quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Carlos Drummond de Andrade (O Poeta Singrando Horizontes IV)


SENTIMENTO DO MUNDO

Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.
Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.
Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.
Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desafiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microscopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer
esse amanhecer
mais que a noite.

SEGREDO

A poesia é incomunicável.
Fique torto no seu canto.
Não ame.

Ouço dizer que há tiroteio
ao alcance de nosso corpo.
É a revolução? o amor?
Não diga nada.

Tudo é possível, só eu impossível.
O mar transborda de peixes.
Há homens que andam no mar
como se andassem na rua.
Não conte.

Suponha que um anjo de fogo
varesse a face da terra
e os homens sacrificados
pedissem perdão.
Não peça.

SALÁRIO

Ó que lance extraordinário:
aumentou o meu salário
e o custo de vida, vário,
muito acima do ordinário,
por milagre monetário
deu um salto planetário.
Não entendo o noticiário.
Sou um simples operário,
escravo de ponto e horário,
sou caxias voluntário
de rendimento precário,
nível de vida sumário,
para não dizer primário,
e cerzido vestuário.
Não sou nada perdulário,
muito menos salafrário,
é limpo meu prontuário,
jamais avancei no Erário,
não festejo aniversário
e em meu sufoco diário
de emudecido canário,
navegante solitário,
sob o peso tributário,
me falta vocabulário
para um triste comentário.
Mas que lance extraordinário:
com o aumento de salário,
aumentou o meu calvário!

ROMARIA
A Milton Campos

Os romeiros sobem a ladeira
cheia de espinhos, cheia de pedras,
sobem a ladeira que leva a Deus
e vão deixando culpas no caminho.

Os sinos tocam, chamam os romeiros:
Vinde lavar os vossos pecados.
Já estamos puros, sino, obrigados,
mas trazemos flores, prendas e rezas.

No alto do morro chega a procissão.
Um leproso de opa empunha o estandarte.
As coxas das romeiras brincam no vento.
Os homens cantam, cantam sem parar.

Jesus no lenho expira magoado.
Faz tanto calor, há tanta algazarra.
Nos olhos do santo há sangue que escorre.
Ninguém não percebe, o dia é de festa

No adro da igreja há pinga, café,
imagens, fenômenos, baralhos, cigarros
e um sol imenso que lambuza de ouro
o pó das feridas e o pó das muletas.

Meu Bom Jesus que tudo podeis,
humildemente te peço uma graça.
Sarai-me, Senhor, e não desta lepra,
do amor que eu tenho e que ninguém me tem.

Senhor, meu amo, dai-me dinheiro,
muito dinheiro para eu comprar
aquilo que é caro mas é gostoso
e na minha terra ninguém não possui.

Jesus meu Deus pregado na cruz,
me dá coragem pra eu matar
um que me amola de dia e de noite
e diz gracinhas a minha mulher.

Jesus Jesus piedade de mim.
Ladrão eu sou mas não sou ruim não.
Por que me perseguem não posso dizer.
Não quero ser preso, Jesus ó meu santo.

Os romeiros pedem com os olhos,
pedem com a boca, pedem com as mãos.
Jesus já cansado de tanto pedido
dorme sonhando com outra humanidade.

RETRATO DE UMA CIDADE

I

Tem nome de rio esta cidade
onde brincam os rios de esconder.
Cidade feita de montanha
em casamento indissolúvel
com o mar.

Aqui
amanhece como em qualquer parte do mundo
mas vibra o sentimento
de que as coisas se amaram durante a noite.

As coisas se amaram. E despertam
mais jovens, com apetite de viver
os jogos de luz na espuma,
o topázio do sol na folhagem,
a irisação da hora
na areia desdobrada até o limite do olhar.

Formas adolescentes ou maduras
recortam-se em escultura de água borrifada.
Um riso claro, que vem de antes da Grécia
(vem do instinto)
coroa a sarabanda a beira-mar.
Repara, repara neste corpo
que é flor no ato de florir
entre barraca e prancha de surf,
luxuosamente flor, gratuitamente flor
ofertada à vista de quem passa
no ato de ver e não colher.


II

Eis que um frenesi ganha este povo,
risca o asfalto da avenida, fere o ar.
O Rio toma forma de sambista.
É puro carnaval, loucura mansa,
a reboar no canto de mil bocas,
de dez mil, de trinta mil, de cem mil bocas,
no ritual de entrega a um deus amigo,
deus veloz que passa e deixa
rastro de música no espaço
para o resto do ano.

E não se esgota o impulso da cidade
na festa colorida. Outra festa se estende
por todo o corpo ardente dos subúrbios
até o mármore e o fumé
de sofisticados, burgueses edifícios:
uma paixão:
a bola
o drible
o chute
o gol
no estádio-templo que celebra
os nervosos ofícios anuais
do Campeonato.

Cristo, uma estátua? Uma presença,
do alto, não dos astros,
mas do Corcovado, bem mais perto
da humana contingência,
preside ao viver geral, sem muito esforço,
pois é lei carioca
(ou destino carioca, tanto faz)
misturar tristeza, amor e som,
trabalho, piada, loteria
na mesma concha do momento
que é preciso lamber até a última
gota de mel e nervos, plenamente.

A sensualidade esvoaçante
em caminhos de sombra e ao dia claro
de colinas e angras,
no ar tropical infunde a essência
de redondas volúpias repartidas.

Em torno de mulher
o sistema de gesto e de vozes
vai-se tecendo. E vai-se definindo
a alma do Rio: vê mulher em tudo.
Na curva dos jardins, no talhe esbelto
do coqueiro, na torre circular,
no perfil do morto e no fluir da água,
mulher mulher mulher mulher mulher.


III

Cada cidade tem sua linguagem
nas dobras da linguagem transparente.
Pula
do cofre da gíria uma riqueza,
do Rio apenas, de mais nenhum Brasil.
Diamantes-minuto, palavras
cintilam por toda parte, num relâmpago,
e se apagam. Morre na rua a ondulação
do signo irônico.
Já outros vêm saltando em profusão.
Este Rio...
Este fingir que nada é sério, nada, nada,
e no fundo guardar o religioso
terror, sacro fervor
que vai de Ogum e Iemanjá ao Menino Jesus de Praga,
e no altar barroco ou no terreiro
consagra a mesma vela acesa,
a mesma rosa branca, a mesma palma
à Divindade longe.

Este Rio peralta!
Rio dengoso, erótico, fraterno,
aberto ao mundo, laranja
de cinqüenta sabores diferentes
(alguns amargos, por que não?),
laranja toda em chama, sumarenta
de amor.

Repara, repara nas nuvens; vão desatando
bandeiras de púrpura e violeta
sobre os montes e o mar.
Anoitece no Rio. A noite é luz sonhando.

Carlos Drummond de Andrade (A Cor de Cada Um)


Na República do Espicha-Encolhe cogitava-se de organizar partidos políticos por meio de cores.

Uns optaram pelo partido rosa, outros pelo azul, houve quem preferisse o amarelo, mas vermelho não podia ser. Também era permitido escolher o roxo, o preto com bolinhas e finalmente o branco.

- Esse é o melhor - proclamaram uns tantos. - Sendo resumo de todas as cores, é cor sem cor, e a gente fica mais à vontade.

Alguns hesitavam. Se houvesse o duas-cores, hem? Furta-cor também não seria mau. Idem, o arco-íris. Havia arrependidos de uma cor, que procuravam passar para outra. E os que negociavam: só adotariam uma cor se recebessem antes 100 metros de tecido da mesma cor, que não desbotasse nunca.

- Justamente o ideal é a cor que desbota - sentenciou aquele ali. - Quando o Governo vai chegando ao fim, a fazenda empalidece. e pode-se pintá-la da cor do sol nascente.

Este sábio foi eleito por unanimidade Presidente do Partido de Qualquer Cor.


Fonte:
ANDRADE, Carlos Drummond de. A cor de cada um. 3a. ed. RJ: Record, 1998.

Wagner Marques Lopes (Onde Estão os Azulões?)


Azulão – um azul-tinto
a mergulhar no azul do céu!...
Naquele tempo, muito mais gente ouvia
o canto em surdina dos azulões!...
Rompiam das matas para beirar nossas casas.

Certas tardes, um casal era visto...
A fêmea com traje azulíneo
e sua cauda negra... Elegante,
pousada na cerca do fundo do quintal...

Passaram-se os verões...
Foram queimadas, estilingues,
tantos senões...
Um tempo que vai distante -
o azul-tinto mergulhando no azul-celeste!...
Não mais os vemos,
nem mais se ouve falar dos azulões.

Por onde voam?
Ou quiçá, por onde andam?
Nas gaiolas?!...
O quanto isso me enfastia!...
Espero ainda aquele encantado dia
para que eu possa ver azulões
pousados na cerca do fundo do quintal!...
***

Fonte:
Texto e imagem enviados pelo autor

Júlia Lopes de Almeida (Brutos!)


Daqui a umas largas dezenas de anos, quem for amigo de ler crônicas deste século XX, que despontou com aspirações de paz universal e bondades aperfeiçoadoras do coração humano, poderá dizer que nestes dias houve um rei, que por amor da sua dama quebrou as mais rijas lanças. Para conquistá-la, expulsou ele o seu real pai e senhor, deportando-o para fora do reino, onde o mísero morreu sem amigos, no desamparo da ingratidão... Para colher dos lábios dela a cheirosa flor do beijo, houve o rei de arcar com a basta chusma dos preconceitos da época. A pobre não era de sangue real, e por isso, mal estimada pelos súditos da enfeitiçada majestade, todos se opunham a que o rei se unisse àquela mulher, que nem era moça como Julieta, nem era portadora de um título de princesa, como Cordélia.

