quarta-feira, 16 de junho de 2021

Estante de Livros (As mentiras que os homens contam, de Luís Fernando Veríssimo)

BREVE INFORMAÇÃO SOBRE A CRÔNICA


• Cronos, divindade mitológica que representa o tempo

• Primeiro grande cronista da Língua Portuguesa: Fernão Lopes

• Crônicas modernas deixaram de lado o aspecto de registro histórico da classe dominante e anotam com humor, ironia ou lirismo as banalidades do cotidiano

• Crônicas, geralmente, tem a intenção de divertir

• Existem diferentes tipos de crônica:

 Crônica descritiva: predomina a caracterização de elementos no espaço
 Crônica narrativa: história envolvendo personagens, enredo, etc.
Crônica narrativo-descritiva: predomínio das narrações e descrições
 Crônica lírica: linguagem poética e metafórica
 Crônica metalinguística: fala sobre o próprio ato de escrever
 Crônica reflexiva: reflexões filosóficas sobre vários assuntos

Na introdução do livro, Luís Fernando Veríssimo escreve:

“O cronista também precisa respeitar certas convenções e limites mas está livre para produzir seus ovos em qualquer formato. Nesta coleção existem textos que são contos, outros que são paródias, outros que são puros exercícios de estilo ou simples anedotas e até alguns que se submetem ao conceito acadêmico de crônica.(...)”

“Você, que é o consumidor do ovo e do texto, só tem que saboreá-lo e decidir se é bom ou ruim, não se é crônica ou não é. Os textos estão na mesa: fritos, estrelados, quentes, mexidos... Você só precisa de um bom apetite.”  (A crônica e o ovo)


ESTRUTURA DA OBRA E TEMÁTICA

Constituído de quarenta e um textos relativamente curtos, como  são as crônicas, possuem uma linguagem propositalmente descontraída e informal

TEMAS:

• Mentiras de homens e mulheres.

Começa na infância. E a primeira vítima é a mãe. Depois vêm as namoradas, a esposa, a sogra, a amante, os amigos, o chefe. E se torna um comportamento compulsivo.

Muitas vezes lançamos mão delas para evitar algum tipo de constrangimento ou para escapar de broncas, outras pela terrível necessidade de não magoar os outros, ou até mesmo por mera brincadeira.

Não tem como escapar — as mentiras vão sempre estar presentes no cotidiano do ser humano. E se muitas vezes são mentiras inocentes, sem maiores conseqüências, em outras situações elas assumem dimensões gravíssimas e podem levar a um desfecho trágico.

Quem nunca se deparou com um estranho na rua com a constrangedora pergunta: "Lembra de mim?" E você, mesmo sem saber de quem se trata, responde: "Claro." E, aí, tenta ganhar tempo e mais algumas dicas para decifrar a identidade do inconveniente sujeito.

Quem nunca inventou, para a mãe, uma dor ou mal-estar pra fugir de um dia de aula?

Quem nunca usou o trânsito para justificar o atraso a um compromisso?

Afinal, quem nunca contou uma mentira que atire a primeira pedra.

ENREDOS -  PREFÁCIO

“ Nós nunca mentimos. Quando mentimos, é para o bem de vocês. Verdade. “

História sobre a doença para não ir à escola

“ Assim, lhe dávamos a alegria de se preocupar conosco, que é a coisa que a mãe mais gosta, e a poupávamos de descobrir a nossa falta de caráter. Melhor um doente do que um vagabundo.”

Primeira namorada: “A paixão nessa idade pode ser um sumidouro”

“Outras namoradas. Outras mentiras.

- Eu quero só ver, juro. Não vou tocar.

Vocês não queriam ser tocadas, mas ao mesmo tempo se a gente nem tentasse. Nem desse a vocês a oportunidade de afastar a nossa mão, indignadas. Ou de descobrir como era ser tocada.”

Casamento: mentiras sobre o medo de ladrão

“Fiquei fazendo companhia ao Almeidinha, coitado, ele ainda não se refez” significa que a nova gata do Almeidinha só saía com ele se ele conseguisse um par para a prima dela, e nós fazemos tudo por um amigo, mas não queremos estragar a ilusão de vocês de que a separação deixou o Almeidinha arrasado, como ele merecia.”

“ Está quase igual ao da mamãe.”

GRANDE EDGAR

Dois amigos se encontram e um não se lembra do outro

Possibilidade de soluções:

“ Um, o curto, grosso e sincero.  – Não.”

“Outro caminho, menos honesto mas igualmente razoável, é o da dissimulação.(...)

Desculpe, deve ser a velhice, mas...”

“E há um terceiro caminho. O menos racional e recomendável. O que leva à tragédia e ruína. E o que , naturalmente, você escolhe.”

Diversas tentativas e nomes são sugeridos pelo interlocutor

“Você abandonou todos os escrúpulos. Ao Diabo com a cautela. Já que o vexame é inevitável, que ele seja total, arrasador. Você está tomado por uma espécie de euforia terminal. De delírio do abismo. Como que conhece o Bituca?”

“Ao se afastar, você ainda ouve, satisfeito, ele dizer “Grande Edgar”. Mas jura que  é a última vez que fará isso. Na próxima vez que alguém lhe perguntar” Você está me reconhecendo?” Não dirá nem não. Sairá correndo.”

O FALCÃO


História da vida difícil de um homem, que é sequestrado por engano

“Só uma palavra descrevia a vida de Antônio. Foi a palavra que ele usou quando viu o tamanho da fila do ônibus.
(…)
Estava mal empregado, mal casado, mal tudo.”

Antônio faz tentativas frustradas de mostrar aos sequestradores o engano

É morto e jogado da ponte.

A ALIANÇA

História de um homem, que voltando do trabalho, fura o pneu do carro

Na troca, perde a aliança num bueiro

Pensa na conversa que teria com a esposa

“ – O que aconteceu?

 E ele contaria. Tudo exatamente como acontecera. O macaco. O óleo. A aliança no asfalto. O chute involuntário. E a aliança voando para o bueiro e desaparecendo.

 - Que coisa – diria a mulher, calmamente.

 - Não é difícil de acreditar? //  - Não. É perfeitamente possível.

 - Pois é. Eu...  //  - SEU CRETINO!”

Discussão com a esposa / Chega em casa sem dizer nada, pouca conversa.

 “- Tirei para namorar. Pra fazer um programa. E perdi no motel. Pronto. Não tenho desculpas. Se você quiser encerrar nosso casamneto agora, eu compreenderei. (...)

- O mais importante é que você não mentiu para mim.

 E foi tratar do jantar.”

OS MORALISTAS

Paulo separa de sua esposa Margarida

“ Paulo está ao mesmo tempo comovido e surpreso com os três amigos. Assim que souberam do seu divórcio iminente, correram para visitá-lo no hotel. A solidariedade lhe faz bem. Mas não entende aquela insistência deles em dissuadi-lo. Afinal, todos sabiam que ele não se acertava com a mulher.”

Todos estão tentando convencê-lo a voltar com a mulher, mostrando-lhe as desvantagens de se separar: família, filhos (“mas nós não temos filhos”), festas nas casas dos outros. (“Você se transformará num pária social, Paulo.”)

Na verdade, a preocupação deles era outra

“- Também, a ideia dele. Largar o gol dos casados logo agora. Em cima da hora. Quando não dava mais para arranjar mais substituto.

- Os casados nunca terão um goleiro como ele.(...)”

O DIA DA AMANTE

A pergunta é: “ Por que não existe um dia dos Amantes?”

“Já existe o Dia dos Namorados e hoje em dia a diferença entre namorado e amante tornou-se um pouco vaga. Quando é que namorados se transformam em amantes? Segundo uma moça, experimentada na questão, que consultamos, se a mulher der para o mesmo homem mais de 17 vezes seguidas ele deixa de ser namorado e, tecnicamente, passa a ser seu amante.(...)”

Diferenças entre um amante e um namorado solteiros: sexo

“No caso do homem casado e com uma amante a coisa se torna mais complicada, e pouco invejável. No caso do homem casado e com várias amantes, se torna mais complicada ainda, e mais invejável.(...)”

Propagandas para o Dia dos Amantes.

“Tudo para o seu segundo lar.”

“Faça-a sentir-se como se fosse a legítima. Dê uma máquina de lavar roupa.”

“Já que ela não pode ter um a aliança, dê um anel.”

 “No Dia dos Amantes, dê a ela um despertador. Assim você nunca se arriscará a chegar tarde em casa.”

Confusões inevitáveis: marido e mulher se encontram numa loja de lingerie

Marido comprando uma camisola / Mulher leva um susto

“- Há anos que eu tento esconder isso de você. Agora você pegou e vou revelar tudo. Adoro dormir de renda preta! Só me controlei até hoje por causa das crianças!

Ela compreende. Tenta acalmá-lo. Mas ele agora está agitado. Bate no balcão e grita:

- Também quero ligas vermelhas, um chapelão e chinelos de pompom grená!”

Conclusão: a amante ficará sem o presente, mas não existiria suspeitas

Dica: telefone para casa antes de ir para a casa da amante

“ Você se dirige para a casa da amante, com o embrulho do presente embaixo do braço. Começa a pensar na ausência da sua mulher em casa. Onde ela teria ido? Lembra-se então de que a viu mais de uma vez olhando com interesse uma vitrine cheia de cachimbos. Na certa pensando num presente para lhe dar. E súbito você pára na calçada como se tivesse batido num elefante. Você não fuma cachimbos!”

