho e fé profunda
O imigrante desbravou.

Bento Gonçalves querida,
Meu desejo é teu progresso
É ver-te de fronte erguida, Altiva,
No tribunal do universo!

Nome de grande vulto,
Que o Rio Grande soube honrar,
Meu rincão é meu culto
Do Brasil é meu altar.

Uvas de várias castas,
Enriquecem a região,
Com teu doce vinho afastas
As mágoas do coração.

A ti meu melhor carinho,
Linda Capital do Vinho.
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Trova Premiada de
RITA MARCIANO MOURÃO 
Ribeirão Preto/SP

Ante a bandeira hasteada
revendo as lutas, conceitos,
o pobre sem pão, sem nada
pede à pátria os seus direitos.
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Recordando Velhas Canções
INSENSATEZ 
(samba bossa, 1961) 
Tom Jobim e Vinícius de Moraes

A insensatez que você fez
Coração mais sem cuidado
Fez chorar de dor o meu amor
Um amor tão delicado

Ah! Porque você foi fraco assim
Assim tão desalmado
Ah! Meu coração quem nunca amou
Não merece ser amado

Vai meu coração, usa a razão
Usa só sinceridade
Quem semeia vento, diz a razão
Colhe sempre tempestade

Vai meu coração
Pede perdão, perdão apaixonado
Vai porque quem não pede perdão
Não é nunca perdoado
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Trova de
VANDA FAGUNDES QUEIROZ
Curitiba/PR

Onde a sombra cobre e embaça
o sol que anima e clareia,
eu quisera ser quem passa
e reacende a luz alheia.
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