sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Carolina Ramos (Desilusão)


Azuis! Tão azuis quanto um retalho de céu de abril, os olhos de Cássio. Qualquer emoção mais forte lhes acentuava a cor, tornando-os ainda mais bonitos.

A aula terminara mais cedo. Os garotos, cuja idade não chegava aos nove, valiam-se da folga para dirimir dúvidas e acertar as turmas.

Interiorana, a cidade vibrava com o acontecimento. Papai Noel chegaria de helicóptero, na tarde seguinte, para distribuição farta de presentes á criançada.

A meninada fervilhava como formigueiro em tempo de correição.

Os grupos dividiam-se. De um lado, os sabichões que não acreditavam no bom velhinho de barbas brancas. Do outro, aqueles, talvez mais jovens, talvez mais ingênuos, que nem sequer admitiam a possibilidade de dúvidas. Cássio liderando-os.

Houve provocações, e Cássio não fugiu à polêmica. No dia imediato, todos haveriam de ver de que lado estava a razão!

O garoto que chefiava os céticos, metido a valentão, foi além:

— "Seus bobocas... Papai Noel não existe!... é o pai da gente! Será que vocês não entendem? Pai Noel é o pai da gente!"

— "Bobocas!... Bobocas!..." — o coral de vozes provocativas fez ferver o sangue de Cássio. Sentiu-se ofendido dos pés à cabeça. Sequer tinha pai. E, nem por isso, em todos os natais, seus sapatos deixavam de estar cheios de presentes, modestos, sim, mas, sempre os que mais desejara! Os olhos azuis brilhavam mais azuis do que nunca!

Retrucou, triplicando o insulto:

~ "Bobocas são vocês... seus trouxas... seus burros! Esperem só... amanhã, quero ver quem tem cara pra abrir o bico!"

As faces coradas e os pequenos punhos em guarda, falavam ainda com maior veemência.

Engalfinhados, os dois chefes rolaram na calçada, trocando sopapos, sob o estímulo vibrante dos dois grupos adversos.

Finda a luta, tão logo o diretor da escola apareceu, chamando os brigões à realidade, sobraram, como rescaldo, algumas escoriações sem importância, rasgões nas roupas e botões arrancados.

Sem sacudir as roupas, Cássio correu para casa levando joelhos esfolados e um nariz que sangrava. Relutou em entregar à mãe as causas do entrevero. Acabou cedendo. Olhos fitos nos dela, disparou a pergunta, esperando, tenso, e torcendo pela resposta afirmativa:

— Mãe, Papai Noel existe mesmo, não é? — afirmava duvidando... duvidava afirmando.

Surpresa, a mãe hesitou. Perdera o marido quando Cássio estava para nascer. Para o menino, o pai era um ídolo. Ídolo criado e alimentado pelo carinho materno, através dos tempos. Um mito que tinha raízes na ausência da figura paterna. Agora, sem coragem de roubar ao filho a ilusão que o fazia feliz, defrontava-se com um dilema. Após um segundo de hesitação, mentiu, uma vez mais; — Claro... claro que Papai Noel existe! Amanhã você vai vê-lo, não vai?

Assunto encerrado. O menino sorriu aliviado, esquecido das dores e das marcas da contenda, convicto, plenamente, de que valera a pena ter lutado pela verdade. Palavra de mãe é sagrada!

O sábado amanheceu azul, combinando com os olhos de Cássio. O almoço foi engolido às pressas, e as pernas do garoto, espigadas para a idade, foram curtas ante a ansiedade de chegar à praça.

Com meia hora de atraso, pintou, lá no alto, o helicóptero, que, em linha de modernidade, substituía com maior eficiência, o tradicional e romântico trenó tirado a renas.

Quando a porta se abriu e a cara risonha do velhinho barbudo apareceu, reinava silêncio respeitoso, que nem os mais incrédulos ousavam romper.

Fascínio absoluto! Os presentes não deslumbraram tanto os olhos de Cássio quanto a própria figura do querido velhinho! Se bem que o achou mais magro que o esperado, embora acentuadamente barrigudo. Também, os tempos não andavam fáceis e as contínuas viagens do bom Noel deveriam ser profundamente desgastantes para alguém que, mesmo não tendo idade definida, já nascera velho, O menino aquietou-se, aceitando as próprias ponderações.

Após o pasmo da chegada, veio a algazarra da distribuição dos brinquedos. E tão logo os braços cheio, as formiguinhas humanas retornaram aos lares, transportando, jubilosos, as prendas recebidas. A dúvida quanto à existência ou não do mito natalino fora banida ou momentaneamente esquecida. Mãos cheias, e tchau! — solução simplista.

Com Cássio, contudo, não foi o que aconteceu. A respeitável distância, seguiu o bom velhinho que, volta e meia, ajeitava o ventre bojudo e fazia soar as pedras da calçada com o taco de suas botas de verniz negro. Pai Noel deveria estar com fome, por isso, o encaminhavam para uma lanchonete. Cássio seguiu-o sem pressa, esgueirando-se para dentro do estabelecimento. Colado à parede, esqueceu-se de tudo, enlevado na contemplação da mesa privilegiada. Cada gesto do velhinho o fascinava! Quase não acreditou, quando seus olhos se encontraram e um aceno convidou-o a aproximar-se. Tímido, achegou-se, devagarinho.

Ao ver-lhe as mãos vazias. Papai Noel indagou:

— Então, meu filho... você não ganhou nenhum presente?!

Ainda fascinado, o garoto sacudiu a cabeça negativamente, sem coragem de balbuciar qualquer palavra.

O bom velho vasculhou os bolsos à procura de algum brinquedo esquecido. Pescou alguns confeitos e um chaveiro, que estendeu, sorridente, ao menino:

— Olha... sei que é pouco, mas foi o que restou. O chaveiro é meu... talvez, por isso tenha mais valor, que tal?

Cássio agradeceu os regalos, deslumbrado, principalmente, com o chaveiro. Jamais poderia imaginar ter um dia nas mãos um objeto do próprio uso de Papai Noel! Melhor do que qualquer brinquedo! E além disso, falara com ele e tinha provas! Papai Noel existia, sim, como lhe dissera a mãe... Mãe não mente! Queria ver agora que boboca teria coragem de chamá-lo de boboca!

Num impulso agradecido, abraçou o velhinho, voltando a correr para o seu ponto de observação, escondido, desta vez, entre as dobras da cortina. Não fugia à tentação de acompanhar, por mais algum tempo, a ação de alguém tão querido. Apertado na mão, o presente precioso.