A VERDADE

História de uma donzela que estava na beira de um riacho

Perde um anel de diamante que é levado pelas águas

Com medo do pai, ela inventa uma história de que foi assaltada.

Os irmãos vão até a floresta e encontram um homem e o matam

Voltam à floresta e encontram um segundo homem, que também é morto.

A moça inventa uma história de que existia um terceiro homem

Os irmãos, cansados de sangue, levam-no para a aldeia.

“- Foi ele que assaltou a donzela, e arrancou o anel de seu dedo, e a deixou desfalecida – gritaram os aldeões. - Matem-no.

- Esperem! – gritou o homem, no momento em que passavam a corda da forca pelo seu pescoço. - Eu não roubei o anel. Foi ela que me deu!”

“O homem contou que estava à beira do riacho, pescando, quando a donzela se aproximou dele e pediu um beijo. Ele deu o beijo. Depois a donzela tirou a roupa e pedira que ele a possuísse, pois queria saber o que era o amor. Mas como era um homem honrado, ele resistira, e dissera que a donzela deveria ter paciência, pois conheceria o amor do marido no seu leito de núpcias. Então a donzela lhe oferecera o anel dizendo: “Já que meus encantos não o seduzem, este anel comprará seu amor.” E ele sucumbira, pois era pobre, e a necessidade é o algoz da honra.”

Todos se viraram contra a donzela: ”Rameira! Impura! Diaba!”

Antes da morte, a donzela quis falar com o pescador

“- A sua mentira era maior que a minha. Eles mataram pela minha mentira e vão matar pela sua. Onde está, afinal, a verdade?(...)

- A verdade é que eu achei o anel na barriga de um peixe. Mas quem acreditaria nisso? O pessoal quer violência e sexo, não histórias de pescador.”

O AUTOR E O ESTILO

Nascido em Porto Alegre, Luís Fernando Veríssimo desde cedo trabalhou em redações de jornais, fato que faz suas crônicas sempre tratarem de temas atuais:

Linguagem simples, clara, despreocupada  com a construção acadêmica ou vanguardística.

Sempre procura, tanto na forma como conteúdo, uma comunicação direta com o leitor.

Escritor de texto refinado, sem rodeios.

A objetividade do autor faz o que escreve fluir na cabeça de quem lê

Vive citando nomes, locais e fatos pouco conhecidos do grande público

“Faz rir. Faz chorar. Faz pensar. É político. É humano. É, sem dúvida, um gigolô das palavras. E nem as come! As deixa inteiras para que o leitor possa obter máximo prazer.”

Fonte:
Professor Gilmar para o Mundo Vestibular,   disponível em Orfeu Spam, de Jayrus Luna (por hora, site desativado)

segunda-feira, 14 de junho de 2021

Varal de Trovas 508


A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) O Festival de Cinema de Maringá

Os mais antigos se lembram do sucesso. A cidade estava com apenas 11 anos, não tinha sequer uma rua asfaltada, porém já ousava fazer artes de gente grande. Ousou, por exemplo, um dia, brincar de Cannes. Isso mesmo: para espanto geral, fez-se aqui, de 3 a 10 de maio de 1958, o I Festival Nacional de Cinema de Maringá.

De começo é preciso falar do articulador dessa proeza: Renato Celidônio, paulista descendente de ilustre família quatrocentona, ex-líder estudantil, engenheiro agrônomo, líder ruralista, cafeicultor caixa-alta, mais tarde deputado federal, consagrado como principal político do PTB (depois MDB) da região de Maringá. Um homem de quem todo mundo gostava.

Renato era, ao mesmo tempo, um inquieto animador social. Basta lembrar que foi um dos fundadores do Maringá Clube e do Clube Hípico. Seu irmão José Hugo Celidônio, que posteriormente virou celebridade como um dos maiores ícones da gastronomia no Rio de Janeiro, morava aqui também naquela época e foi um dos fundadores do Clube Olímpico. Os dois conheciam meio mundo nas altas rodas do Rio e São Paulo, aconteciam nas colunas do Ibrahim Sued e do Jacinto de Thormes e dividiam mesa nos bares cariocas com os mais badalados astros e estrelas do cinema brasileiro.

Pois foi numa dessas conversas de bar que a ideia nasceu. “Vou levar vocês a Maringá para um festival diferente de todos os que se fazem no mundo”, disse Renato num de repente. Os minutos seguintes foram para ele descrever Maringá: “É uma cidade que está nascendo no norte do Paraná, numa clareira da mata. Não tem quase nada ainda, mas tem uma beleza de hotel (Grande Hotel), um baita cinema, e um povo raçudo bom à beça”.

Aqui chegando, ele levou o projeto para o prefeito Américo Dias Ferraz, que, festeiro de nascença, abriu um sorrisão e de bate-pronto respondeu: “Topo”. Renato chamou Zé Hugo, Tertuliano dos Passos, Luís Carlos Borba e mais alguns amigos, traçaram uns esquemas e foram conversar com o Ivens Lagoano Pacheco, diretor do “O Jornal”. Apoio irrestrito, com direito a manchete de primeira página: “Cinema Brasileiro terá Festival em Maringá”.

Veio aqui o primeiro time da tela nacional: Anselmo Duarte, Liana Duval, Alberto Ruschel, Andréa Bayard, Carlos Alberto Souza Barros, Odete Lara, Eva Wilma, John Herbert, Mário Sérgio, Celeneh Costa, Lola Brah, Ana Maria Nabuco, Miriam Persia, os diretores Lima Barreto e Roberto Santos e outros mais.

Arrumou-se uma grande passarela na Avenida Getúlio Vargas, na porta do Cine Maringá, por onde entravam os atores, atrizes e demais personalidades. Numa das sessões, até o bispo Dom Jaime entrou junto, ao lado do prefeito e do Celidônio. Foi uma semana de sonho e encantamento. A grande mídia nacional deu ampla cobertura. Maringá entrou na história do cinema. Belíssimo registro nas atas de uma população pioneira.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 02-7-2020)

Laurindo Rabelo (Poemas Escolhidos) VII

À MESMA SENHORA

SONETO VII

Alcíone, perdido o esposo amado,
Ao céu o esposo sem cessar pedia;
Porém as ternas preces surdo ouvia
O céu, de seus amores descuidado.

Em vão o pranto seu d’alma arrancado
Tenta a pedra minar da campa fria;
A morte de seu pranto escarnecia,
De seu cruel penar se ria o fado.

Mas ah! — não fora assim, se a voz tivera
Tão bela, tão gentil, tão doce e clara,
Daquela que hoje neste palco impera.

Se assim cantasse, o túmulo abalara
Do bem querido; e, branda a morte fera,
Vivo o extinto esposo lhe entregara.
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AS LÁGRIMAS

Lágrimas, lágrimas tristes,
Não deixeis os olhos meus,
Que por vós eternamente,
Aos prazeres disse adeus.

Para ter indisputáveis
Direitos ao nosso amor,
Arranquei-vos da minh’alma,
Sois filhos, de minha dor.

Minha vida, agreste planta
De desertos areais,
Ao sol das paixões vivendo,
Expira se a não regais.

Para ter indisputáveis
Direitos ao nosso amor,
Arranquei-vos da minh’alma,
Sois filhos, de minha dor.
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RONDÓ

Minha lira brandamente,
Delinquente em leis de amor
Do traidor que tem por crime
O que imprime na razão,
Que lacera a quem afaga
Que propaga em seus ardores
Os horrores da tristeza
Que me pesa na feição,
Tangerei as cordas tuas,
Que são tuas, e não minhas
Que o que tinhas tangedor
Tens de amor a escravidão.

Não mais de outras criaturas
Formosuras cantaremos,
Louvaremos tão-somente
De um só ente a perfeição.
Tirce, a bela moreninha,
Que de minha nada tem,
É, meu bem, a criatura
Que segura meu grilhão.
Eu que em vê-la só me esmero
Ser não quero desprendido,
Que embebido no meu rosto
Acho gosto na prisão.
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O FUROR CIUMENTO

Da mãe, que pelo amante empunha o ferro
Para cravar nos filhos, pede o fogo,
Que em teus olhos dardeja o sol dos trópicos;
A clave do gemido brasileiro
Pede a prece da filha
Que os filhos recomenda ao amor paterno;
Norma de Norma, chega!
Já a língua de Euterpe é língua tua!

Chegaste!... dos desgostos pela senda,
Arrastada por destra misteriosa,
Que dest’arte guiou-te ao ignoto alcáçar
Recebe, pois, um ósculo da Poesia,
Que Música e Poesia
Irmãs nos louros, beijam-se na floria.
Sus, Rainha do Canto, o cetro empunha!
Reina, que, se não reinas
No mundo d’harmonia,
Reinar não pode a cena brasileira.

Fonte:
Laurindo Rabelo. Poesias completas.

Lenda Indígena (O Furto do fogo)

Segundo os índios tembés*, nos tempos míticos o fogo tinha um único dono: o urubu-rei. Como o urubu era muito avaro da sua preciosidade, os índios não podiam fazer uso de chama alguma, e quando queriam comer carne só lhes restava o expediente de expô-la longamente ao sol.

Isso foi até o dia em que um índio mais destemido resolveu dar um fim àquilo.

– Vamos atrair o urubu-rei e a sua tropa inteira – disse ele, matando uma anta enorme.

Depois de sangrarem bem o bicho, eles deixaram o cadáver exposto ao sol, para atrair os urubus.

Não demorou muito e o urubu-rei, atraído pelo fedor da carniça, desceu sobre a anta.

