terça-feira, 17 de novembro de 2020

Contos e Lendas do Mundo (O País dos Poços)

Era uma vez o país dos poços. Qualquer visitante que chegasse, enxergaria somente poços: grandes, pequenos, feios, lindos, ricos, pobres...

Os poços falavam entre si, mas à distância, porque havia terra seca entre um poço e outro. Na realidade, quem falava era a boca do poço, ao nível da terra. E como a boca era oca, o poço dava uma sensação de vazio, de angústia, criando eco (eco vazio que vai sem levar nada e volta sem trazer nada).

Havia poços com bocas muito largas permitindo receber um monte de coisas inúteis. Quando estas passavam da moda, era só mudar para outras, também inúteis e passageiras...

E as bocas continuavam vazias, ressequidas, bem como a terra ao seu redor.

E no fundo... O poço não estava contente!

E, por falar em fundo: bem, a maioria dos poços, entre as frestas deixadas pelas coisas, permitia de vez em quando, sentir entre os dedos algo diferente: eram os momentos em que percebiam água no fundo. Diante desta sensação tão rara, alguns até tinham medo e procuravam evitar o contato.

Outros, porque tinham coisas demais, abarrotando a boca, esqueciam logo a "sensação de profundo", e se ocupavam novamente com a superfície.

Mas esta superfície, às vezes algum poço falava desta experiência diferente. Até que houve um poço que, olhando bem para o seu interior, entusiasmou-se e quis continuar.

Como as coisas que abarrotavam sua boca o incomodassem, procurou libertar-se delas, lançando-as corajosamente para longe. E o silêncio chegou! E ele começou a ouvir o borbulhar da água lá no fundo, e sentiu uma paz profunda, viva e duradoura, refrescante e salutar. E este poço descobriu que sua razão de ser era esta: a vida que se encontra na profundidade de si mesmo, e não na multidão de coisas que se acumulavam antes em sua boca.

E se tornava mais poço quanto mais profundidade tinha!

Feliz com a descoberta, procurou tirar água de seu interior, e a água, ao sair, refrescou a terra seca ao seu redor e tornou-a fértil e boa, e as flores começaram a brotar.

A notícia se espalhou. E as reações foram diversas: uns se mostraram incrédulos, outros sentiam o impulso por também fazer a experiência do profundo de si mesmo. Mas muitos desprezaram a novidade porque era difícil. Era mais fácil deixar tudo como estava...

Sem dúvida, alguns tentaram fazer a experiência e começaram a libertar-se dos objetos inúteis que abarrotavam a sua boca. Finalmente encontraram água em seu interior.

A partir de então, as surpresas aconteceram: por mais água que se retirasse para regar ao redor, o poço não se esvaziava! E aprofundando ainda mais, descobriram que eles estavam unidos entre si por água comum; a água era a mesma! E começou a comunicação profunda, porque as paredes dos poços deixaram de ser limites...

Mas a descoberta mais sensacional veio depois: a água que lhes dava vida vinha de um mesmo lugar: o manancial...

O manancial estava bastante longe, na montanha que dominava o país dos poços. Lá estava a montanha: majestosa, serena, pacífica! E com o segredo da vida em seu interior.

A montanha estava sempre lá. Algumas vezes apenas visível entre as nuvens; outras vezes radiante de esplendor...

O manancial não tinha sido percebido antes, porque os poços se preocupavam somente com sua superfície. A partir da nova descoberta, esforçavam-se por aumentar seu interior crescendo em profundidade, para que o manancial chegasse mais facilmente. E a água que tiravam deles tornou a terra bela.

Enquanto isso, lá fora, os que não faziam a experiência do profundo continuaram a aumentar sua boca, procurando inutilidades.

Fonte:
Universo das Fábulas

Estante de Livros (Ubirajara, de José de Alencar)


Produzido em 1874, Ubirajara é parte fundamental do conjunto de obras indianistas de José de Alencar, nosso maior prosador romântico, que produziu, também, romances urbanos (de costumes), regionalistas e históricos.

O romance revela, do ponto de vista de José de Alencar, o caráter da nação indígena, um relato dos costumes e da própria índole do selvagem - o bom selvagem - oposto àquilo que informam os textos de missionários jesuítas e viajantes aventureiros. Trata-se de uma releitura do homem nativo. O próprio romancista afirma, na "Advertência" que abre o romance:

"Este livro é irmão de Iracema. Chamei-lhe lenda como ao outro. Nenhum título responde melhor pela propriedade, como pela modéstia, às tradições da pátria indígena.

Quem por desfastio percorrer estas páginas, se não tiver estudado com alma brasileira o berço de nossa nacionalidade, há de estranhar em outras coisas a magnanimidade que ressumbra no drama selvagem a formar-lhe o vigoroso relevo.

Como admitir que bárbaros, quais nos pintaram os indígenas, brutos e canibais, antes feras que homens, fossem suscetíveis desses brios nativos que realçam a dignidade do rei da criação? [...]
"

A temática amorosa revela tanta importância quanto a temática da honra. Durante todo o romance o amor supera todas as dificuldades.

O romance é narrado em terceira pessoa, por um narrador todo-poderoso que sabe e vê tudo ao seu redor. A história passa-se no século XV, o que podemos ver no fato da ausência do homem branco. Apresenta como espaço a natureza selvagem de um Brasil primitivo.

A ação externa é a que predomina a obra. O romance com tom épico é dividido em nove capítulos:

I. O caçador
Jaguarê sai de sua taba em busca de um inimigo para conseguir o título de guerreiro.

II.O guerreiro
Tendo vencido Pojucã, Jaguarê adota o nome guerreiro de Ubirajara, senhor da lança.

III. A noiva
Jandira, noiva de Ubirajara, espera por ele, mas ele não a procura. Informa ao povo sua intenção de não ficar com ela e vai em busca de Araci, filha do chefe da nação tocantim.

IV. A hospitalidade
Mudando o nome para Jurandir, para não se deixar reconhecer, Ubirajara hospeda-se na taba dos tocantins.

V. Servo do amor
Ubirajara, ainda como Jurandir, revela suas intenções e é aceito na casa de Itaquê para servi-lo e adquirir o direito de combater para ganhar a mão de Araci.

VI. O combate nupcial
Jurandir (Ubirajara) compete com os demais e ganha o direito de casar-se com Araci.

VII. A guerra
O cunhado de Ubirajara, Pojucã, torna-se seu prisioneiro de guerra, por isso terá de matá-lo. Ubirajara então se identifica, desencadeando a guerra entre araguaias e tocantins.

VIII. A batalha
Quando Ubirajara chega com o seu povo, os tocantins são atacados pelos tapuias.Uma criança tapuia cega o chefe tocantim e ficam sem liderança.

IX - União dos arcos
Ubirajara consegue dobrar o arco de Itaquê e torna-se assim o novo chefe da nação de Pojucã e Araci, fazendo com isso a união das nações de guerreiros.

PERSONAGENS

Ubirajara: Protagonista. No início do romance seu nome é Jaguarê. Herói romântico, forte, corajoso e bonito.

Jandira: Virgem araguaia, prometida para Jaguarê, em casamento, e desprezada por ele.   

Araci: Virgem filha do chefe dos Tocantins.

Pojucã: Guerreiro tocantim, filho de Itaquê.

Itaquê: Chefe da nação tocantim e pai de Pojucã e Araci.

Jacamim: Mulher de Itaquê.

Camacã: Pai de Ubirajara.

Canicram: terrível chefe dos tapuias.

Pahã: Filho mais moço de Canicram, chefe dos tapuias.

 RESUMO

Jaguarê, jovem caçador araguaia, procura em outras terras um inimigo com quem possa lutar, pois levando um prisioneiro para sua taba ele conseguiria o título de guerreiro. Mas ao invés de um guerreiro, ele encontra uma índia tocantim de nome Araci, que era filha do chefe da tribo. Ela diz que em sua nação existem cem guerreiros que vão disputá-la em casamento e Jaguarê é convidado a ser mais um deles. Jaguarê prefere dizer a Araci que ela mande todos eles para combater com ele e assim ela fez.

Logo aparece Pojucã para combater com Jaguarê e é vencido por ele. Jaguarê torna-se então Ubirajara, o senhor da lança.

Sendo levado para a taba de Ubirajara, Pojucã tem a oportunidade de ficar com a antiga prometida à Jaguarê, a jovem Jandira. Esta se recusa ficar com Pojucã e foge para a floresta.

Ubirajara chega à taba de Araci e, como permite a lei da hospitalidade, não se identifica, adotando o nome de Jurandir, o que veio trazido da luz.

Compete com os demais pretendentes de Araci e ganha a mão da jovem tocantim em casamento, mas antes de casa-se é obrigado a identificar-se. Faz-se ali uma situação constrangedora, pois seu prisioneiro é Pojucã, irmão de Araci.

Estava assim declarada a guerra. Pojucã é libertado para que pudesse lutar junto com o seu povo, os tocantins.

Quando os araguaias vão atacar, surgem os tapuias, que têm o direito de atacar antes dos araguaias, que têm que esperar.

Itaquê, chefe dos tocantins, vence o chefe dos tapuias mas fica cego perdendo assim a liderança de seu povo.

Para que possa haver uma sucessão os guerreiros tocantins devem pegar o arco de Itaquê, dobrá-lo e atirar com ele. Nenhum guerreiro tocantim consegue o feito, inclusive Pojucã, filho de Itaquê. Por isso convidam Ubirajara para fazê-lo.

Este o faz com tal destreza e habilidade que emociona Itaquê.

Ubirajara enfim, une os dois arcos das duas nações, araguaia e tocantim, dando origem à nação Ubirajara.

COMENTÁRIO

Ubirajara é um romance que narra a história de um índio guerreiro, que por sua força e garra conquistava tudo que queria. O autor começa a narração falando das nações indígenas existentes na época, e que Ubirajara era irmão de Iracema. Sua primeira atividade foi a caça, e como obtinha muito sucesso nesta atividade, recebeu o nome de Jaguaré, tipo de onça feroz que não deixava escapar suas presas.

Era admirado por todos, e as virgens disputavam o seu amor, mas havia uma moça que se chamava Jandira, que fora prometida para ele seu nome Jandira, tinha o significado "Jandaíra" relativo a um tipo de abelha.

