quarta-feira, 26 de junho de 2024

Vanice Zimerman (Tela de versos) 39


 

Eduardo Affonso (Dialetos)


– Amiga, cansei de sororidade.

– Eu também. Desapeguei.

– Ficou tão quarta-feira passada…

– Nem me fale. Quando comecei a usar, ninguém usava. Agora…

– Daqui a pouco está sendo usada até em novela bíblica da Record.

– Junto com empoderamento. Lembra do pré-lançamento?

– Lindo. Só para convidadas. Evento VIP, garçons étnicos, música autossustentável. Depois…

– Depois virou arroz de festa, que nem empatia.

– Comigo foi saberes.

– Você foi no lançamento de saberes?

– Fui, menina! Usei saberes quando só aparecia em tese de Humanas.

– Que luxo! Quando saberes chegou, eu já estava na fase da objetificação e achei que não ia combinar.

Objetificação tem que ter muito critério, ou fica over.

– Acho que cai bem com cultura do estupro e micromachismo, e olhe lá.

– Super cai bem!  E olha que micromachismo não é pra qualquer uma.

– Não mesmo. Tem que saber dosar. Tipo gaslighting.

Gaslighting era tudo, né? Uma coisa de louco!

– Mas sabe que eu era mais o combo mansplaining, manspreading e manterrupting? Porque tinha uma leitura, dialogavam.

– Diferente de patriarcado e androcentrismo

– Totalmente. Androcentrismo pede, sei lá, uma atitude com mais conceito.

– Bem na vaibe da misoginia e do feminicídio.

– Isso. Se bem que eu fique mais à vontade na disparidade de gênero, sabe como? Uma coisa light, cool, fim de tarde, apperol.  Nessa linha.

– E qual é a tendência para hoje? Fiquei vendo laive da Katy Perry até de madrugada, acordei tarde e nem tive tempo de me atualizar.

Interseccionalidade.

– Jura? Amei!

– E dá pra usar com tudo.

– Amiga, só vou tirar essa máscara de avocado orgânico e começar a interseccionalizar agora mesmo.

– Mas interseccionaliza logo, porque acabei de ver que já estão usando no UOL. E quando isso acontece, já sabe, né?

– Sim. Daqui a pouco vira gratiluz.

– Vai lá. Beijo no coração, amiga! Gratiluz!

Gratiluz, amada!

Vereda da Poesia = 45 =


Trova Humorística, de São Paulo/SP

JAIME PINA 
 
Só três?! (o paizão lamenta),
vendo os bebês no bercinho.
Ah, se a rede não rebenta,
"nóis" enchia esse quartinho!
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Soneto de São Paulo/SP

ÁLVARES DE AZEVEDO
(Manuel Antônio Álvares de Azevedo)
1831 – 1852, Rio de Janeiro/RJ

Soneto do anjo

Pálida, à luz da lâmpada sombria,
Sobre o leito de flores reclinada,
Como a lua por noite embalsamada,
Entre as nuvens do amor ela dormia!

Era a virgem do mar! na escuma fria
Pela maré das águas embalada!
Era um anjo entre nuvens d'alvorada
Que em sonhos se banhava e se esquecia!

Era mais bela! o seio palpitando...
Negros olhos as pálpebras abrindo...
Formas nuas no leito resvalando...

Não te rias de mim, meu anjo lindo!
Por ti — as noites eu velei chorando,
Por ti — nos sonhos morrerei sorrindo!
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Aldravia de Mesquita/MG

CIDA PINHO

colo
de
mãe
cantinho
de
céu
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Soneto de São Luís/MA

ARTHUR* DE AZEVEDO
(Arthur Nabantino Gonçalves de Azevedo)
1855 – 1908, Rio de Janeiro/RJ

Infantilidade

Que reboliço vai em casa de Marieta!
É que fugiu Mignonne, a gata favorita,
E tanto chora e chora a pobre pequenita,
Que o papai manda pôr anúncio na gazeta.

Da vizinhança alguém, com olho na gorjeta,
A trânsfuga encontrou, que andava de visita
Ao demo de um maltês filósofo que habita
De um canto de fogão a cálida saleta.

Marieta, ao ver Mignonne, estende-lhe os bracinhos.
Dá-lhe um banho de amor em beijos e carinhos,
Nervosa, a soluçar, e, ao mesmo tempo, a rir.