– Viva, temos hoje banquete farto! Vamos lá, companheiros, há carniça para todos! – disse ele, dando um grasnido.

Logo o céu anoiteceu com a chegada de uma verdadeira nuvem de urubus. A bicharada caiu sobre a anta, mas alguém teve a ideia de acender um fogo e preparar a carne na grelha, ou no moquém, como se diz entre os índios.

– Carne moqueada também tem lá suas delícias! – disse o urubu-rei, retirando de debaixo da asa negra um tição muito bem escondido para acender a grelha.

Os urubus, naquele tempo, tinham o dom de se transformar em gente e, assim, antes de se lançarem à comilança, despiram as asas e ficaram com a aparência de homens (daí, talvez, o gosto que tinham em assar a carne, ao invés de comerem-na crua, como hoje normalmente fazem).

– Ufa! Que calorão! – disse o urubu-rei, despindo o manto de penas.

Nus feito gente, os urubus atiraram-se finalmente à carne, e justo neste instante, irrompendo de dentro da mata, surgiram os índios, de olho aceso no fogo que ardia na grelha.

– Depressa! Apanhem um tição! – gritou o velho pajé, organizador do assalto.

Um grito de alerta do urubu que vigiava avisou, entretanto, os demais, e logo todos vestiram seus mantos negros de penas e levantaram voo estabanadamente. Antes de partir, o urubu-rei tomou a última fagulha que ardia na grelha e, depois de ocultá-la debaixo da asa, juntou-se às demais aves no céu.

O pajé correu alucinadamente até a grelha, remexeu no borralho e encontrou um último caquinho de carvão, com uma listrinha laranja correndo
pra lá e pra cá.

– Aqui! Aqui! – gritou ele aos demais. – Vamos, assoprem, não deixem apagar!

Quinze bocas cercaram o carvãozinho e começaram a assoprá-lo agoniadamente, mas o fizeram com tanta força que a listrinha laranja acabou por se finar, e o carvão nunca mais se acendeu.

– Idiotas! – exclamou o pajé, irado.

Quando se acalmou um pouco, porém, viu que a anta ainda estava quase inteira.

– Eles voltarão logo – disse ele, animando-se outra vez. – Desta vez, vou ficar bem próximo da grelha, e vocês desapareçam e só surjam quando eu ordenar o ataque!

Os tembés fizeram como o pajé ordenara, enquanto ele tratava de cavar um buraco bem ao lado da carniça a fim de se enfiar ali dentro. O mau cheiro da anta decomposta era insuportável, mas quem disse que furtar fogo era coisa fácil e prazenteira?

Dali a pouco, os urubus voltaram, loucos de fome. Após despirem seus casacos pretos, que fediam mais do que a carniça, reacenderam o fogo e recomeçaram a banquetear-se.

Enquanto comiam, o pajé aproveitou para irromper da sua toca, ágil como uma marmota, e meteu a mão dentro da grelha para apanhar um tição.

Assustados, os urubus apanharam suas vestes e levantaram voo outra vez. O urubu-rei ainda tentou resgatar o tição, ou pelo menos extingui-lo na mão do pajé, fazendo uma ventania danada com as asas, mas o velho índio cerrara os dedos com tanta força que nem um furacão teria como apagá-lo.

No fim de tudo, os urubus sumiram nos céus, e o pajé viu-se dono do tição, que ainda ardia em sua mão. Que Anhangá o carregasse se aquilo não ardia como cem mil espetadas!

Como um Prometeu enlouquecido, o pajé tratou de atear fogo em todas as árvores de lenho incandescente que encontrava, a fim de preservar a chama, e teria colocado fogo na mata inteira se os demais índios não tivessem corrido para apagar aquelas labaredas todas.
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* Tembé
Os Tembé constituem o ramo ocidental dos Tenetehara. O grupo oriental é conhecido por Guajajara. Sua autodenominação é Tenetehara, que significa gente, índios em geral ou, mais especificamente, Tembé e Guajajara. Tembé, ou sua variante Timbé, constitui um nome que provavelmente lhes foi atribuído pelos regionais. Vivem no Pará e Maranhão. De acordo com o linguista Max Boudin, timbeb significaria "nariz chato".

A unidade básica da estrutura social Tembé é a família extensa, que se constitui na unidade de produção. Um líder familiar atrai jovens trabalhadores e fortalece o seu grupo por meio das próprias filhas e as filhas de seus irmãos, de modo que ele procura sempre "adotar" as mulheres cujos pais venham a falecer. O chefe coincide, portanto, com o líder de um grupo familiar cujo poder é avaliado pelo número de indivíduos a ele ligados pelas obrigações de parentesco e matrimoniais, pois o genro deve trabalhar nas roças dos sogros, junto aos quais mora, pelo menos até o nascimento do primeiro filho.

Dentro da família mais ampla, os pais ou a mãe viúva mantêm a posição de autoridade. Como as esferas pública e privada são pouco diferenciadas, a política torna-se doméstica e a mulher chega a ser líder do grupo em determinadas situações. Na década de 80, entre os Tembé do Gurupi, o líder de maior prestígio era a "capitoa" Verônica e duas outras aldeias eram constituídas de famílias extensas agrupadas em torno das "velhas" e viúvas de "capitão".

As aldeias, que variam consideravelmente de tamanho, localizam-se em barrancos elevados na beira do rio, próximo às roças. As casas são cobertas com ubim e as paredes são de troncos finos de palmeira, de cascas de árvores ou simplesmente não existem. No posto indígena, são de taipa. Cada casa abriga uma família elementar, sendo que as pertencentes à mesma família extensa ficam próximas umas das outras. Só a aldeia do posto possui uma grande casa cerimonial. Nas outras aldeias, o principal espaço de uso coletivo são as casas de farinha.

O casamento se faz preferencialmente entre primos cruzados do segundo grau que morem na mesma aldeia. Casamentos com regionais, que foram importantes no período em que a população Tembé estava em queda, têm sido preteridos em favor dos casamentos com os Ka'apor, grupo indígena vizinho.


domingo, 13 de junho de 2021

Contos e Lendas do Mundo (A Tartaruga tagarela)

Era uma vez uma tartaruga que vivia num lago com dois patos, muito seus amigos. Ela adorava a companhia deles e conversava até cansar. A tartaruga gostava muito de falar. Tinha sempre algo a dizer e gostava de se ouvir dizendo qualquer coisa.

Passaram muitos anos nessa feliz convivência, mas uma longa seca acabou por esvaziar o lago. Os dois patos viram que não podiam continuar morando ali e resolveram voar para outra região mais úmida. E foram dizer adeus à tartaruga.

- Oh, não, não me deixem! suplicou a tartaruga - levem-me com vocês, senão eu morro!

- Mas você não sabe voar! - disseram os patos - como é que vamos levá-la?

- Levem-me com vocês! Eu quero ir com vocês! - gritava a tartaruga.

Os patos ficaram com tanta pena que, por fim, tiveram uma ideia.

- Pensamos num jeito que deve dar certo - disseram - se você conseguir ficar quieta um longo tempo. Cada um de nós vai morder uma das pontas de uma vara e você morde no meio. Assim, podemos voar bem alto, levando você conosco. Mas cuidado: lembre-se de não falar! Se abrir a boca, estará perdida.

A tartaruga prometeu não dizer palavra, nem mexer a boca; estava agradecidíssima!

Os patos trouxeram uma vara curta bem forte e morderam as pontas; a tartaruga abocanhou bem firme no meio. Então os patos alçaram voo, suavemente, e foram-se embora levando a silenciosa carga.

Quando passaram por cima das árvores, a tartaruga quis dizer: "como estamos alto!" mas lembrou-se de ficar quieta.

Quando passaram pelo campanário da igreja, ela quis perguntar: "o que é aquilo que brilha tanto?" mas lembrou-se a tempo de ficar calada.

Quando passaram sobre a praça da aldeia, as pessoas olharam para cima, muito espantadas.

- Olhem os patos carregando uma tartaruga! - gritavam. E todos correram para ver.

A tartaruga bem quis dizer: "e o que é que vocês têm com isso?" mas não disse nada.

Ela escutou as pessoas dizendo:

- Não é engraçado? Não é esquisito? Olhem! Vejam!

E começou a ficar zangada, mas ficou de boca fechada.

Depois, as pessoas começaram a rir:

- Vocês já viram coisa mais ridícula? - zombavam.

E aí a tartaruga não aguentou mais. Abriu a boca e gritou:

- Fiquem quietos, seus bobalhões!

Mas, antes que terminasse, já estava caída no chão. E acabou-se a tartaruga tagarela.