Papai Noel, por sua vez, logo esqueceu a criança, pondo-se à vontade. Enquanto conversava com o acompanhante, desvencilhou-se de tudo quanto poderia perturbar-lhe a refeição.

A barba foi a primeira a ser retirada. Logo, o travesseiro que lhe avolumava a cintura foi parar na cadeira vizinha. O gorro vermelho trouxe consigo a cabeleira branca e uma careca lustrosa, despudoramente nua, apareceu.

Atônitos, os olhos extraordinariamente azuis do menino transbordavam perplexidade. O chaveiro escorregou-lhe da mão. Deixou-o cair. Pisou-o!

Um desapontamento irado tomou conta de Cássio.

Antes de abandonar o recinto, cuspiu a bala que lhe adoçava a boca e chutou o chaveiro, acintosamente, em direção ao farsante.

Mãos vazias, correu para casa. Levava de volta um coração agitado, duplamente desiludido e que só não lhe saltava pela boca, porque um soluço magoado lhe amarrava a garganta.

Fonte:
Carolina Ramos. Feliz Natal: contos natalinos. São Paulo/SP: EditorAção, 2015.

Lição (3)


Lenda Cherokee 
Estados Unidos

CONFLITO ENTRE DOIS LOBOS

Um velho cherokee dava lições de vida aos seus netos. Disse-lhes:
“Está se travando uma luta dentro de mim. Luta terrível, entre dois lobos.
Um é o medo, a cólera, a inveja, a tristeza, o remorso, a arrogância a auto-piedade, a culpa, o ressentimento, a inferioridade e a mentira.
O Outro é a paz, a esperança, o amor, a alegria, a delicadeza, a benevolência, a amizade, a empatia, a generosidade, a verdade, a compaixão e a fé.
A mesma luta está se travando dentro de vocês e de todas as outras pessoas…”
As crianças puseram-se a refletir sobre o assunto e uma delas perguntou ao avô: ” Qual dos lobos vencerá?”
O ancião respondeu:
” Aquele que for alimentado…”
_______________________
Olympio Coutinho
Belo Horizonte/MG

Curvas no curso dos rios
nos dão lição exemplar:
mesmo enfrentando desvios
eles sempre chegam ao mar.
____________________
Paulo Coelho 
Rio de Janeiro/RJ

LIÇÃO DE VIDA

Um velho, ao se aposentar, comprou uma fazenda para que seu filho administrasse, e resolveu passar seus dias na varanda. 
O Filho trabalhou durante três anos e ficou com raiva: "Meu pai não faz nada e ainda tenho que alimenta-lo".
Construiu uma grande caixa de madeira, foi até a varanda e ordenou: "Entre aí". 
O pai obedeceu. O filho colocou a caixa no carro e dirigiu até a beira de um precipício. 
Quando ia jogá-la, escutou a voz do pai: "Filho, pode atirar-me no despenhadeiro, mas guarde a caixa. Você está dando o exemplo e seus filhos vão querer usá-la com você".
__________________
Vanda Fagundes Queiroz
Curitiba/PR

A mais sublime lição
de grandeza, amor e fé,
foi ver um homem sem mão
pintando flores com o pé.
_________________
“Não faças da tua vida um rascunho, poderás não ter tempo de passá-la a limpo”.
Mário Quintana
Alegrete/RS, 1906 – 1994, Porto Alegre/RS
__________________
Domitilla Borges Beltrame
São Paulo/SP

Foste embora e, na saudade,
a ofensa se fez lição:
– descobri que o amor-verdade
se alicerça no perdão!
_________________
Cora Coralina
Cidade de Goiás/GO, 1889 – Goiânia/GO, 1985

ASSIM EU VEJO A VIDA

A vida tem duas faces:
Positiva e negativa
O passado foi duro
mas deixou o seu legado
Saber viver é a grande sabedoria
Que eu possa dignificar
Minha condição de mulher,
Aceitar suas limitações
E me fazer pedra de segurança
dos valores que vão desmoronando.
Nasci em tempos rudes
Aceitei contradições
lutas e pedras
como lições de vida
e delas me sirvo
Aprendi a viver.
_________________________
Archimimo Lapagesse
Florianópolis/SC, 1897 – 1966, Rio de Janeiro/RJ

Renego a lição dos sábios
que nada sabem do amor...
Com um beijo só de teus lábios
tirei carta de doutor!
_________________________
David Chericián
Havana/Cuba, 1940 – 2002, Bogotá/Colômbia

LIÇÃO DE GRAMÁTICA

Eu estou, você está,
e ela está, e ele também;
e todos os que estavam estiveram
e estão muito bem.

Estamos, estaremos
nós, ela e ele
estarão lado a lado, e eu, que estive,
estarei.

E, se acaso estivesse
alguém que não tenha estado naquela vez,

bem-vindo!, porque estar é o que importa
-- e que todos estejam.
______________
Lucília Alzira Trindade Decarli
Bandeirantes/PR

Nas ruas de minha vida,
cada esquina uma lição,
e em cada etapa vencida,
muito zelo… de antemão!
_________________________
Goiá
Coromandel/MG, 1935 – 1981, Uberaba/MG

Julião Saturno
????

LIÇÃO DE CABOCLO

Enquanto o Trindade louvava o Divino
Surgiu um grã-fino num certo salão
Falando horrores com ares de troça
Da gente da roça que cuida do chão
Mais entre os presentes um moço que ouvia
Com diplomacia chamou-lhe atenção
Eu venho pedir-te se mau brasileiro
Que trate o roceiro com educação

Jogando pra trás os cabelos compridos
Num gesto atrevido falou arrogante
Quem és oh caipira com esta roupança?
Te dar confiança me é humilhante!
Meu pai tem riqueza e na sociedade
Só faço amizade com gente importante
E quem te apóia caipira atrasado
Procura atestado de ignorante

Respondeu o moço com educação
Vim ver o sertão onde fui criado
Agora a verdade tem que vir à tona
Não me impressiona teu papo furado
Que vale essa estampa de rico fingido
Se és atrevido e mal educado
Sou pobre e humilde mais digo a verdade
Que na faculdade eu fui diplomado

Respeito e defendo o nosso roceiro
Que ganha o dinheiro lavrando o chão
Tem deles coitados de alguns que enriquecem
E às vezes se esquecem que comem feijão
Ouvindo esta frase toda a caboclada
Em fila formada apertaram-lhe a mão
E o moço granfino vencido bradava
Eu não esperava por esta lição
_______________________
Vinicius de Moraes
Rio de Janeiro/RJ, 1913 – 1980