Um dia, Jaguaré, estava caçando e encontrou outra virgem muito bela, que pertencia a tribo Tupi, e logo apaixonou-se por ela, seu nome era Araci, que significa estrela do dia. Ela também gostou dele e lançou um desafio para a sua conquista: aquele que fosse melhor guerreiro teria o seu amor. Jaguaré, aceitou o desafio, e quando se preparava para a luta, encontrou um guerreiro da tribo tupi e travou com ele uma luta que durou muitas horas, porém Jaguaré, saiu vencedor e levou seu inimigo preso para ser morto no tempo certo. Todos da tribo Araguaia, festejaram a vitória de Jaguaré.

Depois ele voltou para lutar pela Araci, na tribo dos Tocantins. Lá foi recebido com honras, como qualquer hóspede, os anciões deram-lhe o nome de Jurandi, que significa “aquele que veio da luz ou trazer luz”.

Logo ele viu Araci, e ambos ficaram encantados; Jurandi revelou a seu pai que queria a virgem por esposa, e foi lançado as provas de coragem entre todos os pretendentes e Jurandi venceu todas e obteve o consentimento do pai, mas quando Jurandi, revelou sua verdadeira identidade, tudo ficou complicado, porque o guerreiro inimigo que era seu prisioneiro, era o irmão de Araci. Foi aí que a luta seria maior. Ubirajara voltou à sua tribo, libertou o prisioneiro, e convocou a todos os guerreiros de seu povo para atacar os Tocantins, mas quando eles se preparavam para a batalha, souberam que os tapuias, estavam em guerra com os Tocantins e ofereceram ajuda aos araguaias, porém Ubirajara mandou um recado que não precisava de nenhum aliado para vencer aos dois grupos.

Na guerra dos tapuias com os Tocantins, resultou na morte do maior guerreiro dos tapuias e o chefe dos Tocantins perdeu a visão. Quando os araguaias chegaram na tribo tupi, Ubirajara pediu ao guerreiro cego que lançasse seu arco e duas setas se cruzaram no espaço e a paz foi feita entre as duas tribos, e assim Araci, foi com o seu marido para as núpcias em sua cabana, ela rompeu a liga da virgindade e colocou-a no braço do marido. Estendeu a rede nupcial e foi buscar Jandira, que fora dada a ela por escrava pelo Ubirajara, e deu ao marido como esposa, as duas se tornaram esposas do maior guerreiro Araguaia Tocantins.

A união dessas duas nações resultou no surgimento de uma nova nação que recebeu o nome de Ubirajara, eles dominaram o deserto, por muito tempo.

Fonte:
Texto de Jayro Luna, no site Orfeu Spam Apostilas

segunda-feira, 16 de novembro de 2020

Varal de Trovas n. 440

 


Eduardo Affonso (Nada Além)


Quando eu morrer, assim que chegar do lado de lá e confirmar que não há lado de lá, faço questão de baixar em algum centro só para dar a má notícia.

– Se houver algum espírito entre nós, que se manifeste.

– Não tem espírito nenhum porque espírito não existe. Vim só para dizer que não tem nada do lado de cá. O Além é uma ilusão.

– Se não tem nada desse lado daí, onde é que tu estás?

– Em lugar nenhum. Ateus são como a Buzina do Chacrinha: acabam quando terminam. Morreu, zefini. E não precisa me tratar na segunda pessoa porque sei que este centro é em Magé, não em Bagé.

– Mas se tu, quer dizer, se você acabou e não está em lugar nenhum como é que estamos conversando neste momento. Não faz sentido…

– Exatamente. Sabe qual a diferença entre o unicórnio de 4 chifres e o de 7 chifres?

– Um tem 3 chifres a mais.

– Não, não tem diferença nenhuma. Nenhum dos dois existe. Você estar falando agora com um espírito ateu inexistente é a mesma coisa de estar falando com um espírito de luz, que também não existe. É tudo uma projeção do seu inconsciente, tudo sua imaginação.

– Você está insinuando que isto aqui é uma armação?

– Uma armação, eu não digo. Um delírio, com certeza. Mas acredito que seja uma forma de consolar as pessoas, e nada mais consolador que a fantasia. Então, tá de boa.

– Mas não tem mesmo nada aí?

– Nadica.

– “Nosso lar” então era…

– … licença poética. Onde já se viu passarela para espírito, que não tem corpo, ter guarda-corpo? Tinha que ter guarda-espírito…

– É que os espíritos…

– Nem vem. Espírito é espírito, corpo é corpo. Uma coisa é o relógio, outra é a corda do relógio.

– Você não está comparando a alma humana com a corda do relógio, está? A corda é uma coisa mecânica…

– … e a alma é uma coisa química. Ou quer que eu acredite que, quando um relógio para, a corda do relógio vai para a “Nossa relojoaria”, onde continua tendo a forma de despertador, cuco, carrilhão, Casio, Rolex? E que depois um reloginho desses de ponteiro, se nunca tiver se atrasado na vida, pode reencarnar – quer dizer, reenrelojar – num relógio digital ou mesmo num celular…. me poupe.

– Mas é que a alma, o espírito, o perispírito, a psique, princípio vital…

– Mano, eu só vim para avisar que vocês vão se decepcionar quando chegarem aqui e não for nada do que imaginam. Porque aqui não existe. É só um imenso Nada, um Nada absoluto. Até eu, que sabia que ia encontrar o Nada fiquei abismado com um o tamanho do Nada que encontrei. Vazião mesmo.

– Ok, o papo tá ótimo, mas tem outros ectoplasmas na fila de espera para se manifestar e o pessoal aqui do centro tá ficando meio indócil com essa nossa conversa. Ide em paz, espírito ateu!

– Valeu, irmão! E obrigado pela segunda do plural. Pena que não exista nenhum centro espírita ateu. Ia ser divertido baixar lá com Freud, Einstein, da Vinci, Hawking, Sagan, Sartre, Niemeyer – que também chegaram aqui, não encontraram nada e vão passar o resto da eternidade sem uma corrente pra arrastar, uma cartinha para ditar, uma gira para animar, uma casa mal assombrada pra assombrar. Pensando bem, inexistir tem suas vantagens. A gente descansa. Fui!

– Já vai tarde. (Suspira fundo) Desculpem, irmãos. Tivemos uma interferência aqui na conexão com o Além, que já foi restabelecida. Tem alguém aqui cujo nome começa com a letra M? O espírito de um ente querido tem uma mensagem de paz para você…

Fonte:
https://eduardoaffonso.com/2019/07/30/nada-alem/

Baú de Trovas XX


Se me quiseres assim
como te quero, querida,
verás que daremos fim
às amarguras da vida!
APARÍCIO FERNANDES
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Eis que a tarde era cinzenta
no dia em que ela morreu:
veio a noite sonolenta,
nunca mais amanheceu...
CID CARVALHO
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Meu canto é de desespero,
ante o silêncio da amada.
E sem nenhum exagero:
vida assim não vale nada!
JORGE BELTRÃO

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Se amor se paga com amor,
como diz ditado antigo,
meu benzinho, por favor,
acerte as contas comigo!...
JORGE MURAD
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Duas mulheres conheço
que merecem meus carinhos:
a que me embalou no berço
e a que embala os meus filhinhos!
JOSÉ MARIA MACHADO DE ARAÚJO
- - - - - -
Quando o amor chega, depressa
o coração alucina.
— Dói no dia em que começa,
e dói mais quando termina!...
JOSÉ RODRIGUES FERNANDES
- - - - - -
Ontem, quando a lua veio
tão cheia, por trás do monte,
parecia um lindo seio,
no decote do horizonte.
JOSUÉ SILVA
- - - - - -
A vida... que importa a vida?!
Cante a vida quem quiser...
— Que eu tenho a vida envolvida
na vida de uma mulher!
JUNQUILHO LOURÍVAL
- - - - - -
Vejo-te. Anseio. Depois...
repara bem que maldade:
de permeio, entre nós dois,
a distância e uma saudade!
JUVENAL MARQUES
- - - - - -
Teus olhos, quando tu fitas
meus olhos cheios de mágoa,
são como estrelas bonitas
mirando-se em poças d'água.
LAGO BURNETT
- - - - - -
Quisera ser passarinho,
muito leve e sonhador,
para fazer nosso ninho
do regaço de uma flor!
LAIS COSTA DUARTE
- - - - - -
Toda a beleza da vida,
todo o encanto dela, vem
de a gente saber, querida,
que é toda a vida de alguém!
LEILA RIBEIRO FERREIRA
- - - - - -
Meu coração, quando o ninas
com tuas juras da amor,
parece um templo em ruínas,
todo coberto de flor!
LILINHA FERNANDES
- - - - - -
Desde que te vi, formosa,
de olhares tão sedutores,
nunca mais achei que a rosa
fosse a rainha das flores!
LINDOURO GOMES
- - - - - -
Toda lágrima de amor
rola de leve, mansinha,
com medo da própria dor
que em nosso peito se aninha.
LÍVIA MARIA
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Nunca meus lábios sentiram
teu doce beijo de amor,
mas nossos beijos se uniram
num beijo aos pés do Senhor.
LOLA DE OLIVEIRA
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Liberdade, com franqueza,
é só força de expressão.
— A gente já nasce presa
nos laços do coração!
LOURDES PÓVOA BLEY
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Só quem amou é que sabe
como é certa esta verdade:
é muito o amor que ainda cabe
no amor que se fez saudade!
LOURIVAL PASSOS
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Perdi meus sonhos tão belos
por desencontros fatais.
— Ah, caminhos paralelos,
por que não sois transversais?
LÚCIA LÔBO FADIGAS
- - - - - –
Era tanto o nosso amor,
tanta paz... tanta afeição...
— Por que transformar em dor
aquela dedicação?
LUIS BANKS DOS SANTOS
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Lembra a saudade uma estrela
nas águas de um ribeirão
que fica sempre a retê-la,
enquanto as águas se vão...
LUIZ ANTÔNIO PIMENTEL
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Amor perfeito é mentira,
é a mais perfeita ilusão.
Nas coisas mais imperfeitas
se encontra mais perfeição...
PONCIANO BARBOSA
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Se alguém a mim se queixar
do seu amor.., que eu me cale.
— Quem ama, pode falar!
Mas não quer que ninguém fale...
SEBASTIÃO BEMFICA MILAGRE
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Cai a noite. E a luz da tarde,
das trevas temendo escolhos,
contraiu-se, sem alarde,
e foi dormir nos teus olhos.
VICENTE MAYA

Fonte:
Aparício Fernandes. A Trova no Brasil: história e antologia. São Cristovão/RJ: Artenova, 1972.