Baú de Trovas XXXI


Ouça os sons da natureza;
as águas, pássaros, ventos…
Que orquestra produz beleza
maior que esses instrumentos?!
A. A. de Assis
Maringá/PR

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Fui-me embora, e fui deixando
um vazio entre nós dois...
e a saudade, me apressando,
disse:_"vai, que eu vou depois..."
Alba Chrístina Campos Netto
São Paulo/SP

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Toda saudade, de fato,
faz becape na emoção
para lembrar do formato
gravado no coração.
Antonio Assis Canoas Neto
Bebedouro/SP

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Fingi amar... e te amei
e por fingir alegria,
choro um adeus que ganhei.
Que dolorosa ironia!
Antonio Carlos Rodrigues
São Gonçalo/RJ

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Temendo a desilusão,
fugi da felicidade
e agora em meu coração,
não encontro nem saudade.
Argemira F. Marcondes
Taubaté/SP

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Saudade, palavra doce,
que traduz tanto amargor;
saudade é como se fosse
espinho cheirando a flor.
Bastos Tigre
Recife/PE, 1882-1957, Rio de Janeiro/RJ

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Lembro o sertão, seu encanto,
a lua cheia tão minha,
sem nada eu ter, tinha tanto,
naquele nada que eu tinha!
Campos Sales
Lucélia/SP, 1940 – 2017, São Paulo/SP

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É certo que me repito,
é certo que me refuto,
e que, decidido, hesito
neste entra-e-sai de um minuto.
Carlos Drumond de Andrade
Itabira/MG, 1902 - 1987, Rio de Janeiro/RJ

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Este vazio em meu peito,
dói tanto.,, é dor que não finda!
...Dor da saudade... que aceito,
sem ela... dói mais ainda!
Carolina Ramos
Santos/SP

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Que dolorosa ironia
é o discurso do patrão,
que fala em democracia
sem a divisão do pão.
Edweine Loureiro da Silva
Saitama/Japão

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No dia em que ele voltar
ao seu lugar de direito,
irá, de novo, ocupar
este vazio em meu peito,
Élbea Priscila de Sousa e Silva
Caçapava/SP

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Que dolorosa ironia:
No Asilo, a mãe esquecida,
retrata a "vida vazia"
dos filhos cheios de vida...
Gilvan Carneiro da Silva
São Gonçalo/RJ

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Outrora em tardes serenas
chorei sobre uns ramos largos;
e estes ramos, hoje, apenas,
sabem dar frutos amargos.
Humberto de Campos
Miritiba (hoje Humberto de Campos)/MA, 1883 – 1934, Rio de Janeiro/RJ

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Leva luz à escuridão;
tem na cruz, algoz medonho;
faz da vida uma paixão,
quem na vida tem um sonho.
José Manuel Veloso Galvão
São Paulo/SP

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A natureza se vinga
de toda agressão sofrida,
e essa revolta respinga
no centro de nossa vida!
Luiz Carlos Abritta
Belo Horizonte/MG

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Trago a infância e a mocidade
abrasadas na memória...
Quem carrega uma saudade
mantém viva a sua história.
Luzia Brisolla Fuim
São Paulo/SP

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De frente comigo bato...
dizendo que te esqueci...
Toda saudade, de fato,
é deste amor que vivi!
Luzimagda de Martin R. da Fonseca
Juiz de Fora/MG

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Teu corpo claro e perfeito,
teu corpo de maravilha,
quero possuí-lo no leito
estreito da redondilha.
Manuel Bandeira
Recife/PE, 1886 – 1968, Rio de Janeiro/RJ

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Este vazio em meu peito
se deve, a bem da verdade,
àquilo que eu não receito:
amor, ausência e... saudade!
Maria Helena de 0. Costa
Ponta Grossa/ PR

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Quem na vida tem um sonho.
se entregue, sem hesitar!
- Veria o mundo risonho
quem não se arrisca a sonhar?!
Maria Madalena Fetreira
Magé/RJ

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Muito embora um tanto arisco,
meu azulão, jejuando,
é um perfeito São Francisco
a pão e água... passando!
Maria Nelsi Sales Dias
Santos/SP

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Tem um caminho a seguir...
Terá um destino risonho,
pois sabe amar e servir,
quem na vida tem um sonho.
Marta Maria O. Paes de Barros
São Paulo/SP

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0 tempo, por crueldade,
não "amortiza" ninguém...
Quem carrega uma saudade,
sabe o peso que ela tem!...
Roberto Tchepelentyky
São Paulo/SP

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Este vazio em meu peito
é a lembrança mais sofrida
de um amor que, ao ser desfeito,
acabou com minha vida.
Sandro Pereira Rebel
Niterói/RJ

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Quem carrega uma saudade
de um segredo que não diz,
traz de volta à realidade
um tempo em que foi feliz.
Selma Patti Spinelli
São Paulo/SP

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Sempre e sempre se convença
de que há distância infinita
entre aquilo que se pensa
e aquilo que a vida dita...
Vanda Alves
Curitiba/PR

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Resta um semblante desfeito...
mas sei que, em tempos risonhos,
este vazio em meu peito
viveu repleto de sonhos...
Vanda Fagundes Queiroz
Curitiba/PR

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Este vazio em meu peito...
amor proibido entre nós:
em sonhos, no mesmo leito,
em nossa vida, dois sós!
Wanda de Paula Mourthé
Belo Horizonte/MG

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Cresceu tanto o amor-perfeito
que plantei no meu jardim!...
Pensei que, só no meu peito,
0 amor vicejasse assim...
Yedda Ramos M. Patrício
São Paulo/SP

Júlia Lopes de Almeidas (As três irmãs)

A Zalina Rolim

Havia muitos anos já que D. Teresa não via as duas irmãs. A segunda, D. Lucinda, partira logo depois de casada, com o primeiro marido, para Buenos Aires, e lá ficara sempre; a mais moça, D. Violeta, fora habitar a Bahia com o seu esposo e ali estava gozando os triunfos acadêmicos dos filhos e os respeitos delicados do seu velho.

Mas um dia, D. Teresa, apreensiva, com medo da morte que se avizinhava, escreveu às irmãs:

– Que viessem ao Rio despedir-se dela e tomar posse do que lhes pertencia.

Interesse ou saudade... (quem lê claro em corações tão bem ocultos?) empurrou para as plagas natais as duas senhoras.

D. Teresa remoçou uns dias. Só ela ficara solteira e em casa dos pais, já há tanto mortos, como um guarda fiel, depositária de todas as relíquias da mocidade deles e delas! Assim, recomendou à criada, mulata antiga, ex-escrava da família, em todo caso uns trinta anos mais moça do que ela:

– Olha, Emília! Para a mana Lucinda arranja o quarto azul, aquele da esquina... era o seu quarto de solteira... Ela gostava de canários... tinha sempre uma gaiola no quarto... era isso: bota lá a gaiolinha dourada do canário novo... Escuta! Lava bem tudo! Ela era muito faceira... não te esqueças do pó de arroz, de por sabonete fino e frascos de... espera! qual era o cheiro que ela preferia?... Ah! já sei! Jasmim! Manda comprar essência de jasmins...

– Sim, senhora.

– Agora, para D. Violeta prepara o quarto branco, das três janelas... Era o quarto dela! Vê se arranjas muitas flores... Violeta era a nossa jardineira!... Olha, faz um ramo para o lavatório, outro para a cômoda. Era assim que ela usava... Espera! que pressa! Manda comprar essência de violetas... era o aroma dela!

– Sim, senhora...

– Não te esqueças de nada!

– Não, senhora...

A mulata saiu, deixando D. Teresa aos guinchos com um ataque de asma. Não queria morrer deixando aquela casa em mãos indiferentes. Só as irmãs receberiam com amor aqueles trastes antigos, em que tantas vezes rolaram juntas, onde os pais presidiam às suas travessuras de crianças e onde, depois, os noivos as beijaram com embriaguez... A pobre coitada estava a desfazer-se, sentia, a cada arranco da tosse, desmanchar-se-lhe sob a pele seca e enrugada a carcaça frágil e dolorida. O seu corpo, nunca amado, caía, como um feixe de ossos partidos, para a sepultura. Como estariam as irmãs?

A Lucinda deveria estar bem velhota! Agora a Violeta, essa, apesar de mais moça, com tantos filhos e já tanta netaiada, é provável que viesse trêmula e bem achacada pela velhice! Havia já uns trinta anos que a não via... e à outra... uns bons quarenta! E D. Teresa revia com saudade o rosto pálido e formoso da esbelta Lucinda, de olhos verdes, dentes sãos, faces brancas como a neve; e o rostinho delicado de Violeta, moreno, levemente rosado, com uns olhos travessos e negros e uma boquinha perfumada de juventude, muito fresca e vermelha!

E apesar de calcular-lhes as rugas, só via diante dos olhos as figuras louçãs e radiantes das irmãs noutros tempos...

A mulata aprontou tudo com esmero. D. Teresa, apoiada ao seu ombro e a uma bengala grossa, percorreu toda a casa. Ela tinha tido sempre a singular mania de conservar as coisas nos mesmos lugares e em igual posição. Se mandava renovar o papel de uma sala, exigia que o novo fosse exatamente igual ao que de lá saísse; e os trastes eram polidos, os estofos espanados com escrúpulo e as alcatifas nunca substituídas por outras que não fossem da mesma cor e de igual desenho... Para ela, aquelas velharias eram preciosidades raras. Não saía nunca, não dava festas. Vagava no ar das suas salas um cheiro de mofo, denunciador do triste isolamento da sua vida de solteirona, sem sobrinhos, nem afilhados, nem ninguém!

Custava-lhe deixar todo aquele esplendor em mãos alheias e ansiava pelas irmãs. Por uma coincidência, chegaram no mesmo dia D. Violeta, vinda da Bahia, e D. Lucinda, de Buenos Aires.

A manhã estava de uma beleza incomparável; o céu todo azul, a atmosfera morna, o que aprouve a D. Teresa, que pôde aliviar o peso da roupa e cruzar sobre o vestido de seda roxo o seu belo mantelete de renda preta. A Emília ajudou-a naquela tarefa. Toda a roupa compartilhava daquele cheiro de umidade. Vestido havia tanto tempo guardado, o que as rugas fundas denunciavam, não podia cheirar a sol nem a primavera...

