quinta-feira, 7 de abril de 2022

Aparecido Raimundo de Souza (Parte 52) Porre

ALGUÉM BATE na porta da casa de Raulzinho, com insistência descomedida. Nesse momento o telefone também começa a tocar desesperado. O rapaz fica indeciso. Estanca no meio do caminho. “E agora? De quem eu cuido primeiro?” Decide pelo telefone. Odeia o barulho da campainha. Dá nos ouvidos. Corre para o aparelho. As batidas na porta persistem:

— Alô? Quem é?

— Eu, o Pedro. Por que demorou em atender?

— Pedro, meu amigo, me liga daqui a vinte minutos. Estão batendo na minha porta.

— Ué! Porque?

— Que pergunta mais besta! Estão batendo, ora bolas.

— Mas quem faria uma coisa dessas?

— Vinte minutos, meu amigão. Tchau!

— Não, fale comigo. Espere Raulzinho. Agora fiquei preocupado.

— Preocupado com que, Pedro?

— Com o que acabou de me falar.

— Meu Deus, Pedro. Pedi para você me retornar a ligação em vinte minutos...

— Eu sei, eu sei...

— Então, cara, faça isso.

— Quem está ai, além de você?

— Ninguém.

— A Júlia?

— Na feira.

— As crianças?

— Os dois na escola.

— A Zica, sua empregada?

— Com Júlia, de companhia. Sabe como é, né? Grávida de novo, aquele barrigão...

— Seus vizinhos?

— Qual deles, Pedro?

— Qualquer um. Do lado direito, do lado esquerdo, de frente...

— Pedro, ô Pedro, quer me escutar um minuto?

— Fala meu amigo. Você me parece nervoso. Meio que fora de controle. Aconteceu algo sério, Raulzinho?

— Pedro, me ouça. Do lado direito, mora o “Janjão 38”.

— Tá. E do esquerdo?

— O Moringa da “Torneirinha de Ouro”.

— Raulzinho, chame o mais parrudo. Prometa que vai entrar em contato com o mais parrudo. Ou aquele que melhor possa lhe prestar algum tipo de socorro urgente.

— Prestar socorro urgente? Pedro, você por acaso bebeu? Pirou na batatinha? Escuta uma coisa: “Janjão 38” a esta hora, deve andar pelo terceiro sono. Trabalha a noite, descansa durante o dia. O Moringa saiu com a esposa e os filhos praticamente junto com a Júlia e a nossa empregada.

— Tá, tá, tá. E o seu vizinho de frente? Esquecemos dele. Acione o sujeito.

— Vizinho de frente? Que vizinho de frente, seu maluco? Não tenho vizinho de frente.

— Como não? Tem do lado direito, do lado esquerdo e, de frente, não?

— Foi o que disse. Agora, por obséquio, Pedro. Deixa de ser inconveniente, me dá licença. Continuam batendo na porta...

— Pera aí, pera aí. Raulzinho, o que é que tem em frente a sua casa?

— A rua.

— Pombas, seu jumento. Do outro lado da rua?

— A calçada.

— Imbecil! Desculpe. Meu amigo. Desculpe, de verdade. Não é isso que eu quero saber. Perguntei se mora alguém.

— Em frente?

— É claro que é em frente. Será o Benedito?

— Não mora ninguém.

— A casa está vazia?

— Não.

— Então tem gente?

— Não.

— A cada minuto que passa, menos entendo! Como você complica...

— Pedro, aqui em frente não existe nenhuma casa. É um terreno baldio. Agora, por favor, para de ser importuno e maçante. Desliga esse telefone e me deixa ir cuidar da porta. Por favor. Seja lá quer for, parece furioso e fora de controle. Sabe que estou aqui e as pancadas estão cada vez mais fortes. Nunca vi ninguém bater assim na casa de uma pessoa com tamanha insistência.

— Que é isso, meu amigo? Então ainda estão batendo nela?

— Batendo não seria bem o termo. Agora o cidadão partiu para a ignorância. E tome pancadas. Você não está escutando? Quem está lá sabe que estou aqui. Meu carro está na frente do portão.

Procura se acalmar. Toma fôlego e prossegue:

— Acredito até que me viu entrando. Fui cedo à padaria. Olha, Pedro, me faça um obséquio: desliga e daqui a trinta minutos, a gente retorna com o papo. Dá pra ser, ou está difícil?

— Você falou trinta. E outra coisa: como sabe que é um cidadão? Pode ser uma mulher. Não pode?

— Que seja cidadão, cidadã, mulher, cavalo, porco... com relação ao tempo que mencionei vinte, quinze, ou trinta minutos, que diferença isso faz? Agora desliga, meu amigo. Estou ficando ligeiramente apreensivo.

— Ela está muito machucada?

— Por tudo quanto é sagrado! Ela quem, Pedro?

— A porta. Você não falou que estão batendo aí na sua porta? Batendo não, espancando? O que foi que ela fez? Fechou na cara de alguém? Prendeu o dedo de algum amiguinho de seus filhos e, agora, o pai, está no seu pé, querendo tirar satisfações? Ou arranjar um jeito de criar confusão? Talvez a empregada, por descuido...

—... Pedro, Pedro, Pedro, você está me gozando?

— Claro que não.

— Tirando um sarro?

— “Qué” isso, mano? “Qualé” a sua?

— Então, por Deus, pelo amor de Deus, lhe imploro, desliga esse desgraçado e maldito telefone. A porta, Pedro, a porta. Vão acabar derrubando a coitada... de tanta cacetada...

— Vão? Você disse vão? Então é mais de um? Não se preocupe. Vou ligar para a polícia.

— O quê? Polícia?

— Não se desespere. Mantenha os nervos relaxados. Vá até a cozinha e tome um café bem quente, sem açúcar. Café ajuda a manter os nervos controlados. Nada de pânico. Conte até vinte. Não, cinquenta. Tira uma dúvida, Raulzinho... a polícia é 190 ou 130?

— Pedro, você não vai ligar coisíssima nenhuma.

— Calma. Espere. Estou consultando o guia telefônico. Num piscar de olhos aciono uma viatura. Fique calmo. Estou saindo daqui agora e indo ao seu encontro. Aguarde que logo estarei pintando na área. Questão de minutos, segundos, milésimos de centésimos...

— Pedro, Pedro, Pedro... Pedroooooooooo...

— Já sei, Raulzinho... estão batendo na sua porta.

— Pedro, Peeeeeeeeeedro...

— Raulzinho, você é um homem ou um rato? Estou indo, seu filho de uma rapariga da zona. Pare de dar chiliques. Ao menos seja homem com agá maiúsculo, como sua mãe. Credo!

— Peeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeedro, filho de uma égua é você. Vá...

Barulho de telefone sendo desligado às pressas. Raulzinho corre à porta da sala. Está suando em bicas. Pedro conseguiu lhe tirar do sério. Faz o sinal da cruz. Vira a chave. Abre.

Dá de cara com Pedro, em carne e osso, o telefone ainda no ouvido, o amigo, do lado de fora, se escangalhando de rir.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Como escrever uma análise crítica - Parte 3, final

ESCREVENDO UMA ANÁLISE


1. Comece a dissertação com uma rápida descrição do objeto da análise.

Dê todas as informações básicas sobre o trabalho, como o nome do autor, o título, a data da publicação e o que mais for relevante.

Fale sobre o que se trata e as intenções.

Escreva tudo em duas ou três frases.

Por exemplo, forneça as informações básicas na primeira frase e descreva o ponto de vista do texto nas duas seguintes.

2. Indique o seu ponto de vista no final da introdução.

Coloque uma síntese do seu parecer logo após a descrição dos argumentos principais do autor.

Aponte onde o texto falhou ou foi bem sucedido, dependendo da avaliação que você realizou.

Escreva algo como: "O artigo faz uma ótima análise dos efeitos que o consumismo provoca no meio-ambiente".

Por outro lado, se a avaliação for negativa, diga, por exemplo: "O quadro não consegue exprimir de forma consistente a crítica social pretendida."

3. Resuma o trabalho em um parágrafo.

Depois de dar a sua avaliação, resuma o texto ou a obra em um parágrafo. Use a síntese que você preparou logo após ler o texto ou escreva algo diferente.

Trate apenas dos elementos mais importantes.

Lembre-se de que esse é o único espaço dedicado ao resumo, porque você tem que escrever a análise nas outras partes.

4. Em cada um dos parágrafos de desenvolvimento avalie um dos argumentos do texto.

Após fazer o resumo, comece a demonstrar o seu ponto de vista.

Você achou o artigo pouco convincente? Reserve um parágrafo para apontar os motivos. Do mesmo modo, se for o caso, guarde um parágrafo para mostrar por que o trabalho o impressionou.

Elabore uma lista caso você esteja com dificuldade para identificar o que faz o texto ser eficiente. Seguem alguns itens podem ajudá-lo a pensar sobre o que escrever:

Organização.
Como o autor organizou a argumentação?
A abordagem é boa ou ruim?
Por quê?

Estilo.
Qual foi o estilo escolhido para sustentar as ideias?
Esse aspecto piorou ou melhorou a qualidade do argumento?

Persuasão.
O texto consegue convencer o leitor?
Por quê?