Por sua parte a imprudente, fascinada pelo prestígio daquele homem, caminhava para ele como a fina agulha de aço para um grande pedaço de imã. As mulheres não se emendam, e tanto mais amam quanto menos devem amar. Com o perigo, aumentava o encanto da paixão. Não amar, quando se recebeu do céu uma alma feita para o amor, é privar-se, a si e a outrem, de uma grande felicidade. Seria como uma laranjeira que não florescesse com medo de pecar, — como dizia Stendhal, um escritor de então... É verdade que em páginas adiante ele acrescentava, em outras conclusões: a firmeza de que resiste ao seu amor, é a coisa mais admirável que pode existir na terra; todas as outras provas possíveis de coragem são bagatelas ao pé desta, tão forte e tão penosa.

Raciocinando a dama que esses heroísmos são bons para os livros, e que, sendo a missão da mulher obedecer à natureza, mais lhe quadrava a alegoria da laranjeira, assim fez, como devia, a vontade ao seu sentimento e ao seu rei: casou com ele.

Desditosa! O povo, que já não a via com bons olhos, entrou a aborrecê-la. Para que todas as antipatias chovessem sobre a sua cabeça fraca, o velho rei exilado, homem que fora sempre de amores efêmeros e costumes fáceis, morreu longe da pátria, e logo começaram a dizer que ele se finara de paixão, ressentido daquele filho ingrato, e que a culpada de tudo era a rainha, que por não ser de estirpe real não devia merecer o amor de um rei. Teceram logo uma trama de enredos e falsidades, dizendo que ela mentia à sua religião e à sua consciência. O beijo do amor não a fecundara, e na sua murcha esterilidade ela divulgava um sonho
que embevecia a corte e o rei.

O sonho da maternidade.

Gente do palácio, muito embusteira, inventou logo que a rainha simularia um parto, vindo uma criança estranha ocupar no berço principesco o lugar que só deveria competir ao filho do soberano... Intriga foi esta que se espalhou por toda a nação e transbordou para países alheios e terras de além mar. E, como formiguinhas, iam as perfídias entrando pelos ouvidos do rei...

No seu grande palácio sumptuoso vivia a mísera rainha desconfiada, sem se poder lavar das máculas que lhe atribuíam. Assim, a flor da sua beleza outoniça enlanguescia, e o rei, aturdido, cheio das queixas dos vassalos, que lamentavam a morte de um rei que nunca tinham amado, só por acinte à rainha intrusa, caiu em acreditar que a esposa só o quisera por vaidade e ambição de reinar. Por isso, quanto mais ela se debulhava em pranto, mais ele se enfastiava dela, que sempre as lágrimas foram causa de aborrecimento aos olhos dos maridos. Todo o seu grande afeto se tornou depressa em ojeriza que também do pai naturalmente herdara uma certa inconstância no amor: e ver sempre os mesmos olhos, de mais a mais queixosos, não lhe sabia bem.

Correram meses nesse desagrado, até que um dia, em pleno palácio, a macia e régia mão de um rei da culta Europa caiu com bruteza sobre a pálida face de uma rainha.

No triunfo da alegria correram damas de honor e fiéis criados de el-rei a soprar aos quatro ventos aquela ignomínia, rindo da triste rainha ofendida.

Esta, humilhada, quis matar-se; mas não a deixaram acabar com a vida, guardando-a dia e noite de perto, com os olhos arregalados e as unhas afiadas.

Os vendavais desnudam as mais floridas laranjeiras; a alma da rainha já não tinha perfumes, só tinha espinhos; e o rei, por onde andasse, lá ouvia o eco das canções maliciosas das ruas e dos teatros, em que se dizia a aventura de uma mulher que só se unira a um rei pela vaidade e o desejo de reinar...

Entendiam no século XX que o Amor devia viver encarcerado, e ainda com muitos selos nas portas e nas janelas gradeadas, que lhe atestassem a legalidade.

De modo que, quando cansado da reclusão, ele quisesse fugir, teria de debater-se e deixar na cadeia o sangue de seu corpo e as penas de suas asas.

Ele arrependido, ela resignada, parecia até que tinham voltado a amar-se, foram uma alta noite surpreendidos no seu castelo por uma imensa horda de assassinos, que arrombando portas, derrubando sentinelas, alcançou-os a ambos e os matou sem dó...

Não fosse ele fraco; não fosse ela ambiciosa...

Dirá mais coisas a lenda do rei da Sérvia, tratando com injustiça a pobre Draga, sua mulher, só porque não tinha nas veias sangue real.

Outra lenda, sua contemporânea, provará daqui a uma centena de anos, que as mulheres, mesmo rainhas, não tinham no começo deste século XX as prerrogativas que hão de ter então. Esta será talvez em forma de balada. Uma soberana moça, de perfil doce, elevando ao seu trono um príncipe estrangeiro, recebeu dele a mesma injúria que a pobre Draga, do seu real senhor! Somente, à dor da linda Guilhermina acudiu chorando todo o seu povo. Enquanto que à outra...

O que pensarem deste nosso tempo os futuros comentadores da história, parecer-se-á de perto com o que pensamos das velhas idades, em que esposos ciumentos prendiam pelas tranças ao ferrolho dos seus castelos as esposas ultrajadas pelo seu ciúme.

E então, como hoje, a queixa ouvida e que perdure pela sua sinceridade, será a exalada pelos lábios femininos...

Michelet, que tão bem penetrou no coração da mulher, escreveu em L'Amour:

"Os insetos e os peixes são mudos; o pássaro canta, querendo articular; o homem tem a linguagem distinta, a palavra clara e luminosa, o verbo límpido. Mas a mulher, acima do verbo do homem e do canto do pássaro, tem uma linguagem mágica com que intercala esse verbo ou esse canto; o anhelo, o suspiro apaixonado."

Feita para o amor, ela é o ser mais sensível do universo. Toda ela vibra às blandícias ou às crueldades daquele que entre todos os homens escolheu e a quem não sabe fazer compreender a sua paixão, porque as suas expressões são apenas balbucios com que interrompe os gorgeios da sua alegria ou os temores do seu raciocínio. Ele, que passa, pune, mata ou esquece; que olha para ela como o jequetibá para a roseira, do alto da sua superioridade e da sua grandeza, não percebe que, na sua humildade doce, a voz da mulher, como o perfume das rosas, pode chegar muito mais alto, até ao céu, que só se abre para a sinceridade dos sentimentos grandes e verdadeiros!

E é por não a compreender que ainda um ou outro a brutaliza.

Ainda não há muitos anos uma pobre rainha asiática sentiu no rosto a pesada valentia da mão de seu marido. Como no palácio da Servia, o mesmo alvoroço no da China.

A pressa com que o telégrafo anuncia ao mundo estas misérias!

Mas o que não deixaram fazer a Draga, consentiram que fizesse a imperatriz chinesa. Matou-se.

Afigura-se-nos que uma imperatriz, mesmo da China, deve olhar para todo o seu povo, não com a doçura com que um pastor olha pai a o seu rebanho, mas com fria altivez e soberana indiferença. Ela está ali, no trono brilhante e forte, para que a vejam e para que a amem. Não querendo deixar penetrar os seus pensamentos, torna-se impassível e austera; sentindo em cada beijo a baba da adulação, começa a desgostar-se da humanidade e a ter repugnância dos cortesãos mentirosos. Os seus pensamentos devem ser estranhos, bem analisados, sentidos com inteligência.

Nós não compreendemos as rainhas senão assim. Uma imperatriz que ame o marido, que discuta com vivacidade, que o censure com paixão, e que (santo e misericordioso Deus, como isto até custa a escrever!) leve dele pancada... Uma rainha que, em vez do cinismo de salvaguardar aparências para que o seu povo a julgue invulnerável, encontra rancor no peito e sangue vivo nas veias, para acabar com a vida, vingando a ofensa recebida, é digna de figurar na galeria feminina dos últimos tempos, como um dos mais interessantes tipos de mulher.

A verdade é que não é suportável a idéia de que um homem, seja ele quem for, possa levantar a mão para uma mulher, seja ela quem for também.

Se ele se julga e se proclama o forte, o senhor dominador e poderoso, deve encontrar na palavra todo o fel da censura, sem se rebaixar num aviltamento que oamesquinha. É melhor matar do que bater. Uma mulher apunhalada poderá perdoar, mas uma mulher esbofeteada, nunca!

Lã ficará sempre o ressentimento, quando não fique imediatamente o nojo, ou não haja a coragem da vingança.

Dizem por aí que as mulheres que apanham pancada são as que mais amam... Não acrediteis! A mulher descida a essa ignomínia é incapaz de tudo. É preciso que se compreenda bem, que afinal de contas os mesmos ramos de veias que fazem circular no corpo do homem o sangue que os altera, fazem nascer na mulher os mesmos desejos, as mesmas violências. Somos mais tenazes, talvez, mais frias no amor, mas mais excessivas no ódio.

O exemplo do imperador da China levou tempo a medrar, mas medrou e desponta na velha Europa civilizada, em velhos tronos de ouro e púrpura, que dão norma ao povo, como uma lei de justiça e um direito da força indiscutível.

Dizem que a mulher do povo gosta do amor cruel, que a brutalize; se assim é, que bons maridos e que magníficos trabalhadores de enxada se perderam naqueles régios senhores coroados!

Baladas e lendas destas rainhas, nossas contemporâneas, atrairão a magoada simpatia de outras mulheres que, chegado o tempo do amor, do céu azul e do sol dourado, se vejam, como laranjeiras floridas, cobertas de ilusões!

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Livro das Donas e Donzelas. Belém/PA: Núcleo de Educação a Distancia da Universidade da Amazonia (UNAMA).

Cruz e Souza (O Livro Derradeiro) Parte XI


HARPAS ETERNAS

Hordas de Anjos titânicos e altivos,
Serenos, colossais, flamipotentes,
De grandes asas vívidas, frementes,
De formas e de aspectos expressivos.

Passam, nos sóis da Glória redivivos,
Vibrando as de ouro e de Marfim dolentes,
Finas harpas celestes, refulgentes,
Da luz nos altos resplendores vivos

E as harpas enchem todo o imenso espaço
De um cântico pagão, lascivo, lasso,
Original, pecaminoso e brando...