No topo da escada, com a cabecinha trêmula sempre a dizer que sim, uma das mãos apoiada à bengala, a outra sumida no braço da mulata, D. Teresa esperava as irmãs com os olhos luminosos, molhados de lágrimas. Elas subiam, vagarosas também, falando alto, uma com voz grave, outra em um falsete de gaita. Haviam de ser risadinhas, lembranças da mocidade...

D. Teresa ordenara que se abrisse o salão principal, e foram logo para lá as três. O que ela notou, com certa alegria invejosa, foi que as irmãs andavam mais direitas, sem necessidade de apoio. Sentaram-se no salão. D. Lucinda faiscava de vidrilhos, descansando a papada cor de leite na rica seda preta da capa. Era enorme. A gordura disfarçava-lhe as rugas.

O coquetismo da mocidade ainda mostrava os seus traços: lá estava o cabelo pintado, caído nas fontes em duas bellezas*, à moda espanhola. E de vez em quando saltitava um caramba, que rebentava como uma bomba naquela casa antiga e reservada.

D. Violeta, essa guardara alguma coisa do seu aroma de flor, para a secura da velhice. Era pequena, muito engelhada; vinha vestida de lã marrom, com uma capa de rendas, de pouco enfeite. O que lhe dava graça era o cabelo muito branco e a meiguice dos seus olhos negros, habituados a sorrir para os netos travessos.

D. Teresa era a mais acabada! Faltara-lhe o amor, faltaram-lhe as sagradas agonias da maternidade, e a sua existência passiva, concentrada, inerte, levara-a àquele ponto, de passa seca já empedernida e intragável!

As três irmãs olharam-se com tristeza; mas o que pensaram não o disseram. Os lábios sorriram, houve uns suspiros mal disfarçados e um brilho de lágrimas, que pareceu molhar ao mesmo tempo os olhos de todas, sem rolar pela face de nenhuma... D. Lucinda rompeu o silêncio. Vinha por pouco tempo... o seu segundo marido, um argentino, morrera havia um ano; tinha ainda muita coisa a liquidar...

O seu palacete não podia ficar abandonado em mãos dos perversos enteados... O seu palacete! Como ela encheu a boca, descrevendo em duas palavras o luxo das suas mobílias e da sua equipagem.

Era conhecida e invejada na cidade toda!

D. Teresa pasmou:

– Quê! Pois as suas mobílias são melhores do que...

– Estas?! Oh! E riu-se com desdém. Teresa! você não imagina: isto é horrível! Nós outras temos coisas modernas, vindas de Paris! Meu marido gastava todos os anos uma fortuna em quadros, em louças, em cavalos e em roupas!

D. Teresa, pálida, com a cabecinha ainda mais trêmula, olhou para a irmã Violeta.

– E você?

– Eu já não me importo com luxos... meus netos acabam com tudo! A não ser à missa, não vou a parte nenhuma... O que eu quero é ter muito espaço para as crianças e uma capela bonita. Em minha casa celebra-se sempre, com alguma pompa, o mês de Maria... É o nosso sistema.

– Eu não conheço, modéstia à parte, casa mais completa do que a minha! impou D. Lucinda.

– Nem eu casa mais alegre do que a minha. Se saio, volto logo com saudades... murmurou D. Violeta.

D. Teresa disse, já um tanto envergonhada por tratar as irmãs por você, em um tom cerimonioso e encolhido:

– Pois eu mandei pedir a... vocês... que viessem tomar conta das mobília e da casa, julgando que lhes fosse agradável...

– Vamos ver! interrompeu D. Lucinda, erguendo-se com dificuldade bem disfarçada. Emília amparou D. Teresa e seguiram todas em peregrinação. D. Lucinda apalpava tudo e ia murmurando:

– Esta mobília tem o estofo podre... Olhem! e esgarçava com a unha o damasco das poltronas.

– Está mesmo... afirmava D. Violeta. Assim tudo: este canapé é medonho; eu não o quereria nem na minha cozinha! Meu Deus! Esta sala de jantar parece-me um refeitório de convento... E dizer que antigamente a gente achava isto bonito...

D. Violeta sorria; D. Teresa não chorava por vergonha, com respeito às irmãs, que vinham mais fortes, com outros hábitos e outros gostos, cada qual educada por um marido, com o espírito influenciado pelo espírito deles; uma adorando o luxo, a outra a família e a igreja. Era bem certo, o casamento e a distância roubaram-lhe as irmãs para sempre; a Lucinda e a Violeta de outrora estavam enterradas em algum cemitério de virgens; aquelas duas velhas de gênios opostos... não era elas!

À noite, D. Teresa, opressa pela asma, não se quis recolher cedo ao seu quarto. Emília foi dizer-lhe com acento irônico:

– D. Lucinda mandou tirar do quarto dela a gaiolinha. Diz que não pode suportar barulhos... que o sono da manhã é o melhor!

Ao mesmo tempo aparecia D. Violeta com as flores na mão:

– Isto não pode estar lá no quarto... As flores devem ficar nos jardins... Lá em casa é o meu sistema.

La em casa! pensou D. Teresa; lá em casa! Afinal cada uma ama o que é seu, pensa no que é seu! Eu, só eu, amo esta casa, não porque seja minha, mas porque era nossa... Serei melhor do que elas? De onde me vêm esta ternura e esta saudade que elas não sentem?

D. Teresa chorou na penumbra da sala.

No dia seguinte mandou recolher ao quarto dos badulaques, no fundo do quintal, os trastes mais antigos e de maior estimação. As irmãs zombavam de tudo... pois bem! deixaria escrito que se fizesse com eles uma fogueira no dia do seu enterro. Mas não escreveu, e dois dias depois, à hora do almoço, morreu sentada na sua cadeira de couro, com as mãos sumidas no xale e a cabecinha pendida para o peito.

D. Violeta recolheu as imagens do oratório, como lembrança piedosa; D. Lucinda, nada. Venderam a casa, repartiram os bens... e foi cada uma para o seu destino.
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*Tipo de penteado feminino, com os cabelos do topete puxados às orelhas.

Fonte:
Júlia Lopes de Almeida. Ânsia eterna. 2. ed. rev. Brasília : Senado Federal, 2020. Publicada originalmente em 1903.

sábado, 12 de junho de 2021

Adega de Versos 28: Daniel Maurício

 

Solange Colombara (Carreata de Micro-Contos) - 1 -

Garrafa


Em uma de suas caminhadas pela praia, encontrou uma garrafa. Dentro, havia vários poemas com um bilhetinho: "—Leia com carinho e lance ao mar novamente".

E assim foi feito durante décadas. "Reflexões de Adalgisa" ganhou o mundo.
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Misantropia

Passava dias trancada em casa com Archimedes, Edgard e Sócrates. Os vizinhos comentavam: "— Misantropia ou Síndrome do Pânico?"

Adalgisa só tinha uma certeza: Preferia a companhia dos seus gatos.
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Malícia

Vestida de charme e elegância, deu um show na quadra. Ele veio chegando como quem não quer nada, cheio de malícia, prometendo "mundos e fundos". Mas ela só queria ser a rainha da Bateria.

Fonte:
Textos enviados pela autora.

Luiz Damo (As Faces da Trova) – 2 –

A flor, quando desabrocha,
quase deixa de ser flor,
pra se transformar em tocha
aspergindo aroma e cor.
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A morte exige passagem
para à vida subtrair
o colorido da imagem
e a esperança do porvir.
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A vida pede socorro
nas estradas da existência,
contra a falta de decoro
e excesso de prepotência.
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De volta para o passado
movido pela saudade,
vemos o homem, apressado,
perder sua identidade.
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Dos bons momentos vividos
raramente alguém esquece,
dos maus e dos mais doídos
qualquer alma se entristece.
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Entre o anil do firmamento,
aonde o sol, fulgente, impera,
da nudez do chão cinzento
brota a vida e prolifera.
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Frente à tumba do passado
prostrado chora o descrente,
por ver sendo sepultado
um pouco do seu presente.
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Hoje, o ser humano investe,
na aparência, com excesso,
como se o que come e veste
fossem fontes de sucesso.
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Não permita que a vaidade
se sobreponha à virtude,
ambas crescem com a idade
mas conflitam amiúde.
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Não te iludas com as flores
que encontrares nos caminhos,
por trás das vistosas cores
podem esconder espinhos.
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Na vida tens dois caminhos,
num deles deves optar
e o que tem menos espinhos
escolhe pra caminhar.
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No altar onde há tradição,
cultivá-la, pode ser,
muito mais que obrigação
um santo e nobre dever.
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Numa taça de água fria
não deprecia quem dá,
mas refresca de alegria
alguém que com sede está.
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Nunca faças de um fracasso
do sucesso, a sepultura,
porque o teu próximo passo
pode ser o da ventura.
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O presente nos revela,
uma vida, igual façanha,
mais a imagem que foi dela
e aquela da sua entranha.
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O presente planejado
não se assusta do futuro,
povo que não tem passado
imerge em porvir escuro.
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Ouvindo o choro do vento
minha alma se contorcia,
não via, mas seu lamento,
era igual ao que eu sentia.
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Pelas frinchas da janela
aonde refulge a manhã,
a estrela numa olhadela
entra em forma de espiã.
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Pode haver alguém que diga
com toda a sinceridade,
na maldade, quem se liga,
não terá a felicidade.
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Que jamais o ser humano,
venha um dia ser lesado,
por vingança ou por engano
muito menos desprezado.
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Que tem vida após a morte,
diz a fé, ela existe, sim!
Quem na vida tem um norte
não deve temer o fim.
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Se a pedra o caminho veda
e até lhe faz sucumbir,
por que não fazer da queda
um degrau para subir?
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Se à regra tens a exceção
e adotá-la, até te alegra,
não faças dela uma ação,
nem da exceção tua regra.
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Sempre, à noite, quando deito,
sonho em poder despertar,
com o arquétipo refeito
no entusiasmo de lutar.
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Sempre que nuvens espessas
sob o firmamento abundam,
fazem jorrar às avessas
águas que as terras fecundam,
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Se nos jardins se acastelam
flores que exalam perfumes,
juntas brindam, mas revelam,
nos espinhos, seus ciúmes.
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Sonhamos que o bem retorne
a nós sempre que o perdemos,
colhemos frutos, conforme,
as plantações que fizemos.
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Tem muita gente que faz
de um simples ventilador
um tornado forte e audaz
com poder destruidor...
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Tudo na vida são fases
com diferentes matizes,
algumas mais eficazes
e outras bem menos felizes.
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Tudo passa nesta vida,
se não fosse, perde a graça!
Quando a paz lhe for tolhida,
cresce a dor que nunca passa.