Estante de Livros (As Vinhas da Ira, de John Steinbeck)


Publicado em 1939, recebeu o National Book Award e o Pulitzer de ficção, e foi citado com destaque quando Steinbeck recebeu o Prêmio Nobel de Literatura no ano de 1962.

Passado durante a grande depressão, o romance centra-se nos Joads, uma família pobre de rendeiros expulsos da sua quinta no Oklahoma pela seca, por dificuldades econômicas, por mudanças na atividade agrícola e pela execução de dívidas pelos bancos forçando o abandono pelos rendeiros do seu modo de vida. Devido à sua situação desesperada e em parte porque estavam no meio do Dust Bowl, os Joads foram embora para a Califórnia. Junto com milhares de outros "Okies", procuraram emprego, terra, dignidade e um futuro.

As Vinhas da Ira é com frequência lido nas aulas de literatura dos ensinos secundário e universitário norte-americanos devido ao seu contexto histórico e ao legado perdurável. Um célebre filme com o mesmo nome do livro, As Vinhas Ira, com Henry Fonda no principal papel e dirigido por John Ford, foi lançado em 1940.

Sinopse

Relata a história de uma família pobre do estado de Oklahoma, que durante a Grande Depressão de 1929 se vê obrigada a abandonar as terras que ocupava havia décadas, em regime de meeiros, devido à chegada do progresso, traduzido pela compra de tratores e máquinas pelos donos dessas, e de um novo regime de propriedade. Este fator tornou obsoleto o trabalho manual de aragem e plantio da terra, e forçou-os a rumar em direção à Califórnia.

Este clássico americano, trata dos efeitos da grande depressão de pequenas famílias de fazendeiros do Oeste americano.

A personagem principal, Tom Joad, regressa a casa saído da prisão e reencontra a sua família, já preparada para abandonar a sua terra, Oklahoma, no seguimento de um ano de colheitas ruins e também da premente ocupação da terra pelos donos originais e seu maquinário. Concluindo a impossibilidade de manter de pé a propriedade, não tiveram outra opção que não fosse abandoná-la e partir em busca de uma nova vida.

Com o pouco dinheiro que lhes resta, adquirem um velho caminhão e encetam uma viagem para oeste, até à Califórnia. Durante o percurso, a família cruza com outras que caminham na mesma direção e com a mesma intenção, seduzidos por promessas de trabalho e de bons salários.

No entanto, tais expectativas saem frustradas, pois à chegada percebem que o trabalho que há é pouco e mal remunerado, o que obriga a maioria dos emigrantes a viver em acampamentos temporários ao longo da estrada, sempre sujeita à exploração da mão de obra barata.

Desenvolvimento

"Este é o começo da passagem do "eu" para o "nós". Se tu que possuis as coisas que as pessoas deviam ter pudesses entender isso, tu poderias preservar-te. Se tu pudesses separar as causas dos resultados, se pudesses saber que Paine, Marx, Jefferson, Lenin foram resultados, não causas, tu poderias sobreviver. Mas isso tu não podes saber. Pois a qualidade de possuir congela-te para sempre no "eu" e separa-te para sempre do "nós". (Capítulo 14)

O romance desenvolveu-se a partir de 'Os Apanhadores Nômades', uma série de sete artigos publicados no San Francisco News, de 5 a 12 de outubro de 1936. O jornal encomendou esse trabalho sobre trabalhadores migrantes do Centro Oeste na agricultura da Califórnia. (Foram mais tarde compilados e publicados isoladamente.

Título

Quando escrevia o romance em sua casa, na Califórnia, Steinbeck teve dificuldade, pouco habitual nele, em conceber um título. O nome de As vinhas da Ira sugerido pela sua esposa Carol Steinbeck, foi considerado mais adequado do que qualquer outro pelo autor. O título é uma referência à letra do "The Battle Hymn of the Republic", de Julia Ward Howe:

  “Os meus olhos viram a glória da vinda do Senhor:
    Ele está pisando fora da safra, onde as vinhas da ira são armazenadas;
    Ele Deus desferiu o relâmpago fatídico da Sua terrível espada rápida:
    A Sua verdade está em marcha.”


Esta lírica refere-se, por sua vez, à passagem bíblica do Apocalipse 14: 19-20, um apelo apocalíptico à justiça e libertação divina da opressão no juízo final.

“E o anjo meteu a sua foice na terra, e colheu as uvas da terra, e lançou-as no grande lagar da ira de Deus. E as uvas foram pisadas fora da cidade, e saiu sangue do lagar que chegou aos freios dos cavalos, pelo espaço de mil e seiscentos estádios.”

A frase também aparece no final do capítulo 25 de As Vinhas da Ira, que descreve a destruição propositada de alimentos para manter o preço elevado:

“e nos olhos dos famintos há uma ira crescente. Nas almas das pessoas, as vinhas da ira estão engrossando e ficando mais pesadas, ficando mais pesadas para a vindima.”

A imagem invocada pelo título serve como símbolo crucial no desenvolvimento tanto do enredo como das principais preocupações temáticas do romance: a partir da terrível opressão da prensa do Dust Bowl virá a ira terrível, mas também a libertação dos trabalhadores através da sua cooperação. Isto é sugerido, mas não concretizado na trama do romance.

Nota do Autor

Ao preparar-se para escrever o romance, Steinbeck escreveu:

“Eu quero pôr um letreiro de vergonha nos bastardos gananciosos que são responsáveis por esta [Grande Depressão] e pelos seus efeitos. É famosa a sua afirmação de que “fiz o mais que pude para esfarrapar os nervos do leitor.”

Esta obra ganhou muitos seguidores no seio da classe trabalhadora devido à simpatia de Steinbeck para com os emigrantes e o movimento dos trabalhadores, e ao estilo acessível da sua prosa

Recepção da Crítica

John Timmerman, estudioso de Steinbeck, resume assim a influência do livro: " As Vinhas da Ira pode muito bem ser o romance mais amplamente discutido - na crítica, nas análises, e nas salas de aula das universidades - da literatura americana do século XX.”

Na altura da publicação, o romance de Steinbeck “foi um fenômeno à escala de acontecimento nacional. Era publicamente proibido e queimado por cidadãos, foi debatido na rádio em programas de audiência nacional; mas acima de tudo foi lido". De acordo com o New York Times foi o livro que melhor se vendeu em 1939 e em fevereiro de 1940 já tinham sido impressas 430.000 cópias. Neste mês venceu o National Book Award de ficção de 1939, votado pelos membros da American Booksellers Association. Venceria depois o Pulitzer Prize de ficção.

O livro foi notado pela representação apaixonada de Steinbeck da situação dos pobres, e muitos de seus contemporâneos atacaram a sua visão social e política. Bryan Cordyack escreve que, “Steinbeck foi atacado como propagandista e socialista tanto da esquerdo como da direita do leque político. O mais veemente dos ataques veio da Associação de Fazendeiros da Califórnia; ficaram desagradados com a apresentação no livro das atitudes e conduta dos fazendeiros de Califórnia para com os imigrantes. Denunciaram o livro como um “bloco das mentiras” e etiquetaram-no como “propaganda comunista”. Alguns acusaram Steinbeck de exagerar as condições do campo para reforçar um argumento político. Steinbeck tinha visitado os acampamentos muito tempo antes da publicação do romance e argumentam que a sua natureza inumana destruiu o espírito dos colonizadores.

Em 1962, o Comitê do Prêmio Nobel citou As Vinhas da Ira como “uma grande obra” e como uma das razões principais do Comitê para conceder a Steinbeck o Prêmio Nobel de Literatura.

Em 2005, a revista Time incluiu o romance na sua lista “Os 100 melhores romances em língua inglesa de 1923 a 2005”. Em 2009, The Daily Telegraph do Reino Unido incluiu o romance nos “100 romances que todos deveriam ler”.

Em 1998, a Modern Library ordenou As Vinhas da Ira como o décimo na sua lista dos "Cem melhores romances em língua inglesa do século XX". Em 1999, o francês Le Monde de Paris ordenou As Vinhas da Ira como sétimo na sua lista dos "100 melhores livros do século XX". No Reino Unido, foi listado em 29 dos “romances mais queridos do país” no inquérito de 2003 da BBC.

Adaptações

Filme


O livro foi rapidamente adaptado ao cinema num filme de Hollywood de 1940 do mesmo nome dirigido por John Ford e Henry Fonda no principal papel como Tom Joad. A primeira parte desta película segue o livro muito de perto. Contudo, a segunda metade e especialmente a parte final são significativamente diferentes do livro. John Springer, autor de Os Fondas (Citadel, 1973), disse sobre Henry Fonda e o seu papel na versão fílmica de As Vinhas da Ira: “Um Grande Romance Americano fez um dos Grandes Filmes Americanos de sempre.”

Em julho de 2013 Steven Spielberg anunciou os seus planos para dirigir uma nova versão de As Vinhas da Ira para a DreamWorks.

Música

A canção de Woody Guthrie, "The Ballad of Tom Joad" do álbum Dust Bowl Ballads (1940), explora a vida do protagonista do livro após a libertação condicional da prisão.

O músico e autor de rock americano Bruce Springsteen deu o título “The Ghost of Tom Joad” (1995) ao seu décimo primeiro álbum de estúdio, com base no personagem. A primeira trilha do álbum é também intitulada “The Ghost of Tom Joad”. A canção - e em menor medida, as outras canções do álbum - traça comparações entre Dust Bowl e os tempos modernos. Posteriormente, a mesma canção foi regravada pela banda de rock americana ativista Rage Against The Machine, e lançada em seu álbum Renegades, no ano de 2000.

A canção "Dust Bowl Dance" dos Mumford & Sons é baseada no romance.

Os Bad Religion têm uma canção intitulada "Grains of Wraith" no seu álbum de 2007, New Maps of Hell.

A banda de rock progressivo Camel lançou em 1991 um álbum intitulado Dust and Dreams inspirado no romance.

A ópera As Vinhas da Ira baseada no romance foi co-produzida pela Ópera de Minnesota e pelo Utah Symphony and Opera, com música de Ricky Ian Gordon e libretto de Michael Korie. A estreia mundial da ópera ocorreu em fevereiro de 2007, recebendo críticas locais favoráveis.

Em 1990 a banda de rock progressivo The Mission lança o album "Carved in Sand" com a música "The Grapes of Wrath".

Teatro

A Steppenwolf Theatre Company produziu a peça As Vinhas da Ira, uma adaptação ao teatro do livro, adaptada por Galati Frank. Gary Sinise desempenhou o papel de Tom Joad em todas as 188 sessões da temporada na Broadway em 1990. Uma das representações foi filmada e apresentada na PBS no ano seguinte.

Em 1990, a companhia de teatro Illegitimate Players em Chicago produziu Das Vinhas e das Nozes, uma mistura original satírica de As Vinhas da Ira e do aclamado romance de Steinbeck Of Mice and Men.[

Fonte:
Wikipedia

Aparecido Raimundo de Souza (Parte Vinte e Seis) Filosofia elevada ao quadrado



As palavras com *, há um glossário ao final do texto
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O NOVO PROFESSOR DE FILOSOFIA entra na sala, dá uma boa noite a todos, vai até o quadro negro e escreve seu nome em letras garrafais. Os quase quarenta alunos trocam olhares silenciosos entre si, mas nada comentam. Abrem os cadernos e esperam ansiosos, pelo começo da aula.

— Antes de entrarmos no assunto que me trouxe até aqui —  fala como se estivesse propelido a rude sacrifício —  devo esclarecer a vocês, um ponto muito importante. Como podem ver, coloquei na lousa o meu nome. Sou, portanto, o professor Barata e estou substituindo, por tempo indeterminado, seu antigo mestre, o meu ilustre e querido amigo Gracindo Januário, que, infelizmente, se encontra acamado. Não sei como ele agia em suas aulas, no tocante às matérias ministradas, quando algum dos senhores e senhoritas o interrompiam para esclarecer dúvidas concernentes ao assunto que estava sendo ventilado. O que pretendo e vou deixar claro, é o seguinte. Quem desejar fazer perguntas, dentro dos tópicos que aqui trarei a partir de hoje, para cada um de nossos encontros, deverá proceder da seguinte forma. Levantar a mão, pedir licença, dirigir-se a mim —  professor Barata, meu nome é fulano de tal ou Sicrana da Silva e eu gostaria que o senhor explicasse novamente sobre tal assunto. Não tolerarei ser molestado se não for dessa maneira. Fui claro?

Como não houve resposta, continua taciturno:

— Passemos então ao tema de nossa aula inaugural. Asseguro aos presentes que este assunto é rico em surpresas, e, por ser abastado em sua essência, de nuances os mais variados, com certeza envolverá a todos com uma magia inebriante. Alguma pergunta?

O silêncio segue denso e pesado.

— Ok. Então vamos começar. Iniciaremos a nossa conversa discorrendo sobre os conflitos diatópicos intercerebrais.

Um aluno, logo de supetão, levanta o braço:

—  Pois não?

—  Eu gostaria que...

O professor cala precipitadamente o rapaz antes que ele termine:

—  Você sabe ler?

—  Sei professor.

—  De onde está consegue distinguir o que escrevi na lousa?

—  Sim, seu nome!

—  E qual é por gentileza?

—  Barata.

—  Quer repetir, por favor, para que os demais colegas seus tomem ciência?

— Claro. Professor Barata.

— Perfeito. Barata. Professor Barata. Repetindo o que acabei de falar. Quero deixar claro, e, agora, essa interferência abrupta do seu colega ali atrás que fique de uma vez para sempre carimbada como exemplo. Qualquer dos senhores e senhoras que quiserem interagir, devem se dirigir a mim desta forma: professor Barata meu nome é fulano de tal. Eu gostaria de etc. etc. etc... Vamos tentar?

— Com licença —,  repete o aluno em tom de acanhamento. —  Professor Barata, boa noite. Meu nome é Euclides.  Gostaria que o senhor explicasse melhor essa coisa de conflitos diatópicos intercerebrais.

O professor bate palmas em sinal de aprovação.

—  Muito bem. Isso que acabei de fazer com seu colega Euclides, repetindo, novamente, para que não haja dúvidas depois, vale para todos aqui presentes. Sempre que quiserem saber alguma coisa, tirar aquelas minhoquinhas chatas, esclarecer pontos obscuros, essa é a maneira correta de como se dirigirem a minha pessoa. Estamos conversados?

Todos a uma só voz concordam gritando um sim não muito entusiasmado.

—  Respondendo, pois, sem mais delongas ao jovem Euclides. Conflitos diatópicos intercerebrais que nem comecei a explicar e já causou todo esse rebuliço desnecessário, são aqueles que se externam diante das intercorrências intrapessoais que extrapolam e ultrapassam as psicossomias pessoais*...

—  Professor Barata —  Estica a mão, desta vez, uma aluna. Meu nome é Giovanna. Eu gostaria que o senhor explicasse intercorrências intrapessoais.

—  Perfeito. Show de bola! Intercorrências intrapessoais são aquelas, minha cara Giovanna, que envolvem o dualismo individual de cada situação exógena.  Antes que alguém interrompa para questionar exógena, vou dizer logo do que se trata. Exógena ou exógeno é algo que cresce exteriormente para fora. Aquilo que está na superfície. No nosso caso, o dualismo nada mais é que a doutrina que, em qualquer ordem, ou ideia, admite a coexistência pacífica de dois princípios irredutíveis, AY e BY. Essas intercorrências se refletem diretamente nos exsudatos furbóticos* das atividades psicossociais das sociedades tribais perfuncturiais*.

Um novo aluno volta a mutilar o pernóstico professor:

—  Professor Barata boa noite. Meu nome é Tupinambá. Alcides Tupinambá. Essa parada da qual o senhor está falando ai tem alguma coisa a ver com o iluminismo?

—  Por certo. Boa colocação a sua. Não só com o iluminismo, como também com a efervescência grandiloquente, que, por sua vez, foi a precursora de tais fatos. Claro que esta incongruência causou sérias implicações,  evidentemente inequívocas naquilo a que denominamos chamar de similitude das situações caróticas...

—  E no que consiste exatamente essa tal de similitude das situações caróticas? Aliás, professor, não seria, por acaso, carótidas?

—  Quem perguntou?

—  Eu professor. Aqui.

—  O prezado tem problemas de vista?

—  Não que eu saiba...

—  Prestou atenção ao que falei no comecinho da aula?

—  Sim.

—  E o que eu disse exatamente?

—  Ah!... Que ao se dirigir a sua pessoa, fazê-lo desta forma. Professor Barata.  Meu nome é Ítalo Pereira.

—  E por que não agiu dessa forma preestabelecida? Sofre de algum tipo de amnésia?

O infeliz fica desconcertado e cobre o rosto com as mãos.

—  Não vou tolerar mais amputações a bel prazer de vocês. É preciso ter norma. Continuando, a similitude das situações consiste no ego pórigo* do épice. Não confundam com ápice. É, na verdade, o todo no complexo. A válvula propulsora, eu diria, da brópise* na sua escala mais elevada. Todavia, as interpelações constantes das dicotomias análogas, vejam bem, análogas, demonstraram e demonstram claramente o profundo grau de submissão clerical dessa situação fundia na hegemonia feudal.

La no fundo outro Zé Mané levanta a mão. Pede um aparte. Parece meio perdido diante de todo aquele linguajar estranho do professor.

—  Professor Barata, desculpe ser inconveniente. Meu nome é Afonso e eu confesso que não entendi bem o pórico do épice...

—  Vou tentar ser claro, Afonso. Pórigo do épice é o todo no complexo. O complexo no todo. A porta de escape, a textura da filosofia. Trocado em miúdos: a tampa da panela, o sapato faltoso, para o pé descalço, ou o dedo que o Fula gostaria de implantar no lugar do que cortou fora, de sacanagem, para cavar uma aposentadoria. Filosoficamente falando, o pórigo do épice, por favor, pelo amor de Deus, não confundam com ápice, faz parte do rol das transmutações...

—  Transmutações ou transmudações? —  Grita um abestalhado bem lá dos fundos.

O professor Barata para e perscruta para os confins da sala com a atonia de quem reflete nos olhos a aspereza da indignação. Quer identificar o sujeito que lhe cortara o discurso com sofreguidão, impondo desrespeito a sua ordem expressa de levantar o braço, pedir licença, declinar o nome, e, por fim, bailar a dúvida.

— Não deveria responder, já que o engraçadinho não foi homem suficiente para suspender o braço e mostrar a cara. Apesar dos pesares, além do fato de não possuir a tolerância dos calmos e mansos de espírito, abrirei exceção apenas esta vez. Apenas esta vez. Fui claro? Pois bem. As transmutações, e não transmudações conjuntamente atreladas ao poder exacerbado e a desintegração do passado, suprimiram escatologicamente as falésias morais* ocasionando uma grande e irreparável perda para a idiossincrasia humana... Daí, vir a...

—  Como o senhor classificaria a idiossincrasia humana...?

O silencio cai geral. Dá para ouvir uma agulha voando.

—  Vou avisar pela derradeira vez. Pela derradeira vez vou avisar. Não mais tolerarei ser bruscamente estorvado. Quem quiser fazer pergunta, se manifestar, perquirir, fique a vontade. Estou aqui para isso, esclarecer dúvidas, aparar arestas, os cambaus. Contudo, vocês devem, antes, levantar o braço, berrar o nome e, então, só então, formular a pergunta.

João Cabeludo ouve de novo essa balela toda. Está pê da vida com tanta arrogância e altivez daquele professor metido a besta. Assim, não levanta a mão. Não pede licença. Fica de pé, na cara dura. Encara o sujeito e manda bala, o desejo saliente a avoaçar seu lado animal:

— Amado professor Mafú...

O sisudo mestre Barata dá um murro tão forte na mesa que estronda os vidros das janelas. Culmina a sua ira soltando um berro feroz, bravio e pesadamente perverso:

—  Barata, seu imbecil, Barata. De onde foi que você, seu energúmeno, tirou esse tal de Mafú?

O aluno não se faz de rogado diante de toda aquela atitude possessiva. Enfrenta a criatura, a peito aberto, como se fosse dono do pedaço.

—  Lá em casa, meu amado, meus pais matam as baratas que aparecem com Mafú.

—  Seu descarado. Vadio. Por acaso está me igualando a esses insetos blatídeos, achatados e ovais, de hábitos noturnos, que vivem por ai assustando as mulheres?

—  Se a carapuça lhe serviu seu Mafú Barata, não posso fazer nada. Fique sabendo que não sou parente de Bakbarah, aquele personagem de As Mil e Uma Noites, que se submetia a vexames. Não vou abaixar a cabeça para o senhor, nem a crista para nenhum outro girafales de meia tigela, seja por amor ao dinheiro que pago às mensalidades, religiosamente em dia, seja por essa sua droga de aula chata e maçante. E tem mais, meu ilustre. Toda essa papagaiada, toda essa conversa fora de esquadro, esse seu linguajar difícil, complexo, intrincado, essa sua postura de  cavalheiro mal nutrido, me enoja, me afronta, me enfeza. E quer saber? —  Vá lamber sabão!!!

O insigne professor Barata azeda os ânimos. Em vista disso, não fala mais nada. Vira as costas, passa a mão em suas coisas e, a passo largo voa para a porta. Antes de batê-la, de vez, atrás de si, com força descomunal, sem conseguir suplantar a sua indignação, comunica a galera, à voz embargada pela deliberação enérgica da raiva inqualificável que o domina, a suspensão da sala inteira por uma semana. Ato contínuo, a classe se levanta e aplaude João Cabeludo, pela coragem que ele teve de enfrentar, cara a cara, o excêntrico  e  esquisito professor.
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Glossário:

Brópise: Uma maneira de se associar a qualquer coisa que ainda não foi descoberta.

Exsudados furbóticos: É uma espécie de sistema de longo alcance para entendimentos considerados difíceis

Falésias morais: Falências morais  vista de forma mais severa

Pórigo é o todo no complexo, a válvula propulsora para qualquer coisa tida como amalucada.
Pórigo ou pórico: A grafia certa é pórigo. Pórico foi escrito erradamente propositalmente.

Psicossomias pessoais: loucuras e neurastenias pessoais.

Sociedades tribais perfunctoriais: Sociedade de tribos vindas do imaginoso do professor Barata. Na verdade, segundo ele, indígenas  que conhecem além daquilo que nunca ouvimos falar.


ESCLARECIMENTOS  AOS  LEITORES:

Na verdade, o texto é apenas uma brincadeira, um divertimento, um passatempo. A começar pelas palavras tidas como difíceis. Em resumo, nada tem de filosofia. A ideia do autor foi apenas a de divertir o leitor, descrevendo uma  suposta aula de filosofia, onde nada  pode ser levado a sério.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. “Comédias da vida na privada”. RJ: Editora AMC-GUEDES, 2020.
Texto enviado pelo autor.

domingo, 15 de novembro de 2020

Varal de Trovas n. 439

 


Ivan Lessa (Ao Professor, com Pêsames)


Todos os professores que eu tive desejavam a minha morte. As lembranças que tenho do jardim de infância são vagas: restou apenas uma sensação de ameaça, de medo. Esta, continua nos dois anos seguintes do primário, só que mais nítida. “Eles” já tinham me sacado, haviam percebido o perigo que eu representava, vigiavam-me, apenas não ousando fazer nada devido ao fato de que eu, ao contrário de alguns colegas mais distraídos, notara a manobra. Eu era, pois, tão perigoso para “eles” quanto “eles” para mim. Eu era pequeno, tímido, incapaz ainda de exercer a força de minha individualidade. Mas sabia de tudo. Tentei, uma ou duas vezes, expor a situação em casa. Pouco articulado, sem provas concretas, agravado pelo fato de possuir um passado em que já fora pilhado em algumas mentiras, de nada valeu minha denúncia. Eu teria que me defender sozinho.

Comecei – deve ter sido no segundo ano primário – a armar, ainda que precariamente, já que dispunha de poucos recursos físicos e intelectuais, meu próprio esquema de segurança. Sabia que entre os outros companheiros que se encontravam na mesma situação (não deveríamos, ao todo, ser mais que quatro na sala de aula) também não encontraria boa receptividade. Muito bem. Que assim fosse. Eles que se virassem. Eu não desistiria sem ao menos oferecer uma boa luta. Optei pela saída psicológica. Se eu tomara conhecimento da situação devido a pequenos olhares e gestos, captados aqui e ali, nada de concreto, teria que, pelo mesmo método, enfrentá-los.

Sempre preferi os últimos bancos, hábito que guardo até hoje quando vou ao cinema e ao teatro, ou quando viajo de ônibus, trem e avião. De lá, tenho uma visão mais ampla do terreno, dificilmente posso ser atacado pelas costas. Lá ficava eu, quieto, o olhar fixo na professora (só no ginásio teria que me ver às voltas com o sexo forte, que, embora possa parecer paradoxal, é muito menos perigoso que o chamado “frágil”), dois ou três lápis bem afiados à minha frente, uma caneta pontuda sem a tampa, tudo bem à mostra em cima da carteira escolar. Ela – qual o seu nome mesmo? Arlete? Amanda? Helena? – discorrendo como sempre sobre questões aritméticas, geográficas e ortográficas, utilizando-se enfim de todos os recursos que pudessem desviar minha atenção de seu verdadeiro objetivo: minha morte.

Minha primeira intenção era deixar claro que estava a par de sua sinistra meta. Foi numa aula de trabalhos manuais em que, pela primeira vez, pusemos as cartas na mesa. A classe fora obrigada a montar, com cartolina, goma-arábica e gilete, algumas figuras geométricas. Um cubo, um cone e um cilindro, se é que estou bem lembrado. Nunca tive jeito para essas coisas. Preferia os ditados, o português, as correrias a que chamavam de ginástica, a lidar com objetos inúteis como cubos, cones e cilindros. Eu estava a ponto de recortar na cartolina o desenho esboçado no quadro negro e cuidadosamente copiado a lápis no papel quando ela – acho que era Amanda mesmo – após disfarçar, fingindo que acompanhava os trabalhos da classe, conseguiu se aproximar de mim. Não levantei os olhos. Tomei da Gillette e, embora o desenho ainda não estivesse pronto, comecei a recortá-lo, tratando de segurar a pequena e fatal lâmina de maneira firme mas, com um leve manobrar do pulso, inegavelmente ameaçador. Amanda debruçou-se sobre mim, as duas mãos ocultas de meu ângulo de visão. Atravessei a cartolina de alto a baixo num golpe profundo. Quase que senti e ouvi os músculos de Amanda se retesarem, sua mente dilacerada pelo gesto. Eu deveria estar suando e procurei fazer com que ela não notasse. Ela deveria estar tremendo, mas não deixou transparecer. O chavão se aplica: segundos que duraram uma eternidade. Amanda afastou-se de mim e passou para a carteira do colega ao lado. Estávamos apresentados.

Acredito que os professores, em sua reunião semanal, juntavam-se para discutir estratégias, traçar planos, prestar relatórios sobre as dificuldades apresentadas por este ou aquele elemento. Naquela semana, posso gabar-me de que fui o principal assunto. “Cuidado com aquele” – eu, eu no caso! – devem ter concluído. Juro que concluíram!

Durante alguns meses, vi-me a salvo. Continuava encarando Amanda e, em troco, recebendo seus olhares discretamente malévolos. Mas eu dera meu recado. Ela que se cuidasse. Eles todos que se cuidassem.

Meus sonhos, naquela época, eram povoados de professores. Todos armados. Acordava no meio da noite, suando frio, gritando por socorro. Davam-me chá de flor de laranjeira, acendiam as luzes, diziam que era só um pesadelo. Isso porque não eram obrigados, como eu, a enfrentar, dia após dia, Amanda. Nem tinham pela frente a cruel perspectiva de sei lá quantos anos de constante ameaça às suas integridades físicas.

Os tormentos, as lutas, prosseguiram primário a fora, com vitórias flagrantes minhas, alguns empates, aquele impasse permanente.

A grande batalha, no entanto, deu-se com o professor de matemática do primeiro ano ginasial. Eu já era veterano de alguns anos de confrontos terríveis. Ele, talvez – é a única explicação que encontro – devido à sua extrema crueldade, repugnante até mesmo entre seus companheiros de “ofício”, não estava a par de meu grau de combatividade. Tentou me pegar num dia em que me vi obrigado a ficar de castigo, terminada a aula, resolvendo diabólicas equações. Estávamos os dois sozinhos na classe. Lá fora, apenas a barulheira dos meninos do primário. Acendeu um cigarrinho e veio se aproximando de mim. Não levantei os olhos. Colocou a mão no bolso. Não me mexi. Sacou a mão fora, segurava alguma coisa. Fiquei firme equacionando. Chegou ainda mais perto. Era o momento da verdade. Levantei-me de repente e gritei com toda a força de meus pulmões:

– Mais um passo e você é um homem morto!

Blefava, é claro, já que nada tinha com que me defender a não ser a caneta esferográfica importada, a única aliás de nossa classe. Seus olhos se abriram como se, de repente, de um só lance, todos os logaritmos do mundo tivessem se voltado contra ele, dispostos a matar. Botou a mão no peito, soltou um gemido de paca agonizante e caiu durinho na minha frente.

Acabei meus deveres, juntei minhas coisas e fui embora. Ele foi enterrado no dia seguinte com todos os alunos presentes. Acho que cantamos o hino do colégio. Contritos e nervosos naquela agitação dispersiva das crianças diante da morte. Fiz como todos. Ninguém percebeu nada. Mas, nós – eu e os mestres – sabíamos. Sabíamos que, daquele dia em diante, não haveria mais luta. A coisa poderia acabar nos jornais.

Terminei o clássico, fui trabalhar em publicidade, nunca mais pensei em professor ou professora. De vez em quando, passo por um, na cidade. Fingimos não nos reconhecer. Mas, às vezes, tarde da noite, alguém liga para minha casa e não diz nada. Já senti mais de uma vez mãos tentando me empurrar da calçada enquanto espero o sinal abrir. E no Dia do Professor, todo ano, chegam flores murchas em casa acompanhadas de um cartãozinho em branco. Sempre digo que deve haver algum engano. Mas não há enganos. A vida é isso mesmo. A gente começa a se matar muito cedo.

Fonte:
Diário Carioca. Rio de Janeiro, 15 out 1975.

Gislaine Canales (Glosas Diversas) XXI


ME ASSUMA...

MOTE:
Não busque ocultar os traços
do amor com força nenhuma...
se me prefere em seus braços,
tire o disfarce... e me assuma!
Heloisa Zanconato
(Juiz de Fora/MG)


GLOSA:
Não busque ocultar os traços
desse amor que está sentindo,
nem tente apagar os passos
que estão sempre nos seguindo!

Não queira nunca fugir
do amor com farsa nenhuma...
pois o amor nos faz sorrir
e dissipa qualquer bruma!

Preencha os nossos espaços!
Vem amor, se achegue, então,
se me prefere em seus braços,
me abrace com emoção!

Somos, como a praia e o mar
que adoram beijos de espuma
se sabe que vai me amar,
tire o disfarce... e me assuma!
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NÃO SEI...

MOTE:
Não sei escrever bonito,
pois me falta inspiração,
mas o que aqui está escrito
eu sinto em meu coração!
Sophia Irene Canalles
(Pedro Osório/RS, 1911 – 2004, Porto Alegre/RS)


GLOSA:
Não sei escrever bonito,
mas sei amar e sentir
a beleza do infinito,
simplesmente em ir e vir!

Às vezes, eu não escrevo,
pois me falta inspiração,
outras vezes, eu me atrevo
e escrevo com emoção!

Meu verso não é erudito,
possui grande singeleza,
mas o que aqui está escrito,
sai-me da alma, com certeza!

Eu sou feliz escrevendo,
e não é mera ilusão,
ver a alegria nascendo...
eu sinto em meu coração!
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LUZ DA PAIXÃO

MOTE:
Nosso amor é uma certeza,
dentro do meu coração;
e a luz da paixão acesa
apaga a luz da razão!...
Istela Marina Gotelipe Lima
(Bandeirantes/PR)


GLOSA:
Nosso amor é uma certeza,
já faz parte de nós dois;
vivemos, hoje, a beleza,
dos ontens e dos depois!

Ele já se enraizou
dentro do meu coração;
e, em meu carinho, plantou
a semente da emoção!

Eu me sinto uma princesa,
nesse reino que criamos
e a luz da paixão acesa
é que nós mais nos amamos.

Dessa luz apaixonada,
é tão forte o seu clarão,
que uma única soprada,
apaga a luz da razão!…
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MEU TORMENTO

MOTE:
Quanto mais teu corpo enlaço
mais padeço o meu tormento,
por saber que o meu abraço
não prende o teu pensamento...
Jesy Barbosa
(Campos/RJ, 1902 - 1987, Rio de Janeiro/RJ)


GLOSA:
Quanto mais teu corpo enlaço
mais me enamoro de ti,
e mil promessas eu faço,
pra que estejas sempre aqui!

Mas por meu ciúme letal,
mais padeço o meu tormento,
por não poder ser total,
ser só eu, no teu momento!

Aumenta, em mim, o cansaço
nessa dúvida infundada
por saber que o meu abraço
para ti, pode ser nada!

É de posse o meu desejo!...
Nem eu mesmo, mais aguento
saber que o meu doce beijo
não prende o teu pensamento...

Fonte:
Gislaine Canales. Glosas. Glosas Virtuais de Trovas XIX. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. 2004.

Estante de Livros (Pedra Bonita, de José Lins do Rego)


Em 1938 é publicado Pedra Bonita, de José Lins do Rego, romance que dá início ao ciclo do cangaço associado ao misticismo messiânico e ao flagelo das secas. Na obra, o chamado santo era um louco, como Antônio Conselheiro, e o drama se desenrola em torno de uma espécie de loucura coletiva.

Como já citado, o misticismo e o cangaço estão presentes em Pedra Bonita. A provável fonte temática, bem como a oralidade da narrativa, nesses casos, teria sido a literatura de cordel, como afirma o próprio autor:

(…) Os cegos cantadores, amados e ouvidos pelo povo, porque tinham o que dizer, tinham o que contar. Dizia-lhes então: quando imagino meus romances, tomo sempre como modo de orientação o dizer as coisas como elas surgem na memória, com o jeito e as maneiras simples dos cegos poetas.

Pedra Bonita é o relato da tragédia pernambucana de 1838, onde morreram várias pessoas, para que com seu sangue fossem lavadas as duas torres da catedral do reino de D. Sebastião, encantado nas duas pedras ali existentes.

Ao ler a obra, temos a impressão de que é atualíssima, uma vez que não fala simplesmente sobre um relato a respeito de Pedra Bonita, porém nas entrelinhas vemos a construção de uma região, o Nordeste, humilde que serve de cenário para heróis, coronéis, santos, místicos, “bandidos”, fanáticos e aventureiros cantadores de viola etc.

É um círculo vicioso do qual não vemos saída, a não ser que haja um progresso muito grande na mente humana. Isso é fundamental no desenrolar do texto, que procura mostrar os conflitos político, econômico, religioso e social em torno destes elementos reais enquanto legitimadores de um regime, de uma determinada articulação social.

O livro, mesmo tendo mais de meio século de sua primeira publicação, apresenta uma ótima coerência interna, explorando muito bem a temática e a imagem do Nordeste sofrido.

Iniciando a análise pelo povoado de Vila do Açu, próximo a Pedra Bonita, o autor monta a trama do romance; nesse cenário vão se destacando uma gama de personagens individualizados e enlaçados as suas neuroses, suas paixões e para seu modo de vida, como o menino Antônio Bento que fora parar na casa do Padre Amâncio trazido pela mãe em virtude da seca de 1904; D. Eufrásia, a irmã do Padre, mulher de personalidade forte e autoritária que vez ou outra aparecia na vila; a negra Maximiliana, criada da casa paroquial, que só tinha alegria quando tornava umas pingas; D. Fausta e a sua aversão crônica ao pai que só tinha olhos e carinho para os pássaros que criava; o sacristão Laurindo e a sua mulher; as beatas; Joca Barbeiro, o bisbilhoteiro que ficava horas a fio em baixo da tamarineira da praça falando da vida de todo mundo; o bodegueiro que saiu explorando o sertanejo; o tirânico juiz Dr. Carmo, sua mulher e o seu filho arruaceiro; e tantos outros.

E ainda, nesse cenário exótico é retratado também de forma contundente, o confronto de dois grupos na política municipal. Em seguida, discorre o povoado do Araticum, começando pelo semi-árido físico onde aparece a geografia do sertão, o clima semi-árido, a vegetação típica ­ caatinga – e a questão das secas, o tipo que habita, nesse clima, transcende a figura de Bento Vieira, criatura seca, desumana e imparcial a tudo que lhe rodeia, sua mulher, a sofredora Sinhá Josefina, seus dois filhos: Aparício, violento, brigão e Domício, tenro e sonhador.

A caminho de Pedra Bonita aparece o místico Zé Pedro que conhece todos os mistérios e segredos da região. Por fim, é nesse palco e com essas personagens inquietas e conflituosas que o autor relata de maneira contundente a dizimação total da família Vieira, absorvida pelo fanatismo religioso e o envolvimento com o cangaço.

A ação divide-se em duas partes.

Primeira parte
No vilarejo de Açu, o vigário cuida do menino Antônio Bento desde pequeno. Frustrada a intenção de colocá-lo no seminário, Bento torna-se sacristão do padrinho. Porém a população do povoado hostiliza-o porque ele participa de um grupo desencaminhado. Protegendo-o, o padrinho acusa o juiz da cidade como responsável. O juiz, transferido para a capital, não lhe perdoa e, por sua vez, acusa-o de proteger bandidos.

Segunda parte

Passa-se em Pedra Bonita, para onde fora Bentinho. O irmão de Bento o inicia nos segredos da Pedra Bonita, mata um soldado e torna-se cangaceiro. Bentinho fica indeciso entre a doutrina do Padre Amâncio e a crença de sua gente, vendo pobres, aleijados e enfermos enlouquecidos na ânsia de cura.

Bentinho retorna a Açu e fica com os seus.

Fonte:
texto por Lucas Gomes in Passeiweb

sábado, 14 de novembro de 2020

Varal de Trovas n. 438

 


A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) Os Bem-Te-Vis de Maringá


Bem-te-vi que bem-me-vês, bem-visto sejas também, hoje e sempre e toda vez que bem-me-vires. Amém. –- Na minha rua habitam muitos e fico todo prosa quando um deles me acorda cantando em frente à janela. Ele diz: “Bem-te-vi... Bem-te-vi...”. Respondo: “Obrigado, igualmente”.

Primeiro, porém, quero falar do Brandespim. Aristeu Brandespim, um personagem realmente singular, a quem Maringá até hoje não tributou o merecido reconhecimento.

Mineiro de São Sebastião do Paraíso, gordo e invariavelmente bem-humorado, no início dos anos 1950 era bancário em São Paulo. Num certo dia leu uma entrevista do Dr. Hermann Moraes de Barros falando maravilhas sobre o norte do Paraná. Dias após atendeu no banco um jovem empresário chamado Alfredo Maluf. Conversa-vai, conversa-vem, Maluf gostou do rapaz, ficou sabendo que ele era contador, e de bate-pronto fez a proposta: “Quer trabalhar comigo? Tenho um posto de combustíveis em Maringá”. Aristeu nem pestanejou: “Quero”. Veio de mala e cuia na semana seguinte. Durante alguns anos fez a escrita do Posto Santo Antônio, tendo entre os colegas outro contabilista ilustre – Farid Cury, que mais tarde se tornou sócio de Alcides Parizotto no Atacadão.

Em 1957 resolveu mudar o rumo da vida: ingressou no jornalismo, uma antiga paixão sua. Criou e dirigiu até o final dos anos 1970 a primeira revista da cidade, “Maringá Ilustrada”, que já no segundo número passou a chamar-se “Novo Paraná”, a famosa “NP”.