E entre afagos lhe diz: "Senhora, foi preciso
Pôr um anúncio! Veja o que é não ter juízo!"
E todo o anúncio lê para Mignonne ouvir...
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* Segundo registrado na Biblioteca Nacional, o correto é Arthur (com h após o t)
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Trova Premiada  em Nova Friburgo/RJ, 2004

ELISABETE SOUZA CRUZ 
(Nova Friburgo/RJ)

Este amor, mal necessário,
que a insensatez fez surgir,
é o erro mais arbitrário
que eu não quero corrigir! 
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Poema de Recife/PE

EDLA FEITOSA
(Edla Feitosa Costa)

Órion
 
Não está escuro!
Existe um jogo de luz e sombra
E um certo silêncio.
Órion muda de lugar
E me confunde ….
Um cão ladra ao longe
Um gato ágil escala telhados
A taça enche e esvazia
Como a maré que sussurra ao longe.
As nuvens cobrem as estrelas ….
E dói a solidão.
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Quadra Popular de Faro/Portugal

ISIDORO CAVACO
(António Isidoro Viegas Cavaco)

Destino que me condenas
a viver da dor tão perto,
não sendo ave de penas
de penas estou coberto.
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Soneto de Portugal

FILINTO DE ALMEIDA
(Francisco Filinto de Almeida)
Porto, 1847 – 1955, Rio de Janeiro/RJ

Cansaço

A velhice é cansaço... E esse cansaço
Não nos vem de trabalho ou movimento...
O que ora faço é demorado e lento
E acho mal feito o pouco que ainda faço.

Tudo me cansa: — até o pensamento!
Já pouquíssimo ando e arrasto o passo...
Quase sempre dorminte ou sonolento,
Vivo uma triste vida de madraço.

Nunca fui mandrião nem calaceiro,
Nem também muito ativo, é bem que o diga,
Mas domei sempre a inércia, sobranceiro.

Agora, a própria inércia me castiga,
Pois se acaso repouso um dia inteiro
Esse mesmo repouso me fatiga!
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Trova do Rio Grande do Sul

LISETE JOHNSON
Butiá/RS, 1950 – 2020, Porto Alegre/RS

Às vezes, da terra bruta
e de um par de pés no chão
que vêm o exemplo de luta
e ânsias de superação!
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Poema de Ribeirão Preto/SP

ELISA ALDERANI

As maritacas

No alto do ipê, com galhos ressequidos,
chegaram de repente
duas maritacas multicoloridas.
Pararam para conversar
e, encantaram meu olhar.

O ipê tão despido de flores,
agora é rico de vagens,
cheias de sementes.
Espera as visitas das aves,
que alegram o final das tardes.

O casal de maritacas, rodeando os galhos.
Mostravam os belos trajes,
abriam as asas avermelhadas.
Enchiam o peito esverdeado,
para gorjear com mais vaidade.

Com a janela aberta, apreciando a dança,
entrei no ritmo da fotografia.
Elas observavam, arranjavam pose,
haviam percebido
uma presença amiga…
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Haicai de Ilhéus/BA

ABEL PEREIRA

O Ocaso

No rio profundo,
o sol parece outro sol
a emergir do fundo.
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Sextilha Do Rio Grande do Norte

ADEMAR MACEDO
Santana do Matos, 1951 – 2013, Natal+

Eu sempre passo o domingo
sentindo e dando alegrias,
visitando meus amigos
que não vejo há vários dias;
e caçando inspiração
pra fazer minhas poesias…
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Trova de São Paulo/SP

THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA

Sozinho na madrugada,
cabelos brancos ao vento,
canta o boêmio... e a toada
é um triste e doce lamento!
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Glosa de Fortaleza/CE

NEMÉSIO PRATA

MOTE 
Chamaste meu pai de otário? 
Repete-o, se és homem... vem! 
- Chamei não, pelo contrário... 
Mas que ele tem cara, tem!
A. A. de Assis 
(Maringá/PR) 

GLOSA 
Chamaste meu pai de otário? 
Pois saiba..., mexeu comigo! 
Puxe logo o seu "rosário" 
pois vou furar teu umbigo! 

Cabra, não fale besteira! 
Repete-o, se és homem... vem! 
Pois comigo é na peixeira; 
não dou sopa pra ninguém! 

- Se eu chamei teu pai de otário? 
- Isto é pergunta que faça? 
- Chamei não, pelo contrário... 
acho-o até um "boa praça"! 

Eu juro, por Cristo, o Rei, 
e por São José, também, 
que, nem na "mente" eu falei.. 
Mas que ele tem cara, tem!
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Aldravia de Juiz de Fora/MG

CECY BARBOSA CAMPOS

árvores
alpinistas
escalam
montanhas
cumprimentando
nuvens
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Soneto de São Paulo/SP

ELISA BARRETO
(Elisa Virgínia Kirsten Barreto Rolim de Moura)
1919 – 2005

Soneto Trágico III

É o fingido, o mentiroso
com olhos desmesurados
num sofrimento horroroso,
tributo dos seus pecados.

É o ladrão, o usurpador,
que sem dó nem piedade
fez de um puro e santo amor
um campo de crueldade.