E fica no ar, eterna, perpetuada
A lânguida harmonia delicada
Das harpas, todo o espaço avassalando.

DUPLA VIA-LÁCTEA

Sonhei! Sempre sonhar! No ar ondulavam
Os vultos vagos, vaporosos, lentos,
As formas alvas, os perfis nevoentos
Dos Anjos que no Espaço desfilavam.

E alas voavam de Anjos brancos, voavam
Por entre hosanas e chamejamentos...
Claros sussurros de celestes ventos
Dos Anjos longas vestes agitavam.

E tu, já livre dos terrestres lodos,
Vestida do esplendor dos astros todos,
Nas auréolas dos céus engrinaldada

Dentre as zonas de luz flamo-radiante,
Na cruz da Via-Láctea palpitante
Apareceste então crucificada!

TITÃS NEGROS

Hirtas de Dor, nos áridos desertos
Formidáveis fantasmas das Legendas,
Marcham além, sinistras e tremendas,
As caravanas, dentre os céus abertos...

Negros e nus, negros Titãs, cobertos
Das bocas vis das chagas vis e horrendas,
Marcham, caminham por estranhas sendas,
Passos vagos, sonâmbulos, incertos...

Passos incertos e os olhares tredos,
Na convulsão de trágicos segredos,
De agonias mortais, febres vorazes...

Têm o aspecto fatal das feras bravas
E o rir pungente das legiões escravas,
De dantescos e torvos Satanases!...

ENTRE CHAMAS...

Sonhei que de astros no Infinito presa
Vagavas, brandamente adormecida,
Nas chamas siderais resplandecida,
A carne, em chamas, no Infinito, acesa...

E eu pasmava de encanto e de surpresa
Vendo a constelação indefinida
Da tua carne flamejando vida,
Dentre os íris radiantes da beleza...

E o teu corpo, nas chamas palpitando,
Os astros em redor maravilhando,
Por entre a auréola dos clarões cantava...

Então, de sonho em sonho, absorto, mudo,
Eu senti alastrar, vibrar por tudo
Toda a infinita sensação da lava!...

O ANJO DA REDENÇÃO

Soberbo, branco, etereamente puro,
Na mão de neve um grande facho aceso,
Nas nevroses astrais dos sóis surpreso,
Das trevas deslumbrando o caos escuro.

Portas de bronze e pedra, o horrendo muro
Da masmorra mortal onde estás preso
Desce, penetra o Arcanjo branco, ileso
Do ódio bifronte, torso, torvo e duro.

Maravilhas nos olhos e prodígios
Nos olhos, chega dos azuis litígios
Desce à tua caverna de bandido.

E sereno, agitando o estranho facho,
Põe-te aos pés e a cabeça, de alto a baixo,
Auréolas imortais de Redimido!

[SONETO]

Brancas Aparições, Visões renanas,
Imagens dos Ascetas peregrinos,
Hinos nevoentos, neblinosos hinos
Das brumosas igrejas luteranas.

Vago mistério das regiões indianas,
Sonhos do Azul dos astros cristalinos,
Coros de Arcanjos, claros sons divinos
Dos Arcanjos, nas tiorbas soberanas.

Tudo ressurge na minh’alma e vaga
Num fluido ideal que me arrebata e alaga,
No abandono mais lânguido mais lasso...

Quando lá nos sacrários do Cruzeiro
A lua rasga o trêmulo nevoeiro,
Magoada de vigílias e cansaço...

VIOLINOS

Pelas bizarras, góticas janelas
De um tempo medieval o sol ondula:
Nunca os vitrais viram visões mais belas
Quando, no ocaso, o sol os doura e oscula...

Doces, multicores aquarelas
Sobre um saudoso céu que além se azula...
Calma, serena, divinal, entre eras,
A pomba ideal dos Ângelus arrula...

Rezam de joelhos anjos de mãos postas
Através dos vitrais, e nas encostas
Dos montes sobe a claridade ondeando...

É a lua de Deus, que as curves meigas
Foi ondular pelos vergéis e veigas
Magnólias e lírios desfolhando...

GUERRA JUNQUEIRO

Quando ele do Universo o largo supedâneo
Galgou como os clarões -- quebrando o que não serve,
Fazendo que explodissem os astros de seu crânio,
As gemas da razão e os músculos da verve;

Quando ele esfuziou nos páramos as trompas,
As trompas marciais -- as liras do estupendo,
Pejadas de prodígios, assombros e de pompas,
Crescendo em proporções, crescendo e recrescendo;

Quando ele retesou os nervos e as artérias
Do verso orbicular -- rasgando das misérias
O ventre do Ideal na forte hematemese.

Clamando -- é minha a luz, que o século propague-a,
Quando ele avassalou os píncaros da águia
E o sol do Equador vibrou-lhe aquelas teses!

CAMPESINAS

AO AR LIVRE
A Virgílio Várzea

Tu trazes agora o peito
Como essas urnas sagradas,
Repleto de gargalhadas,
Sonoro, bom, satisfeito.

Por dentro cantam assombros
E causAs esplendorosas
Como latadas de rosas
Dos muros entre os escombros.

Quando o ideal nos alaga,
Embora as lutas do mundo,
Levanta-se um sol fecundo
Do peito em cada uma chaga.

Voltou-se a seiva de outrora,
De outro, mais forte e destro,
Iluminado maestro,
Das harmonias da aurora.

Fulgurem por isso as musas,
As belas musas, por isso...
Voltou-te o passado viço,
Foram-se as mágoas, confusas.

Agora, quando eu dirijo
Meus passos, à tua porta,
Sinto-te um bem que conforta,
Vejo-te alegre e mais rijo.

Porque afinal pela vida
Nem tudo se desmorona
Quando se vaga na zona
Da mocidade florida.

Gostas de ver pelos ramos
Das verdes árvores novas,
A chocalhar umas trovas,
Coleiros e gaturamos.

Já podes bem comer frutas,
Os teus simpáticos jambos,
E ouvir alguns ditirambos
Da natureza nas grutas.

Podes olhar as esferas,
Com ar direito e seguro,
De frente para o futuro,
De lado para as quimeras.

Não tenhas cofres avaros
De santos -- na luz te afoga,
E a alma arremessa e joga
Por esses páramos claros.

Reúne os sonhos dispersos
Como andorinhas vivaces
E o colorido das faces
Ao coberto dos versos.

Como uns lábaros vermelhos,
Contente como os lilazes,
As crenças dos bons rapazes
Tem prismas como os espelhos.

NOS CAMPOS

Por entre campos de seara loura
De alegre sol puríssimo batidos,
Passam carros chiantes de lavoura
E raparigas sãs, de coloridos

Que a luz solar que as ilumina e doura
Lembram pomares e jardins floridos,
Por entre campos de seara loura.
A Natureza inteira reverdece

Pelos montes e vales e colinas;
E o luar que freme, anseia e resplandece,
Movido por aragens vespertinas,
Parece a alma dos tempos que floresce...

Enquanto que por prados e campinas
A Natureza inteira reverdece.
A paz das coisas desce sobre tudo!
E no verde sereno d’espessuras,

No doce e meigo e cândido veludo,
Tremem cintilações como armaduras
Ou como o aço brunido dum escudo;
Enquanto que das límpidas alturas
A paz das coisas desce sobre tudo!

A casa, a rude tenda construída,
Onde habitam as mães e as crianças
Promiscuamente, nessa mesma vida
De perfume lirial das esperanças,
Como é feliz, dos astros aquecida!

Aquecida do Amor nas asas mansas
A casa, a rude tenda construída.
As bocas impolutas e cheirosas
Das raparigas, pródigas belezas
De finos lábios púrpuros de rosas,
Abrem, cheias de angélicas purezas,
As cristalinas fontes murmurosas
De risos, refrescando em correntezas
As bocas impolutas e cheirosas.

Da vida aurora rica do seu sangue
Flameja a carne em báquicas vertigens!
E quem tiver uma epiderme exangue
Para ficar com essas faces virgens,
Para não ser mais pálida nem langue,
Tem de beber das cálidas origens
Da viva aurora rica do seu sangue.

Lindas ceifeiras percorrendo. searas
Nos campos, ó bizarras raparigas,
Pelas manhãs e pelas tardes claras
Vós desfolhais sorrisos e cantigas
Que deixam ver as pérolas mais raras
Dos dentes brancos, frescos como estrigas...
Lindas ceifeiras percorrendo searas!

Fonte:
Cruz e Sousa, Poesia Completa, org. de Zahidé Muzart, Florianópolis: Fundação Catarinense de Cultura / Fundação Banco do Brasil, 1993.

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Sítio do Picapau Amarelo II – O Enterro da Vespa

II O enterro da vespa

De noite, à hora de deitar-se, Narizinho lembrou-se de que havia deixado a boneca debaixo da jabuticabeira.

— Pobre da Emília! Deve estar morrendo de medo das corujas... e pediu a tia Nastácia que fosse buscá-la.

A negra foi e trouxe Emília, toda úmida de orvalho, danadíssima com o esquecimento da menina. E só com a promessa de um belo vestido novo é que desamarrou o burro. Um vestido de chita cor-de-rosa com pintinhas.

E de saia bem comprida.

— Por que, Emília? — indagou a menina estranhando aquele gosto.

— Porque sujei a perna aqui no joelho e não quero que apareça.

— O mais fácil será lavar o joelho.

— Deus me livre! Tia Nastácia diz que sou de macela por dentro e por isso não posso me molhar. Emboloro. Um dia ainda posso virar condessa e não quero ser chamada a condessa do Bolor.

— Testo, panela, bolor, fedor! Tem razão, Emília. O melhor é fazer um vestido de cauda. Para condessas fica bem. Mas condessas de quê?

— Quero ser a condessa de Três Estrelinhas! Acho lindo tudo que é de três estrelinhas.

— Pois muito bem, Emília. Desde este momento fica você nomeada condessa de Três Estrelinhas e para não haver dúvida vou pintar três estrelinhas na sua testa. Todas as criaturas do mundo vão torcer-se de inveja!...