AULA DE PIANO

Depois do almoço na sala vazia
A mãe subia pra se recostar
E no passado que a sala escondia
A menininha ficava a esperar
O professor de piano chegava
E começava uma nova lição
E a menininha, tão bonitinha
Enchia a casa feito um clarim
Abria o peito, mandava brasa
E solfejava assim:
Ai, ai, ai
Lá, sol, fá, mi, ré
Tira a mão daí
Dó, dó, ré, dó, si
Aqui não dá pé
Mi, mi, fá, mi, ré
E a agora o sol, fá
Pra lição acabar
Diz o refrão quem não chora não mama
Veio o sucesso e a consagração
E finalmente deitaram na fama
Tendo atingido a total perfeição
Nunca se viu tanta variedade
A quatro mãos em concertos de amor
Mas na verdade, tinham saudade
De quando ele era seu professor
E quando ela menina e bela
Abria o berrador
Ai, ai, ai
Lá, sol, fá, mi, ré
Tira a mão daí
Dó, dó, ré, dó, si
Aqui não dá pé
Mi, mi, fá, mi, ré
E a agora o sol, fá
Pra lição acabar (3X)
_________________
Jeanette de Cnop
Maringá/PR

Enorme sabedoria
vem nesta simples lição:
doar afeto e alegria,
pra burlar a solidão.
____________________________
A única lição que é possível transmitir com beleza e receber com proveito; A única eterna, digna, valiosa: O respeito pela vida.
Cecília Meireles
Rio de Janeiro RJ, 1901-1964
_______________________
Magdalena Léa
Rio de Janeiro/RJ (1913 – 2001)

É nos elos que nós vemos
união e força patentes.
Porque é que não aprendemos
esta lição das correntes?
_____________________________
Risonaldo Costa
Belo Jardim/PE

A LIÇÃO DA BORBOLETA

Um dia, uma pequena abertura apareceu em um casulo, um homem sentou e observou a borboleta por várias horas conforme ela se esforçava para fazer com que seu corpo passasse através daquele pequeno buraco.
Então  pareceu que ela parou de fazer qualquer progresso. Parecia que ela tinha ido o mais longe que podia, e não conseguia ir mais longe. Então o homem decidiu ajudar a borboleta, ele pegou uma tesoura e cortou o restante do casulo.
A borboleta então saiu facilmente.
Mas seu corpo estava murcho e era pequeno e tinha as asas amassadas. O homem continuou a observar a borboleta porque ele esperava que, a qualquer momento, as asas dela se abrissem e esticassem para serem capazes de suportar o corpo, que iria se afirmar a tempo.
Nada aconteceu! Na verdade, a borboleta passou o resto da sua vida rastejando com um corpo murcho e asas encolhidas.  Ela nunca foi capaz de voar.
O que o homem, em sua gentileza e vontade de
ajudar, não compreendia era que o casulo apertado e o esforço necessário à borboleta para passar através da pequena abertura era o modo com que Deus fazia com que o fluido do corpo da borboleta fosse para as suas asas de modo que ela estaria pronta para voar uma vez que estivesse livre do casulo.
Algumas vezes, o esforço é justamente o que precisamos em nossa vida.
Se Deus nos permitisse passar através de nossas vidas sem quaisquer obstáculos, ele nos deixaria aleijados.
Nós não iríamos ser tão fortes como poderíamos ter sido.
Nós nunca poderíamos voar.
_______________________
Jaime Ribeiro da Silva
Cruzeiro/SP

Espera que, nesta vida,
tudo tem explicação.
- Não há causa que, perdida,
não nos traga uma lição.
_______________________________
Marina Valente
Bragança Paulista/SP

O esforço de uma formiga,
mais que exemplo é uma lição:
seu objetivo persiga
com fé e determinação.

Fonte:
Parte integrante do Folhetim Desiderata n. 10 - Tema: Lição

Arthur de Azevedo (Fatalidade)


I

O Tenente de Cavalaria Remígio Soares, teve a infelicidade ver, uma noite, D. Andréia num camarote do teatro Lucinda, ao lado do seu legítimo esposo, e pecou, infringindo impiamente o nono mandamento da lei de Deus.

A “mulher do próximo”, notando que a “desejavam”, deixou-se impressionar por aquela farda, por aqueles bigodes, e por aqueles belos olhos negros e rasgados.

Ao marido, interessado pelo enredo do dramalhão, que se apresentava, passou completamente despercebido o namoro aceso entre o camarote e a plateia.

Premiada a virtude e castigado o vício, isto é, terminado o espetáculo, o Tenente Soares acompanhou, a certa distância, casal até o Largo de São Francisco e tomou o mesmo bonde que ele – um bonde do Bispo -, sentando-se, como por acaso, o lado de D. Andréia.

Dizer que no bonde o pé do tenente e o pezinho da moça não continuaram a obra encetada no Lucinda, seria faltar à verdade. Acrescentarei até que, ao sair do bonde, na pitoresca Rua Malvino Reis, D. Andréia, com rápido e furtivo aperto de mão, fez ao namorado as mais concludentes e escandalosas promessas.

Ele ficou sabendo onde ela morava.

II

O Tenente Remígio Soares foi para a casa, em São Cristóvão, e passou o resto da noite agitadíssimo, — pudera! Às dez horas da manhã atravessava já o Rio Comprido ao trote do seu cavalo!

Mas – que contrariedade! -~ as janelas de D. Andréia estavam fechadas.

O cavaleiro foi até a Rua de Santa Alexandrina, e voltou patati, patatá, patati, patatá! e as janelas não se tinham aberto!

O passeio foi novamente renovado à tarde, – o tenente passou, tornou a passar, – continuavam fechadas as janelas!

Malditas janelas!…

Durante quatro dias o namorado foi e veio, a cavalo, a pé, de bonde, fardado, à paisana: nada! Aquilo não era uma casa: era um convento!

– Mas, ao quinto dia – 0h! ventura! – ele viu sair do convento um molecote que se dirigia para a venda próxima. Não refletiu: chamou-o de parte, untou-lhe as unhas e interpelou-o.

Soube nessa ocasião que ela se chamava Andréia. Soube mais que o marido era empregado público e muito ciumento: proibia expressamente à senhora sair sozinha e até chegar à janela quando ele estivesse na rua. Soube, finalmente, que havia em casa dois cérebros; uma tia do marido e um jardineiro muito fiel ao patrão.

Mas o providencial moleque nesse mesmo dia se encarregou de entregar à patroa uma cartinha do inflamado tenente, e a resposta – digamos-lo para vergonha daquela formosa desmiolada – a resposta não se fez esperar por muito tempo.

Ei-la:

“O senhor pede-me uma entrevista e não imagina como desejo satisfazer a esse pedido, porque também o amo. Mas uma entrevista como?… onde?… quando?… Saiba que sou guardada à vista por uma senhora de idade, tia dele, e por um jardineiro que lhe é muito dedicado. Pode ser que um dia as circunstâncias se combinem de modo que nos possamos encontrar a sós… Como há um deus para os que se amam, esperemos que chegue esse dia: até lá, tenhamos ambos um pouco de paciência. Mande-me dizer onde de pronto o poderei encontrar no caso de ter que preveni-lo de repente. O moleque é de confiança.”

Na esperança de que o grande dia chegasse, o Tenente Remígio Soares mudou-se imediatamente para perto da casa de D. Andréia; procurou e achou um cômodo de onde se via, meio encoberta pelo arvoredo, a porta da cozinha do objeto amado. Dessa porta D. Andréia fazia-lhe um sinal convencionado todas as vezes que desejava enviar-lhe uma cartinha.

III

Diz a clássica sabedoria das nações que o melhor da festa é esperar por ela.

Não era dessa opinião o tenente, que há dezoito meses suspirava noite e dia pela mulher mais bonita e mais vigiada de todo aquele bairro do Rio Comprido, sem conseguir trocar uma palavra com ela!

Os namorados, graças ao molecote, correspondiam-se epistolarmente, é verdade, mas essa correspondência, violenta e fogosa, contribuía para mais atiçar a luta entre aqueles dois desejos e aumentar o tormento daquelas duas almas.

IV

Os leitores, – e principalmente as leitoras – me desculparão de não pôr no final deste ligeiro conto um grão de poesia: tenho de concluí-lo um pouco à Armando Silvestre. Em todo o caso, verão que a moral não é sacrificada.

O meu herói andava já obcecado, menos pelo que acreditava ser o seu amor, que pelos dezoito meses de longa expectativa e lento desespero.

Um dia, o Barroso, seu amigo íntimo, seu confidente, foi encontrá-lo muito abatido, sem ânimo de se erguer da cama.

– Que tens tu?

– Ainda me perguntas!

– Paciência, meu velho; Jacó esperou quatorze anos.

– Esta coisa tem-me posto doente… – Bem sabes que gozava uma saúde de ferro… Pois bem neste momento a cabeça pesa-me uma arroba…. tenho tonteiras!

– Isso é calor; a tua Andréia não tem absolutamente nada que ver com esses fenômenos cerebrais. Queres um conselho? Manda buscar ali à botica uma garrafinha de água de Janos. É o melhor remédio que conheço para tonteiras!

O tenente aceitou o conselho, e o Barroso despediu-se dele depois que o viu esvaziar um bom copo de benemérito laxativo.

Vinte minutos depois dessa libação desagradável, Remígio Soares viu assomar ao longe, na porta da cozinha, o vulto de D. Andréia, anunciando-lhe uma carta.

Pouco depois entrava o molecote e entregava-lhe um bilhete escrito às pressas.

“A velha amanheceu hoje com febre, e não sai do quarto. O jardineiro foi à cidade chamar um médico da confiança dela. Vem depressa, mal recebas este bilhete: há de ser já, ou nunca o será talvez.”

O tenente soltou um grito de raiva: a água de Janos começava a produzir os seus efeitos fatais; era impossível acudir ao doce chamado de D. Andréia!

Era impossível também confessar-lhe a causa real do não comparecimento; nenhum namorado faria confissões dessa ordem…

O mísero pegou na pena, e escreveu, contendo-se para não fazer outra coisa:

“Que fatalidade! Um motivo poderosíssimo constrange-me a não ir! Quando algum dia houver certa intimidade entre nós, dir-te-ei qual foi esse motivo, e tenho certeza de que me perdoarás.”

V

Quando, no dia seguinte, ele contou ao Barroso a desgraça de que este fora o causador involuntário, o confidente sorriu, e obtemperou:

– Vê tu que grande remédio é a água de Janos! Um só copo serviu para três cabeças!

– Como três?

– A tua, que tinha tonteiras, – a de D. Andréia que estava cheia de fantasias, – e a do marido que andava muito arriscada.

Efetivamente, a moça não perdoou.

O Tenente Remígio Soares nunca mais a viu.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos vários.

quinta-feira, 26 de setembro de 2019

Therezinha Dieguez Brisolla (A Procura de Estrelas) I


Ao conter minha ousadia
deu-me o destino, severo,
em vez do amor que eu queria,
a saudade... que eu não quero.

Ao disfarçar a paixão,
quando na rua se olharam
bem à luz do lampião,
suas sombras... se abraçaram!

Ao reler: - "Amor... coragem...
é a vida... são contingências"...
eu descobri na mensagem,
teu adeus... nas reticências!

Ao romper os nossos laços
chego à estranha conclusão:
- A saudade não tem braços,
mas aperta o coração!

A tua língua refreia,
porque a calúnia é um defeito
de quem pela vida alheia
não tem o menor respeito!

A vida, má roteirista,
dá-me um papel... não me ensaia
e, se eu tento ser artista,
nega-me o aplauso... e me vaia!

A vida, por brincadeira
ou distração, faz da gente,
velha ponte de madeira
sempre à mercê de uma enchente!

Comparo a um pano rasgado
este amor, ao qual me rendo.
Quando parece acabado,
um de nós… faz um remendo!

Com teus disfarces fracassas
nas juras que eu sei de cor...
e entre nós, quando me abraças,
fica a distância maior!

Deus cria a lua e as estrelas
e uma pergunta o inquieta:
- Quem poderá descrevê-las?
Então, Deus... cria o poeta!

Estuda, criança, aprende,
que um livro sempre faz bem...
e a vida, às vezes, depende
da cultura que se tem.

Eu acendo a vela benta
e, com fé beijo a medalha
mas, quando você me tenta
meu anjo da guarda... falha!

Eu lutei quando quis ter
teu amor... e o consegui...
Depois, eu quis te esquecer
e esse combate... eu perdi.

Foi o segredo a guarida
que o nosso amor protegeu...
e a inconfidência da vida
nos fez Marília e Dirceu!

Hoje eu volto à antiga praça
e a saudade tem tal ânsia
que, em cada estranho que passa,
procuro o amigo de infância.