É o opressor que suplica
aflito, desesperado,
comutação para a pena.

Minha alma em dúvida fica:
Que caos desesperançado
que sufoca e que envenena!
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Trova Premiada  em Natal/RN, 2010

MARISA VIEIRA OLIVAES 
(Porto Alegre/RS) 

Inspiração, não me deixes 
neste mundo imerso em dor! 
– Sem ti, sou rio… sem peixes… 
Sou coração… sem amor…!
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Poema de São Paulo/SP

FILEMON FRANCISCO MARTINS

Prefiro ser...

Prefiro ser a flor
Que perfuma, ainda que fira com seus espinhos...

Prefiro ser o orvalho da noite
Que cai, aos poucos, umedecendo a terra
E deixando as plantas e flores com seiva e vida...

Prefiro ser o pássaro, em algazarra,
Pulando de galho em galho
No cantar das manhãs.

Prefiro ser a água que corre pelos rios
Entre serras e vales, contornando obstáculos
Até chegar ao oceano...

Prefiro ser o mar imenso e forte, 
que apesar de belo,
Traz na valentia a marca da morte...

Prefiro ser a praia com areia branca e fina
Beijando as ondas que vão e vêm... Inconstantes...
Como se fossem inquietos amantes.

Prefiro ser um sonho bom cheio de cores e sons
De quem ama e sonha... 
De quem nunca sonhou...

Prefiro ser a lua que vagarosamente ilumina a todos
E emociona os casais de namorados
Inspirando-lhes idílios de amor...

Prefiro ser o sol que brilha intensamente para todos
E até empresta sua luz à lua 
para iluminar a noite...

Mas prefiro ser mesmo
A esperança no rosto da criança que, infelizmente,
O mundo nunca viu e sempre a abandonou...
Mas traz, dentro de si, 
o futuro, a paz, o amor e o perdão!
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Triverso de Maringá/PR

A. A. DE ASSIS
(Antônio Augusto de Assis)

Na fila de idosos,
troca-troca de sintomas.
Quem não tem inventa.
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Setilha de Natal/RN

MARCOS MEDEIROS

A chuva mal começava,
a meninada partia
pra debaixo das biqueiras,
por onde a água escorria
e, depois na enxurrada,
morria de dar risada
extravasando alegria.
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Trova de Bauru/SP

ERCY MARIA MARQUES DE FARIA

A insônia que vai além
das horas da madrugada,
por teimosia mantém
minha saudade acordada...
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HINO DE PINHALÃO/PR

Letra e Música: Lairton Trovão de Andrade

Sob a crista altaneira da serra,
proliferas febril Pinhalão.
Do humilde recanto da terra
surges meiga na imensa nação.

Bis: Nas sombras dos teus bosques
brilhou o céu de anil,
profundo desafio
a virgem selva em flor.

Estribilho
Doce Torrão querido,
Reino dos cafezais,
Bis: Onde se tem palmeiras
E lindos pinheirais.

Verdes campos de reses mimadas,
tremulantes jardins de cereais,
enobrecem tuas mãos calejadas
sobre o solo de mil minerais.

Bis: As ondas das colinas,
Planícies, serranias,
emitem melodias
do ouro vegetal.

Estribilho
Doce Torrão querido,
Reino dos cafezais,
Bis: Onde se tem palmeiras
E lindos pinheirais.

Terra amada de eterna bonança,
com firmeza aderiste ao Brasil.
Turbilhões em caudais de esperança
Revigoram-te o ardor varonil

Bis: "Rio Cinzas"!... "Boa Vista"!
"Triângulo" e "Serrinha"!
"Campina" e "Lavrinha"!
Oh! Salve! Salve! Salve!

Estribilho
Doce Torrão querido,
Reino dos cafezais,
Bis: Onde se tem palmeiras
E lindos pinheirais.
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Poetrix de Belo Horizonte/MG

ÂNGELA TOGEIRO

Leitura

Os dedos do cego
captam detalhes mais íntimos
nas rugas, leem o ego
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Soneto do Rio de Janeiro/RJ

DOM PEDRO II
(Pedro de Alcântara João Carlos Leopoldo Salvador Bibiano Francisco Xavier de Paula Leocádio Miguel Gabriel Rafael Gonzaga)
1825 – 1891, Paris/França

A Vida e o Barco

Andar e mais andar é a vida a bordo;
Mal estudo, e apenas eu vou lendo;
A noite com a música entretendo;
Deito-me cedo, e mais cedo acordo.

Saudosíssimo a pátria eu recordo,
E, pra consolo versos lhe fazendo,
Desenho terras só aquela vendo,
E para não chorar os lábios mordo.