— Todas menos uma — observou a boneca.

— Quem?

— A vespa que ferrou sua língua.

— Explique-se, Emília. Não estou entendendo nada.

— Quero dizer que a tal vespa está morta e bem enterrada no fundo da terra — explicou a boneca. — Assisti a tudo. Quando ela mordeu sua língua e você fez pluf! antes de berrar ai! ai! ai!, a jabuticaba cuspida, ainda com a vespa dentro, caiu bem perto de mim. Vi então tudo o que se passou depois que você desceu da árvore, berrando que nem um bezerro, e lá foi de língua de fora.

E a boneca contou direitinho o triste fim da pobre vespa.


— Ela ficou ainda quase uma hora metida dentro da casca, toda arrebentadinha, movendo ora uma perna, ora outra. Afinal parou. Tinha morrido. Vieram as formigas cuidar do enterro. Olharam, olharam, estudaram o melhor meio de a tirar dali. Chamaram outras e por fim deram começo ao serviço. Cada qual a agarrou por uma perninha e, puxa que puxa, logo a arrancaram de dentro da jabuticaba. E foram-na arrastando por ali afora até à cova, que é o buraquinho onde as formigas moram. La pararam à espera do fazedor de discursos...

— Orador, Emília!

— FAZEDOR DE DISCURSOS. Veio ele, de discursinho debaixo do braço, escrito num papel e leu, leu, leu que não acabava mais. As formigas ficaram aborrecidas com o besourinho (era um besourinho do Instituto Histórico) e apitaram. Apareceu então um louva-a-deus policial, de pauzinho na mão. “Que há?” — perguntou. “Há que estamos cansados e com fome e este famoso orador não acaba nunca o seu discurso. Está muito pau”, disseram as formigas. “Para pau, pau!” — resolveu o soldado — e arrolhou o orador com o seu pauzinho. As formigas, muito contentes, continuaram o serviço e levaram para o fundo da cova o cadáver da vespa. Em seguida apareceu uma trazendo um letreiro assim, que fincou num montinho de terra:

“AQUI NESTE BURACO JAZ UMA POBRE
VESPA ASSASSINADA NA FLOR DOS ANOS
PELA MENINA DO NARIZ ARREBITADO.
ORAI POR ELA!”

Feito isso, recolheu-se. Era noite quase fechada. No pomar deserto só ficou o besourinho, sempre engasgado com o pau. Queria à viva força continuar o discurso. Por fim conseguiu destapar-se e imediatamente continuou: “Neste momento solene...” Nisto um sapo, que ia passando, alumiou o olho dizendo: “Espere que eu te curo!...” Deu um pulo e engoliu o fazedor de discursos!

— Não reparou, Emília, se esse sapo era o Major Agarra-e-não-larga-mais? — perguntou a menina.

— Não era, não! — respondeu a boneca. — Era o Coronel Come-orador-com-discurso-e-tudo...
–––––––––
Continua... A Pescaria

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 384)


Uma Trova Nacional

Felicidade é conquista
que a gente persegue em vão...
- Sempre ao alcance da vista,
nunca ao alcance da mão!
–PEDRO ORNELLAS/SP–

Uma Trova Potiguar

Trinam pássaros nos galhos...
a brisa é leve e sombria;
a aurora sobre os orvalhos
abre as cortinas do dia.
–MANOEL CAVALCANTE/RN–

Uma Trova Premiada

2010 - ATRN-Natal/RN
Tema: INSPIRAÇÃO - 7º Lugar

És a musa, minha fada
meu talismã, meu troféu,
minha inspiração sagrada
meu pedacinho de céu...
–JOSÉ MOREIRA MONTEIRO/RJ–

Uma Trova de Ademar

Numa gestação tão pura,
Deus, em forma de decreto,
determinou que a ternura
fosse irmã gêmea do afeto.
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Felicidade é um recado
sem data, sem remetente
que chega sempre atrasado
na caixa postal da gente!
–AURORA PIERRE ARTESE/SP–

Simplesmente Poesia

Mar de Deslembrar.
–BRASIGÓIS FELÍCIO/GO–

O murmúrio do mar
me traz lembranças
de antigas
cantigas de ninar

É como se eu fosse
de novo Ulisses
e nunca tivesse saído do berço
imemorial de água e algas.

Estrofe do Dia

Não me acho inteligente,
Sou apenas criativo,
Meu raciocínio ativo
É um flash reluzente;
Às vezes a minha mente
Cria uma historia completa,
Às vezes ela deleta
O que não serve pra mim,
Gostem ou não sou assim:
Original e Poeta...
–DAMIÃO METAMORFOSE/RN–

Soneto do Dia

Palavras
–ADAMO PASQUARELLI/SP–

Doces palavras que o amor inspira
sussurradas no arroubo da paixão;
palavras castas, meigas, que se vão
diluindo nas cordas de uma lira;

será que formam elas grande pira
que o vento leva pelo ar, ou então
chegam até às estrelas que estão
nos páramos do céu que a gente mira?

Será que a brisa as leva ao mar sereno,
ou entre as moitas em flor ela as esconde?
Mas como pode um mundo tão pequeno

ocultar as palavras dos amantes?
- Vós que o sabeis ou procurastes antes,
dizei-me: Onde estão elas? Onde? Onde?

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

57a. Feira do Livro de Porto Alegre (Programação de 4 de Novembro, Sexta-Feira)


Encontro de Educação e Patrimônio Histórico: estratégias para o desenvolvimento de cidade
04/11/2011 - 08:00
Possibilidades de desenvolvimento de cidades a partir da intersecção da Educação e do Patrimônio Cultural

Sessão de Autógrafos
04/11/2011 - 09:00

Oficina de Ilustração com Renata Bueno
04/11/2011 - 09:00

O Autor no Palco
04/11/2011 - 09:00
Encontro de escritores e ilustradores com alunos do ensino fundamental

Mostra do Projeto Conversar, Canoas
04/11/2011 - 09:00

4º Seminário A Arte de Contar Histórias: O território mágico da Biblioteca
04/11/2011 - 09:30

Lançamento e distribuição dos Estatutos: Crianças e dos Adolescentes e Estatuto do Idoso, em Cordel
04/11/2011 - 10:30

O Autor no Palco
04/11/2011 - 10:30
Encontro de escritores e ilustradores com alunos do ensino fundamental

Oficina de Libras
04/11/2011 - 13:30
Aprendendo libras: técnicas e curiosidades. Módulo 2/2

Oficina: O narrador no cinema
04/11/2011 - 14:00
Abordagem sobre a narrativa cinematográfica. Módulo 2/3

Encontro com autor
04/11/2011 - 14:00

Seminário Adaptações de textos clássicos: Convite para novas leituras? Como usar as adaptações nas escolas e nas bibliotecas?
04/11/2011 - 14:00

Sessão de Autógrafos
04/11/2011 - 14:00

As boas maneiras
Contação de Histórias com a Equipe do QG
04/11/2011 - 14:00
O Negrinho do Pastoreio - Lenda popular

O Autor no Palco
04/11/2011 - 14:00
Encontro de escritores e ilustradores com alunos do ensino fundamental

Tenda.doc: Coletivo Catarse - O grande tambor
04/11/2011 - 14:00
Projeto Tambor Sopapo: Resgate histórico da cultura negra do extremo sul do Brasil

Estudos da Língua Brasileira de Sinais
04/11/2011 - 14:30

Encontro com autor
04/11/2011 - 15:30
Bate-papo sobre Cultura Popular e cordel

Cine SESC
Exibição do filme O pequeno Nicolau

Oficina do Poesia Inclusiva
04/11/2011 - 15:30

O Autor no Palco
04/11/2011 - 15:30
Encontro de escritores e ilustradores com alunos do ensino fundamental

A vida em quatro dimensões e o Lambdacismo
04/11/2011 - 15:30

Releitura de Orfeu e a flor de ouro do poeta de Betty Borges
04/11/2011 - 15:30

Oficina: Entre parlendas e lendas, a cultura oral chega à escola
04/11/2011 - 16:00
Atividades de leitura e de escrita que transitam da literatura oral para o universo da produção artística. Oficina em módulo único

Oficina: O voo da gaivota
04/11/2011 - 16:00
A crônica, da busca do assunto à aventura fonológica, passando pela discussão do gênero e o exemplo dos grandes mestres. Módulo 1/2

Causos Gauchescos
04/11/2011 - 16:00

Contação de histórias sobre o Rio Grande do Sul
A Arte Levada a Sério
04/11/2011 - 16:00

Continhos suspirados com poesia para depois das cinco
04/11/2011 - 16:00

A história do navegador João de Calais e sua amada Constança
04/11/2011 - 16:00

Coletânea Joaquim Monks & Amigos
04/11/2011 - 16:00

O Inventário do Comendador Domingos Faustino Correa: Mito ou Realidade?
04/11/2011 - 16:30

Dos Açores ao litoral - rastros de cultura
04/11/2011 - 16:30

A Peleja de Chapeuzinho Vermelho com o Lobo Mau
04/11/2011 - 16:30

O Coelho e o Jabuti
04/11/2011 - 16:30

Poesia e arte
04/11/2011 - 17:00
No diálogo das artes, qual o papel da poesia?