Fonte:
Luiz Damo. As faces da trova. Caxias do Sul/RS: Ed. Do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.

Carolina Ramos (Ódio que mata)

Como esta história chegou aqui é fácil de entender. Quem a relata é meu filho, ligado ao ramo, que explica:

- Minhas auditorias, no campo rural, levaram-me a conhecer André, que geria com mãos firmes a fazenda Monte Belo. Bom papo, André desvelou-me a Monte Belo, de ponta a ponta, a trote de cavalo, queixo apontado para além das colinas que delimitavam no horizonte os confins da propriedade. Nas pausas, nossa prosa corria solta, à sombra dos jacarandás floridos, animada pela frescura do farfalhar das folhas. Esta história aflorou a partir da premissa disparada por André, logo que chegamos ao portal da Monte Belo:

– Fazenda de gado tem os seus encantos. Mas tem também algumas coisas que a gente não entende e ninguém consegue explicar.

– Como assim?! - perguntei. - André apertou os olhos, estendendo o olhar pela campina verde.

– É o caso do Atlas.

André calou-se, enigmático, a dar tempo para que aflorasse a pergunta seguinte:

- E quem é esse Atlas? – a resposta irônica saltou pronta:

- Esse Atlas... é um cara bravo, forte, que pretende carregar o mundo nas costas!

- Bem... até aí, você está de acordo com a mitologia. Mas... eu continuo na mesma!

– Este Atlas é outro, meu caro! - emendou André, com ênfase – Este Atlas é um touro Jersey, desaforado, dono do pedaço... E que pensa ser dono da fazenda inteira!...

Ante a minha passividade, André continuou:

-E o pior... é que ele, absolutamente, não gosta de mim! E não gosta mesmo!! Não me suporta! - Você ri... não é? Mas é porque ainda não viu nada! Dizer que aquele touro não gosta de mim... é até bem pouco! Ele me odeia!! Me odeia, sim!!! O maldito me odeia tanto, já tentou me matar por várias vezes! Juro!... Não é brincadeira, não! Pode crer!

- Claro que alguma coisa você deve ter feito a ele! – argumentei, disfarçando o riso: - Ódio não é coisa gratuita! É... toma lá, dá cá!...

- Isso é o que você pensa, meu caro!!! Neste caso... tudo é questão de química! O Atlas sequer pode me ver!... Seus instintos assassinos assomam, tão logo apareço!! Tenho a impressão de que, entre este seu amigo e aquele touro, a vida abriu um abismo sem fundo!

- É como se ele visse, na minha pessoa, um arqui-inimigo que precisasse destruir a qualquer custo!... E é isto mesmo o que ele tenta fazer a cada oportunidade! - Mas, deixe... vou ficar calado! É só chegarmos lá e você vai ver, com os próprios olhos, quem é essa fera! Juro que nem vou precisar dizer nada!...

A casa sede apontava, lá embaixo. Estimulados, os cavalos aceleraram a marcha parando ao pé da porteira gemedora, que uma vez mais gemeu ao nos dar passagem.

André encaminhou-se para o curral. Segui-o, tão logo entreguei o cavalo ao peão para que o livrasse dos arreios.

- Ei-lo! — apontou André de braço esticado. - Lá está ele... Sua Majestade, o Atlas!

Apresentação sarcástica e desnecessária. De costas para nós, o touro impunha-se pelo porte. Uma apoteose de músculos! Ao ouvir vozes, voltou-se devagarinho, pregando os olhos no desafeto.

André baixou a voz: - Tá vendo só ?! Ele já me pressentiu! - O bicho tem faro de cão perdigueiro!

O animal moveu com lentidão as arrobas de carne. Aproximou-se devagar... Trem possante a resfolegar ódio!... E... sem nunca tirar os olhos de cima do André!

- Viu só? Eu não disse?! Tenho ou não tenho razão?!... Esse cara me odeia! Olha só como bufa!... Eia...bicho ruim! - Já chega! Vamos embora! Essa raiva gratuita me faz mal! Fico até doente... picado por cobra!

Não fora difícil concordar:

- Realmente... É muito estranho... parece que o bicho não vai mesmo com a tua cara, André! - Não vai, não!

- Sei lá o que anda na cabeça dele... sei lá!

Sem resposta, demos as costas ao touro, voltando para a casa matriz.

O dia seguinte amanheceu radiante. O Sol... baita holofote a iluminar o bucolismo da Monte Belo! Antes do café, encaminhei-me para os lados do curral, onde o gado filosofava à espera de ser liberto rumo ao pasto... Atlas já estava lá. Olhou-me displicente... a ruminar a indiferença como se eu não existisse... Chicoteava-se com a cauda... a espantar alguma varejeira impertinente.

Perdia-me, tentando decifrar os sentimentos daquela montanha de ossos e músculos, quando notei uma súbita fixação dos olhos do animal em mim. Havia neles um brilho estranho, diferente... Brilho que, pouco antes, não estava ali!

Sem demora, Atlas começou a escavar o chão com os cascos, sem tirar os olhos da minha direção. Inquietei-me! Estaria o animal transferindo sua ira para aquele que sabia ser amigo... do seu maior inimigo?!

O touro tomou posição. Aproximava-se, devagar, cabeça baixa... resfolegante como fole velho! Por sorte, era mocho! Mesmo assim, de um salto o instinto me afastou do cercado. Foi quando André, chegado sem aviso por detrás de mim, bateu-me no ombro, triunfante:

- Viu só?!... Lá está o cara preparando o bote! Logo que me captou ao longe, começou a escavar o chão com a pata. Antes que alguém me visse, ele já me vira! - Juro que, nem por todo o ouro do mundo, eu pularia esta cerca!... Loucura!!!

A fúria do touro crescia... Tufos de capim eram arrojados para longe pelas patas possantes que sapateavam nervosas.

- Então, meu caro, convenceu-se agora? Ele me odeia! Eu te disse! Se me pega, me fura, mesmo sem ter chifres... Me pisoteia e me mata!... Pode crer, meu amigo! - Mas... - E aí, André fez uma pausa, mastigando um sorriso enigmático... No olhar, um brilho maquiavélico acendeu-se, enquanto murmurava entre dentes:

- Mas... o que esse brutamontes não sabe é que, neste jogo de vida ou morte, eu tenho um trunfo guardado na manga!... Ele ignora... ou finge que ignora, que sou eu quem administra esta fazenda!

Ontem, mesmo, comprei outro touro... Mais jovem e mais poderoso do que ele... e que irá reinar neste pedaço!

O Atlas, coitado... já era! Seu nome abre a lista do gado que, na semana que vem, vai para corte. Logo, logo... vai ser bife no prato de muita gente! E tomara que um desses pratos seja o meu!!

André gargalhava... a antegozar a vingança! - E, então, meu filho finalizou a narrativa;

- Coisa estranha, mãe! Embora ouvinte interessado... ao final daquele relato, eu não senti a menor vontade de rir! Cheguei mesmo a ter dó daquele potentado que bufava... e que, muito em breve, seria vítima do seu próprio ódio! Ódio gratuito, não fundamentado... ódio tolamente alimentado... A envenenar uma vida inteira!!

- Foi justamente aí que aquele vivido e tão cansado coração de mãe, que atento aguardava o arremate daquela instigante história, não conseguiu calar... Sabiamente ponderando num suspiro:

- Bem igual ao que, vez por outra, acontece por aí entre os homens!... Igualzinho!... Igualzinho!... Sem tirar nem por!!!

Fonte:
Carolina Ramos. Canta… Sabiá! (folclore). Santos/SP: Mônica Petroni Mathias, 2021. Capítulo 5: Contos rústicos, telúricos e outros mais.
Livro enviado pela autora.

Estante de Livros (Uma Vida em Segredo, de Autran Dourado)

Uma Vida em Segredo foi publicado em 1964. Nela, o autor traça o retrato de Biela, jovem humilde que, após a morte do pai, é obrigada a mudar-se da fazenda para a cidade, e não consegue adaptar-se ao novo ambiente. A obra é célebre pela profundidade da exploração psicológica lograda por Dourado, e também por mostrar a riqueza da vida interior da personagem principal, a despeito de sua simplicidade e de seu caráter introvertido.

O narrador mantém uma postura neutra ao longo de todo o texto, limitando-se a mostrar como Biela era vista pelas outras pessoas. Ao mesmo tempo, por meio do fluxo de consciência da personagem principal, oferece revelações que reforçam, nuanças ou contradizem alguns dos aspectos da sua personalidade "exterior".