Enfim há de chegar, eu bem o sei,
Que o Brasil eu reveja jubiloso;
E, se outrora eu servi-lo só pensei,

Muito mais forte e muito mais zeloso,
Para ainda mais servi-lo, voltarei
‘Té que nele encontre o último repouso.
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Trova de Niterói/RJ

PAULO R. O. CARUSO
(Paulo Roberto Oliveira Caruso)

Fogueira em festa junina...
Eu me queimei um bocado!
Na quadrilha eu vi menina
e saí de lá casado!
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Poema de Vila Velha/ES

APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA

Introspecção

MEU SER
Vou confessar-te agora
A distância me apavora
Sinto-me mal sem amor
Sem carinho, sem ternura...
Caminho na desventura
D’uma senda de amargor

Sou barco vagando ao léu
Nas ondas deste escarcéu
Que se acercam de mim...
Estou quase soçobrando
Triste batel esperando
Chegar afinal meu fim

Marinheiro sem guarida
Tão só, ilha perdida,
Sou proscrito de amor
Sinto sede de afeto
Este vil e pobre feto
Neste mar de amargor

E, quem eu não queria
Que fizesse companhia
Junto ao meu coração,
Antes da sua estada,
Deu seu nome na entrada:
“– Eu me chamo “SOLIDÃO”

SOLIDÃO
“...– Eu trouxe também comigo
Alguém pra ficar contigo
Com quem terás amizade
Vai falar-te no passado
Do que tenhas mais gostado
Seu nome é “SAUDADE...”

SAUDADE
“... Serei tua amiga inglória
Narrarei muitas histórias
De amor, de incertezas
Mas, se eu tiver que ir
Há de me substituir
Minha irmã – a TRISTEZA...”

TRISTEZA
“... Serei o teu destino
E também teu desatino
Quando estiveres a sós
Principalmente agora
Que o teu coração chora
Embargando tua voz...”

EU
Ah, meu ser, que loucura
Tamanha a desventura
Pela qual tenho passado...
Quisera morrer agora
Exatamente nesta hora
Estou abatido, acabado!

DOR
“... Espere, eu sou a Dor
Sinto imenso desamor
A corroer tua alma
Quero ao teu lado ficar
Te dar a paz e a calma
Mas preciso contigo morar"

EU
Assim falou-me a dor
Resoluta, com dulçor
Implorando pra ficar
Mas, ah, minha doce amada
Não te posso dar pousada
Se o meu amor regressar

Quisera ter em verdade
Comigo a Felicidade
Que se foi sem um adeus...
Deixou-me há muito tempo
Dando lugar ao Tormento,
Um dos parentes teus.

TORMENTO
"Também quero me aconchegar,
Ao teu lado, ser teu amigo,
Fazer parte do teu mundo...
Se não me deixares ficar,
Posso até vir a soçobrar,
Devido a desgosto profundo."

EU
"Não, Tormento, não te quero
Fica bem longe, peço que vá
Hoje, bem sei, estou perdido
Mas não me pilhei,
De todo, vencido,
Minha Amada breve retornará"

AMADA
"Que bom que acreditastes
Na minha volta, paixão
Se magoei teu coração
Perdoa, eis-me aqui
Acabou tua infelicidade
Sou tua Felicidade: voltei pra ficar."

Barão de Itararé (Conselho Médico) Como devemos tomar nossos remédios

Quando estamos doentes, afinal não temos outro remédio senão tomar remédio.

O remédio, aliás, sempre faz bem. Ou faz bem ao doente que o toma com muita fé; ou ao droguista que o fabrica com muito carinho; ou ao comerciante que o vende com um pequeno lucro de 300 por cento.

Mas apesar do bem que fazem, devemos convir que há remédios verdadeiramente repugnantes, que provocam engulhos e violentas reações de repulsa do estômago.

Como devemos tomar esses remédios repugnantes? Aí está o problema que procuraremos resolver para orientar os nossos dignos e anêmicos leitores.

O melhor meio de vencer as náuseas, quando temos que ingerir um remédio repelente, consiste em recorrer à lógica dos rodeios, adotando os métodos indiretos, até chegar à auto-sugestão, transformando assim o remédio repugnante numa coisa que seja agradável ao paladar. Numa palavra, devemos tomar o remédio com cerveja, por exemplo.

Como devemos proceder para chegarmos a esse magnífico resultado?

É indispensável comprar, antes do remédio, uma garrafa de cerveja. Depois, é necessário bebê-la devagar, saboreando-a, para sentir-lhe bem o gosto. Liquidada a primeira garrafa, pedimos outra cerveja. Esta   vamos tomá-la de outra forma, também devagar, mas com a ideia posta no remédio, cuja lembrança naturalmente nos provocará asco. Para voltarmos ao normal, encomendamos uma terceira garrafa, com a qual, lembrando-nos sempre do remédio, iremos dominando e vencendo a repugnância. Na altura da quinta ou undécima garrafa, nós já estaremos convencidos de que o gosto do remédio deve ser muito semelhante ao da cerveja e, assim, já poderíamos beber calmamente o remédio como cerveja. Mas, como não temos o remédio no momento e já não temos muita força nas pernas para ir à farmácia, então continuamos a beber a infusão de lúpulo e cevada, até chegarmos a esta notável conclusão: se é possível chegar a se tomar um remédio tão repugnante como cerveja, muito mais lógico será que passemos a tomar cerveja como remédio, porque a ordem dos fatores não altera o produto, quando está convenientemente engarrafado.

Fonte: Barão de Itararé. Máximas e Mínimas do Barão de Itararé. RJ: Editora Record, 1986,

Recordando Velhas Canções (De Papo Pro Ar)


 Compositores: Joubert de Carvalho / Olegário Mariano

Eu não quero outra vida
Pescando no rio de Jereré
Tenho peixe bom
Tem siri patola
Que dá com o pé

Quando no terreiro
Faz noite de luar
E vem a saudade me atormentar
Eu me vingo dela
Tocando viola de papo pro ar

Se ganho na feira
Feijão, rapadura
Pra que trabalhar
Sou filho do homem
E o homem não deve
Se apoquentar
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A Simplicidade e a Saudade na Música 'De Papo Pro Ar'

A música 'De Papo Pro Ar', composta em 1931, é uma celebração da vida simples e tranquila, longe das preocupações do mundo moderno. A letra descreve a vida de um pescador no rio Jereré, onde a abundância da natureza oferece tudo o que é necessário para viver bem, como peixe e siri. A expressão 'de papo pro ar', que dá título à música, é uma gíria brasileira que significa estar em um estado de relaxamento total, sem preocupações.

O cenário descrito na música é idílico e remete a uma conexão profunda com a natureza e o contentamento com o que ela oferece. A menção de elementos como 'feijão' e 'rapadura' na feira reforça essa ideia de simplicidade e autossuficiência. Além disso, a música toca em temas de saudade e nostalgia, especialmente quando o luar traz lembranças que são suavizadas pela música da viola, sugerindo que a música é um refúgio e uma forma de lidar com os sentimentos de saudade.

Explora temas rurais e a valorização das raízes culturais brasileiras. 'De Papo Pro Ar' é um exemplo de como utiliza a música para transmitir uma mensagem de paz e contentamento com a vida simples, ao mesmo tempo que aborda sentimentos universais como a saudade.

terça-feira, 25 de junho de 2024

José Feldman (Analecto de Trivões) 32

 

Francisca Júlia (O Aleijadinho)

De quando em quando, nos dias de missa ou de festejos religiosos, enquanto o povo estava aglomerado em torno da igreja, o aleijadinho aparecia, arrimado a uma muleta, e ia implorando esmolas com o chapeuzinho no ar.

Todos o conheciam e davam-lhe pequenas esmolas, uma moeda, um pedaço de pão, gulodices, a que ele com sua vozinha simpática agradecia, dizendo:

— Deus lhe pague.

O aleijadinho morava no meio de uma floresta numa velha choupana coberta de telhas de zinco com seu pai, que há muitos anos gemia no fundo do leito, entrevado pela enfermidade.

O filho era o seu único amparo; levava-lhe a comida à boca, dava-lhe água, os medicamentos que lhe aconselhavam para suavizar-lhe as dores; e quando o sustento escasseava, lá ia a pobre criança para a povoação, arrastando-se pelas estradas.

Pedia esmola aos passantes e tudo que lhe davam guardava numa sacola.

Entrava pelas casas de famílias e desde a entrada ia gritando:

— O aleijadinho!

As crianças corriam a recebê-lo, davam-lhe roupas novas, doces, e muitas invejavam a sua existência humilde, a coragem que tinha de caminhar pela floresta em noites escuras, sem medo aos lobos nem às feras.

Perguntavam-lhe se havia almas do outro mundo na escuridão da mata; a tudo o pobrezinho respondia sorrindo, e contava histórias curiosas de passarinhos, das tempestades do inverno, e, inteligente como era, inventava novelas de fadas, castelos encantados, para iludir a miséria da sua vida.

Tirava dos bolsos ovos de passarinhos, ninhos, pedras de varias cores, distribuía tudo entre as crianças, contando histórias muito bonitas a respeito de cada objeto.

Ia-se embora apressadamente, para que a noite o não surpreendesse em caminho, e, quando entrava na choupana, começava a mostrar ao pai, muito alegre, as esmolas que havia recebido.

E assim ia vivendo a miserável criança, de sofrimento em sofrimento, ignorante dos gozos da fortuna, mas tão resignada sempre, que nunca se lhe viu uma lágrima nos olhos nem um gesto de revolta na candura do seu rostinho.

Passado algum tempo, como o pobrezinho não aparecia mais na aldeia, todos começaram a pensar que as feras decerto o tinham devorado e ao seu velho pai, em alguma noite escura, no silêncio da floresta.

Houve nos corações das crianças um enternecimento geral.

Todos o choraram, lhe lastimaram a sorte, e muitas mãozinhas se ergueram ao céu, suplicantes, rogando a Deus repouso para a sua alma.

Fonte> Francisca Júlia da Silva. Livro da infância. Publicado originalmente em 1899. Disponível em Domínio Público.

Vereda da Poesia = 44 =


Trova Humorística de São Paulo/SP

SELMA PATTI SPINELLI

Com a bagunça rolando,
sem ter mais o que falar,
chilique, de vez em quando,
bota tudo no lugar!!!
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Soneto de Mogúncia/MA

RAYMUNDO CORREA
(Raymundo da Motta de Azevedo Corrêa)
Mogúncia/MA (1859 – 1911) Paris/França

As Pombas

Vai-se a primeira pomba despertada...
Vai-se outra mais... mais outra... enfim dezenas
Das pombas vão-se dos pombais, apenas
Raia sanguinea e fresca a madrugada.

E à tarde, quando a rígida nortada
Sopra, aos pombais, de novo elas, serenas,
Ruflando as asas, sacudindo as penas,
Voltam todas em bando e em revoada...

Também dos corações onde abotoam
Os sonhos, um a um, céleres voam,
Como voam as pombas dos pombais;

No azul da adolescência as asas soltam,
Fogem... Mas aos pombais as pombas voltam,
E eles aos corações não voltam mais.
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Aldravia de Barbacena/MG

FABRÍCIO AVELINO

lua
crescente
em
quarto
minguante
adolescente
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Poema de Alegrete/RS

MÁRIO QUINTANA
(Mário de Miranda Quintana)
Alegrete/RS, 1906 – 1994, Porto Alegre/RS

Inscrição para um Portão de Cemitério

Na mesma pedra se encontram,
Conforme o povo traduz,
Quando se nasce – uma estrela,
Quando se morre – uma cruz.
Mas quantos que aqui repousam
Hão de emendar-nos assim:
“Ponham-me a cruz no princípio…
E a luz da estrela no fim!”.
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Trova Premiada em Maranguape/CE, 2008

ADAMO PASQUARELLI 
(São José dos Campos/SP)

Num mundo congestionado,
em qualquer parte da terra,
o lema está consagrado:
"Se queres paz, vai à guerra". 
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Poema de São José dos Campos/SP

MIFORI
(Maria Inez Fontes Rico)

Belos Tempos

Belos tempos, na infância, eu pude vivenciar.
Muitas brincadeiras nas ruas calmas:
de pega-pega, de roda, de cordas, de casinhas,
e muitas outras, de tirar o chapéu e bater palmas,
com as crianças vizinhas.

Belo tempo teve a minha adolescência...
De descobertas, de incertezas, de contestação!
De olhares lânguidos e de efervescência.
Do culto ao modismo e da secreta paixão...

Belos tempos... Os da minha juventude!
A faculdade, o estudo e o trabalho escolhido.
Os bailes, o grupo de amigos, a plenitude!...
O namoro não mais escondido.

Belos tempos... Vivi na maturidade,
aprendendo e transmitindo conhecimentos.
Ensinando tive a oportunidade
de o sonho concretizar e viver belos momentos.

Belos tempos... Usufruo hoje, muito bem,
com novos tipos de aprendizagens;
muitas surpresas e descobertas também!
Feliz, divirto-me em minhas viagens!
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Quadra Popular

Morena, minha morena,
minha flor de melancia,
um beijo da tua boca
me sustenta todo o dia.
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Soneto de São Paulo/SP

PAULO BONFIM
(Paulo Lébeis Bonfim)
1926 – 2019

Soneto dos muitos eus

Um eu ficou no mar aprisionado
E deixou-me por pés as nadadeiras;
Outro ficou nas nuvens caminheiras,
Por isso bato os braços no ar parado.

Um eu partiu menino ensimesmado
E ofertou-me palavras verdadeiras,
Outro amou suas sombras companheiras,
Outro foi só, e um outro de cansado

Caminhou pelos becos. Há também
Aqueles que ficaram na poesia,
Nos bares, na rotina, o eu do bem,

Do mal, o herói, o trágico, o esquecido.
Eu gerado por mim na liturgia
De um todo para tantos dividido! 
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Trova de Ponta Grossa/PR

SONIA MARIA DITZEL MARTELO
1943 – 2016

Entre todos os recantos
é aqui que me sinto bem:
- o meu lar tem tais encantos
que outros lugares não têm!
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Poema de Mariana/MG

ANDREIA DONADON LEAL

Sonho V

Imagens são sonhos afetos
colam nas telas
nas fotografias
e lembram alguma coisa
de esculturação natural
imagens são sonhos afetos
a beijar uma superfície
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Haicai de São Paulo/SP

JOÃO TOLOI
 
Em meio ao pomar
Mulheres entoam canções
Colhendo goiabas.
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Sextilhas do Rio de Janeiro/RJ

MANUEL BANDEIRA
(Manuel Carneiro de Sousa Bandeira Filho)
Recife/PE, 1886 – 1968, Rio de Janeiro/RJ

Sou romântico? Concedo.
Exibo, sem evasiva,
A alma ruim que Deus me deu.
Decorei "Amor e medo",
"No lar", "Meus oito anos"... Viva
José Casimiro Abreu!

Sou assim por vício inato.
Ainda hoje gosto de Diva,
Nem não posso renegar
Peri, tão pouco índio, é fato,
Mas tão brasileiro... Viva,
Viva José de Alencar!

Paisagens da minha terra,
Onde o rouxinol não canta
- Pinhões para o rouxinol!
Frio, nevoeiros da serra
Quando a manhã se levanta
Toda banhada de sol!

Ai tantas lembranças boas!
Massangana de Nabuco!
Muribara de meus pais!
Lagoas das Alagoas,
Rios do meu Pernambuco,
Campos de Minas Gerais!
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Trova Humorística de São Paulo/SP

DARLY O. BARROS
São Francisco do Sul/SC, 1941 - 2021, São Paulo/SP

Se deu bem mal minha amiga,
e agora não tem mais jeito:
Escorregou pra barriga
o silicone do peito.
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Glosa de Fortaleza/CE

NEMÉSIO PRATA

MOTE:
Cai no trilho e a triste sina
maldiz tanto o beberrão:
essa escada não termina
e é tão baixo o corrimão!
Therezinha Dieguez Brisolla 
(São Paulo/SP)

GLOSA:
Cai no trilho e a triste sina
daquela alma embriagada,
foi confundir, na neblina, 
que trilho não é escada!

Patinando no chapuço*
maldiz tanto o beberrão,
fazendo rir do "pinguço"
os que estavam na estação!

O "bebaço, ante a mofina*,
dizia, só por chalaça*:
- Essa escada não termina...
Era o efeito da cachaça!

Para completar a troça
o "pinguço" beberrão
ainda fazia mangoça*:
... e é tão baixo o corrimão!
…………….
* Vocabulário:
Mofina: infortúnio, má sorte
Chalaça: gozação
Chapuço: Poça de lama
Mangoça: zombaria, deboche
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Aldravia de Madri/Espanha

CESCOHOTADOYBOR
(Carmen Escohotado Ibor)

verão
o
calor
roda
seu
chão
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Soneto de Joaçaba/SC

MIGUEL RUSSOWSKY
(Miguel Kopstein Russowsky)
Santa Maria/RS (1923 – 2009) Joaçaba/SC

Tarde nevoenta... em julho

Domingo sem ninguém...A casa está vazia.
O silêncio no horror persistente blasfema.
Quer se fazer ouvir. Ó tolo estratagema!...
Eu posso ouvi-lo bem, mas qual a serventia?

A solidão nem quer me servir como tema...
...e a tarde se espezinha imensamente fria...
Ó Tristeza, vem cá! Se queres companhia
ajuda-me a cerzir pedaços de um poema

Talvez assombrações que possuam prestígio
se queiram embutir em tercetos, com zelo,
para dar-lhe feições de soneto-prodígio.

Alguém se desmanchou em brumas do passado
e quer ressuscitar de cor, num atropelo.
Se lembrar é viver, eu devo estar errado.
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Trova Premiada em Barra do Piraí/RJ, 1999

ADÉLIA VICTÓRIA FERREIRA
Sete Barras/SP, 1929 – 2018, São Paulo/SP

Torna um sonho em realidade
e verás, com ironia,
que, por mais que ele te agrade,
foi mais bela a fantasia.
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Poema de Coimbra/Portugal

CAMILO PESSANHA
(Camilo de Almeida Pessanha)
Coimbra, 1867 – 1926, Macau/China

Viola Chinesa

 Ao longo da viola morosa
Vai adormecendo a parlenda
Sem que amadornado eu atenda
A lenga-lenga fastidiosa.

 Sem que o meu coração se prenda,
Enquanto nasal, minuciosa,
Ao longo da viola morosa,
Vai adormecendo a parlenda.

 Mas que cicatriz melindrosa
Há nele que essa viola ofenda
E faz que as asinhas distenda
Numa agitação dolorosa?

 Ao longo da viola, morosa…
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Triverso de Belém/PA

PAULO MARCELO BRAGA

A poesia do teu sorriso,
pode ter a certeza disso,
é a terapia que preciso.
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Setilha de Natal/RN

JOSÉ LUCAS DE BARROS
Serra Negra do Norte/RN, 1934 – 2015, Natal/RN

Fico muito contente quando soa
o baião da viola nordestina
num alpendre singelo e acolhedor,
quando a noite inspirada descortina
sobre o cume das serras do sertão,
e era mais carregado de emoção
na brandura da luz da lamparina.
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Trova de Santos/SP

CAROLINA RAMOS

Eu vou indo... vou levando...
assim como a vida deixa...
vou sonhando... vou rimando...
seguindo a vida... sem queixa!...
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Hino de Joaçaba/SC

Letra: Miguel Russowsky

De montanhas diadema
No vale do Rio do Peixe
Minh´alma canta poemas
Risonhas safras em feixe

Que eu espalho de bom grado
Nos suaves sulcos do arado
Se as videiras são serenas
Nos verões fazendo abrigo
Nas primaveras amenas
Enfeito os morros de trigo
Nos outonos, nos invernos
Os meus lares são mais ternos

O meu nome é Joaçaba
Sou alegre e hospitaleira
Tenho amor que não se acaba
Desta terra brasileira?

A quem vir morar comigo
Dou carinho e dou abrigo
A quem vir morar comigo
Dou carinho e dou abrigo.
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Poetrix do Rio de Janeiro/RJ

FÁBIO ROCHA

separação

o leão na gaveta
junto com o retrato:
sem ver, vejo de fato
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Soneto de Curitiba/PR

VANDA FAGUNDES QUEIROZ

Aparência e realidade

O som de minha voz inutilmente
acontece, sem cor e sem motivo.
Tão diverso é o real mundo que vivo
da hora em que pareço estar presente.

É presença enganosa, que desmente
outra força suprema — a do furtivo
viver por dentro, onde, devota, arquivo
ignotos pulsares da alma ardente.

A voz que fala, o riso, a cor que é vista
é invólucro somente, e bem despista
do meu ego a essência, a vida inteira...

E, assim, esta duidade faz-me artista
na arte de viver de forma mista:
a que parece ser.,. e a verdadeira.
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Trova de Maringá/PR

A. A. DE ASSIS

Bom vento que vens das serras
ou dos campos ou do mar,
varre os ódios, varre as guerras,
deixa o amor enfim reinar!
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Fábula em Versos da França

JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry, 1621 – 1695, Paris

O Conselho dos Ratos

Havia um gato maltês,
Honra e flor dos outros gatos;
Rodilardo era o seu nome.
Sua alcunha — Esgana-ratos.

As ratazanas mais feras
Apenas o percebiam,
Mesmo lá dentro das tocas
Com susto dele tremiam;

Que amortalhava nas unhas
Inda o rato mais muchucho,
Tendo para o sepultar
Um cemitério no bucho.

Passava entre aqueles pobres,
De quem ia dando cabo,
Não por um gato maltês.
Sim por um vivo diabo.

Mas janeiro ao nosso herói
Já dor de dentes causava,
E ele de telhas acima
O remédio lhe buscava.

Dona Gata Tartaruga,
De amor versada nas lides,
Era só por quem na roca
Fiava este novo Alcides.

Em tanto o deão dos ratos,
Achando léu ajuntou
Num canto do estrago o resto,
E ansioso assim lhe falou:

"Enquanto o permite a noite.
Cumpre, irmãos meus, que vejamos
Se à nossa comum desgraça
Algum remédio encontramos.

Rodilardo é um verdugo
Em urdir nossa desgraça;
Se não se lhe obstar, veremos
Finda em breve a nossa raça.

Creio que evitar-se pode
Este fatal prejuízo:
Mas cumpre que do agressor
Se prenda ao pescoço um guizo.

Bem que ande com pés de lã.
Quando o cascavel tinir,
Lá onde quer que estivermos
Teremos léu de fugir'".

Foi geralmente aprovado
Voto de tanta prudência;
Mas era a dúvida achar
Quem Fizesse a diligência.

"Vamos saber qual de vós,
Disse outra vez o deão.
Se atreve a dar ao proposto
A devida execução.''

— Eu não vou lá, disse aquele;
— Menos eu, outro dizia;
— Nem que me cobrissem de ouro,
Respondeu outro, eu lá ia!

— Pois então quem há de ser?
Disse o severo deão;
Mas todos à boca cheia
Disseram: "Eu não, eu não!"

Tornou-se em nada o congresso;
Que o aperto às vezes é tal,
Que o remédio que se encontra
Inda é pior do que o mal.

Assim mil coisas que assentam
Numa assembleia, ou conselho;
Mas vê-se na execução
Que tem dente de coelho.