4º Seminário A Arte de Contar Histórias: O território mágico da Biblioteca
04/11/2011 - 17:00

Mesa-redonda - Tema: A narração oral na biblioteca escolar

Sessão de Autógrafos da Escola Balão Vermelho
04/11/2011 - 17:00

Maria Teresa e o Javali
04/11/2011 - 17:00

Sistema Nacional de Cultura - ação do Estado e Município
04/11/2011 - 17:30
O que existe e o que tem que se fazer na construção de políticas culturais

Duas faces
04/11/2011 - 17:30

Oficina: O trânsito criativo entre os gêneros
04/11/2011 - 18:00

Um trânsito entre as formas de criação e gêneros. Módulo 1/2
Viola e cordel - poesia cantada
04/11/2011 - 18:00
Desafios em rimas e trechos de modas de viola

Antologia A.G.U.I.A. 2011
04/11/2011 - 18:00

Revista Justiça & História, vol.8, nºs.15 e 16
04/11/2011 - 18:00

Oficina: O processo criativo do conto
04/11/2011 - 18:30

Criando um conto: da ideia primeira ao ponto final. Oficina em módulo único
Arte às 18:30
04/11/2011 - 18:30

A Eloquência do Bambu e do Fogo
04/11/2011 - 18:30

A Voz do Self
04/11/2011 - 18:30

Simpatias
04/11/2011 - 18:30

Conexões Inteligentes
04/11/2011 - 18:30

Celebração à vida: verticalizando sentimentos
04/11/2011 - 18:30

Me toque - A Expressão da Emoção
04/11/2011 - 18:30

As Melhores Histórias da Mitologia Japonesa//Fúria Nórdica
04/11/2011 - 18:30

A chama azul
04/11/2011 - 18:30

Bula de Remédio
04/11/2011 - 18:30

Novo evento (Sandra)
04/11/2011 - 18:30

Oficina de Twitter
04/11/2011 - 19:00
Oficina de aforismos, máximas e frases altamente defeituosas, para pensar diferente, para desejar diferente. Módulo 2/2

Cine Santander Cultural
Sessão Comentada

Coleção Medo - Mesa redonda
04/11/2011 - 19:00

4º Seminário A Arte de Contar Histórias: O território mágico da Biblioteca
04/11/2011 - 19:30

Sessão de Histórias
Vendas na saúde
04/11/2011 - 19:30

O Coronel é o lobisomem e outras histórias incríveis
04/11/2011 - 19:30

Nós desfeitos de nós. Desafios
04/11/2011 - 19:30

PORTO ALEGRE, 1820 a 1890: Aspectos urbanísticos através do olhar dos viajantes estrangeiros
04/11/2011 - 19:30

Festa, Religião e Cidade: corpo e alma do Brasil
04/11/2011 - 19:30

Guia Prático do Chimarrão
04/11/2011 - 19:30

O nosso Rock - A história do Rock de Guaíba
04/11/2011 - 19:30

24 horas na esquina do pecado
04/11/2011 - 19:30

Cordão da Saideira: Acorda Cordel
04/11/2011 - 20:00
Adaptação de textos literários para o cordel

Encontro com autor
04/11/2011 - 20:00

Fonte:
http://www.feiradolivro-poa.com.br/

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Trova 206 - Arlene Lima (Maringá/PR)

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 383)


Uma Trova Nacional

Ao perder-se um grande amor
o coração dá um brado:
– Por favor, tire essa dor!
Oh, pranto! Fique calado!!!
–JOSÉ FELDMAN/PR–

Uma Trova Potiguar

A vida é palco, onde há canto
de maldade, espanto e dor...
Não há cortina, entretanto,
que feche um palco de amor!
–MARA MELINNI/RN–

Uma Trova Premiada

2000 - Bandeirantes/PR
Tema: SEMBLANTE - Venc.

Teu semblante, mesmo mudo,
na foto, escuta o que falo
e assim, calado, diz tudo,
e ao dizer tudo... me calo.
JOAQUIM CARLOS/RJ–

Uma Trova de Ademar

Entre sonos e cochilos,
numa deslumbrante rota,
meus sonhos voam tranquilos
nas asas de uma gaivota...
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Felicidade encontrada
- vela, de noite, na mão...
Basta um ventinho de nada
e estamos na escuridão.
–ELIAS BARBOSA/MG–

Simplesmente Poesia

Legado
–LUIZ OTÁVIO OLIANI/RJ–

quando eu me for
ficarão as palavras
-aprendizado em surdina

no fundo do peito
dos ancestrais
entre lírios e versos
lição guardada:
engenho fincado à terra

Estrofe do Dia

Na máquina do tempo, eu embarquei
pra curar minha angústia e minha ânsia,
fui rever o meu tempo de infância
e a casinha na qual eu me criei;
minha primeira escola que estudei
quando eu tinha na época pouca idade,
de entrar nela, outra vez senti vontade
mas na hora meu acesso foi negado;
eu invadi o espaço do passado
viajando nas asas da saudade.
–JÚNIOR ADELINO/PB–

Soneto do Dia

Viajante do Tempo
–JOÃO COSTA/RJ–

Venho de longe, nos ombros trazendo
peso de vidas outrora vividas.
Venho de longe, venho de outras vidas,
tempo afora vivendo e revivendo.

De tempos idos, priscas eras idas
venho volvendo tempo-espaço, sendo
em cada ciclo (vivendo e aprendendo)
preparado para futuras vidas.

E sigo nesta contínua viagem
pelo que chamam tempo. Na bagagem
vou transportando infinitas memórias.

Venho de longe e vou rumo ao futuro
– destino infinito. Sigo seguro
de que ainda viverei muitas histórias.

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Hermoclydes S. Franco (Arco-Íris)


Ao regar, em meu lar, plantas e flores
Numa linda manhã primaveril,
A esquecer-me os percalços que, entre dores,
Dão à vida, de fato, um cunho hostil,

Eis que um raio de sol, suave e gentil,
Colore o jato d’água em sete cores,
De mutantes matizes, qual sutil
Arco-íris – encanto dos pintores!...

Que alegria! Que orgulho tão profundo!
Sentir tal maravilha, num segundo,
No milagre ocorrido em meu jardim!

Os mistérios sem fim da natureza,
Insondáveis sabemos, com certeza,
Só acontecem... Se Deus quiser assim!...

Fonte:
Soneto enviado pelo autor

Carlos Drummond de Andrade (O Poeta Singrando Horizontes III)


TURNO À JANELA DO APARTAMENTO

Silencioso cubo de treva:
um salto, e seria a morte.
Mas é apenas, sob o vento,
a integração da noite.
Nenhum pensamento de infância,
nem saudade nem vão propósito.
Somente a contemplação
de um mundo enorme e parado.
A soma da vida é nula.
Mas a vida tem tal poder:
na escuridão absoluta,
como líquido, circula.
Suicídio, riqueza ciência...
A alma severa se interroga
e logo se cala. E não sabe
se é noite, mar ou distância.
Triste farol da ilha rosa.

TRÊS PRESENTES DE FIM DE ANO

I

Querida, mando-te
uma tartaruguinha de presente
e principalmente de futuro
pois viverá uma riqueza de anos
e quando eu haja tomado a estígia barca
rumo ao país obscuro
ela te me lembrará no chão do quarto
e te dirá em sua muda língua
que o tempo, o tempo é simples ruga
na carapaça, não no fundo amor.

II

Nem corbeilles
nem letras de câmbio
nem rondós
nem carrão 69
nem festivais
na ilha d’amores
não esperes de mim
terrestres primores.
Dou-te a senha para
o dom imperceptível
que não vem do próximo
não se guarda em cofre
não pesa, não passa
nem sequer tem nome.
Inventa-o se puderes
com fervor e graça.

III

Sempre foi difícil
ah como era difícil escolher
um par de sapatos, um perfume.
Agora então, amor, é impossível.
O mau gosto
e o bom se acasalaram, catrapuz!
Você acha mesmo bacana esse verniz abóbora
ou tem medo de dizer que é medonho?
E aquele quadro (objeto)? aquela pantalona?
Aquela poesia? Hem? O quê? não ouço
a sua voz entre alto-falantes, não distingo
nenhuma voz nos sons vociferantes...
Desculpe, amor, se meu presente
é meio louco e bobo
e superado:
uns lábios em silêncio
(a música mental)
e uns olhos em recesso
(a infinita paisagem).

TOADA DO AMOR

E o amor sempre nessa toada:
briga perdoa perdoa briga

Não se deve xingar a vida,
a gente vive, depois esquece.
Só o amor volta para brigar,
para perdoar,
amor cachorro bandido trem.

Mas, se não fosse ele,
também que graça que a vida tinha?

TEMPO EM FATIAS!

Quem teve a idéia de cortar o tempo
em fatias,
a que se deu o nome de ano,
foi um indivíduo genial;
industrializou a esperança,
fazendo-a funcionar no limite
da exaustão.

Doze meses dão para qualquer ser humano
cansar e entregar os pontos.

Aí entra o milagre da renovação, e tudo
começa outra vez, com vontade
de acreditar que daqui por diante vai ser diferente.

TAMBÉM JÁ FUI BRASILEIRO

Eu também já fui brasileiro
moreno como vocês.
Ponteei viola, guiei forde
e aprendi na mesa dos bares
que o nacionalismo é uma virtude.
Mas há uma hora em que os bares se fecham
e todas as virtudes se negam.

Eu também já fui poeta.
Bastava olhar para mulher,
pensava logo nas estrelas
e outros substantivos celestes.
Mas eram tantas, o céu tamanho,
minha poesia perturbou-se.

Eu também já tive meu ritmo.
Fazia isso, dizia aquilo.
E meus amigos me queriam,
meus inimigos me odiavam.
Eu irônico deslizava
satisfeito de ter meu ritmo.
Mas acabei confundindo tudo.
Hoje não deslizo mais não,
não sou irônico mais não,
não tenho ritmo mais não.

SONETO DA PERDIDA ESPERANÇA

Perdi o bonde e a esperança.
Volto pálido para a casa.
A rua é inútil e nenhum auto
passaria sobre meu corpo.

Vou subir a ladeira lenta
em que os caminhos se fundem.
Todos eles conduzem ao
princípio do drama e da flora.

Não sei se estou sofrendo
ou se é alguém que se diverte
por que não? na noite escassa

com um insolúvel flautim
Entretanto há muito tempo
nós gritamos: sim! ao eterno.

SOCIEDADE

O homem disse para o amigo:
– Breve irei a tua casa
e levarei minha mulher.

O amigo enfeitou a casa
e quando o homem chegou com a mulher,
soltou uma dúzia de foguetes.

O homem comeu e bebeu.
A mulher bebeu e cantou.
Os dois dançaram.
O amigo estava muito satisfeito.