Aristeu tinha umas coisas muito características. Por exemplo: a capacidade de perceber o que em geral as pessoas comuns não percebiam. Numa manhã de sol, caminhando juntos, ao atravessarmos a praça Napoleão Moreira da Silva ele parou de repente, segurou meu braço, olhou para cima e disse: “Maringá é realmente uma cidade hospitaleira. Em qualquer praça ou rua onde você esteja, escuta a saudação – Bem-te-vi... bem-te-vi...”

“É mesmo, cara... e eu nunca havia pensado nisso” – comentei. Ele riu: “Esses bichinhos simpáticos estão em todas as nossas árvores dando as boas-vindas aos chegantes. Me lembro bem de que no dia em que aqui desembarquei um dos primeiros sons que ouvi foi esse – Bem-te-vi... bem-te-vi... Existe recepção mais generosa?... Quem quer que venha a Maringá se sente de imediato bem-visto. É como se alguém dissesse: – Entre, a casa é sua...”

Deve ter sido assim na chegada das primeiras famílias. Cada vez que encostava um caminhão de mudança apareciam logo os vizinhos oferecendo ajuda. Ninguém nem perguntava a ninguém de onde vinha. Todos sabiam que para sair do chão natal e se embrenhar no desconhecido era preciso ter muita coragem e as melhores intenções. Só gente muito raçuda e boa faria algo assim. Por isso é que eram todos tão bem-vindos.

Sempre ao som do bem-te-vi... bem-te-vi... bem-te-vi...

Pois é, Brandespim. Poderia até, quem sabe, algum dia algum vereador propor uma lei oficializando o bem-te-vi como símbolo da hospitalidade maringaense.
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Crônica publicada no Jornal do Povo – 29-10-2020


Fonte:
texto enviado pelo autor

Silmar Böhrer (Gamela de Versos) 14



Fonte:
Silmar Bohrer. Gamela de Versos. Caçador/SC: Ed. do Autor, 2004.
Livro enviado pelo autor.

Prof. Garcia (Pantuns) 1


INTRODUÇÃO


Por definição, o Pantun é um poema de origem Malaia, composto por 4 estrofes de 4 versos cada uma, no sistema ABAB. É uma composição poética e musical que faz parte do folclore malaio, no qual o tema mais comum é o amor e surgiu no século XV. Diria que é um tanto quanto desconhecido e pouco explorado pelos poetas brasileiros; mas um Pantun bem acabado, toma-se uma composição muito atrativa.

Para se compor um Pantun. escolhe-se, inicialmente, uma boa trova de alguém, podendo ser do próprio autor. A trova escolhida passa a ser a trova tema do Pantun. Dela, surgirão 4 novas estrofes,, obedecendo ao sistema ABAB. Atenção: tanto da trova tema quanto das novas trovas, o 3° verso é descartado, usando-se apenas o 2. e o 4. versos, e em cada estrofe surgem dois versos novos até o final, Além disso, finaliza-se o 4. verso da última estrofe com o 1. verso da trova tema.

Atenção: nem toda trova, por mais bela que seja, pode originar um bom Pantun, é bom ficar atento a esse detalhe. A seguir, os Pantuns de nossa autoria, obedecendo às explicações acima.

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PANTUN DO VELHO ABANDONO

Trova tema:
Faminta e desprotegida,
vagando em busca do nada,
ganha o mundo e perde a vida
a criança abandonada.
(Zé Lucas – RN)


Vagando em busca do nada,
perdida e sem esperança,
a criança abandonada,
mata o sonho de criança!

Perdida e sem esperança,
segue a criança tristonha!...
Mata o sonho de criança!
Mas é feliz quando sonha!

Segue a criança tristonha,
exposta aos amores vis,
mas é feliz quando sonha,
que um dia será feliz!

Exposta aos amores vis,
mas pela vida iludida,
que um dia será feliz
faminta e desprotegida!
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PANTUN DO AMANHECER

Trova tema:
Da janela, o amanhecer
reluz sopros de esperança,,.
E a vida, em seu renascer,
lembra um sonho de criança!
(Eva Garcia – RN)


Reluz sopros de esperança
e, o sonho da vida em flor,
lembra um sonho de criança
na primavera do amor.

E, o sonho da vida em flor,
é força que nos conduz;
na primavera do amor,
é sempre de paz e luz.

É a força que nos conduz,
em busca da eterna paz,
é sempre de paz e luz
e o sonho, ninguém desfaz.

Em busca da eterna paz,
vivo a sonhar e a sofrer;
e o sonho, ninguém desfaz,
da janela, o amanhecer!
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PANTUN DA VOVÓ SERENA

Trova tema:
Curvada ao peso da idade,
a vovó, serena e bela,
distrai o tempo e a saudade
entre o novelo e a novela,,,
{A. A. de Assis – PR)


A vovó, serena e bela,
é Feliz como criança;
entre o novelo e a novela...
Enche a vida de esperança.

É feliz como criança;
hoje, não faz nada à toa,
enche a vida de esperança,
vovó que tudo perdoa.

Hoje, não faz nada à toa,
ante o tempo carrancudo,
vovó que tudo perdoa
faz graça de quase tudo.

Ante o tempo carrancudo,
da infância sente saudade...
faz graça de quase tudo,
curvada ao peso da idade!
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PANTUN DA POBRE MARIA

Trova tema;
Maria é um resto somente
no cais largada ao desdém
quem foi mar de tanta gente
hoje é porto de ninguém!
(Arlindo Tadeu Hagen – MG)


No cais largada ao desdém
pobre Maria do cais,
hoje é porto de ninguém
na solidão de seus ais.

Pobre Maria do cais,
entre a tristeza e a saudade,
na solidão de seus ais,
distante da flor da idade.

Entre a tristeza e a saudade,
Maria, pobre Maria,
distante da flor da idade,
abraça a vida vazia,

Maria, pobre Maria,
velha, esquecida, indigente,
abraça a vida vazia.
Maria é um resto somente.

Fonte:
Professor Garcia. Poemas do meu cantar. Natal/RN: Trairy, 2020.
Livro enviado pelo autor.

Stanislaw Ponte Preta (O Sabiá do Almirante)


O almirante gostava muito de ir ao cinema na sessão de oito às dez. Era um Almirante reformado e muito respeitado na redondeza por ser bravo que só bode no escuro. Naquela noite, quando se preparava para ir pro cinema, a empregada veio correndo lá de dentro, apavorada:

— Patrão, tem um homem no quintal. 
 
Era ladrão. Pobre ladrãozinho. O Almirante pegou o 45, que tinha guardado na mesinha de cabeceira e saiu bufando para o quintal. Lá estava o mulato magricela, encolhido contra o muro, muito mais apavorado que a doméstica acima referida. O Almirante encurralou-o e deu o comando com sua voz retumbante:

— Se mexer leva bala, seu safado.

O ladrão tratou de respirar mais menos, sempre na encolha. E o Almirante mandou brasa:

— Isto que está apontado para você é um 45. Seu eu atirar te faço um furo no peito, seu ordinário. Agora mexe aí para ver só se eu não te mando pro inferno.

O ladrão estava com uma das mãos para trás e o Almirante desconfiou:

– Não tente puxar sua arma, que sua cabeça vai pelos ares.

– Não é arma não — respondeu o ladrão com voz tímida: — É o sabiá.

– Ah… um ladrão de passarinho, hem? — vociferou o Almirante.

E, de fato, o Almirante tinha um sabiá que era o seu orgulho. Passarinho cantador estava ali. Elogiadíssimo pelos amigos e vizinhos. Era um gozo ouvir o bichinho quando dava seus recitais diários. Vendo que o outro era um covarde o Almirante resolveu humilhá-lo:

– Pois tu vais botar o sabiá na gaiola outra vez, vagabundo. Vai botar o sabiá lá, vai me pedir desculpas por tentar roubá-lo e depois vai me jurar por Deus que nunca mais passa pela porta da minha casa. Aliás, vai jurar que nunca mais passa por esta rua. Tá ouvindo?

O ladrão tava. Sempre de cabeça baixa e meio encolhido, recolocou o sabiá na gaiola. Jurou por Deus que nunca mais passava pela rua e até pelo bairro.

O Almirante enfiou-lhe o 45 nas costelas e obrigou-o a pedir desculpas a ele e à empregada. Depois ameaçou mais uma vez:

– Agora suma-se, mas lembre-se sempre que esta arma é 45. Eu explodo essa sua cabeça se o vir passando perto da minha casa outra vez. Cai fora.

O ladrão não esperou segunda ordem. Pulou o muro como um raio e sumiu. O Almirante, satisfeito consigo mesmo, guardou a arma e foi pro cinema.

Quando voltou, o sabiá tinha desaparecido.

Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Dois amigos e um chato. Ed. Moderna, 1996

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Varal de Trovas n. 437

 


Arthur de Azevedo (Quem Ele Era?)


Foi num teatro que começaram as nossas relações. Estávamos na plateia, sentados ao pé um do outro.

Ele interessava-se muito pelo espetáculo, e de vez em quando me fazia ao ouvido algumas observações críticas, tratando-me pelo meu nome.

Eu estava um tanto contrariado: não gosto de conversar com pessoas que não conheço; mas o meu vizinho da plateia me parecia um homem tão simples, que no meu espírito não se formou nenhuma prevenção desairosa a seu respeito.

- Veja como o F. está representando mal! - disse-me ele, referindo-se a um ator que na realidade metia os pés pelas mãos. - É pena que o F. seja tão mau artista, sendo tão bom rapaz!

- Conhece-o?

- Há muitos anos... desde criança... somos amigos... um excelente guarda-livros, que poderia ganhar um ordenadão numa boa casa, mas prefere ser ator, para fazer esta figura que se está vendo!

Acabado o espetáculo, entrei num botequim para tomar chocolate, e lá estava o nosso homem, que me queria obrigar a sentar-me junto dele. Agradeci-lhe o obséquio e tomei lugar noutra mesa.

Daí a instantes entrou o ator, o tal que não queria ser guarda-livros, e sentou-se perto de mim.

Perguntei imediatamente:

- Você sabe me dizer quem é aquele sujeito?

- Não sei. Conheço-o de vista há longos anos... somos velhos camaradas... tratamo-nos por tu... mas ignoro como se chama e qual seja a sua ocupação.

- É singular!

- É, não há dúvida, mas a vida carioca tem destas coisas...

Depois disso, eu encontrava constantemente o desconhecido nas ruas nos teatros, nos bondes, nas festas, em toda parte, sempre sozinho e apressado, como se tivesse muito que fazer.

A princípio cumprimentava-me com certa reserva cerimoniosa, mas pouco a pouco os nossos repetidos encontros o familiarizaram comigo, e ele começou a usar de um diminutivo afetuoso:

- Adeus, Arturzinho... - ou do latim macarrônico: - Adeus, Arturibus!

Como nos encontrássemos num leilão (ele frequentava muito os leilões, mas não comprava nada), apresentou-me, graciosamente, ao respeitável conselheiro B, a quem perguntei depois:

- O conselheiro faz-me um obséquio?

- Estou às suas ordens.

- Diz-me quem é aquele cavalheiro que nos apresentou um ao outro?

- Oh! o senhor não o conhece?

- Não.

- Nem eu! - Há muitos anos lhe falo... trata-me com certa intimidade... mas não sei como se chama nem quem é.

- Deveras?

- Isso pouco me tem importado, porque vejo que ele se dá com o mundo inteiro.

E de todas as pessoas a quem me dirigia para saber, pelo menos, o nome do "meu amigo", ouvia a mesma indefectível resposta:

- Conheço-o há muitos anos, mas não sei quem é.
    * * *

O seu tipo nada tinha de característico nem de anormal. Ele vestia-se de um modo que nenhuma indicação poderia fornecer sobre a sua vida ou sobre os seus hábitos. A última vez que o vi, ele trazia, aparentemente, a mesma sobrecasaca, as mesmas calças brancas e o mesmo chapéu alto com que estava aquela noite no teatro.

Bem quisera eu perguntar-lhe: - Como te chamas? - e seria esse um meio infalível de saber o seu nome todo, mas isso é lá pergunta que um homem possa fazer a um camarada que há vinte anos o trata por tu...

Um dia lancei mão de um ardil:

- Tens aí um dos teus cartões de visita para a minha coleção? Estou reunindo num álbum os cartões de todos os meus amigos.

- Cartões de visita? Nunca os tive! Nunca me submeti a essa ridícula exigência da vida social. Sou um boêmio. - Adeus, Arturibus.
    * * *

E era, efetivamente, um boêmio.

Entretanto, dispunha de recursos, não pedia nada a ninguém e, de vez em quando, fazia longas que eu o supunha morto.

Quando já estava esquecido, reaparecia, sempre com as suas calças brancas, a sua sobrecasaca, o seu chapéu alto e sozinho sempre, dizendo que tinha feito um viajão.
    * * *

Uma vez, passando por certa rua desta cidade, vi grande ajuntamento de povo às portas de uma farmácia.

Curioso, como toda a gente, perguntei o que tinha havido.

Era um homem que, passando por ali, entrara incomodado e falecera subitamente de uma síncope cardíaca. Estavam à espera da carrocinha que devia levá-lo para o Necrotério.

Entrei na farmácia e reconheci que o morto era ele, o meu misterioso amigo.

O farmacêutico, homem já maduro, conhecia-o tanto como eu.

- Conhecemo-nos há longos anos - disse-me ele. - Tratava-me por tu, não me passava pela porta que não me dissesse: - Adeus, Joãozinho! - mas nunca lhe soube o nome, nem o emprego, nem a residência.

Entre os circunstantes, muitos o conheciam de vista; nenhum ligava o nome à pessoa.
* * *

O cadáver foi removido para o Necrotério.

- Até que afinal vou saber quem ele era! A identidade do morto há de ser reconhecida pela polícia.

Pois não foi. A polícia nem ao menos descobriu o domicílio do meu amigo, e, por mais estranho que isto pareça, a verdade é que figurou no obituário como "um desconhecido de 50 anos presumíveis".

– Quem ele era?

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos vários.

Livro D’Ouro da Poesia Portuguesa – 4


Leonor de Almeida Portugal
(Marquesa de Alorna)


(Lisboa, 1750 – 1839)

SONETO

Este ser que me deu a natureza,
Vai desorganizando a enfermidade;
Sinto apagar da vida a claridade
Doma as corpóreas forças a fraqueza

Vai crescendo em minha alma a fortaleza
Quanto cresce do mal a intensidade;
As portas áureas me abre a Eternidade,
E lá cessam cuidados e tristezas.

Vou amar quem somente é amável
Em oxigênias luzes abrasar-me
Nunca errar, nem temer gente implacável

Vou nos jardins celestes recrear-me
E no seio de um Deus justo, adorável,
A tudo o que me falta associar-me.
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Manuel Maria Barbosa Du Bocage

(Setúbal, 1765 - 1805, Lisboa)

SONETO

Oh Rei dos reis, oh Árbitro do mundo,
Cuja mão sacrossanta os maus fulmina,
E a cuja voz terrífica, e divina
Lúcifer treme no seu caos profundo!

Lava-me as nódoas do pecado imundo,
Que as almas cega, as almas contamina:
O rosto para mim piedoso inclina,
Do eterno império Teu, do Céu rotundo:

Estende o braço, a lágrimas propício,
Solta-me os ferros, em que choro e gemo
Na extremidade já do precipício:

De mim próprio me livra, oh Deus supremo!
Porque o meu coração propenso ao vício
É, Senhor, o contrário que mais temo.
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Antero de Quental

(Ponta Delgada, 1842 – 1891)

NA MÃO DE DEUS

Na mão de Deus, na sua mão direita
Descansou afinal meu coração.
Do palácio encantado da Ilusão
Desci a passo e passo a escada estreita.

Como as flores mortais, com que se enfeita
A ignorância infantil, despojo vão,
Depus do Ideal e da Paixão
A forma transitória e imperfeita.

Como criança, em lôbrega jornada,
Que a mãe leva no colo agasalhada
E atravessa, sorrindo vagamente,

Selvas, mares, areias do deserto...
Dorme o teu sono, coração liberto,
Dorme na mão de Deus eternamente!
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António Duarte Gomes Leal

(Lisboa, 1848 - 1921)

O ÚLTIMO GOLPE DE LANÇA

Quando Ele enfim morrendo, Ele, o cordeiro,
Rola mansa no ar calado e imundo,
Pendeu, bem como um lírio moribundo,
Sobre a haste do trágico madeiro;

Quando lançado o espírito profundo
Ao reino belo, grande, verdadeiro,
Caiu enfim chagado, justiceiro,
Ainda, ainda perdoando ao mundo:

Um soldado romano vendo-o exposto,
E já morto na cruz, lívido o rosto,
Com um golpe de lança o trespassou.

Saiu daquela chaga sangue e água:
Sangue que ainda quis dar a tanta mágoa,
Água de pranto ainda que chorou!
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Florbela Espanca

(Vila Viçosa, 1894 – 1930, Matosinhos)

ESCRAVA

Ó meu Deus, ó meu dono, ó meu Senhor,
Eu te saúdo, olhar do meu olhar,
Fala da minha boca a palpitar,
Gesto das minhas mãos tontas de amor!

Que te seja propício o astro e a flor,
Que a teus pés se incline a Terra e o Mar,
P’los séculos dos séculos sem par,
Ó meu Deus, ó meu dono, ó meu Senhor!

Eu, doce e humilde escrava, te saúdo,
E, de mãos postas, em sentida prece,
Canto teus olhos de ouro e de veludo.

Ah! esse verso imenso de ansiedade,
Esse verso de amor que te fizesse
Ser eterno por toda a Eternidade!...

Fonte:
Sammis Reachers (org.). Antologia de poesia cristã em língua portuguesa. e-book.

Ivan Lessa (Maresia)


Tinha bigodes e uma cadeira no bar. Sentava-se de banda para a mesa, um pouco inclinado, como a coluna de rodelas de chope. Por sobre o cinto, que mal se via, a barriga se anunciava feito mercadoria ‒ deliciosa e a preço excepcional ‒ por cima de um balcão.

Era um homem de bar que fora um menino de praia. Mas mesmo na concentração aflita dos que se acostumam à cerveja, guardara um certo jeito de quem foi muito ao mar ‒ parecia, sentado, alguém que quer sair. Se dele retirassem a camada de pele encontrariam logo depois uma outra feita de sal tostado, areia e plasma, sempre ao sol. Ia ao bar como um nadador que procura, de cada vez, aguentar um pouco mais a submersão. Onde quer que ele entrasse havia um clima de fundo de mar: pressões, uma lentidão espessa, um aposento de se cruzar e não se atravessar, com cautela, pois poderia surgir debaixo da mesa um mero e, em cima da cadeira, um polvo estivesse a descansar.

Bigodes, barriga, bar e uma casa também. Nela entrava sempre molhado da rua, as artérias batendo, com sede e querendo se deitar ‒ exatamente como se estivesse saindo do mar.

Mas não havia mais mar, havia bigodes, barriga e bar. Onde fora parar aquele mar todo? Aqueles momentos de pura paixão física? Onde os ruídos que os chinelos faziam arranhando a areia? Onde a camisa com que enxugar o rosto e guardar debaixo da barraca ao lado dos óculos respingados e do maço de cigarros com a chave e a nota de mil debaixo do celofane? Onde aquela tragada molhada? Pés ao sol, cabeça à sombra. As ondas boas, o mergulho bom, bom esse óleo, boa a toalha.
***

Bêbado, muito bêbado, ele dava telefonemas errados em horas impróprias. Ligava de madrugada para mulheres, agora casadas, que atendiam de mau humor e desligavam logo. Ele dizia palavrões baixinhos e passava o copo na testa. Como todo homem de mar, falava mal das piscinas ‒ indecências sem peixes.

Daí ouviu a voz: “Vai ao mar que o mar ensina”. E foi.

“Mar, depois de tanto tempo eis-me aqui de novo. Eu, o turrão, o zangado. Você, suas coisas todas. Mar, me dá. Mais uma vez só. Por favor”.

E, primeiro com os pés, experimentou o mar frio. Molhou os pulsos, com a água fez o sinal da cruz, deixou-se, desajeitado, ir caindo. Entrava no velho quarto sem tatear, conhecia aquela escuridão.

Fonte:
Diário Carioca. RJ, 22 de dezembro de 1965.