De acordo com o próprio autor, a ideia para a produção da obra veio-lhe subitamente quando, vagando pela casa enquanto trabalhava em um de seus romances (se A Barca dos Homens ou se Ópera dos Mortos não se sabe ao certo), deparou com uma velha canastra de couro que pertencera a seu bisavô e que lhe trouxe imediatamente muitas recordações da própria infância. Logo depois, ao dormir, sonhou com uma prima que havia esquecido, chamada Rita, e esta lhe contou sua história já estruturada como uma novela curta, como uma "fala escrita", no dizer de Autran Dourado. Até mesmo o nome completo da personagem foi revelado nesse sonho.

“O narrador evidencia a simplicidade, o desapego aos bens matérias de Biela e através do fluxo de consciência, recurso utilizado por Autran Dourado, é mostrada a inadaptação da personagem ao espaço urbano. " (
Neidelamar Lucena de Sá)

Pode-se concluir que a personagem teve a vida desperdiçada devido à sua criação, mas o verdadeiro segredo só ela realmente conhece.

A Novela é a modalidade narrativa que se caracteriza pela sucessividade dos episódios, muitas vezes das personagens e dos cenários. O tempo e o espaço conjugam-se dentro dessa estrutura. Assim, a novela condensa os elementos do romance. Os diálogos são mais rápidos, as narrações são diretas e sem circunlóquios, tudo favorecendo a precipitação da história para o seu desfecho.

Uma Vida em Segredo é uma novela que traz a senha para o estudante entrar no intrincado universo de Autran Dourado, em que cada tema sugere um estilo.

Nesta novela o escritor discorre sobre a gente simplória do interior das Minas Gerais. Centrado na figura da prima Biela, o enredo elucida os dramas morais e psicológicos da moça feia que cresceu na roça e mudou-se para a cidade após a morte do pai. Reprimida, ela transforma seus desejos em reclusão voluntária. Após a morte de seu pai, a jovem Biela, de 17 anos, passa a morar com Conrado, seu primo, que a leva para viver junto com sua família em uma pequena cidade.

 Constança, esposa de Conrado, busca adaptar Biela a uma vida social de acordo com as posses da família e para tanto encomenda vestidos ricos e a ensina a se portar como uma jovem educada e rica. Entretanto, Biela apenas se sente bem ao lado dos empregados da fazenda onde mora, com quem passa a conviver após uma grande desilusão amorosa. Biela é coerente, fiel a si mesma, uma personagem densa e intimista, que aceita a imposição do destino, mas à sua maneira.

O filme, exibido em 2001 no Festival de Brasília, foi lançado em 2002. Possui a direção e roteiro de Suzana Amaral, produção de Assunção Hernandes. No elenco, Sabrina Greve, Eliane Giardini, Cacá Amaral, Neusa Borges e Eric Novinsky. Teve cinco indicações ao Grande Prêmio Cinema Brasil, nas categoria de melhor roteiro adaptado, melhor figurino, melhor maquiagem, melhor direção de arte e melhor fotografia.

sexta-feira, 11 de junho de 2021

Versejando 66

 

Varal de Trovas 507

 

Jaqueline Machado (Namorar)

Quem designou aos amantes o nome "namorados", por certo sabia que dentro dessa palavra mágica existe outra, mais mágica ainda - AMOR. Sim. N - AMOR - ados. Dentro dessa palavra, também encontramos outra palavrinha: MORA - de moradia. E, DOA, do verbo doar. Ou seja, namorado, namorada ou simplesmente namorados, é um tríplice anagrama do amor que abriga e se doa.

Existem muitas formas de amor, mas o mais importante é namorarmos a vida. Pois a vida nos abriga e vive por nós, como nenhum outro ser poderá viver. Mas claro, somos humanos. E na qualidade de seres humanos, necessitamos de alguém especial para trocarmos olhares, beijos, sorrisos e abraços.

Apaixonar -se pela existência, por algo ou por alguém, é preciso. Pois quando estamos enamorados, vivenciamos a primavera das primaveras. Tudo parece cheirar à flor ... E os problemas tornam-se tão pequenos!

Sendo assim, só nos resta namorar...

Namorar o céu, o sol, a lua... E a quem delicadamente nos estende a mão, a fim de nos ofertar carícias. Pois namorar é isso: é a arte de expressar o amor que acolhe, que doa e que nos faz sonhar.

Jaqueline Machado – Escritora, Palestrante, Cronista e Poeta.

Fonte:
Texto enviado pela autora.

Caldeirão Poético XLV


Arievaldo Vianna

Quixeramobim/CE

DILEMAS DE ÍCARO


Lançar-se ao voo de maneira decidida
Desafiando os raios cálidos deste sol
Morder a isca, feito peixe no anzol,
Alçar um voo deslumbrado na subida

Não importar-se com a cera derretida,
Aventurar-se sem ter bússola ou farol,
Trinar um canto - liberto rouxinol!
Perder as asas, sorrindo na descida...

Armar a rede diante de um vulcão,
Desafiar Potestades do Universo!
Ou, simplesmente, não abraçar qualquer meta;

Acomodar-se com os elos do grilhão...
Conter os brados ferinos do seu verso...
São os dilemas que torturam o poeta.
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Carlos Vazconcelos
Tianguá/CE

EM DEFESA DO SONETO


Garboso em fardão ou então despido
De inútil esplendor - na inculta cena,
Velho sempre e já rejuvenescido
Ele pousa sim nas melhores penas

Maculam demais sua reputação
Dizem-no arcaico e obsoleto
Superado, vil, servo da emoção
Adulterado de pai para neto

Acusam-no de cárcere do verso.
Escravo feitio; quarteto, terceto
Sisudo e arredio; oposto, cateto

Mas se a Poesia, bela e diversa,
Criada com arte em plano secreto
Cabe em toda forma... elejo o soneto!
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Inês Carolina Rilho
Recife/PE

ECOANDO N'ALMA


Olho incessantemente da janela. Não te vejo mais.
Busco avidamente tuas mãos entre as minhas.
Parece-me ainda sentir teu cheiro nas linhas
do papel. Tua voz a meu lado não ouço mais.

As pedras do caminho sabem de todos os teus passos.
O sol perdeu um pouco do brilho. Estou sem teu olhar.
A lua reflete languidamente sobre o mar com pesar.
Os dias correm sem parar. Estou sem teus abraços.

Ouço rumores nas ruas. A tua voz em mlnh'alma ecoa.
Vejo alguém semelhante a ti, julgo enfim delirar.
Pessoas para lá e para cá... Ouço então cantarem loas.

Já não sei por onde ir nesse desejo de te encontrar.
Volto para minha sacada, vejo um trovador qu'entoa.
És tu e me surpreendes, buscando meu lenço segurar!
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Ismar Dias de Matos
Belo Horizonte/MG

DIAMANTINA


Tens o clima intraduzível;
cedo é sol, tarde é neblina...
Diamantina, Diamantina...
que natureza aprazível!

"Se é por demais incrível
e o meu dilema fascina,
inclina o ouvido, inclina,
ouve o tempo indescritível!

Se o sol que ora clareia
der lugar à lua cheia
e convidar à seresta;

deixa o sol, essa torrina,
calor e qualquer rotina,
vê a natureza em festa!"
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Michelle Gomes Moreira
Curitiba/PR

DETALHADOS SEGREDOS


Sou a própria tristeza em meio à multidão
Mútuos sentimentos misturando ilusão
Ambivalente nos versos, sou a composição
Não temo às dores, muito menos solidão

Estou bem sim, acompanhada do meu próprio ser
Transpasso os dias desse tal mundo fugindo
Conversas longas sempre tenho tido comigo
Escrevo-me para que assim eu possa me ler

Em enigmas eu esmiuço detalhes de mim
Pareço ser inocente, porém sou réu enfim
Sentenciada, condenada a ser infeliz

Ao desnudar poemas, e escrever sonetos
Neles eu me mostro, neles eu desapareço
Sou eu paradoxo, detalhados em segredos.

Fonte:
Luciano Dídimo (org.). 100 sonetos de 100 poetas.
Fortaleza/CE: Expressão Gráfica e Ed., 2019.

quinta-feira, 10 de junho de 2021

Versejando 65

 

Marques Rebelo (Uma senhora)

Dona Quinota não se importava com a aspereza do ano inteiro. Com ela era ali no duro - trabalho, trabalho e mais trabalho. O ordenado das empregadas, na verdade, era uma pouca-vergonha que a polícia devia por um paradeiro. Não punha. Vivia metida com a maldita da política. Falta duma boa revolução!... Ah, se ela fosse homem!... Enquanto a revolução não vinha para botar tudo nos eixos, obrigando-a a endireitar as empregadas, fazia de criada - cozinhava, varria, cosia. Encerava a casa também, aos sábados, depois que disseram pelo rádio ser higiênico e muito econômico.

- Econômico? Então se encera mesmo.

O marido, que já estava acostumado àquelas resoluções, largou no melhor pedaço o segundo volume de Os Miseráveis, meteu sobre o pijama a gabardine cheirando a gasolina na gola e foi telefonar para a loja de ferragens, pedindo duas latas de cera - da boa, vê lá! - chorando um abatimentozinho na escova e na palha de aço: está ouvindo, Seu Fernandes?

Estava sempre para tudo que, graças a Deus, era mulher forte. Saíra à mãe, que também o fora, morrendo velha de desastre, desastre doméstico, uma chaleira de água fervendo para o escalda-pé do marido, um coronel reformado, que lhe virou por cima do corpo.

Nunca se queixava da vida. Não ia à cidade passear, as suas compras eram em regra feitas pelo marido, precisava que a fita fosse muito falada para ela se abalar até ao cinema do bairro, onde cochilava a bom cochilar; contavam-se os domingos em que ia à missa, não fazia visitas, nem recebia. Não reclamava o trabalho que lhe davam os filhos, três desmazelados que andavam na escola pública, Elcio, Elcia e Elcina, respectivamente quinze, quatorze e treze anos, o que atesta bem a força do marido e dá ideia o que seria depois de dez anos de casada, se depois da Elcina não tomasse as devidas precauções.

- Não se esqueçam de dar lembranças à Dona Margarida - aconselhava na hora da saída, enquanto punha nas bolsas as bananas e o pão com manteiga da merenda. Dona Margarida fora sua amiga no colégio das Irmãs, uma bicha no francês, cearense, um talento! Mandar lembranças para ela equivalia a dizer: Olha que são meus filhos, Margarida; os filhos da tua amiga Quinota...

E os exames estavam perto, com prêmios de cadernetas da Caixa Econômica dados pelo prefeito, ridicularizados pelos jornais oposicionistas, elogiados pelos do governo - a Folha dizia que era um gesto de Mecenas mas enfim fartamente anunciados em todos os jornais para incentivo da meninada estudiosa. Ela queria ser mordida por um macaco se não arranjasse três cadernetas para casa. Os filhos é que não faziam fé.

Bordava para fora, cuidava do Joli, o bichano para sujar a casa era um desespero, e sobrava tempo ainda para ter ciúmes do marido com as vizinhas, principalmente Dona Consuelo, uma descarada, é certo, mas muito chique, confessava.

Chegando o carnaval, tirava a forra.

As economias acumuladas saíam do Banco Popular juntas com os juros. Não ficava nada. Metia-se numa fantasia de baiana e inundava a capota do automóvel com seus oitenta e cinco quilos honestíssimos. As meninas iam de baianas também, menos saias, mais berloques, e o menino de pierrô, cada ano de uma cor, porque não é para outra coisa que o dono do Tinto! gasta aquele dinheirão em anúncios. Tirava do cabide a casaca do casamento, dezesseis anos por isso (como o tempo corre!), dava um jeito nas manchas:

- No automóvel, ninguém repara, meu filho - dizia com um sorriso, ora para a casaca, ora para o marido, que se traduzia: lembras-te?

Ele, então, com uma faixa vermelha na cintura, brincos em forma de argola, pendentes das orelhas demasiadas, enfiava na cabeça um turbante de seda branca com pérolas em profusão, e ia em pé, no carro, de rajá diplomata.

No terceiro dia, graças a Deus não choveu em nenhum dos três, perguntava para o marido:

- Quanto temos ainda?

Ele remexia a carteira (bolso de casaca é o tipo da coisa encrencada!), fura-bolos trabalhava passado na língua, e cantava a quantia:

- Duzentos e oitenta.

- E os oitocentos do automóvel?

- Já estão fora.

- Ah! Bem... - Para fazer contas no ar era um assombro: ... pode gastar mais cento e cinquenta.

O resto ficava para gastar depois do carnaval - mas entrava na verba dele - com o fígado do marido, porque depois da pândega (a experiência de Dona Quinota é que falava) Seu Juca tinha rebordosas, vômitos biliosos, uma dor do lado danada, de tanta canseira, tanta serpentina e tanta cerveja gelada.

Não faz mal. Não fazia não. A vida era aquilo mesmo: três dias - falava. Mas pensava: por ano. Podia dizer, mas não dizia. Deixava ficar lá dentro.

O "lá dentro" de Dona Quinota era uma coisa complicada, complícadíssima, que ninguém compreendia. Só ela mesma e o marido, às vezes.

Desciam do automóvel à porta de casa, quando o vizinho veio vindo com o rancho da filharada.

- Brincaram muito? - fez Seu Adalberto, com um jeito de despeitado.

- Assim, assim...

Dona Quinota dizia aquele "assim-assim" de propósito. Que lhe importava os outros saberem se ela tinha gozado ou não? Quem gozava era ela. Mas gostava de ficar deliciando-se por dentro com a inveja dos vizinhos: assim, assim... Ah! Ah! Ah!

Seu Adalberto exultava:

- É isso mesmo. Faz-se despesas enormes (e Dona Quinota sorria) e não se diverte nada. (Dona Quinota olhava para o céu.) É sempre assim. Pois olhe: nós fomos a pé mesmo. Estivemos ali na Avenida na esquina do Derbi, apreciamos o baile do Clube Naval, muita fantasia rica, muita, vimos perfeitamente as sociedades, tomamos refrescos, brincamos à grande. Não foi?

As mocinhas fizeram que sim, humilhadas, mas os guris foram sinceros:

- Aquele carro do girassol que rodava, hem, papai!

Seu Adalberto corrigiu logo:

- Girassol, não, Artur; crisântemo.

Depois que corrigiu, ficou azul, sem saber ao certo se era crisantemo ou crisântemo - quer ver que eu disse besteira?

Seu Juca não havia meio de encontrar o raio da chave. Esses bolsos de casaca!...

- O ano que vem - Dona Quinota falou firme - nós iremos também a pé.

O marido até se virou. Ficou olhando, espantado. Que diabo é isto? – ia perguntando. Por um triz que não perguntou. Mas ficou assim... Compreendeu? Parece... Esta Quinota!...

Foi quando Seu Adalberto, evidentemente mortificado, se refez e sentenciou como experiente na matéria, apesar de nunca ter entrado num automóvel pelo carnaval: é melhor mesmo.

A tribo sumiu pela porta do 37. A maçaneta fechou por dentro.

Torreco, torreco. Agora foi a chave - duas voltas. O pigarro do seu Adalberto, ainda com o acento do crisântemo a fuzilar-lhe na cabeça, veio até cá fora se misturar com um resto de choro, pandeiro e chocalhos, do bonde que passava mais longe. Passos apressados no fundo da rua. O burro do inglês estava na janela do apartamento fumando para a lua. Dona Quinota ficou olhando-o um pouco, depois cerrou a porta bem e fixou o marido que dava por falta dum brinco: Que cretinos!

Seu Juca parou no meio do corredor, cara de ressaca, pernas abertas, o turbante nas mãos e esperou mais. Mas Dona Quinota era hermética. O resto ficou lá dentro onde ninguém ia buscar, porque o marido, o único interessado na ocasião, mais morto do que vivo, preferiu tirar o colarinho e a casaca.

Dona Quinota atirou-se na cama escangalhada e feliz, só acordando na quarta-feira de cinzas ao meio-dia.

Quando o resto da família se levantou, o almoço (feito por ela) já estava na mesa, e Dona Quinota se desesperava porque tinha lido no Jornal do Brasil que foram os Fenianos que pegaram o primeiro prêmio, quando todo mundo viu perfeitamente que só o carro-chefe dos Democráticos...

Fonte:
Marques Rebelo. Contos Reunidos. Publicado em 1977.

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XXII

A Chuva Desce a Ladeira

 
A  água da chuva desce a ladeira.
É uma água ansiosa.
Faz lagos e rios pequenos, e cheira
A terra a ditosa.

Há muitos que contam a dor e o pranto
De o amor os não qu'rer...
Mas eu, que também não os tenho, o que canto
É outra coisa qualquer.
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A Aranha
 
A aranha do meu destino
Faz teias de eu não pensar.
Não soube o que era em menino,
Sou adulto sem o achar.
É que a teia, de espalhada
Apanhou-me o querer ir...
Sou uma vida balançada
Na consciência de existir.
A aranha da minha sorte
Faz teia de muro a muro...
Sou  presa do meu suporte.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

A Criança Que Ri na Rua
 
A criança que ri na rua,
A música que vem no acaso,
A tela absurda, a estátua nua,
A bondade que não tem prazo -

Tudo  isso excede este rigor
Que o raciocínio dá a tudo,
E tem qualquer coisa de amor,
Ainda que o amor seja mudo
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

A Estrada, Como Uma Senhora
 
A estrada, como uma senhora,
Só dá passagem legalmente.
Escrevo ao sabor quente da hora
Baldadamente.

Não  saber bem o que se diz
É um pouco sol e um pouco alma.
Ah, quem me dera ser feliz
Teria isto, mais a calma.

Bom campo, estrada com cadastro,
Legislação entre erva nata.
Vou atar a lama com um nastro*
Só para ver quem ma desata.
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nastro = laço, tira.
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Ah, a Esta Alma Que Não Arde
 
Ah, a esta alma que não arde
Não envolve, porque ama,
A esperança, ainda que vã,
O esquecimento que vive
Entre o orvalho da tarde
E o orvalho da manhã.
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Ah, Como Incerta, na Noite  em  Frente
 
Ah, como incerta, na noite  em frente,
De uma longínqua tasca vizinha
Uma ária antiga, subitamente,
Me faz saudade do que as não tinha.

A ária é antiga? É-o a guitarra.
Da  ária mesma não sei, não sei.
Sinto a dor-sangue, não vejo a garra.
Não choro, e sinto que já chorei.

Qual o passado que me trouxeram?
Nem meu nem de outro, é só passado:
Todas as coisas que já morreram
A mim e a todos, no mundo andado.

É o tempo, o tempo que leva a vida
Que chora e choro na noite triste.
É a mágoa, a queixa mal definida
De quanto existe, só porque existe.