Quando foi hora de sair,
o amigo disse para o homem:
– Breve irei a tua casa.
E apertou a mão dos dois.

No caminho o homem resmunga:
– Ora essa, era o que faltava.
E a mulher ajunta: – Que idiota.

A casa é um ninho de pulgas.
– Reparaste o bife queimado?
O piano ruim e a comida pouca.

E todas as quintas-feiras
eles voltam à casa do amigo
que ainda não pôde retribuir a visita.

Carlos Drummond de Andrade (Maneira de Amar)


O jardineiro conversava com as flores, e elas se habituaram ao diálogo. Passava manhãs contando coisas a uma cravina ou escutando o que lhe confiava um gerânio.

O girassol não ia muito com sua cara, ou porque não fosse homem bonito, ou porque os girassóis são orgulhosos de natureza.

Em vão o jardineiro tentava captar-lhe as graças, pois o girassol chegava a voltar-se contra a luz para não ver o rosto que lhe sorria. Era uma situação bastante embaraçosa, que as outras flores não comentavam. Nunca, entretanto, o jardineiro deixou de regar o pé de girassol e de renovar-lhe a terra, na ocasião devida.

O dono do jardim achou que seu empregado perdia muito tempo parado diante dos canteiros, aparentemente não fazendo coisa alguma. E mandou-o embora, depois de assinar a carteira de trabalho.

Depois que o jardineiro saiu, as flores ficaram tristes e censuravam-se porque não tinham induzido o girassol a mudar de atitude. A mais triste de todas era o girassol, que não se conformava com a ausência do homem. "Você o tratava mal, agora está arrependido." "Não", respondeu, "estou triste porque agora não posso tratá-lo mal. É a minha maneira de amar, ele sabia disso, e gostava."

ANDRADE, Carlos Drummond de. A cor de cada um. 3a. ed. RJ: Record, 1998.
Imagem = http://pt.dreamstime.com

Ialmar Pio Schneider (Soneto de Finados)


Lembramos nossos mortos neste dia
que consagramos tristes aos finados;
passaram para o além e a lájea fria
apenas guarda os corpos sepultados.

Hoje tudo é perpétua nostalgia…
Ouvem-se preces, prantos desolados,
um porquê inexplicável excrucia
até os corações mais resignados.

Dos páramos celestes desce a luz
iluminando a terra que se habita;
e a verdade mais crua se traduz

pela certeza natural e aflita
que fatalmente a todos nos conduz
à noite eterna… trágica… infinita…

(CANOAS, 2-11-82)

Fontes:
Soneto enviado pelo autor
Imagem = http://www.hi5recados.com/graficos/839/2/Dia-de-Finados.html

Paulo V. Pinheiro (Se…)


Um céu azul, pintado
Uma bola, arredondada
Um livro marcado
Uma aula encabulada – isto mesmo (encabulada)

Um homem nu
Aquele que cegamente lê
Um que não fará falta
Você

É assim que te querem
Um nada que vota
E como gado te tratam
Cidadão

Aprendemos a viver com o mínimo e até isso nos tiram
A democracia, ela se perdeu? tu a conheces?
Conceitos e palavras, mada mais, e só
Porém ainda temos algo desta fantasia

Se subversivo é o que subverte
Venha verter teu conteúdo no que dá esperança
Surpreenda aqueles que não querem te ver
Pelo menos não te ocultes no silêncio

A super mídia, os meios culturais de massa não esperam que penses
Aguardam o teu consumo e assim te consomem e a mim e a tudo
Um carioca não deve ocultar os seus erres ou seus erros
Assim um paulistano com sua fala de canto se comunica
Não te ocultes caipira com teus desafinos ancestrais
Não te esqueças de tua poesia nordestina, nordestino

Chamemos mídia corporativa tudo que massifica
Até cultura de massa pode ser melhor
Porém quem dá o baile dita o tom
Nos cuidemos de quem dá o baile

Quem ama a poesia, a arte, não devemos esperar prêmios
Somos marginais (não te ofendas com isso – não é pessoal)

Júlia Lopes de Almeida (Órfãos de Heróis... )


Ninguém ignora quanto é assombrosa a imaginação e como é inteligente a pertinácia dos ingleses e dos americanos na concepção e na expansão dos seus anúncios e reclamos. Não lhes bastando os avisos que inserem nos seus jornais de grande tiragem, avidamente lidos por populações que têm mais almas do que formigas têm os maiores formigueiros dos nossos jardins; não lhes bastando os cartazes com que enfeitam as suas cidades, aqueles formidáveis cartazes de fundo vermelho e luzidio, com figuras negras (negros ali só pintados...), em que num zig-zag de raio, rabeia de alto a baixo, em caracteres amarelos, o nome da droga exposta; não lhes bastando os milhares de bilhetes que espalham tumultuariamente pelos seus teatros, salões públicos, gares, vagões, avenidas, cervejarias, etc., eles remetem com a mesma fúria para os mais longínquos pontos do globo, cartões, livros, folhetos, mapas, cromos, pastas, com uma prodigalidade que chega a ser ofensiva.

É imperturbável a seriedade e a convicção com que esses senhores afirmam aos povos de todas as raças, a superioridade das suas indústrias. O que nós não seríamos capazes de fazer com uma fileira cerrada de pontos de exclamação e ainda outra de ahs e de ohs, acompanhados pela régia magnificência de muitos adjetivos pomposos, eles fazem com uma frase seca, onde engastam um superlativo esmagador e positivo.

A tática do anúncio não está, pois, na palavra, está no veículo em que ela vem assentada. Reproduzisse um comerciante, menos negocioso que idealista um verso de Shakspeare em um papel barato, feio, fácil de amarfanhar, e a frase maravilhosa, que lhe servisse de epígrafe ao anúncio, escorregaria pelos bueiros das ruas ou para a caixa do cisco dos quintais, sem ter logrado atrair a atenção de ninguém.

A habilidosa insinuação do anuncio está na boa qualidade do seu papel, na nitidez do seu tipo, na variedade das cores em que está impresso, no seu asseio enfim.

Compreende-se a manha.

Quem terá a coragem de atirar para a cesta dos papeis rasgados um livrinho, em que, sobre o marroquim bem imitado da capa, brilha um emblema dourado, e que, por pequeno e elegante, mais parece uma carteira de lembranças amáveis, do que um catálogo de chapas e de fogões!? Aberto o livro, o desencanto é completo; nas suas curtas páginas acetinadas não há segredos, mas uma imposição clara de fabricante, chamando sem cansaço a atenção da gente para os seus produtos, sempre com a mesma frase, cem vezes repetida, e em que ainda na última página se sente fôlego para outras tantas afirmações.

É de se ficar agoniado! Mas os ingleses e os americanos não ficam, e continuam na sua ambiciosa propaganda, a exportar para as cinco partes do mundo em anúncios de toda a espécie, a doce e encantadora efígie das suas crianças louras, vestidinhas de azul, com margaridas, ou gatos brancos no regaço.

Que vão fazer nos arraiais africanos, nas povoações asiáticas, nos sertões americanos, ou mesmo nas modestas aldeias européias essas carinhas rosadas e gorduchas, feitas para o beijo e a carícia do olhar? Vão dizer em inglês que a manteiga mais pura e saborosa é de tal ou tal fabricante de Londres ou de New York.

E como a menina tem um bom ar de inocência, todos os que entendem o que ali está escrito, lhe prestam a maior fé, e os que o não entendem, guardam, por amor dos seus olhos cor do céu, o cartão em que ela vem estampada entre dizeres comerciais.

Parecia-me a mim, que nesta questão estava tudo feito e explorado, desde as paisagens sugestivas, rotulando latas de leite, onde a vaquinha gorda demonstra
a fertilidade do pasto, até às folhinhas em que, a par das vantagens das pílulas que preconizam, se desvendam os mistérios dos astros e vem a profecia de invernos e verões. Enganei-me; a arte do reclamo não pára, vai alargando cada vez mais a sua fantasia.

Agora, com a mesma parcimônia de vocábulos, os senhores fabricantes de graxa, de vernizes, ou de qualquer outra coisa, encontram jeito de falar ao coração das turbas desprevenidas. Que traição! Já não basta o atrativo para a vista, começa também o assalto ao sentimento!

Senão, vejamos:

Há tempos achei sobre a minha mesa de trabalho um livrinho adornado na capa, brochura, com as armas de Inglaterra, Abri-o e folheei-o; só continha retratos de crianças, nada menos de cinqüenta e seis fototípias nítidas e bonitas. De quem eram? A pequena introdução do livro explicava tudo em poucas linhas: essas cinqüenta e seis crianças, cujos nomes, idade, filiação, morada, etc.., vem indicados sob cada retrato, são apresentadas ao mundo como órfãs dos heróis da guerra sul-africana, a quem o proprietário de uma farinha qualquer alimenta gratuitamente. E bem provam as gravuras a eficácia de tal fécula. São gordos, os bebês!

Tenho-os aqui, diante de mim. Que triste galeria esta! A cada página que viro, as minhas mãos tremem e alastra-se-me no coração, a par de uma grande indignação, uma piedade dolorida por não ter remédio.

Abre o livro por um pequenino de dez meses, repimpado na sua cadeira, muito pelado e sério, com vestido de rendas e sapatinhos brancos; depois vem todo o rancho de infortunados, uns ainda de touca, outros em fraldinhas, com as pernas
grossas, as mãos papudas, o peitinho gordo; uns de boca aberta, mostrando no seu riso cor de rosa as gengivas sem dentes, outros de ar pensativo e todos muito galantes e muito simpáticos, como se para isso não bastasse o sereia crianças e o serem infelizes.

Olhando para o rostinho redondo da penúltima criança do livro, esta formosa Clara Alice Wilson, de dezenove meses, não haverá quem não imagine que deveria ter voado para ela o pensamento do pai ao expirar o seu último alento na guerra, a que talvez se opusessem as suas convicções de homem para só obedecer à sua disciplina de soldado...