Parcialidade.
O autor foi parcial ou imparcial ao tratar do assunto?
O que justifica a sua avaliação?

Apelo a um público específico.
O trabalho dirige-se a um público em particular?
Em caso afirmativo, diga quem seria esse público e se o autor teria sido bem sucedido.

5. Busque as evidências no próprio texto para deixar a sua análise mais robusta.

Você tem que retirar exemplos do artigo, seja com uma citação, uma paráfrase ou um resumo feito com as próprias palavras.

Coloque os trechos extraídos entre aspas e indique o número da página toda vez que você fizer uma citação.

Talvez você precise usar um estilo específico, como o da ABNT.

6. Conclua com um parecer final sobre a argumentação do texto.

Esse é o momento de resumir as ideias principais da análise e dar uma opinião sobre o trabalho em geral. Ou seja, diga se o autor conseguiu ou não fazer o que propôs.

Não repita de forma literal a introdução ou outras partes da sua dissertação.

Retome as informações mais importantes usando outras palavras ou discuta as consequências do que você escreveu ao longo da análise.

Por exemplo, é possível colocar na conclusão que o texto tem algumas partes interessantes, mas que acabou não atingindo os seus próprios objetivos.

Discuta os motivos em duas ou três frases.

Dica
Não se esqueça de fazer pelo menos uma boa revisão do texto e de corrigir os erros!

Fonte:
wikihow

quarta-feira, 6 de abril de 2022

Dorothy Jansson Moretti (Album de Trovas) - 1

  
Fonte: 
Montagem com trovas/Imagens no facebook da trovadora

Carlos Drummond de Andrade (País sem Binóculos)

Não sei se também ao leitor, mas a mim costumam telefonar a horas chamadas mortas (horas, pelo contrário, em que se sente respirar até a fibra da madeira) para dizer alguma coisa que não é comigo. Em geral, chamam pelo Nosso Bar. Há sempre, na noite, uma pessoa querendo comunicar-se desesperadamente com o Nosso Bar. Já pensei em trocar o número do aparelho, mas desisti: quem me garante que outros indivíduos não estarão por aí tocando para o Meu Bar, e que os números não passariam a ser irmãos? Habituei-me a esse bar de número parecido. Procuro esclarecer ao telefonador que não sou o Nosso Bar, ele muito se admira, disca de novo, mas quer falar é com o Nosso Bar, ora essa. Só uma vez, entre as dobras do sono, atendi e resmunguei:

– É do Nosso Bar.

– Desculpe, foi engano! — e desligaram.

Mas um instante depois, o telefone retiniu de novo, e, desta vez, outra voz:

– É do Nosso Bar?

Não sei se também tocam para o Nosso Bar, chamando este pobre cronista, que nunca pôs lá os pés. Mas a introdução vai ficando comprida, e eu queria é contar o telefonema do Vate-Noturno, que, por força mesma do nome, só costuma chamar-me quando, como no dizer homérico, os caminhos se encheram de sombra. Todas as noites, depois de ingerir umas e outras, sente necessidade de dizer-me pelo telefone palavras amáveis e, vez por outra, durezas. Nem sempre consegue dizer nada, mas entende-se o que ele queria exprimir, era um afeto, uma tristeza, um problema.

– Drummond? Aqui é o Vate-Noturno. Aposto que você não adivinha de onde estou falando.

– Do Nosso Bar. — falei a esmo.

– Nosso Bar coisa nenhuma. Do bar da Abi também não. Nem do Alpino. Estou falando do Bar do Municipal. Acabei de tomar uma atitude, sabe?

– E ficou machucado?

– Você não conhece o Vate-Noturno. Pensa que sim, mas não me conhece a-bi-sso-lu-ta-men-te. Por que havia de me machucar? Bem, lá dentro o Bip está caminhando sobre o oceano, compreendeu? Mas eu é que não vou ver.

– Bip? Que Bip?

– Puxa! Você está um bocado fora. O Marcel Marceau, velho, quem havia de ser? Começou a segunda parte do espetáculo, a que eu faço questão de não assistir!

– O Marceau lhe fez alguma grosseria?

– A mim não, eu é que faria a ele se continuasse a vê-lo.

– Não entendi.

– Lógico que não entendeu. Pois se falta o binóculo.

– Que binóculo?

– O binóculo que eu não tenho e agora compreendi que é essencial. Comprei a duras penas uma galeria para ver o Marceau. E vi. Mas vi só o vulto, o contorno geral do gesto, não via o pormenor delicado, a sutileza das mãos, dos dedos, mil e um detalhes da mímica. Então senti falta de um binóculo. Perguntei ao vizinho da esquerda se tinha um para emprestar. Não tinha. A garota da direita, também não. Comecei a falar baixinho: “Binóculo, binóculo”. Depois, um pouco mais alto. E não aparecia nenhum. Entraram a fazer psst, aí eu me chateei e gritei: “Não se pode nem desejar um binóculo? É um crime ver Marceau a essa distância, deste planalto, sem binóculo!”. Aí me puxaram pelo braço e me tiraram de lá. Vim para o bar e estou satisfeito com a minha atitude. Você tem binóculo em casa?

– Nunca tive binóculo.

– É isso. Ninguém tem binóculo neste país. País sem binóculos! E querem ver Marcel Marceau!

Era meia-noite, e o Vate-Noturno ameaçava levar a outros bares a campanha do binóculo.

– Leve também ao Nosso Bar! — sugeri.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. A bolsa & a vida. Publicado em 1962.

Antonio Juraci Siqueira (Poemas Recolhidos) 2


CIVILIZAÇÃO

Tantos rostos perdidos
na imensa avenida
que a lida transforma
num abismo sem fim.

Tantas mãos que tateiam
pela escuridão
à cata de amor,
de abrigo, de pão...

Ouvidos atentos
que nada mais ouvem,
olhos abertos que nada mais veem,
pés que se movem no mesmo lugar...

Pobre caminheiro sem caminho,
pássaro sem asas e sem ninho!

Triste animal que ri da própria sorte,
que sepulta a vida e ressuscita a morte!

Mas a festa continua e ele dança.
Dança e canta,
canta e cansa,
cansa e morre
porre de orgulho e presunção
por ser integrante
de tão propalada
civilização!!!
=======================

INCÓGNITO

Parti no alvorecer, ainda menino,
à procura do Amor e da Verdade
mas antes de se por o sol a pino
entre pedras perdi a identidade.

Debalde tento agora reencontrá-la
em cada esquina, em cada gesto e olhar...
- Quem sou?  -  pergunto ao céu e ele se cala;
- Que sou? – desesperado indago ao mar.

E sem respostas – pássaro sem ninho –
vou pela vida na indefinição
de quem procura, às cegas, um caminho
para o porto inseguro da ilusão.
=============================

JUVÊNCIO

Assim vai Juvêncio
na sua aventura.
Da mata, o silêncio,
suave langor...
- Que motivo tanto
pra tanta bravura?
- Vai atrás do encanto
do seu santo amor.

Um riso escondido
no rosto moreno.
Herói das entranhas
das matas em flor.
No olhar sereno,
uma luz estranha...
Coisas do Cupido,
ciladas do amor!

Vai rasgando as águas
revoltas e turvas,
afogando as mágoas,
sufocando a dor.
Vai dobrando as curvas
do rio e da vida,
esquecendo a lida.
Vai ver seu amor!
      
A noite já avança,
o sol já descansa,
remar, seu ofício,
sua sina, lutar.
A canoa balança,
o remo lhe cansa.
Tanto sacrifício
pelo verbo amar!...

Não sente pavor
de fera ou visagem,
só pensa na imagem
da Rosa a esperar.
Vai pensando nela,
tão meiga, tão bela,
repleta de amor
e beijos pra dar.
==========================

QUANDO

Quando o fogo destes versos consumir
teus segredos, virtudes e pecados,
eu estarei à margem do caminho
qual Prometeu furtivo te espreitando
para roubar a chama imorredoura
que arde na redoma indestrutível
do teu peito risonho de criança.

 Quando a fome do amor comer meus olhos
impedindo-me de ver as mariposas
que copulam sobre as pétalas noturnas
de um rubro girassol filosofal,
tu estarás oculta entre as miragens
de um sonho metafísico gravado
numa canção latino-americana.

Então, quando isso tudo acontecer,
não seremos , simplesmente, macho e fêmea:
seremos sementes de vida e esperança
a germinar nos campos da existência,
a florescer no amor e dar ao mundo
os cobiçados pomos da poesia.

Antônio Torres (Preconceito de linguagem...)

Na Romênia, segundo dizem os jornais franceses, que agora muito se interessam por tudo quanto diz respeito aos moldo-valáquios, na Romênia há certas palavras que em todas as outras línguas cultas têm significação nobre e que entre os romenos têm significação pejorativa. Chamar, por exemplo, a algum romeno marquês, ou condessa a alguma romena, é cometer injúria e grande. Entre eles, não se diz príncipe em romaico, porque esta palavra tem a significação analógica de jogral; de sorte que adotaram lá a palavra francesa prince, para designar qualquer membro da família real. A palavra rei também é injuriosa. Tanto assim que, na tradução do livro bíblico dos Reis, escrevem os romenos Livro dos Imperadores!

Em português há também palavras de significação primitivamente honesta e que entretanto agora não podem ser pronunciadas diante de pessoas de respeito. No norte de Minas, por exemplo, como no Norte de todo o país, chamar dama a uma senhora é arriscar a pele. Dama, lá por aquelas plagas, é “mulher perdida”.

A palavra moça pode ser pronunciada diante de quem quer que seja. “Esta menina está ficando moça” — “Sua filha é uma bela moça" — são expressões correntes. Entretanto, querendo alguém referir-se à amásia de alguém diz: “A moça de Fulano”!

Rapariga! É uma das palavras mais lindas da nossa língua. Em Minas, entretanto, rapariga aplica-se mais às mulheres do serviço doméstico, isto é, amas, cozinheiras, arrumadeiras, etc. Aqui, já vai tendo significação pejorativa: casa de raparigas é o mesmo que bordel. Ora, é um absurdo isso. Rapariga é simplesmente feminino de rapaz. Seria encantador poder toda gente dizer, como ainda há dias ouvi dizer a um espírito eminente, que me dá a honra da sua amizade: “Você não imagina que rapariga valente é minha mulher”.

Mãe! Não se discute a beleza desta suavíssima palavra. Pois também a palavra mãe vai assumindo significação equívoca. Em certas locuções é um vocábulo pelo menos suspeito. Os jornais já começam a substituí-lo por progenitora. É incrível! Que qualquer palavra possa derrancar com o tempo compreende-se; mas a palavra mãe? O noticiário elegante tem receio de dizer: “Faz anos hoje a Sra. Dona Fulana, muito digna mãe do nosso amigo Sr. Beltrano”. Em vez de mãe, escrevem progenitora, que é uma palavra erudita, seca, como todas as coisas eruditas, fria e pernóstica. Mãe é alguma coisa tépida, doce, nobre como o colo materno. Progenitora é simplesmente uma delicadeza de moleque bem-falante.

Mãe, colegas, mãe! Devemos escrever “a mãe do Sr. Fulano”, da mesma forma que escrevemos “O pai do Sr. Beltrano” e “o filho de Dona Sicrana”. Ninguém diz na intimidade — “vou beijar minha progenitora”, mas simplesmente — “vou beijar minha mãe”.

É para desejar que os jornais abandonem de uma vez a palavra progenitora, que é, etimologicamente, muito mais grosseira do que mãe. Progenitora compõe-se do prefixo pro e da raiz genite, de gigno, gignis, genui, genitum, gignere, que quer dizer gerar. De maneira que, posta em bom vernáculo, progenitora é a pró ou antegeradora do Sr. Fulano. Não sei onde está a delicadeza desta expressão.... Por conseguinte, de uma vez para sempre, estabeleçamos que os homens têm virtuosas e dignas mães, e não ridículas e pernósticas progenitoras.

Fonte:
Antônio Torres. Verdades Indiscretas. publicado em 1920.

terça-feira, 5 de abril de 2022

Adega de Versos 76: Edmar Japiassú Maia

 

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XXXVIII

DOZE SIGNOS DO CÉU O SOL PERCORRE  


Doze signos do céu o Sol percorre,
E, renovando o curso, nasce e morre
Nos horizontes do que contemplamos.
Tudo em nós é o ponto de onde estamos.

Ficções da nossa mesma consciência,
Jazemos o instinto e a ciência.
E o sol parado nunca percorreu
Os doze signos que não há no céu.
= = = = = = = = = = = = =

DURMO, CHEIO DE NADA, E AMANHÃ  

Durmo, cheio de nada, e amanhã
é, em meu coração,
Qualquer coisa sem ser, pública e vã
Dada a um público vão.

O sono! este mistério entre dois dias
Que traz ao que não dorme
À terra que de aqui visões nuas, vazias,
Num outro mundo enorme.

O sono! que cansaço me vem dar
O que não mais me traz
Que uma onda lenta, sempre a ressacar,
Sobre o que a vida faz ?!
= = = = = = = = = = = = =

DURMO. REGRESSO OU ESPERO?  

Durmo. Regresso ou espero?
Não sei. Um outro flui
Entre o que sou e o que quero
Entre o que sou e o que fui.
= = = = = = = = = = = = =

É BOA ! SE FOSSEM MALMEQUERES !  

É boa ! Se fossem malmequeres !
E é uma papoula
Sozinha, com esse ar de "queres?"
Veludo da natureza tola.

Coitada !
Por  ela
Saí da marcha pela estrada.
Não a ponho na lapela.

Oscila ao leve vento, muito
Encarnada a arroxear.
Deixei no chão  o meu intuito.
Caminharei sem regressar.
= = = = = = = = = = = = =

O LOUCO    

E fala aos constelados céus  
De trás das mágoas e das grades  
Talvez com sonhos como os meus ...  
Talvez, meu Deus!, com que verdades!  

As grades de uma cela estreita  
Separam-no de céu e terra...
Às grades mãos humanas deita  
E com voz não humana berra...
= = = = = = = = = = = = =

É INDA QUENTE  

É inda quente o fim do dia...
Meu coração tem tédio e nada...
Da vida sobe maresia...
Uma luz azulada e fria
Para nas pedras da calçada...
Uma luz azulada e vaga
Um resto anônimo do dia...
Meu coração não se embriaga
Vejo como quem vê e divaga...
E uma luz azulada e fria.
= = = = = = = = = = = = =

EM OUTRO MUNDO, ONDE A VONTADE É LEI

Em outro mundo, onde a vontade é lei,
Livremente escolhi aquela vida
Com que primeiro neste mundo entrei.
Livre, a ela fiquei preso e eu a paguei
Com o preço das vidas subsequentes
De que ela é a causa, o deus; e esses entes,
Por ser quem fui, serão o que serei.

Por que pesa em meu corpo e minha mente
Esta miséria de sofrer ? Não foi
Minha a culpa e a razão do que me dói.

Não tenho hoje memória, neste sonho
Que sou de mim, de quanto quis ser eu.
Nada de nada surge do medonho
Abismo de quem sou em Deus, do meu
Ser anterior a mim, a me dizer
Quem sou, esse que fui quando no céu,
Ou o que chamam céu, pude querer.

Sou entre mim e mim o intervalo  _
Eu, o que uso esta forma definida
De onde para outra ulterior resvalo,
Em outro mundo.

Como escrever uma análise crítica - Parte 2


ANALISANDO O TEXTO


1. Observe como você reage ao texto.

Como você se sentiu ou no que pensou ao lê-lo?

A maneira como um discurso afeta as emoções das pessoas é chamada de "pathos", que é um componente fundamental da retórica.

Anote as primeiras reações, sejam elas boas ou ruins. Tente explicar o motivo de você se sentir assim. Localize as características do texto que provocaram os sentimentos.

Você ficou nervoso? Qual foi o elemento do texto que o deixou desse jeito?

Você ficou rindo sem parar? O que é tão engraçado?

2. Leve em consideração a biografia do autor e pense em como ela se relaciona com a obra.

Será que o ponto de vista defendido não tem a ver com os outros trabalhos do mesmo autor sobre o tema? Dar uma olhada nisso pode ajudá-lo na análise crítica.

Confira o histórico do autor e tente compreender por que ele adotou um determinado ponto de vista.

O que ele já escreveu sobre o assunto? Ele segue uma linha ou escola de pensamento?

Por exemplo, o autor é um entusiasta do ensino à distância? Talvez esse fato explique o viés dos seus artigos sobre a reforma do sistema educacional.

A formação e a titulação (doutorado ou mestrado, por exemplo) do autor também fazem parte da biografia dele.

Esses são os elementos do "ethos": a formação acadêmica e os títulos dão credibilidade.

3. Avalie a forma como os conceitos foram empregados.

O autor trabalhou com os conceitos de um modo claro e correto? Ou ele usou noções frágeis e
inadequadas?

Caso a resposta da última pergunta seja "sim", você encontrou um ponto importante para avaliar. Identifique o que está errado ou confuso e como esses aspectos poderiam ser melhorados.

Por exemplo, o texto faz um explicação do efeito estufa longa, confusa e cheia de termos técnicos?

Concentre as críticas nessa parte.

Dica: Lembre-se de que você pode dar uma opinião favorável caso o texto tenha uma qualidade positiva.

Por exemplo, o autor descreveu o funcionamento do efeito estufa de um modo simples e com uma linguagem acessível? Elogie esse trecho.

4. Avalie como o autor trabalha com as evidências.

O texto se baseia em evidências sólidas?

Esse é outro ponto muito importante da análise. Confira a credibilidade de todas as referências citadas ao longo do trabalho. Veja se elas realmente reforçam o ponto de vista defendido. Em caso afirmativo, considere que o autor fez um bom uso do "logos", ou seja, o aspecto conceitual do texto.

Quando um autor menciona o conteúdo de um site muito tendencioso, o raciocínio fica comprometido. Por outro lado, a argumentação fica mais robusta ao citar fontes mais equilibradas e imparciais.

Não são todos os tipos de trabalho que apresentam evidências. Por exemplo, não tem por que um romance ou uma peça de teatro se preocuparem com comprovações.
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continua...

Fonte:
wikihow

segunda-feira, 4 de abril de 2022

Isabel Furini (Poema 25): Demais

  
Fonte: Facebook da poetisa.

Filemon Martins (Escadas de Trovas) I

Obs: Escada de Trovas: A trova raiz (No Topo) é geralmente de outro trovador. O tipo de escada do caso é o subindo, em que a primeira trova tem no 1. verso o 4. verso da trova raiz, na segunda trova tem no 1. verso o 3. verso da raiz, e assim por diante.

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A LUA

NO TOPO:
"É frio, a noite descansa;
O espaço é vasto e medonho.
De repente, a lua mansa
Surge nos braços de um sonho".
Humberto Del Maestro 
(Vitória - ES)

SUBINDO:
"Surge nos braços de um sonho"
numa beleza sem fim,
e a poesia que componho
fica mais perto de mim.

"De repente, a lua mansa"
aparece sorridente
dando vivas à esperança
e sorrindo à minha frente.

"O espaço é vasto e medonho"
quase sempre me dá medo,
que às vezes fico tristonho
pensando no teu segredo.

"É frio, a noite descansa"
e eu sonho com as estrelas
tão belas, ninguém alcança,
- só é permitido vê-las.
= = = = = = = = = = = = =

AMORES

NO TOPO:
"Saudade, de quando em quando,
Provoca mágoas e dores,
Pois vai de amores matando
Quem vive lembrando amores".
Mário Barreto França
(Recife/PE, 1909 – 1983, Rio de Janeiro/RJ)


SUBINDO:
"Quem vive lembrando amores"
vai perdendo a emoção,
porque viver velhas dores
não faz bem ao coração.

"Pois vai de amores matando"
momentos bons, sem iguais,
que a vida vai cultivando
ao longo dos ideais.

"Provoca mágoas e dores"
quem parte e fica também,
pois todos os dissabores
são as saudades de alguém.

"Saudade, de quando em quando"
sem ser plantada, floresce,
no peito já vai brotando
como se fosse uma prece.
= = = = = = = = = = = = =

DEUS

NO TOPO:
"Quando chegam dissabores,
Vejo o céu todo estrelado,
Nos campos eu vejo flores,
E a Deus eu digo; obrigado"!
Carlos Ribeiro Rocha
(Ipupiara/BA, 1923 – 2011, Salvador/BA)


SUBINDO:
"E a Deus eu digo: obrigado"
ao ver a vida na serra,
o mundo fica encantado
com as belezas da Terra.

"Nos campos eu vejo flores"
iguais no mundo não há,
perfumadas são amores
que a Natureza me dá.

"Vejo o céu todo estrelado"
a nutrir os sonhos meus,
e eu fico mais deslumbrado
ante a beleza de Deus.

"Quando chegam dissabores"
que a própria vida me traz,
esqueço das minhas dores
e escrevo versos de paz.
= = = = = = = = = = = = =

HUMILDADE

NO TOPO:
"É um prazer bem diferente
Chegar e fazer o bem,
E partir humildemente
Sem dizer nada a ninguém".
Cipriano Ferreira Gomes
(São Paulo - SP)


SUBINDO:
"Sem dizer nada a ninguém"
espalha a paz e a esperança,
como o Cristo de Belém
deixando o Amor como herança.

"E partir humildemente"
sem alarde pelo mundo,
pregando a fé, como crente,
no sentido mais profundo.

"Chegar e fazer o bem"
a todos sem distinção,
é ter, na vida e no Além
muita luz no coração.

"É um prazer bem diferente"
sentir a missão cumprida,
ver o mundo sorridente
dando mais valor à vida.
= = = = = = = = = = = = =

LEITO

NO TOPO:
"A lua divina e bela
Num capricho assim desfeito,
Invade a minha janela
E vem sonhar no meu leito".
Hedda Carvalho
(Nova Friburgo - RJ)


SUBINDO:
"E vem sonhar no meu leito"
nesta noite enluarada,
quero ver-te junto ao peito
esperando a madrugada.

"invade a minha janela"
fique aqui, feliz e calma,
que o perigo da procela
não resiste a paz da alma.

"Num capricho assim desfeito"
ainda há paz e beleza,
que o clima fica perfeito,
- o amor é luz e certeza.

"A lua divina e bela"
reina perene no céu,
lua que a todos, revela,
quem ama, não vive ao léu.

Fonte:
Filemon F. Martins. Sonetos & Trovas. RJ: Câmara Brasileira de Jovens Escritores, 2014.
Livro enviado pelo poeta.

Aparecido Raimundo de Souza (O Caspento)

SALARICO TINHA CASPAS EM DEMASIA. Por essa razão, usava um ventiladorzinho portátil, para se livrar daqueles minúsculos apontoados brancos que insistiam empestear suas camisas. Eram em tal quantidade, as “carepas”, que se sentia envergonhado, notadamente quando precisava colocar paletó com gravata e se entrevistar com outras pessoas, colegas de profissão, como ele e, que de igual forma, não podiam desobrigar da presença do terno, tampouco da distinção do porte elegante que o mesmo impunha.

“Mais mau”, nessa história, é que Salarico só possuía dois trajes, um preto e outro avermelhado. Cores que destacavam, com elevada primazia, aqueles sinais branquinhos, caídos por sobre os ombros e costas. Um amigo comum, que sabia da questão (aliás, o mesmo que lhe dera de presente o ventiladorzinho), propusera o uso de alguns xampus antiescamatórios existentes no mercado, mas, nenhum desses produtos combatia, com a eficiência esperada, o problema que, dia após dia, ganhava proporções descomunais.

Para estar com a namorada, usava uma espécie de gorro bastante ensebado, e, não havia, quem o fizesse arrancar. Às vezes, Ritinha tentava argumentar com ele, que ficaria melhor sem aquela coisa esquisita por sobre o “cocoruto”, mas qual o quê! Nada fazia o rapaz arredar pé.

O certo é que Salarico possuía os cabelos bonitos. Era bem apessoado, corpo atlético, trazia, consigo, um tipo “cheguei”, elegantemente charmoso e carismático. Pedaço de homem que toda mulher gostaria de trazer a tiracolo. Na verdade, o único estorvo que enfeiava Salarico, se consubstanciava nas malditas alvas esparramadas pelo encabelado, feito erva daninha.

Dona Salomé, sua mãe, comprara um pincelzinho, para quando as miúdas escamas se avolumassem na camisa, ou sobre o paletó, ele as retirasse, sem sujar as mãos. Uma loucura! Havia fuás para ninguém botar defeito.

Salarico fizera de tudo: usara sabão medicinal, babosa, urina de moça virgem misturada com mel, sangue de barata, com casca de ovo de codorna, excremento de galinha e maisena. Mas nada, efetivamente, dava um basta em seu grande sofrimento.

Lembrou de um colega, o “Bisonho”. Esse lhe dera um conselho meio esquisito, mas que, no fundo, parecia ser a solução definitiva para sua inexplicável desdita. Pensou, pensou, contou até dez, voltou a pensar, sopesou, repensou, consultou pessoas chegadas, visitou parentes e pediu conselhos a vizinhos. Inclusive, se imaginou, na frente de um espelho enorme, divorciado daquele maldito boné. E, se de repente, aparecesse sem, o que diria à apaixonada? Será que a moça não ficaria envergonhada ou decepcionada, ao olhar para ele? Oh! Deus, que enrosco!

E aquela cabeça danada produzindo caspas e mais caspas incessantemente...

Andou de um lado para outro. Fumou três maços de cigarros, tomou um banho frio bem demorado, se enxugou, vestiu uma roupa, voltou a ficar pelado e a cair de novo embaixo do chuveiro. Por fim, depois do quarto banho e da sexta muda de roupas, decidiu: —“Não fumo mais!”.

Com um novo pensar, saiu para a rua, resoluto. Um pensamento lhe remoía por dentro. Custasse o que custasse, poria em prática o conselho que Bizonho lhe dera. Entrou no salão do Agenor e mandou a ordem ao velho estilista capilar:

— Corta tudo...

Com o couro cabeludo a mostra, deixou a barbearia sorridente e feliz. No caminho, jogou fora o boné gorduroso e o pincelzinho que trazia no bolso da calça. No conforto do lar, guardou o ventiladorzinho numa caixa de sapatos.

Caiu, uma vez mais, no chuveiro e tomou um novo e reconfortante banho. Depois colocou a sua melhor muda de roupas. Assoviando uma canção de Roberto Carlos, seu cantor preferido, foi direto encontrar sua cara metade.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Refúgio para cornos avariados. SP: Sucesso, 2011.

domingo, 3 de abril de 2022

A. A. de Assis (Saudade em Trovas) n. 37: Antonio Roberto Fernandes

 

Fernando Sabino (Botando pra quebrar)

Dona Neném viu o anúncio na televisão e se entusiasmou: duro na queda, cai sem quebrar. Não era de hoje que esse problema vinha infernizando a sua vida doméstica: pratos trincados, xícaras sem pires, sopeiras sem tampas, peças desfalcadas inutilizando o jogo inteiro. Ela própria sendo a principal desastrada, ao ensinar a nova cozinheira como lavar a louça sem quebrar uma só peça, acabava quebrando duas.

Agora vinha aquela novidade: a louça inquebrável. Só que desta vez não era pirex, nem plástico: tinha todo o aspecto de louça de verdade.

— O senhor garante que não quebra mesmo? — perguntou no supermercado, diante da novidade em exibição na prateleira.

O empregado lhe estendeu um prato com um sorriso superior:

— Se não acredita, pode experimentar.

Dona Neném é dessas que pagam para ver: atirou no chão o prato e o prato se espatifou em mil pedaços. O homem tentou recolher o sorriso agora desapontado:

— É porque bateu de quina.

— Posso experimentar outro?

Dona Neném pegou outro prato e jogou no chão, com o mesmo resultado. O homem coçava a cabeça com ar de parvo:

— Não sei como explicar...

— Este não bateu de quina.

— Devia estar com defeito.

Um senhor gordo, que se detivera para assistir à cena, afastou polidamente o empregado com o braço e se adiantou, ar suficiente:

— Não quebram mesmo, eu conheço o produto. É que a senhora jogou assim...  — pegou um prato e ergueu-o no ar como se fosse atirá-lo com força: — Ao passo que a senhora devia ter deixado cair assim.

Deixou delicadamente que o prato se escapasse de suas mãos. Ao bater no chão, o prato se espatifou.

— Então, está bem, estou satisfeita — disse dona Neném, e foi saindo.

— Espere! — saltou o homem do supermercado, ferido nos seus brios: — Eu asseguro à senhora que não quebra mesmo, quer ver?

Deixou cair um prato, que saiu saltitando pelo chão, sem se quebrar.

— Eu não disse? — tornou ele, mostrando os dentes, vitorioso: — É uma questão de jeito. Uma simples questão de jeito.

— Uma simples questão de jeito — repetiu ela: — Quer dizer que para quebrar é preciso deixar cair com jeito.

— É isso mesmo! — desafiou uma mulherzinha que se detivera junto a eles, interessada: — Com ele não quebra, mas com a gente quebra.

— Então experimente a senhora. — e o homem lhe estendeu o prato.

— Prefiro a sopeira, se o senhor não se incomoda.

Ela tinha cara de uma grande quebradora de louça. Pegou a sopeira e deixou cair: caco para todo lado. Estimulada pelo exemplo, uma menina desgarrou-se da mãe; passou a mão numas xícaras e atirou ao chão. Quebraram-se todas. O senhor gordo chamou-lhe a atenção:

— Assim não, minha filha. Tem de deixar cair.

Pegou uma pilha de pires e deixou cair. O chão se cobria de cacos de louça. A menina, entusiasmada, se servia na prateleira, atirando ao chão tudo que suas mãos alcançavam. A mulherzinha completou a obra largando no ar, delicadamente como queria o outro, a tampa da sopeira que lhe ficara nas mãos.

— Parem! Parem! — pedia o homem, desesperado: — Assim vocês me quebram a louça inteira! Alguém vai ter que pagar por isso.

Voltou-se para dona Neném, ameaçador:

— A senhora vai ter que pagar. Foi quem começou.

— Pagar, eu? Tinha graça! Devagar com a louça! Não é inquebrável? — e dona Neném botou pra quebrar, reduzindo a pedaços as últimas peças que restavam em exibição.

A essa altura a confusão já se generalizava e o gerente acorria, mobilizando os guardas de segurança da casa:

— Que está acontecendo? Que loucura é essa?

O empregado tentava se explicar, nervoso, até que o gerente o fez calar-se, botando também pra quebrar:

— Seu idiota! Cretino! Imbecil! — e apontou outra prateleira de louças: — A inquebrável é aquela! Quem vai ter que pagar é você. E está despedido.

Voltou-se para os fregueses, procurando se conter:

— Desculpem, ele é novo na casa... A louça não é esta, é aquela ali. São realmente inquebráveis, venham ver.

Dona Neném se adiantou, interessada:

— Posso experimentar?

Sem esperar resposta, pegou um dos pratos realmente inquebráveis e deixou cair. O prato esfarelou-se no chão.

Fonte:
SABINO, Fernando. Cara ou coroa? São Paulo: Ática, 2000.

Caldeirão Poético XLV

ÁLVARES DE AZEVEDO

São Paulo/SP, 1832 – 1851, Rio de Janeiro/RJ

Adeus, meus sonhos

Adeus, meus sonhos, eu pranteio e morro!
Não levo da existência uma saudade!
E tanta vida que meu peito enchia
Morreu na minha triste mocidade!

Misérrimo! votei meus pobres dias
À sina doida de um amor sem fruto...
E minh’alma na treva agora dorme
Como um olhar que a morte envolve em luto.

Que me resta, meu Deus?!... morra comigo
A estrela de meus cândidos amores,
Já que não levo no meu peito morto
Um punhado sequer de murchas flores!
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CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Itabira/MG, 1902 - 1987, Rio de Janeiro/RJ

Órion

A primeira namorada, tão alta
Que o beijo não alcançava,
O pescoço não alcançava,
Nem mesmo a voz a alcançava.
Eram quilômetros de silêncio.
Luzia na janela do sobradão.
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CLÁUDIO MANOEL DA COSTA
Mariana/MG, 1729 – 1789, Vila Rica/MG

A cada instante, Amor, a cada instante

A cada instante, Amor, a cada instante
No duvidoso mar de meu cuidado
Sinto de novo um mal, e desmaiado
Entrego aos ventos a esperança errante.

Por entre a sombra fúnebre, e distante
Rompe o vulto do alivio mal formado;
Ora mais claramente debuxado,
Ora mais frágil, ora mais constante.

Corre o desejo ao vê-lo descoberto;
Logo aos olhos mais longe se afigura,
O que se imaginava muito perto.

Faz-se parcial da dita a desventura;
Porque nem permanece o dano certo,
Nem a glória tão pouco está segura
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CRUZ E SOUZA
Florianópolis/SC, 1861-1898, Antonio Carlos/MG

Acrobata da Dor

Gargalha, ri, num riso de tormenta,
Como um palhaço, que desengonçado,
Nervoso, ri, num riso absurdo, inflado
De uma ironia e de uma dor violenta.

Da gargalhada atroz, sanguinolenta,
Agita os guizos, e convulsionado
Salta, gavroche, salta clown, varado
Pelo estertor dessa agonia lenta ...

Pedem-se bis e um bis não se despreza!
Vamos! retesa os músculos, retesa
Nessas macabras piruetas d’aço...

E embora caias sobre o chão, fremente,
Afogado em teu sangue estuoso e quente,
Ri! Coração, tristíssimo palhaço.
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GUILHERME DE ALMEIDA
Campinas/SP, 1890 – 1969, São Paulo/SP

Essa que eu hei de amar

Essa que eu hei de amar perdidamente um dia
será tão louca, e clara, e vagarosa, e bela,
que eu pensarei que é o sol que vem pela janela,
trazer luz e calor a esta alma escura e fria.

E, quando ela passar, tudo o que eu não sentia
da vida há de acordar no coração, que vela...
E ela irá como o sol, e eu irei atrás dela
como sombra feliz... – Tudo isso eu me dizia,
quando alguém me chamou. Olhei: um vulto louro,

e claro, e vagaroso, e belo, na luz de ouro
do poente, me dizia adeus, como um sol triste...

E falou-me de longe: “Eu passei a teu lado,
mas ias tão perdido em teu sonho dourado,
meu pobre sonhador, que nem sequer me viste!”
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PAULO LEMINSKI
Curitiba/PR, 1944 – 1989

A lua no cinema

A lua foi ao cinema,
passava um filme engraçado,
a história de uma estrela
que não tinha namorado.
Não tinha porque era apenas
uma estrela bem pequena,
dessas que, quando apagam,
ninguém vai dizer, que pena!
Era uma estrela sozinha,
ninguém olhava pra ela,
e toda a luz que tinha
cabia numa janela.
A lua ficou tão triste
com aquela história de amor,
que até hoje a lua insiste:
Amanheça, por favor!

Estante de Livros (Dragões de Éter, de Rapahel Draccon)


É uma tetralogia literária de fantasia escrita pelo brasileiro Raphael Draccon. O primeiro volume foi lançado em 2011. A história narra as aventuras de Ariane, Axel e os irmãos João e Maria Hanson e se passa em um reino chamado Arzallum.

Livro Um: Caçadores de Bruxas

Nova Ether é um mundo protegido por poderosos avatares em forma de fadas-amazonas. Um dia, porém, cansadas das falhas dos seres racionais, algumas delas se voltam contra as antigas raças. E assim nasce a Era Antiga. Essa influência e esse temor sobre a humanidade só têm fim quando Primo Branford, o filho de um moleiro, reúne o que são hoje os heróis mais conhecidos do mundo e lidera a histórica e violenta Caçada de Bruxas. Primo Branford é hoje o Rei de Arzallum, e por 20 anos saboreia, satisfeito, a Paz. Nos últimos anos, entretanto, coisas estranhas começam a acontecer...

Livro Dois: Coração de Neve

Arzallum, o Maior dos Reinos, tem um novo rei, e a esperada Era Nova se inicia. Entretanto, coisas estranhas continuam a acontecer... Uma adolescente desenvolve uma iniciação mística proibida, despertando dons extraordinários que tocam nos dois lados da vida. Dois irmãos descobrem uma ligação de família com antigos laços de magia negra, que lhes são cobrados. Duas antigas sociedades secretas que deveriam estar exterminadas renascem como uma única, extremamente furiosa...

Livro Três: Círculos de Chuva

Uma sociedade secreta renascida com um exército de órfãos resolve seguir em frente em um plano com tudo para dar errado em busca do maior tesouro já enterrado, sem saber o quanto isso pode mudar a humanidade. O último príncipe de Arzallum viaja para um casamento forçado em uma terra que ele nem mesmo sabe se é possível existir, disposto a realizar um feito que ele não sabe se é possível realizar. Uma adolescente desperta em iniciações espirituais descobre-se uma mediadora com forças além do imaginário. E um menino de cinco anos escala uma maldita árvore que o leva aos Reinos Superiores, ferindo tratados políticos, e dando início à Primeira Guerra Mundial de Nova Ether...

Livro Quatro: Estandartes de Névoa


Nova Ether é um mundo protegido por poderosos avatares em forma de fadas-amazonas. Um dia, porém, cansadas das falhas dos seres racionais, algumas delas se voltam contra as antigas raças. E assim nasceu a Era Antiga. Hoje, Arzallum, o Maior dos Reinos, mantém Anísio Branford como o Rei dos Reis, e vive sua aguardada Era Nova por cinco anos. Coisas estranhas, contudo, parecem que jamais deixarão de acontecer... Um cavaleiro banido e odiado por todas as Ordens de Cavalaria, e um dos criminosos mais procurados do mundo, está próximo do encontro com a Virgem de Trigger, a mesma que acreditam ser destinada a gerar o novo Merlin. Dois irmãos precisam lidar com os últimos resquícios de seus antigos laços de magia negra, das sequelas da antiga arapuca de uma bruxa canibal a dívidas estabelecidas com entidades de morte. O novo capitão do lendário Jolly Rogers, o mesmo que encontrou o lendário Grande Tesouro, resolve navegar ao Oriente para vendê-lo a sultões, sem imaginar as calamidades que está iniciando no ato. A sobrevivente de um lobo marcado se prepara para atingir o último estágio da iniciação de seu coven, destravando conhecimentos místicos jamais atingidos. O último príncipe de Arzallum, isolado ao longo de cinco anos no Nunca, decide que é hora de voltar, confrontar erros do passado, e vingar a morte de um velho amigo nas mãos de um Mestre Anão. E Oz, o Reino isolado em sua própria escuridão, resolve ser hora de tomar sua parte na História de Nova Ether, desencadeando acontecimentos que podem levar enfim à ascensão do verdadeiro Pendragon. E demonstrar que o mundo de Nova Ether como se conhecia não apenas mudou, como nunca mais será o mesmo.

Com diversas referências contemporâneas, que vão de séries como Final Fantasy e contos de fadas sombrios a bandas de rock como Limp Bizkit e Nirvana, Dragões de Éter desenvolve uma trama em que romances, guerras, intrigas, diálogos filosóficos, fantasia e sonho juvenis se entrelaçam para construir uma jornada épica de profundidade espiritual.

Fonte:
Wikipedia

sábado, 2 de abril de 2022

Daniel Maurício (Poética) 27

 

Humberto de Campos (Pele Curta)

Dize-me como dormes que eu te direi os pecados que tens. É durante o sono, realmente, que a consciência se revela. O sono agitado, aflito, repassado de gemidos e roncos, denuncia sempre uma alma atribulada, um espírito perseguido de cuidados, um coração atormentado pela consciência. A consciência tranquila, dorme com o corpo, irmanados num grande sossego reparador.

As mulheres que se revoltam contra os maridos que roncam alto, não cometem, portanto, com isso, uma injustiça. Um escritor já disse, uma vez, que a garganta de um esposo, era, às vezes, a trombeta de Jericó, diante da qual ruíam todas as ilusões da mulher. E a afirmação era justa, porque é durante o sono que, adormecida a tirania da vontade, o homem se manifesta, sonoramente, com todos os defeitos dissimulados durante o dia.

Há, entretanto, casos patológicos, que, embora não justifiquem uma alteração do critério geral, servem, contudo, para ilustrar, com uma variante curiosa, um capítulo sobre a matéria.

A fazenda de Santa Justina, no município de Maricá, estava entregue já, ao primeiro sono compensador, quando bateram à porta do casebre do Antônio Luiz, único, naquelas alturas, que ainda coava a luz da candeia pelos interstícios das paredes, das janelas e dos portais.

- Quem é? - gritou, de dentro, aborrecido, o dono da casa, juntando, com os dedos úmidos de saliva, as cartas de um baralho espalhadas sobre a madeira de um tamborete.

- Sou eu! - respondeu, de fora, uma voz desconhecida no lugar.

Aberta a porta, o Benedito Gamela, que ia de viagem, explicou o seu desejo: queria pousada por uma noite, afim de alcançar, no dia seguinte, a fazenda do Atoleiro, onde ia trabalhar na apanha de café.

- Você não tem, por aí, alguma moléstia pegadeira? - indagou o Antônio Luiz, desconfiado.

- Eu? D'aonde, minha Nossa Senhora? Eu nunca tive moléstia na minha vida. A doença que tenho, desde pequeno, nunca fez mal a ninguém, graças a Deus.

- Que moléstia é essa?

- A minha? Eu sofro de pele curta.

- Pele curta? - estranhou o morador.

Não querendo, porém, mostrar-se desconhecedor de certas novidades da medicina, Antônio Luiz não insistiu: acendeu uma lamparina, foi ao compartimento próximo, desenrolou no chão uma esteira de palha, e, concluído tudo, convidou:

- Entre pra cá. A casa é sua.

E encostando a porta, deitou-se na sala próxima.

Dez minutos não se tinham passado ainda quando o dono da casa deu um pulo, sobressaltado: do quarto do hospede, onde a lamparina bruxoleava, desenhando visagens na parede, subia um rugido de tempestade, que abalava o aposento.

- Camarada!... Camarada!... - chamou o Antônio Luiz, empurrando a porta. - Que é isso? Você está morrendo?

- Hein?... Hein?... - acordou o caboclo, em sobressalto. - O que é?... O que é?...

- Você está roncando como um trovão. Que é isso?

- É "pele curta", homem. Eu não disse a você? - explicou o Benedito, estremunhado.

O outro não compreendeu, e ele explicou:

- A minha moléstia é essa: quando eu fecho os olhos, abro a boca. É por isso!

E, estirando-se na esteira, desandou, de novo, a roncar.

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.

Luiz Damo (Trovas do Sul) XXVIII

Aonde houver luz abundante
pode a vida brilhar mais,
mesmo sob um sol radiante
a sombra acaba jamais.
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Chuva, granizo ou tormenta,
tudo assusta e descontrola,
sempre apavora se venta
e arrebenta a ventarola.
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Como Jesus, em viagem,
partamos sempre, a caminho,
'nunca, porém, sem coragem
a espera de um trocadinho'.
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Deus, não pede que façamos,
na terra, estranha proeza,
porém, que lhe devolvamos,
as cores da natureza.
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Frente à dor não te acovardes
longas noites, lutarás,
sorverás no fim das tardes
as moléculas de paz.
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Não deixes que a dor invada
a alma, deixando-a ferida,
o tudo, com dor é nada
e o pouco, sem ela é vida.
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Não te iludas, brasileiro!
com teu clima sedutor...
pois, não é no mundo inteiro,
que em janeiro faz calor.
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No arquipélago dos sonhos
ninguém permaneça ilhado,
supere, mesmo enfadonhos,
os ventos e o mar singrado.
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No clamor usa o talento,
ouve e dize com voz lhana*,
que tens à chama do alento
a luz que a vida engalana*.
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No esquife um corpo jazia
sob o pranto alguém orava,
era um sonho que partia...
...e o outro, partido, ficava.
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No lugar que a fome impera,
com furor e sem piedade,
brote o trigo sobre a terra
e espalhe o pão da bondade.
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O atleta, quase perfeito,
leva o jogo além-paredes,
mata a bola contra o peito
fazendo-a chegar às redes.
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O cigarro identifica
o adepto do tabagismo,
seu consumo danifica
o bolso, além do organismo.
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O homem nasce dependente,
se liberta à adolescência,
na velhice, novamente,
entra em nova dependência.
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Pode haver alguém que siga
a vida à sombra da farra
e em detrimento à formiga
prefira o tom da cigarra.
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Procede com convicção
sempre de maneira tal
que possas tornar a ação
uma norma universal.
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Quanto mais irado o ser
menos brilho tem o olhar,
fazendo na ira, crescer,
a nuvem que o faz cegar.
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Quem só se prende ao dinheiro
e a uns fragmentos deste chão,
pode acabar prisioneiro
na clausura de um caixão.
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Saudades não têm tamanho,
mas causam devastações,
são recordações de antanho
machucando as emoções.
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Se além-morte há vida nova
o esquife não tem mostrado,
nem a ciência comprova
o que a fé tem revelado.
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Se frustraste as tentativas
pra vencer teus desafios,
busca outras alternativas,
não fiques a ver navios!
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Se uma pedra a vida oprime,
deixando a alma estraçalhada,
não chore, nem desanime,
ela faz parte da estrada.
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Sob as longevas videiras
com fartura e exuberância,
desfilam as vindimeiras*
sorvendo aromas da infância.
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Sopra o vento, ficam rastros,
nos ramos ou na poeira,
no pináculo dos mastros
pela dança da Bandeira.
= = = = = = = = = = = = =

Toda a guerra, no seu bojo,
jorra sangue de sobejo,
mancha de revolta e nojo
o quadro anil do desejo.
__________________________
* VOCABULÁRIO DO BLOG
Lhana = franca, sincera.
Engalana = embeleza, enfeita.
Vindimeiras = cestos que se levam as uvas na vindima (
engloba o período entre a colheita das uvas e o inicio da produção do vinho).

Fonte:
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Mia Couto ( Francolino e Lucinha)

Sentada na varanda, Dona Lucinha acerta agulha e pano, em infinita costura. Há tantos anos que redige tais bordados que ela já nem sabe o que está criando. O gato é testemunha daquele inartefato, enroscado em falso ponto de interrogação. Afinal, o tempo é quem nos vai alinhavando. Demasiado tarde: a vida coloca o dedal no dedo onde o amor já fez a ferida.

Recuado na sombra da varanda, o marido, Francolino Vicente, se balança na cadeira, espapançudo* ante um idoso jornal. É uma publicação remota, dos tempos em que ele, realmente, lia jornais. Ele prefere assim, entre bafo e desabafo:

— Só leio jornal desses tempos em que apenas havia boas notícias.

O copo está vazio, mas ele, de quando em quando, o leva aos lábios e faz estalar um gozo. Francolino é como a aranha que encontra alimento sem procurar comida. Sua teia é ali, nos invisíveis fios da varanda. O tempo, para ele, se indefine:

— Hoje é terça-feira em ponto.

O homem sabe os segredos do mundo: o rio, verdadeiro, não mexe. Flui, deixado e desleixado. Quem faz mover suas águas são os rabos dos peixes, inumeráveis leques que nunca pausam. Como nós. Deixemo-nos quietos como pedras e o tempo não anda.

Francolino pousa, com vasta cerimônia, o pregueado jornal:

— Lucinha?

— Diga, marido.

— Você gosta de mim?

Ela abana a cabeça, negativamente. Responde sempre assim, despalavrada, subterfugidía. Voltando a desfranzir o jornal, ele relança a atenção na leitura, enquanto diz:

— Há-de gostar.

Desde que juntaram suas vidas é sempre assim. Todos os dias a cena se repete, incluindo o gato que, com a amealhada preguiça, já nem espreguiça. Tem sido assim desde que Francolino a raptou de uma companhia de dançarinas que passara pela cidadezinha. Aconteceu há quarenta anos. Perante juízos ele, na hora, se defendeu:

— Ser roubada é um destino para mulher afortunada. Ainda calha bem que fui eu quem deu andamento a esse rapto.

Que a dançarina correspondesse àquela paixão isso o imperturbava. O sal é que faz o maduro da manga verde. Assim, o amor havia de chegar. Que ela tivesse sido arrancada de uma paixão, a dança, isso nem comichava a consciência de Francolino.

Foram somando filhos, perdendo tempos. Nunca ela lhe entregou ternura, nem adocicou palavra. Sempre distante, desacontecida. Sentada nos degraus da tarde, ela bordava como se remendasse a sua existência.

— Lucinha?

— Diga.

— Você me gosta?

— Já sabe que não.

E logo o homem garantia: ela haveria de gostar. No enquanto, o tempo ia visitando aquela varanda, deitando por ali mais poente que manhãs.

— Estamos envelhecendo — dizia Francolino. — Estamos para aqui nos carcaçando. Sabe como é que a gente nota que estamos a envelhecer?

— Deixe-me bordar em sossego.

— Sabemos que estamos velhos porque nos começam a nascer ossos e mais ossinhos. Nunca reparou, Lucinha?

— Leia o seu jornal, homem.

O homem prossegue: é isso a velhice, como se o corpo se preparasse para caixa, todo ele gradeado a ossos, inorgânico. Francolino não pretende dizer nada. Simplesmente quer desviar Lucinha a favor de sua atenção. Mas a mulher continua toda nos lavores. Tudo em redor são insignificâncias. Principalmente, ele, o sentadiço marido. Aquele desprezo seria vingança da sua condição de roubada? Soubesse se e não haveria estória.

— Lucinha? Você...

— Não.

Até que, certa semana, ele deixou de proceder à sacramental pergunta. No início, Dona Lucinha nem notou diferença. Bordava seu longo tecido, a costura e as mãos dela já tornadas simbióticas, amparadas no entretecer recíproco. Aos poucos, porém, aquele silêncio do homem lhe foi roendo o coração. Já não dava nem ponto nem nó. Até que ela se extroverteu:

— Francolino?

— Sim...

— Já não fala comigo?

Ele sacudiu a cabeça, embrenhado na leitura de nenhuma página. Seus olhos se adesivaram no jornal, parecia que ele estudava modo de escapar entre as letrinhas, dissolvido em pontos e vírgulas.

A esposa, com os tempos, se foi acrescentando de impaciências. Até que, certa tarde, ela renovou a pergunta. Sua voz se estica em corda de angústia:

— Já não me pergunta nada, Francolino?

Francolino nem tuge nem ruge. Então, ela se levanta e lhe entrega o pano que se desenrola em infinitas desvoltas. O tecido se enrosca no colo do homem e, aos poucos, vai ocultando o jornal. Por desatenção de suas mãos ou por demasia de peso as páginas se rasgam, abrindo se um abismo como se ao próprio tempo faltasse o chão. Se vê, então, que aquilo que ela vem bordando, desde há anos, é um repetido e sucessivo vestido de dança, adornado de mil folhos e plissados. Parecia dessas roupas que só servem para despir.

Francolino olhou o suspiro dos panos sobre o chão. E lembrou como, em tempos, a vira no palco estreando luzes, vestida só com a nudez dela. Memória desembrulhada, bordado tombado, jornal rasgado: o velho suspende um gemido, quase uma lágrima.

Visse ele quanto uma vida inteira pode tombar assim num desembrulho. A voz em riachinho:

— Que lindo esse vestido, Lucinha!

Debruçando se sobre a cadeira do marido, Lucinha beija lhe longamente a testa. Tão longamente que ele adormece, se afundando no rio do tempo, mais denso que a própria vida.
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* Espapançudo = Não encontrei sinônimo para esta palavra, mas pelo texto creio que seria como “pança arriada”.

Fonte:
Mia Couto. Na berma de nenhuma estrada e outros contos. Publicado em 2001.

Como Escrever uma Análise Crítica - Parte 1


Uma análise crítica serve para avaliar a qualidade de um artigo acadêmico ou outro tipo de trabalho. Você precisa fazer uma análise sobre um artigo, um livro, um filme ou um quadro? Comece com uma leitura crítica para identificar e compreender os argumentos do autor e reunir os elementos necessários para formar a sua opinião. Estude o texto com mais atenção e monte a análise. Por fim, redija o trabalho usando a estrutura correta.

Fazendo uma leitura crítica

1. Leia o texto com atenção e faça as anotações.


Estude todo o material que você separou para a análise. Destaque, sublinhe e faça comentários sobre as partes importantes. Marque as palavras, os conceitos e qualquer informação que você não tenha entendido bem.

Talvez você tenha que reler o texto, principalmente se ele for muito denso ou complexo. Enquanto você faz a leitura, defina o que é importante, útil, inovador, relevante, controverso e válido.

2. Reconheça as teses do autor.

Pergunte a si mesmo: quais são as ideias que ele defende ou ataca? Marque ou sublinhe o trecho que caracteriza a tese principal. Geralmente, ela aparece no primeiro ou no segundo parágrafo do texto e consiste em uma única frase que resume o argumento principal.

É mais fácil encontrar uma tese em um artigo acadêmico do que em uma obra de arte, como um filme ou um quadro.

Você está analisando um filme de ficção ou que retrata os fatos reais sem o rigor histórico? Identifique os temas mais importantes do enredo. Caso seja uma pintura, procure entender o que as cores e as formas dizem.

3. Durante a leitura, escreva as ideias principais do autor.

Sublinhe ou destaque os tópicos frasais e os trechos que pareçam ser mais significativos, por exemplo: as explicações ou as evidências fornecidas ao longo do texto que corroborem o ponto de vista adotado. Essas partes do texto são muito importantes porque permitem analisar a estrutura.

Quais são os tópicos frasais de cada parágrafo e seção do artigo acadêmico que você está lendo?

Quais são as cenas e as imagens que reforçam a mensagem principal do filme ou do quadro?

4. Faça um resumo com as suas próprias palavras.

Para consolidar o entendimento do que você acabou de ler, escreva uma pequena síntese.
Diga em um parágrafo quais são o tema e o argumento principal do texto.

Caso seja um filme, faça uma sinopse do filme em um ou dois parágrafos ou descreva o livro, por exemplo.
_______________________
continua…

Fonte:
wikihow

sexta-feira, 1 de abril de 2022

Varal de Trovas n. 554

 

Filemon Martins (A Lenda do Ipupiara)

A lenda do monstro marinho conhecido como Ipupiara ou ainda Hypupiara, percorreu o mundo no século XVI. Habitava as profundezas das águas e assombrava, inicialmente, os indígenas do litoral brasileiro, passando depois a atormentar pescadores e marinheiros.

Há relatos sobre esse monstro horripilante e asqueroso do cronista português, Pero de Magalhães Gandavo, na Vila de São Vicente, SP, a primeira Vila do Brasil, dessa forma: "sendo já alta a noite, acertou de sair fora de casa uma índia escrava do capitão e lançando os olhos a uma várzea pegada ao mar, viu andar nela um monstro, movendo-se com passos e meneios desusados, e dando alguns urros tão feios que lhe parecia uma visão diabólica... andava ali uma coisa tão feia, que não podia ser senão o demônio. Chamado o capitão Baltasar Ferreira que, ao ver o monstro, enfrentou-o e o abateu a golpes de espada".

O cronista português descreveu o monstro como tendo "quinze palmos de cumprido e era semeado de cabelos pelo corpo e no focinho tinha umas sedas mui grandes como bigodes".

O jesuíta Fernão Cardim e o padre José de Anchieta fizeram referência a esses monstros e, segundo eles, o Ipupiara, era um ser "bestial, faminto, repugnante, de ferocidade primitiva e brutal". Anchieta escreveu: "Também há outro (demônio), nos rios, aos quais chamam Ipupiara, isto é, moradores da água, os quais igualmente matam os índios". Arrola o Ipupiara como uma das figuras do Demônio que afligiam os índios, ao lado do Curupira e do Boitatá.

A lenda do Ipupiara é tão forte e viva em São Vicente, que construíram um monumento em sua homenagem na Praça 22 de janeiro. Quando morei em Itanhaém, tive oportunidade de conhecer a estátua e a Praia da Biquinha, onde dizem os moradores houve a última aparição do ser monstruoso em dezembro de 1975, quando um jovem surfista de 17 anos afirmou ter sido atacado por um monstro numa noite quente de verão ao se refrescar no mar na praia da Biquinha. Essa estátua, infelizmente, pegou fogo e foi destruída em 2016. A obra, de autoria de Daniel Gonzalez, artista plástico falecido em setembro de 2011, foi inaugurada em 22 de janeiro de 1999. Filho do ator Serafim Gonzalez, o escultor é autor de outras obras de destaque na Baixada Santista, como a do Praiamar Shopping e O Surfista, no José Menino. Mencione-se também que o ator Serafim Gonzalez era escultor e autor do monumento Mulheres de Areia, em Itanhaém.

O sociólogo Gilberto Freyre, em sua obra Assombrações do Recife Velho, Rio de Janeiro, (2000) escreveu sobre a lenda; "Mais danados que todos, os hipupiaras eram homens marinhos que espalhavam o terror pelas praias. Os hipupiaras não comiam da pessoa que pegavam a carne toda, mas apenas uma parte ou outra. O bastante, entretanto, para deixar a vítima um mulambo. Comiam-lhe os olhos, narizes, e pontas dos dedos dos pés e mãos, e as genitálias. O resto deixavam que apodrecesse pelas praias".

Sérgio Buarque de Holanda também escreveu: "A fantástica ipupiara, com seu jeito particular de matar os homens, que é beijá-los e abraçá-los fortemente até fazê-los em pedaços, ficando ela inteira, e como os sente mortos, põe-se a chorar (sem que isso a impeça de devorar-lhes as partes do corpo que julga mais delicadas)”.

No caso de São Vicente, hoje, admite-se que é provável que tenha sido um grande leão-marinho, animal pouco conhecido e assustador para os caiçaras que habitavam o litoral paulista.

Um fato curioso, contudo, me intriga; nasci numa cidade do interior da Bahia, que se chamava inicialmente Campos Belos (1842), Fundão de Brotas (1865), Fortaleza de São João (1906), Jordão de Brotas (1911), Vanique (1935) e a partir de 1936, Ipupiara, com o Decreto-lei estadual n° 141, de 1943, confirmado depois pelo Decreto estadual n" 12.978, de 1944. Nasci, portanto, na cidade de Ipupiara, região da Chapada Diamantina. Quando aqui aportei, tomei conhecimento da fascinante lenda que correu o mundo.

Fonte:
Filemon Martins. Caminhos do Jordão da Bahia. SP: RG Editores, 2022.
Livro enviado pelo autor.

Cecília Meireles (Antologia Poética) = 5 =

ACEITAÇÃO


É mais fácil pousar o ouvido nas nuvens
e sentir passar as estrelas
do que prendê-lo à terra e alcançar o rumor dos teus passos.

É mais fácil, também, debruçar os olhos no oceano
e assistir, lá no fundo, ao nascimento mudo das formas,
que desejar que apareças, criando com teu simples gesto
o sinal de uma eterna esperança.

Não me interessam mais nem as estrelas,
nem as formas do mar, nem tu.
Desenrolei de dentro do tempo a minha canção:
não tenho inveja às cigarras: também vou morrer de cantar.
= = = = = = = = = = = = =

ALVA

Deixei meus olhos sozinhos
nos degraus da sua porta.
Minha boca anda cantando,
mas todo o mundo está vendo
que a minha vida está morta.

Seu rosto nasceu das ondas
e em sua boca há uma estrela.
Minha mão viveu mil vidas
para uma noite encontrá-la
e noutra noite perdê-la.

Caminhei tantos caminhos,
tanto tempo e não sabia
como era fácil a morte
pela seta do silêncio
no sangue de uma alegria.

Seus olhos andam cobertos
de cores da primavera.
Pelos muros de seu peito,
durante inúteis vigílias,
desenhei meus sonhos de hera.

Desenho, apenas, do tempo,
cada dia mais profundo,
roteiro do pensamento,
saudade das esperanças
quando se acabar o mundo…
= = = = = = = = = = = = =

DESAMPARO

Digo-te que podes ficar de olhos fechados sobre o meu peito,
porque uma ondulação maternal de onda eterna
te levará na exata direção do mundo humano.

Mas no equilíbrio do silêncio,
no tempo sem cor e sem número,
pergunta a mim mesmo o lábio do meu pensamento:

quem é que me leva a mim,
que peito nutre a duração desta presença,
que música embala a minha música que te embala,
a que oceano se prende e desprende
a onda da minha vida, em que estás como rosa ou barco...?
= = = = = = = = = = = = =

EPIGRAMA N. 2

És precária e veloz, Felicidade.
Custas a vir, e, quando vens, não te demoras.
Foste tu que ensinaste aos homens que havia tempo,
e, para te medir, se inventaram as horas.

Felicidade, és coisa estranha e dolorosa.
Fizeste para sempre a vida ficar triste:
porque um dia se vê que as horas todas passam,
e um tempo, despovoado e profundo, persiste.
= = = = = = = = = = = = =

EPIGRAMA N. 3

Mutilados jardins e primaveras abolidas
abriram seus miraculosos ramos
no cristal em que pousa a minha mão.

(Prodigioso perfume!)

Recompuseram-se tempos, formas, cores, vidas...

Ah! mundo vegetal, nós, humanos, choramos
só da incerteza da ressurreição.
= = = = = = = = = = = = =

GARGALHADA

Homem vulgar! Homem de coração mesquinho!
eu te quero ensinar a arte sublime de rir.
Dobra essa orelha grosseira, e escuta
o ritmo e o som da minha gargalhada:
Ah! Ah! Ah! Ah!
Ah! Ah! Ah! Ah!

Não vês?
É preciso jogar por escadas de mármore baixelas de ouro.
Rebentar colares, partir espelhos, quebrar cristais,
vergar a lâmina das espadas e despedaçar estátuas,
destruir as lâmpadas, abater cúpulas,
e atirar para longe os pandeiros e as liras...

O riso magnífico é um trecho dessa música desvairada.

Mas é preciso ter baixelas de ouro,
compreendes?
— e colares, e espelhos, e espadas e estátuas.
E as lâmpadas. Deus do céu!
E os pandeiros ágeis e as liras sonoras e trêmulas…

Escuta bem:
Ah! Ah! Ah! Ah!
Ah! Ah! Ah! Ah!

Só de três lugares nasceu até hoje esta música heroica:
do céu que venta,
do mar que dança,
e de mim.
= = = = = = = = = = = = =

ORFANDADE

A menina de preto ficou morando atrás do tempo,
sentada no banco, debaixo da árvore,
recebendo todo o céu nos grandes olhos admirados.

Alguém passou de manso, com grandes nuvens no vestido,
e parou diante dela, e ela, sem que ninguém falasse,
murmurou: «A MAMÃE MORREU».

Já ninguém passa mais, e ela não fala mais, também.
O olhar caiu dos seus olhos, e está no chão, com as outras pedras,
escutando na terra aquele dia que não dorme
com as três palavras que ficaram por ali.

Fonte:
Cecília Meireles. Viagem. Lisboa: Império, 1938.