Meu tempo é o da serenata...
do flerte... da matinê...
da valsa... terno e gravata...
do primeiro amor... você!

Não me zango se ele tarda
ou se o espero e ele não vem.
É que o meu anjo da guarda
deve estar velho... também!

Nesta vida alucinante
e de ilusões passageiras,
às vezes, um breve instante
vale mais que horas inteiras!

"Ontem passou"... ele disse
pedindo, outra vez, perdão.
Eu não sei se fiz tolice
mas, desta vez, disse: - Não!

O seu olhar tem tal brilho
que chega à sublimidade...
Toda mãe, que espera um filho,
tem um "quê" de majestade!

Passam sorrindo ao meu lado
avó e neto... amor puro!
Nela, revivo o passado...
Nele, adivinho o futuro.

Por mais que o mundo me agrida,
minha fé não arrefece...
Mesmo no inverno da vida,
Deus manda o sol que me aquece!

Quando desfazes a trança,
jogando longe teus grampos,
tu me recordas a dança
do trigo dourando os campos!

Quase ao fim da caminhada,
meu coração não tem jeito!...
Sempre um toque de alvorada
acorda o sonho… em meu peito!

Que eu não me esqueça, jamais,
que a moral é a diretriz
e ter ética é bem mais
do que a gente pensa e diz!

Se a cruz é leve ou pesada,
para quem crê, não importa!...
Deus nos dá, para a jornada
o peso que a fé suporta.

Se de amor o velho fala,
corre o seu pranto… e, de manso,
a saudade, calma, embala
a cadeira de balanço.

Sei que este amor é veneno
do qual bebo... e o que é pior:
- Desejo, quanto mais peno,
sempre uma dose maior!

Se, um dia, o amor acabar
e as juras você esquecer,
basta um recado no olhar
e eu saberei entender.

Sorrindo, tento esconder
toda a mágoa que me inspiras.
Finges me amar... finjo crer...
Nós somos duas mentiras!

Tanto amor na despedida!!!
Voltas... E eu não sinto nada...
Pior que o adeus, na partida,
foi nosso adeus, na chegada!

"Um doutor", o pai almeja...
e a mãe, a sorrir, lhe diz
que amor e paz lhe deseja...
Só quer que seja... feliz!

Fonte:
Livro cedido pela trovadora
Therezinha Dieguez Brisolla. A procura de estrelas. Porto Alegre/RS: Odisseia, 2014.

Lima Barreto (Um Especialista)


Era hábito dos dois, todas as tardes, após o jantar, jogar uma partida de bilhar em cinquenta pontos, finda a qual iam, em pequenos passos, até ao Largo da Carioca tomar café e licores, e, na mesa do botequim, trocando confidências, ficarem esperando a hora dos teatros, enquanto que, dos charutos, fumaças azuladas espiralavam preguiçosamente pelo ar.

Em geral, eram as conquistas amorosas o tema da palestra; mas, às vezes; incidentemente, tratavam dos negócios, do estado da praça e da cotação das apólices.

Amor e dinheiro, eles juntavam bem e sabiamente.

O comendador era português, tinha seus cinquenta anos, e viera para o Rio aos vinte e quatro, tendo estado antes seis no Recife. O seu amigo, o Coronel Carvalho, também era português, viera, porém, aos sete para o Brasil, havendo sido no interior, logo ao chegar, caixeiro de venda, feitor e administrador de fazenda, influência política; e, por fim, por ocasião da bolsa, especulara com propriedades, ficando daí em diante senhor de uma boa fortuna e da patente de coronel da Guarda Nacional. Era um plácido burguês, gordo, ventrudo, cheio de brilhantes, empregando a sua mole atividade na gerência de uma fábrica de fósforos. Viúvo, sem filhos, levava a vida de moço rico. Frequentava cocotes; conhecia as escusas casas de rendez-vous, onde era assíduo c considerado; o outro, o comendador, que era casado, deixando, porém, a mulher só no vasto casarão do Engenho Velho a se interessar pelos namoricos das filhas, tinha a mesma vida solta do seu amigo e compadre.

Gostava das mulheres de cor e as procurava com o afinco e ardor de um amador de raridades.

À noite, pelas praças mal iluminadas, andava catando-as, joeirando-as com olhos chispantes de lubricidade e, por vezes mesmo, se atrevia a seguir qualquer mais airosa pelas ruas de baixa prostituição.

– A mulata, dizia ele, é a canela, é o cravo, é a pimenta; é, enfim, a especiaria de requeime acre e capitoso que nós, os portugueses, desde Vasco da Gama, andamos a buscar, a procurar.

O coronel era justamente o contrário: só queria às estrangeiras; as francesas e italianas, bailarinas, cantoras ou simplesmente meretrizes, era o seu fraco.

Entretanto havia já quinze dias, que não se encontravam no 1ugar aprazado e a faltar era o comendador, a quem o coronel sabia bem por informações do seu guarda-livros.

Ao acabar a segunda semana dessa ausência imprevista, o coronel, maçado e saudoso, foi procurar o amigo na sua loja à Rua dos Pescadores. Lá o encontrou amável e de boa saúde. Explicaram-se; e entre eles ficou assentado que se veriam naquele dia, à tarde, na hora e lugar habituais.

Como sempre, jantaram fartamente e regiamente regaram o repasto com bons vinhos portugueses. Jogaram a partida de bilhar e depois, como encarrilhados, seguiram para o café de costume no Largo da Carioca.

No princípio, conversaram sobre a questão das minas de Itaoca, vindo então à baila a inépcia e a desonestidade do governo; mas logo depois, o Coronel que “tinha a pulga atrás da orelha”, indagou do companheiro o motivo de tão longa ausência.

– Oh! Não te conto! Foi um “achado”, a coisa, disse o comendador, depois de chupar fortemente o charuto e soltar uma volumosa baforada; um petisco que encontrei… Uma mulata deliciosa, Chico ! Só vendo o que é, disse a rematar, estalando os beiços.

– Como foi isso? inquiriu o coronel pressuroso. Como foi? Conta lá!

– Assim. A Ultima vez que estivemos juntos, não te disse que no dia seguinte iria a bordo de um paquete buscar um amigo que chegava do Norte?

– Disseste-me. E daí?

– Ouve. Espera. C'os diabos isto não vai a matar! Pois bem, fui a bordo. O amigo não veio… Não era bem meu amigo… Relações comerciais… Em troca…

Por essa ocasião rolou um carro no calçamento. Travou em frente ao café e por ele adentro entrou uma gorda mulher, cheia de plumas e sedas, e para vê-la virou-se o comendador, que estava de costas, interrompendo a narração. Olhou-a e continuou depois:

– Como te dizia: não veio o homem, mas enquanto tomava cerveja com o comissário, vi atravessar a sala uma esplêndida mulata; e tu sabes que eu…

Deixou de fumar e com olhares canalhas sublinhou a frase magnificamente.

– De indagação em indagação, soube que viera com um alferes do Exército; e murmuravam a bordo que a Alice (era seu nome, soube também) aproveitara a companhia, somente para melhor mercar aqui os seus encantos. Fazer a vida… Propositalmente, me pareceu, eu me achava ali e não perdia vaza, como tu vais ver.

Dizendo isto, endireitou o corpo, alçou um tanto a cabeça, e seguiu narrando:

– Saltamos juntos, pois viemos juntos na mesma lancha – a que eu alugara. Compreendes? E, quando embarcamos num carro, no Largo do Paço, para a pensão, já éramos conhecimentos velhos; assim pois…

– E o alferes?

– Que alferes?

– O alferes que vinha com a tua diva, filho? Já te esqueceste ?

– Ah! Sim! Esse saltou na lancha do Ministério da Guerra e nunca mais o vi.

– Está direito. Continua lá a coisa.

– E… e… Onde é que estava? Hein?

– Ficaste: quando ao saltar, foram para a pensão.

– É isto ! Fomos para a Pensão Baldut, no Catete; e foi, pois, assim que me apossei de um lindo primor – uma maravilha, filho, que tem feito os meus encantos nestes quinze dias – com os raros intervalos em que me aborreço em casa, ou na loja, já se vê bem.

Repousou um pouco e, retomando logo após a palavra, assim foi dizendo:

– É uma coisa extraordinária! Uma maravilha! Nunca vi mulata igual. Como esta, filho, nem a que conheci em Pernambuco há uns vinte e sete anos! Qual! Nem de longe! Calcula que ela é alta, esguia, de bom corpo; cabelos negros corridos, bem corridos: olhos pardos. É bem fornida de carnes, roliça; nariz não muito afilado, mas bom! E que boca, Chico! Uma boca breve, pequena, com uns lábios roxos, bem quentes… Só vendo mesmo! Só! Não se descreve.

O comendador falara com um ardor desusado nele; acalorara-se e se entusiasmara deveras, a ponto de haver na sua fisionomia estranhas mutações. Por todo ele havia aspecto de um suíno, cheio de lascívia, inebriado de gozo. Os olhos arredondaram-se e diminuíram; os lábios se haviam apertado fortemente e impelidos pra diante se juntavam ao jeito de um focinho; o rosto destilava gordura; e, ajudado isto pelo seu físico, tudo nele era de um colossal suíno.

– O que pretendes fazer dela? Dizes lá.

– É boa… Que pergunta ! Prová-la, enfeitá-la, enfeitá-la e “lançá-la” E é pouco?

– Não! Acho até que te excedes. Vê lá, tu!

– Hein? Oh! Não! Tenho gasto pouco. Um conto e pouco… Uma miséria!

Acendeu o charuto e disse subitamente, ao olhar o relógio:

– Vou buscá-la de carro, porquanto vamos ao cassino, e tu me esperas lá, pois tenho um camarote. Até já.

Saindo o seu amigo, o coronel considerou um pouco, mandou vir água Apolináris, bebeu e saiu também.

Eram oito horas da noite.

Defronte ao café, o casarão de uma ordem terceira ensombrava a praça parcamente iluminada pelos combustores de gás e por um foco elétrico ao centro. Das ruas que nela terminavam, delgados filetes de gente saíam e entravam constantemente. A praça era como um tanque a se encher e a se esvaziar equitativamente. Os bondes da Jardim semeavam pelos lados a branca luz de seus focos e, de onde em onde, um carro, um tilburi, a atravessava célere.

O coronel esteve algum tempo olhando o largo, preparou um novo charuto, acendeu-o, foi até à porta, mirou um e outro transeunte, olhou o céu recamado de estrelas, e, finalmente, devagar, partiu em direção à Lapa.

Quando entrou no cassino, ainda o espetáculo não havia começado.

Sentou-se a um banco no jardim, serviu-se de cerveja e entrou a pensar.

Aos poucos, vinham chegando os espectadores. Naquele instante entrava um. Via-se pelo acanhamento, que era um estranho às usanças da casa. Esmerado no vestir, no calçar, não tinha em troca o desembaraço com que se anuncia o habitué. Moço, moreno, seria elegante se não fosse a estreiteza de seus movimentos. Era um visitante ocasional, recém-chegado, talvez, do interior, que procurava ali uma curiosidade, um prazer da cidade.

Em seguida, entrou um senhor barbado, de maçãs salientes, rosto redondo, acobreado. Trazia cartola, e pelo ar solene, pelo olhar desdenhoso que atirava em volta, descobria-se nele um legislador da Cadeia Velha, deputado, representante de algum Estado do Norte, que, com certeza, há duas legislaturas influía poderosamente nos destinos do país com o seu resignado apoiado. E assim, um a um, depois aos magotes, foram entrando os espectadores. Ao fim, na cauda, retardados, vieram os frequentadores assíduos – pessoas de variadas de profissão e moral que com frequência desejavam saber os nomes das cocotes, a proveniência delas e as suas excentricidades libertinas. Entre os que entravam naquele momento, entrara também o comendador e o ” achado” .

A primeira parte do espetáculo correra quase friamente.

Todos, homens e mulheres, guardavam as maneiras convencionadas de se estar em público. Era cedo ainda.

Em meio, porém, da segunda, as atitudes mudaram. Na cena, uma delgadinha senhora (chanteuse à diction – no cartaz) berrava uma cançoneta francesa. Os espectadores, com batidos das bengalas nas mesas, no assoalho, e com a voz mais ou menos comprometida, estribilhavam-na doidamente. O espetáculo ia no auge. Da sala aos camarotes subia um estranho cheiro – um odor azedo de orgia.

Centenas de charutos e cigarros a fumegar enevoavam todo ambiente.

Desprendimentos do tabaco, emanações alcoólicas, e, a mais, uma fortíssima exalação de sensualidade e lubricidade, davam à sala o aspecto repugnante de uma vasta bodega.

Mais ou menos embriagado, cada um dos espectadores tinha para com a mulher com quem bebia, gestos livres de alcova. Francesas, italianas, húngaras, espanholas, essas mulheres, de dentro das rendas, surgiam espectrais, apagadas, lívidas como moribundas. Entretanto, ou fosse o álcool ou o prestígio de peregrinas, tinham sobre aqueles homens um misterioso ascendente. A esquerda, na plateia, o majestoso deputado da entrada coçava despudoradamente a nuca da Dermalet, uma francesa; em frente o doutor Castrioto, lente de uma escola superior, babava-se todo a olhar as pernas da cantora em cena, enquanto em um camarote defronte, o Juiz Siqueira apertava-se à Mercedes, uma bailarina espanhola, com o fogo de um recém-casado à noiva.

Um sopro de deboche percorria homem a homem.

Dessa forma o espetáculo desenvolvia-se no mais fervoroso entusiasmo e o coronel, no camarote, de soslaio, pusera-se a observar a mulata. Era bonita de fato e elegante também. Viera com um vestido creme de pintas pretas, que lhe assentava magnificamente.

O seu rosto harmonioso, enquadrado num magnífico chapéu de palha preta, saía firme do pescoço roliço que a blusa decotada deixava ver. Seus olhos curiosos, inquietos, voavam de um lado a outro e a tez de bronze novo cintilava à luz dos focos. Através do vestido se lhe adivinhavam as formas; e, por vezes, ao arfar, ela toda trepidava de volúpia…

O comendador pachorrentamente assistia ao espetáculo e fora do costume, pouco conversou. O amigo, pudicamente não insistiu no exame.

Quando saíram de permeio à multidão, acumulada no corredor da entrada, o coronel teve ocasião de verificar o efeito que fizera a companheira do amigo. Ficando mais atrás, pôde ir recolhendo os ditos e as observações que a passagem deles ia sugerindo a cada um.

Um rapazola dissera:

– Que “mulatão”!

Um outro refletiu:

– Esses portugueses são os demônios para descobrir boas mulatas. É faro. Ao passarem os dois, alguém, a quem ele não viu, maliciosamente observou:

– Parecem pai e filha.

E essa reflexão de pequeno alcance na boca que a proferiu, calou fundo no ânimo do coronel.

Os queixos eram iguais, as sobrancelhas, arqueadas, também; o ar, um não sei quê de ambos assemelhavam-se… Vagas semelhanças, concluiu o coronel ao sair à rua, quando uma baforada de brisa marinha lhe acariciou o rosto afogueado.

Já o carro rolava rápido pela rua quieta – quietude agora perturbada pelas vozes esquentadas dos espectadores saídos e pelas falsas risadas de suas companheiras – quando o comendador, levantando-se no estrado da carruagem, ordenou ao cocheiro que parasse no hotel, antes de tocar para a pensão. A sala sombria e pobre do hotel tinha sempre por aquela hora uma aparência brilhante. A agitação que ia nela; as sedas roçantes e os chapéus vistosos das mulheres; a profusão de luzes, o irisado das plumas, os perfumes requintados que voavam pelo ambiente; transmudavam-na de sua habitual fisionomia pacata e remediada. As pequenas mesas, pejadas de pratos e garrafas, estavam todas elas ocupadas. Em cada, uma ou duas mulheres sentavam-se, seguidas de um ou dois cavalheiros. Sílabas breves do francês, sons guturais do espanhol, dulçorosas terminações italianas, chocavam-se, brigavam.

Do português nada se ouvia, parecia que se escondera de vergonha.

Alice, o comendador e o coronel, sentaram-se a uma mesa redonda em frente à entrada. A ceia foi lauta e abundante. A sobremesa, os três convivas repentinamente animados, puseram-se a conversar com calor. A mulata não gostara do Rio; preferia o Recife. Lá sim ! O céu era outro; as comidas tinham outro sabor, melhor e mais quente. Quem não se recordaria sempre de uma frigideira de camarões com maturins ou de um bom feijão com leite de coco?

Depois, mesmo a cidade era mais bonita; as pontes, os rios, o teatro, as igrejas.

E os bairros então? A Madalena, Olinda… No Rio, ela concordava, havia mais povo, mais dinheiro; mas Recife era outra coisa, era tudo…

– Você tem razão, disse o comendador; Recife é bonito, e muito mais . .

– O senhor, já esteve lá ?

– Seis anos; filha, seis anos; e levantou a mão esquerda à altura dos olhos, correu-a pela testa, contornou com ela a cabeça, descansou-a afinal na perna e acrescentou: comecei lá minha carreira comercial e tenho muitas saudades. Onde você morava?

– Ultimamente à Rua da Penha, mas nasci na de João de Barro, perto do Hospital de Santa Águeda…

– Morei lá também, disse ele distraído.

– Criei-me pelas bandas de Olinda, continuou Alice, e por morte de minha mãe vim para a casa do doutor Hildebrando, colocada pelo juiz…

Há muito que tua mãe morreu? indagou o coronel.

– Há oito anos quase, respondeu ela.

– Há muito tempo, refletiu o coronel; e logo perguntou: que idade tens?

– Vinte e seis anos, fez ela. Fiquei órfã aos dezoito. Durante esses oito anos tenho rolado por esse mundo de Cristo e comido o pão que o diabo amassou. Passando de mão em mão, ora nesta, ora naquela, a minha vida tem sido um tormento. Até hoje só tenho conhecido três homens que me dessem alguma coisa; os outros Deus me livre deles! – só querem meu corpo e o meu trabalho. Nada me davam, espancavam-me, maltratavam-me. Uma vez, quando vivia com um sargento do Regimento de Polícia, ele chegou em casa embriagado, tendo jogado e perdido tudo, queria obrigar-me a lhe dar trinta mil-réis, fosse como fosse. Quando lhe disse que não tinha e o dinheiro das roupas que eu lavava, só chegava naquele mês para pagar a casa, ele fez um escarcéu. Descompôs-me. Ofendeu-me. Por fim, cheio de fúria agarrou-me pelo pescoço, esbofeteou-me, deitou-me em terra, deixando-me sem fala e a tratar-me no hospital. Um outro – um malvado em cujas mãos não sei como fui cair – certa vez, altercamos, e deu-me uma facada do lado esquerdo, da qual ainda tenho sinal.! Tem sido um tormento… Bem me dizia minha mãe: toma cuidado, minha filha, toma cuidado. Esses homens só querem nosso corpo por segundos, depois vão-se e nos deixam um filho nos quartos, quando não nos roubam como fez teu pai comigo…

– Como?… Como foi isso? interrogou admirado o coronel.

– Não sei bem como foi, retrucou ela. Minha mãe me contava que ela era honesta; que vivia na cidade do Cabo com seus pais, de cuja companhia fora seduzida por um caixeiro português que lá aparecera e com quem veio para o Recife. Nasci deles e dois meses, ou mais depois do meu nascimento, meu pai foi ao Cabo liquidar a herança (um sítio, uma vaca, um cavalo) que coubera à minha mãe por morte de seus pais. Vindo de receber a herança, partiu dias depois para aqui e nunca mais ela soube notícias dele, nem do dinheiro, que, vendido o herdado, lhe ficara dos meus avós.

– Como se chamava teu pai? indagou o comendador com estranho entono.

– Não me 1embra bem; era Mota ou Costa… Não sei… Mas o que é isso? disse ela de repente, olhando o comendador. Que tem o senhor ?

– Nada… Nada… retrucou o comendador experimentando um sorriso. Você não se 1embra das feições desse homem? interrogou ele.

– Não me 1embra, não. Que interesse! Quem sabe que o senhor não é meu pai? gracejou ela.

O gracejo caiu de chofre naqueles dois espíritos tensos, como uma ducha frigidíssima. O coronel olhava o comendador que tinha as faces em brasa; este, àquele; por fim depois de alguns segundos o coronel querendo dar uma saída à situação, simulou rir-se e perguntou:

– Você nunca mais soube alguma coisa… qualquer coisa ? Hein ?

– Nada… Que me 1embre, nada… Ah ! Espere… Foi… É. Sim! Seis meses antes da morte de minha mãe, ouvi dizer em casa, não sei por quem, que ele estava no Rio implicado num caso de moeda falsa. É o que me 1embra, disse ela.

– O que? Quando foi isso? indagou pressuroso o comendador.

A mulata, que ainda não se havia bem apercebido do estado do comendador, respondeu ingenuamente:- Mamãe morreu em setembro de 1893, por ocasião da revolta… Ouvi contar essa história em fevereiro. É isso.

O comendador não perdera uma sílaba; e, com a boca meio aberta, parecia querê-las engolir uma e uma; com as faces congestionadas e os olhos esbugalhados, a sua fisionomia estava horrível.

O coronel e a mulata, estáticos, estuporados, entreolhavam-se.

Durante um segundo nada se lhes antolhava fazer. Ficaram como idiotas; em breve, porém, o comendador, num supremo esforço, disse com voz sumida:- Meu Deus! É minha filha!

quarta-feira, 25 de setembro de 2019

Varal de Trovas n. 77

 

Palestra de Isabel Furini, na UEM e Homenagens


Ontem, na UEM na presença de muitos maringaenses - admiradores, poetas e membros do SESC, UNATI, UNIJORE e ALM - a Embaixadora Internacional e Imortal da Poesia pela Academia Virtual de Letras, Artes e Cultura do Brasil, educadora e professora curitibana Isabel Furini proferiu uma palestra sobre a importância da poesia no mundo atual em comparação aos tempos antigos, sendo muito aplaudida.  

Na ocasião alguns poetas maringaenses (como Jaime Vieira, Joel Cardoso, Nilsa Alves de Melo, entre outros) se fizeram presente declamando poemas de sua autoria. Raílda Masson anunciou o lançamento de livro de sua autoria sobre Florbela Espanca em 5 de novembro, e posteriormente na FLIM (Festa Literária Internacional de Maringá).

Ao final, após sortear entre os presentes livros de diversos poetas, Isabel homenageou dois poetas maringaenses que trabalham há muitos anos pela divulgação da poesia, entregando em mãos medalhas, um deles a Jaime Vieira e outro para minha pessoa, como membro imortal da Academia Virtual Internacional de Poesia, Arte e Filosofia, da qual Isabel é Presidente. 

Grato e honrado por este belo presente às portas de minhas 65 primaveras que completo esta sexta-feira.

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Educadora e escritora, Isabel Furini escreve poemas desde criança. Suas poesias foram premiadas no Brasil, na Espanha e em Portugal. Já possui mais de 30 livros publicados. Foi nomeada Embaixadora da Palavra pela Fundação Cesar Egido Serrano (Espanha); Embaixadora da Rima Jotabé, Espanha; recebeu Comenda Ordem de Figueiró e foi nomeada Embaixadora Internacional e Imortal da Poesia pela Academia Virtual de Letras, Artes e Cultura do Brasil, em 2015. Participou de antologias na Argentina, no Brasil, no Chile e em Portugal.

Jaime  Vieira é professor de línguas e literaturas portuguesa e inglesa, é autor   dos   livros:   “Desencontros”,   “Ecos   e   Gritos”,   “Reencontro”,   “Outonos”,“Reencanto”, e “Asas”. Tem 36 prêmios literários, alguns deles são internacionais. Escreveu   durante   anos   a   coluna   literária   “Sinal   Verde”,   para   vários   jornais   de Maringá,   também   apresentou   o   programa   “Jaime   Viera”   pela   rádio   cultura   de Maringá.  É   membro  da  UBE  (União Brasileira  dos   Escritores   São- Paulo/SP)  e membro fundador da Academia De Letras de Maringá. Atualmente é vice-presidente da Unijore – União dos jornalistas e escritores de Maringá. 

José Feldman nasceu em São Paulo/SP, radicou-se na cidade de Maringá/PR. Poeta, trovador, escritor e gestor cultural, foi membro da União Brasileira dos Trovadores (UBT)/SP, Casa do Poeta Lampião de Gaz e Ordem Nacional dos Escritores. Vice-presidente da ALIUBI (Ubiratã/PR), Delegado da UBT Ubiratã/PR, membro da UBT/Maringá, auxiliar de delegado da UBT Arapongas/PR, atual presidente da Academia de Letras do Brasil/Paraná desde 2009, conselheiro internacional do Movimento União Cultural, acadêmico da AVIPAF, acadêmico da Academia de Letras de Teófilo Otoni, Academia Formiguense de Letras, Academia de Letras Brasil – Suiça, em Berna, membro da Sociedade Mundial de Poetas, entre outras. Premiado em diversos concursos de Trovas e de Poesias, criador do blog Singrando Horizontes, organizador e editor de e-books e e-revistas literárias. Possui dois livros de trovas de sua autoria. Recebeu honrarias por seu trabalho em prol da literatura de diversas academias do Brasil e do exterior. Título de Doutor Honoris Causa da Academia de Letras do Brasil, comenda da Academia Pan Americana de Letras e Artes, comenda Euclides da Cunha da ALB-Suiça, a mais alta honra destas duas academias. Prefaciou livros de escritores de Curitiba/PR e Vila Velha/ES.
(José Feldman)