Ora, a caridade desse fabricante inglês, que alimenta gratuitamente crianças para exibi-las ao mundo, em proveito seu, é de uma expressão muito singular e absolutamente nova nos anais da filantropia e do anúncio! A pátria que lhe agradeça o desvelo que ele demonstra pelos órfãos dos seus heróis! Se a exploração do sentimento continua desta maneira, não nos deixam nada para a literatura...

Mas não seria por amor disso que eu gritaria, mas por outra causa mais respeitável e delicada. Sempre gostaria de saber com que olhos os senhores do governo da velha Inglaterra olhariam para este álbum de reclamo, se ele algum dia lhes caísse sobre a sua mesa, como caiu sobre a minha, sem eu saber como!

Talvez que levantassem os ombros e nem lessem os nomes dos soldados e dos oficiais, cujas mortes vêm autenticadas sob o retrato de cada órfão; talvez que não ligassem à fileira de rostinhos infantis maior importância que a que ligam aos gordos frades emborcando cerveja nos cartazes dos schops, ou as dançarinas nos anúncios das tabacarias, tão acostumados estão as extravagantes explorações dos seus industriais; contudo, a minha ignorância de mulher sentimental parece que o olhar mudo e inocente destas criancinhas revolver-lhes-ia na consciência maiores reflexões do que todos os discursos das duas câmaras...

Realmente, a fúnebre lembrança desta propaganda é de fazer arrepios. Pobres órfãos inocentes! o que eu acredito que eles espalhem pelo mundo não é a fama da farinha que lhes engrossa o leite, e os prepara para futuras batalhas, mas sim a idéia da injustiça que as fere, o tremendo horror da guerra, que semeia com sangue as mais tristes saudades da terra!

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Livro das Donas e Donzelas. Belém/PA: Núcleo de Educação a Distancia da Universidade da Amazonia (UNAMA).

Cruz e Souza (O Livro Derradeiro) Parte X


OS MORTOS

Ao menos junto dos mortos pode a gente
Crer e esperar n’alguma suavidade:
Crer no doce consolo da saudade
E esperar do descanso eternamente.

Junto aos mortos, por certo, a fé ardente
Não perde a sua viva claridade;
Cantam as aves do céu na intimidade
Do coração o mais indiferente.

Os mortos dão-nos paz imensa à vida,
Dão a lembrança vaga, indefinida
Dos seus feitos gentis, nobres, altivos.

Nas lutas vãs do tenebroso mundo
Os mortos são ainda o bem profundo
Que nos faz esquecer o horror dos vivos.

FLORIPES

Fazes lembrar as mouras dos castelos,
As errantes visões abandonadas
Que pelo alto das torres encantadas
Suspiravam de trêmulos anelos.

Traços ligeiros, tímidos, singelos
Acordam-te nas formas delicadas
Saudades mortas de regiões sagradas,
Carinhos, beijos, lágrimas, desvelos.

Um requinte de graça e fantasia
Dá-te segredos de melancolia,
Da Lua todo o lânguido abandono...

Desejos vagos, olvidadas queixas
Vão morrer no calor dessas madeixas,
Nas virgens florescências do teu sono.

O CEGO DO HARMONIUM

Esse cego do harmonium me atormenta
E atormentando me seduz, fascina.
A minh’alma para ele vai sedenta
Por falar com a sua alma peregrina.

O seu cantar nostálgico adormenta
Como um luar de mórbida neblina.
O harmonium geme certa queixa lenta,
Certa esquisita e lânguida surdina.

Os seus olhos parecem dois desejos
Mortos em flor, dois luminosos beijos
Fanados, apagados, esquecidos...

Ah! eu não sei o sentimento vário
Que prende-me a esse cego solitário,
De olhos aflitos como vãos gemidos!

HORAS DE SOMBRA

Horas de sombra, de silêncio amigo
Quando há em tudo o encanto da humildade
E que o anjo branco e belo da saudade
Roga por nós o seu perfil antigo.

Horas que o coração não vê perigo
De gozar, de sentir com liberdade...
Horas da asa imortal da Eternidade
Aberta sobre tumular jazigo.

Horas da compaixão e da clemência,
Dos segredos sagrados da existência,
De sombras de perdão sempre benditas.

Horas fecundas, de mistério casto,
Quando dos céus desce, profundo e vasto,
O repouso das almas infinitas.

ALELUIA! ALELUIA!

Dentre um cortejo de harpas e alaúdes
Ó Arcanjo sereno, Arcanjo níveo,
Baixas-te à terra, ao mundanal convívio...
Pois que a terra te ajude, e tu me ajudes.

Que tu me alentes nas batalhas rudes,
Que me tragas a flor de um doce alívio
Aos báratros, às brenhas, ao declívio
Deste caminho de ânsias e ataúdes...

Já que desceste das regiões celestes,
Nesse clarão flamívomo das vestes,
Através dos troféus da Eternidade

Traz-me a Luz, traz-me a Paz, traz-me a Esperança
Para a minh’alma que de angústias cansa,
Errando pelos claustros da Saudade!

ROSA NEGRA

Nervosa Flor, carnívora, suprema,
Flor dos sonhos da Morte, Flor sombria,
Nos labirintos da tu’alma fria
Deixa que eu sofra, me debata e gema.

Do Dante o atroz, o tenebroso lema
Do Inferno a porta em trágica ironia,
Eu vejo, com terrível agonia,
Sobre o teu coração, torvo problema.

Flor do delírio, flor do sangue estuoso
Que explode, porejando, caudaloso,
Das volúpias da carne nos gemidos.

Rosa negra da treva, Flor do nada,
Dá-me essa boca acídula, rasgada,
Que vale mais que os corações proibidos!

VOZINHA

Velha, velhinha, da doçura boa
De uma pomba nevada, etérea, mansa.
Alma que se ilumina e se balança
Dentre as redes da Fé que nos perdoa.

Cabeça branca de serena leoa,
Carinho, amor, meiguice que não cansa,
Coração nobre sempre como a lança
Que não vergue, não fira e que não doa.

Olhos e voz de castidades vivas,
Pão ázimo das Páscoas afetivas,
Simples, tranqüila, dadivosa, franca.

Morreu tal qual vivera, mansamente,
Na alvura doce de uma luz algente,
Como que morta de uma morte branca.

NO EGITO

Sob os ardentes sóis do fulvo Egito
De areia estuosa, de candente argila,
Dos sonhos da alma o turbilhão desfila,
Abre as asas no páramo infinito.

O Egito é sempre o amigo, o velho rito
Onde um mistério singular se asila
E onde, talvez mais calma, mais tranqüila
A alma descansa do sofrer prescrito.

Sobre as ruínas d’ouro do passado,
No céu cavo, remoto, ermo e sagrado,
Torva morte espectral pairou ufana...

E no aspecto de tudo em torno, em tudo,
Árido, pétreo, silencioso, mudo,
Parece morta a própria dor humana!

OCASOS

Morrem no Azul saudades infinitas
Mistérios e segredos inefáveis...
Ah! Vagas ilusões imponderáveis,
Esperanças acerbas e benditas.

Ânsias das horas místicas e aflitas,
De horas amargas das intermináveis
Cogitações e agruras insondáveis
De febres tredas, trágicas, malditas.

Cogitações de horas de assombro e espanto
Quando das almas num relevo santo
Fulgem de outrora os sonhos apagados.

E os bracos brancos e tentaculosos
Da Morte, frios, álgidos, nervosos,
Abrem-se pare mim torporizados.

REPOUSO

A cabeça pendida docemente
Em sonhos, sonha o sonhador inquieto,
Repousa e nesse repousar discreto
É sempre o sonho o seu bordão clemente.

Cego desta Prisão impenitente
Da Terra e cego do profundo Afeto,
O sonho é sempre o seu bordão secreto
O seu guia divino e refulgente.

Nem no repouso encontra a paz que espera,
Para lhe adormecer toda a quimera,
Os círculos fatais do seu Inferno.

Entre a calma aparente, a estranha calma,
O seu repouso é sempre a febre d’alma,
O seu repouso é sonho, e sonho eterno.

REQUIESCAT...

Grande, grande Ilusão morta no espaço,
Perdida nos abismos da memória,
Dorme tranqüila no esplendor da glória,
Longe das amarguras do cansaço...

Ilusão, Flor do sol, do morno e lasso
Sonho da noite tropical e flórea,
Quando as visões da névoa transitória
Penetram na alma, num lascivo abraço...

Ó Ilusão! Estranha caravana
de águias, soberbas, de cabeça ufana,
De asas abertas no clarão do Oriente.

Não me persiga o teu mistério enorme!
Pelas saudades que me aterram, dorme,
Dorme nos astros infinitamente...

DOCE ABISMO

Coração, coração! a suavidade,
Toda a doçura do teu nome santo
É como um cálix de falerno e pranto,
De sangue, de luar e de saudade.

Como um beijo de mágoa e de ansiedade,
Como um terno crepúsculo d’encanto,
Como uma sombra de celeste manto,
Um soluço subindo a Eternidade.

Como um sudário de Jesus magoado,
Lividamente morto, desolado,
Nas auréolas das flores da amargura.

Coração, coração! onda chorosa,
Sinfonia gemente, dolorosa,
Acerba e melancólica doçura.

Fonte:
Cruz e Sousa, Poesia Completa, org. de Zahidé Muzart, Florianópolis: Fundação Catarinense de Cultura / Fundação Banco do Brasil, 1993.

Carlos Lúcio Gontijo (Orfandade)


Mãe, continuas o mesmo rio
Insinuas em mim amor divino
Eu, pequenino afluente
Contente sigo pro teu leito
Em busca de teus mimos
De repente não te acho
Sinto-me riacho em deserto
Não sabia tristeza mais triste
Tu partiste para o grande mar
Misturaste às luzes do infinito
Não estás, mas estás em tudo
Meus olhos ardem na procura
Percorrem em loucura as folhas da vida
Como se orvalho fossem, mantêm o brilho
Mesmo sob a certeza da evaporação
Na minha pele morena teu Mato Grosso
Filho, tu ainda tens mãe
É o estribilho da canção que ouço
Ergo-me com as forças de “coluna prestes”
Faço em mim a revolução de que falavas
Então eu creio, respiro profundamente
No ar cheiro de seio que me alimenta
Mãe, sinto-me menino novamente
Gosto de manga no céu da boca
(Tua fruta preferida)
Muito riso e pouca zanga...

(Poema extraído do livro AROMA DE MÃE - 1993)

Fonte:
Poema enviado pelo autor

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Sítio do Picapau Amarelo – I – As Jabuticabas

O Sítio do Picapau Amarelo
I
As jabuticabas

De volta do reino das Águas Claras, Narizinho começou todas as noites a sonhar com o príncipe Escamado, dona Aranha, o doutor Caramujo e mais figurões que conhecera por lá. Ficou de jeito que não podia ver o menor inseto sem que se pusesse a imaginar a vida maravilhosa que teria na terrinha dele. E quando não pensava nisso pensava no Pequeno Polegar e nos meios de o fazer fugir de novo da história onde o coitadinho vivia preso.

Era este o assunto predileto das conversas da menina com a boneca. Faziam planos de toda sorte, cada qual mais amalucado.

Emília tinha idéias de verdadeira louca.

— Vou lá — dizia ela — e agarro nas orelhas da dona Carocha e dou um pontapé naquele nariz de papagaio e pego o Polegada pelas botas e venho correndo.

Narizinho ria-se, ria-se...

— Vai lá onde, Emília?

— Lá onde mora a velha.

— E onde mora a velha?

A boneca não sabia, mas não se atrapalhava na resposta. Emília nunca se atrapalhou nas suas respostas. Dizia as maiores asneiras do mundo, mas respondia.

— A velha mora com o Pequeno Polegada.

— Polegar, Emília!

— PO-LE-GA-DA.

Era teimosa como ela só. Nunca disse doutor Caramujo. Era sempre doutor Cara de Coruja. E nunca quis dizer Polegar. Era sempre Polegada.

— Muito bem — concordou a menina. — A velha mora com Polegar e Polegar mora com a velha. Mas onde moram os dois?

— Moram juntos.

Narizinho ria-se, dizendo: “Possa-se com uma diabinha destas!”

Dona Benta era outra que achava muita graça nas maluquices da boneca. Todas as noites punha-a ao colo para lhe contar histórias. Porque não havia no mundo quem gostasse mais de história do que a boneca. Vivia pedindo que lhe contassem a história de tudo – do tapete, do cuco, do armário. Quando soube que Pedrinho, o outro neto de dona Benta, estava para vir passar uns tempos no sítio, pediu a história de Pedrinho.

— Pedrinho não tem história — respondeu dona Benta rindo-se. — É um menino de dez anos que nunca saiu da casa de minha filha Antonica e portanto nada fez ainda e nada conhece do mundo. Como há de ter história?

— Essa é boa! — replicou a boneca. — Aquele livro de capa vermelha da sua estante também nunca saiu de casa e no entanto tem mais de dez histórias dentro.

Dona Benta voltou-se para tia Nastácia.

— Esta Emília diz tanta asneira que é quase impossível conversar com ela. Chega a atrapalhar a gente.

— É porque é de pano, sinhá — explicou a preta — e dum paninho muito ordinário. Se eu imaginasse que ela ia aprender a falar, eu tinha feito ela de seda, ou pelo menos dum retalho daquele seu vestido de ir à missa.

Dona Benta olhou para tia Nastácia dum certo modo, como que achando aquela explicação muito parecida com as da Emília...

Nisto apareceu Narizinho, com uma carta para dona Benta trazida pelo correio.

— Letra da sua filha Tonica, vovó — disse a menina. – Com certeza é marcando a viagem de Pedrinho.

Dona Benta leu. Era isso mesmo. Pedrinho viria dali uma semana.

— Uma semana ainda? — comentou Narizinho, desanimada de tanta demora. Que pena! Tenho tanta coisa a contar a Pedrinho — coisas do reino das Águas Claras...

— Não sei que reino é esse. Você nunca me falou nele, — disse dona Benta com cara de surpresa.

— Não falei nem falo porque a senhora não acredita. uma beleza de reino, vovó! Um palácio de coral que parece um sonho! E o príncipe Escamado, e o doutor Caramujo, e dona Aranha com suas seis filhinhas, e o major Agarra, e o papagaio que salvei da morte — quanta coisa!... Até baleias vimos lá, uma baleia enorme, dando de mamar a três baleinhas. Vi um milhão de coisas mas não posso contar nada nem para vovó nem para tia Nastácia porque não acreditam.

Para Pedrinho, sim, posso contar tudo, tudo...

Dona Benta, de fato, nunca dera crédito às histórias maravilhosas de Narizinho. Dizia sempre: “Isso são sonhos de crianças.” Mas depois que a menina fez a boneca falar, dona Benta ficou tão impressionada que disse para a boa negra: — Isto é um prodígio tamanho que estou quase crendo que as outras coisas fantásticas que Narizinho nos contou não são simples sonhos, como sempre pensei.

— Eu também acho, sinhá. Essa menina é levada da breca. É bem capaz de ter encontrado por aí alguma varinha de condão que alguma fada tenha perdido... Eu também não acreditava no que ela dizia, mas depois do caso da boneca fiquei até transtornada da cabeça. Pois onde é que já se viu uma coisa assim, sinhá, uma boneca de pano, que eu mesma fiz com estas pobres mãos, e de um paninho tão ordinário, falando, sinhá, falando que nem uma gente!... Qual, ou nós estamos caducando ou o mundo está perdido...

E as duas velhas olhavam uma para a outra, sacudindo a cabeça. Narizinho não gostava de esperar; ficou pois aborrecida de ter de esperar Pedrinho ainda uma semana inteira. Felizmente era tempo de jabuticabas.

No sítio de dona Benta havia vários pés, mas bastava um para que todos se regalassem até enjoar. Justamente naquela semana as jabuticabas tinham chegado “no ponto” e a menina não fazia outra coisa senão chupar jabuticabas. Volta e meia trepava à árvore, que nem uma macaquinha. Escolhia as mais bonitas, punha-as entre os dentes e tloc! E depois do tloc, uma engolidinha de caldo e pluf! – caroço fora. E tloc, pluf, tloc, pluf, lá passava o dia inteiro na árvore.

As jabuticabas tinham outros fregueses além da menina. Um deles era um leitão muito guloso, que recebera o nome de Rabicó.

Assim que via Narizinho trepar à árvore, Rabicó vinha correndo postar-se embaixo à espera dos caroços. Cada vez que soava lá em cima um tloc! seguido de um pluf! ouvia-se cá embaixo um nhoc! do leitão abocanhando qualquer coisa. E a música da jabuticabeira era assim: tloc! pluf! nhoc! — tloc! pluf! nhoc!...

Sanhaços também, e abelhas e vespas. Vespas em quantidade, sobretudo no fim, quando as jabuticabas ficavam que nem um mel, como dizia Narizinho. Escolhiam as melhores frutas, furavam-nas com o ferrão, enfiavam meio corpo dentro e deixavam-se ficar muito quietinhas, sugando até caírem de bêbedas.

— E não mordiam?

— Não tinham tempo. O tempo era pouco para aproveitarem aquela gostosura que só durava uns quinze dias.

Não mordiam é um modo de dizer. Nunca tinham mordido, isso sim. Porque justamente naquela tarde uma mordeu. Estava Narizinho no seu galho, distraída em pensar na surpresa que teria o príncipe Escamado se recebesse uma jabuticaba de presente, quando levou à boca uma das tais furadinhas, com meia vespa dentro. Dessa vez em lugar do tloc do costume o que soou foi um berro — ai! ai! ai!... tão bem berrado que lá dentro da casa as duas velhas ouviram.

— Que será aquilo? — exclamou dona Benta assustada.

— Aposto que é vespa, sinhá! — disse tia Nastácia. — Ela não sai da “fruteira” e, como nunca foi mordida, abusa. Eu vivo dizendo: “Cuidado com as vespas!” mas não adianta, Narizinho não faz caso. Agora, está aí...

E foi correndo ao pomar acudir a menina.

Encontrou-a já de volta, berrando com a língua à mostra, porque fora bem na ponta da língua que a vespa ferroara. A negra trouxe-a para casa, botou-a no colo e disse:

— Sossegue, boba, isso não é nada. Dói mas passa. Ponha a língua para eu arrancar o ferrão. Vespa quando morde deixa o ferrão no lugar da mordedura. Bem para fora. Assim.

Narizinho espichou meio palmo de língua e tia Nastácia, com muito custo, porque já tinha a vista fraca, pôde afinal descobrir o ferrãozinho e arrancá-lo.

— Pronto! — exclamou mostrando qualquer coisa na ponta duma pinça. — Está aqui o malvado. Agora é ter paciência e esperar que a dor passe. Se fosse mordida de cachorro bravo seria muito pior...

Narizinho curtiu a dor por alguns minutos, de língua inchada e olhos vermelhos, soluçando de vez em vez. Depois que a dor passou, foi contar à boneca toda a história.

— Bem feito! — disse Emília. — Se fosse eu, antes de comer olhava cada fruta, uma por uma, com o binóculo de dona Benta.

Apesar do acontecido, Narizinho não pôde reprimir uma gargalhada, que tia Nastácia ouviu lá da cozinha.

“Narizinho já sarou”, disse consigo a preta, “e daqui um instantinho está trepada na árvore outra vez”.

E tinha razão. Indo dali a pouco ao rio com a trouxa de roupa suja, ao passar pela jabuticabeira parou para ouvir a música de sempre — tloc! pluf! nhoc... Lá estava Narizinho trepada à árvore.

Lá estavam as vespas com meio corpo metido dentro das frutas. Lá estava Rabicó esperando a queda dos caroços.

— Está tudo regulando! — murmurou consigo a preta, e pondo o pito na boca seguiu o seu caminho.
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Continua... O Enterro da Vespa

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa