terça-feira, 15 de agosto de 2023

Dirceu Marés de Souza (A viuvinha do Crespim)


Nos tempos em que ainda se plantava erva doce no reino dos canteiros de couve — em 1841 - existia na então vila de Campo Largo uma chácara caprichosamente cuidada. Era de propriedade de um jovem casal, Crespim e Djanira, que mantinha em sua herdade vários escravos, entre eles duas pretas muito afeiçoadas a seus amos. Tudo naquele sítio funcionava no mais rigoroso estilo patriarcal. Um ambiente de respeito e dignidade que impressionava seus vizinhos e especialmente seus escravos. O simpático casal deixava transparecer uma vida em eterna lua de mel. Mas um dia, o Urutago piou mais forte e arrastou suas asas agourentas no telheiro... Crespim ficou muito doente. Uma grave moléstia o levou ao túmulo em poucos dias. Uma tristeza...Os vizinhos foram consolar a Viúva. Moça rica e bonita, não deveria desanimar... Esqueceria um dia. Talvez um dia...

Para suportar as angústias da ausência do marido morto, a jovem Viuvinha chamou um abalizado mestre de marceneiro e pediu a ele que esculpisse a figura de Crespim em madeira. O artista trabalhou para obter a melhor semelhança possível. Depois de tudo memorizado nos seus mínimos detalhes, entregou a obra concluída.

Vestiram o Crespim de pau com as roupas do defunto. A Viúva e as mucamas transformaram aquele momento num respeitoso cerimonial... As pretas disseram boa noite para o sinhô... E o Crespim foi levado para o quarto de dormir, porque já era noite. Durante o dia vinha o Crespim para os lugares onde o pessoal se reunia e se movimentava.

Quando as mucamas varriam a casa pediam licença:

- Com licença, Sinhô, queremos varrer... e arredavam o boneco.

Vez por outra, vinha a Viúva:

- Crespim, os cobres estão curtos, vamos vender umas vaquinhas?

O Crespim, como sempre, continuava impassível, mudo como um todo.

- Já sei! Você sempre foi assim... quando não fala está concordando.

Lá se ia mais uma vaca, ou duas, para o açougueiro. Aconteceu que o açougueiro, viúvo e desimpedido também, arrastou as asas para o lado da Viuvinha e esta resolveu abanar-lhe um lenço verde. Passaram-se poucos dias e a Viúva noticiou às mucamas que iria contratar casamento com o açougueiro. Foi um susto nas duas:

- Credo-em-cruz!... E o sinhô Crespim?...

A Viúva ria:

- Suas bobas...

No dia do contrato de núpcias, a Viúva, eufórica, feliz com a ideia do novo casamento, recomendava às escravas que tivessem muito respeito com o noivo que viria visitá-la. Elas resmungavam se persignando.

Em um dia, em meio à ansiedade da Viúva e à oposição das mucamas, o açougueiro chegou todo bornido... A Viúva o recebeu com exageradas mesuras, fazendo-o sentar-se em uma cadeira da sala, enquanto no interior da casa ouvia-se a corrimaça das mucamas a arrastarem os chinelos de um lado para o outro, entre resmungos imperceptíveis... A ama chamou-as:

- Vocês duas! Façam um café bem quente, bem forte, bem bom e tragam aqui na sala... para nós...

As mucamas responderam em tom de deboche:

- Não dá para fazer café, Sinhá, não tem lenha!...

A Viúva com raiva responde:

– Então queimem o Crespiml...deve estar bem seco...

As mucamas foram ao quarto de dormir e agarraram o boneco Crespim, e o arrastaram para fora. Meteram-lhe o machado e dentro em pouco tempo serviram o café - bem quente e bem forte.

(Até hoje ainda se fala em Campo Largo quando morre o marido e deixa viúva nova: - “...Essa logo manda queimar o Crespim!...”

Fonte:
300 Histórias do Paraná: coletânea. Curitiba: Artes e Textos, 2004.

Lairton Trovão de Andrade (Brados ao Infinito) – 1


A PAZ

Viver com humanidade,
sem angústia nem paixão,
com toda serenidade,
é ter paz no coração.

Olhar pra sua consciência,
sem ter que chorar atrás,
é sentir doçura e ciência
do que seja estar em paz.

Quem habita bem a Terra
e age com tranquilidade,
quem condena sempre a guerra
promove a paz e a amizade.

Ainda que haja injustiça
com a traição perspicaz,
a minha grande cobiça
é sempre viver em paz.

Que a tristeza se dissipe,
que, pra todos, haja trigo,
que do amor se participe,
criando-se um mundo amigo.

Seja, pois, Ano de paz,
porém, que não se desfaça,
riqueza que o sonho traz
com vida plena de graça.
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APELO DA POESIA

Meus versos são ecos que soam,
que tangem quais vozes de um sino;
vêm d'alma desejos que entoam
compassos sagrados de um hino.

É a voz que o deserto sacode,
o orvalho que rega a aridez,
a mão carinhosa que acode,
o braço que dá altivez.

Poema que canta a esperança
e clama com fé pelo amor,
suplica que reine pujança
ao fraco, infeliz sofredor.

Meus versos agora são gritos
que amainam humildes plebeus;
quer paz, quer bonança aos aflitos,
— poesia é apelo de Deus.
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A TROVA DO CORAÇÃO

Minha trova tem poesia
colorida de paixão.
Tenho no rosto alegria
e trova no coração.

Todas as trovas que escrevo,
como se fossem missão,
dizer com gala me atrevo:
São trovas do coração.

A trova do coração
tem sempre sinceridade;
até mesmo sem razão,
no sentimento há verdade.

A essas trovas me apego,
pois são de fina emoção;
nelas, amor é que prego
por serem do coração.
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CARNAVAL 

São ricas as fantasias
dos meses de fevereiro.
Carnavais - que ironias!
- motivam o ano inteiro.

Arlequim faz palhaçadas
aos olhos das colombinas.
Dançam drogas nas calçadas
— oh, vis armas assassinas!

Tantos pierrôs delinquentes
nestes tempos tão carnais!
Assanham impertinentes
as colombinas sensuais.

Consequência indesejada
por imprudente cegueira,
a aids vem por um nada
e condena a vida inteira.

São lindas alegorias
que se vê passar ali.
Ficam, porém, agonias
no chão da Sapucaí.

Carnaval! Quanta ilusão
de um bloco de tanta asneira!
Eis o vazio coração
numa vida feiticeira!
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DESEJO MAIOR

Ao meu fim, quando eu chegar,
"Glória" infinda quero ter.
Por uma luta exemplar,
desejo o céu receber,

Sei que, de Deus, não mereço
o gozo da eternidade;
mas tenho o santo endereço
do seu perdão e piedade.

Frágil sopro é minha vida
nos vales, vezes sombrios.
Com fé, em luta renhida,
vencerei monstros bravios.

Quando partir deste mundo,
tenham todos a certeza:
Eu quis que o amor mais fecundo
constituísse-me a riqueza.

A velha Sabedoria
diz que a vida é passageira.
E vaidade e ninharia
a ganância rotineira.

Ao mundo cheguei desnudo,
que bens levarei comigo?!
Dê-me a chance, ó Deus, contudo,
de ter o Céu por abrigo.

Quero, com o Pregador,
dizer entre tanto embate;
Dê-me a coroa, Senhor,
"Combati o bom combate"!

Fonte:
Lairton Trovão de Andrade. Brados ao infinito: poemas. Pinhalão/PR: Artgraf, 2014.
Enviado pelo poeta.

Machado de Assis (Questões de maridos)

— O subjetivo... o subjetivo... Tudo através do subjetivo. — costumava dizer o velho professor Morais Pancada.

Era um sestro. Outro sestro era sacar de uma gaveta dois maços de cartas para demonstrar a proposição. Cada maço pertencia a uma de duas sobrinhas, já falecidas. A destinatária das cartas era a tia delas, mulher do professor, senhora de sessenta e tantos anos, e asmática. Esta circunstância da asma é perfeitamente ociosa para o nosso caso; mas isto mesmo lhes mostrará que o caso é verídico.

Luísa e Marcelina eram os nomes das sobrinhas. O pai delas, irmão do professor, morrera pouco depois da mãe, que as deixou crianças; de maneira que a tia é quem as criou, educou e casou. A primeira casou com dezoito anos, e a segunda com dezenove, mas casaram no mesmo dia. Uma e outra eram bonitas, ambas pobres.

— Coisa extraordinária! disse o professor à mulher um dia.

— Que é?

— Recebi duas cartas, uma do Candinho, outra do Soares, pedindo... pedindo o quê?

— Diga.

— Pedindo a Luísa...

— Os dois?

— E a Marcelina.

— Ah!

Este ah! traduzido literalmente, queria dizer: — já desconfiava isso mesmo. O extraordinário para o velho professor era que o pedido de ambos fosse feito na mesma ocasião. Mostrou ele as cartas à mulher, que as leu, e aprovou a escolha. Candinho pedia a Luísa, Soares a Marcelina. Eram ambos moços, e pareciam gostar muito delas.

As sobrinhas, quando o tio lhes comunicou o pedido, já estavam com os olhos baixos; não simularam espanto, porque elas mesmas é que tinham dado autorização aos namorados. Não é preciso dizer que ambas declararam aceitar os noivos; nem que o professor, à noite, escovou toda a sua retórica para responder conveniente aos dois candidatos.

Outra coisa que não digo, — mas é por não saber absolutamente — é o que se passou entre as duas irmãs, uma vez recolhidas naquela noite. Por alguns leves cochichos, pode crer-se que ambas se davam por bem-aventuradas, propunham planos de vida, falavam deles e, às vezes não diziam nada, deixando-se estar com as mãos presas e os olhos no chão. É que realmente gostavam dos noivos, e eles delas, e o casamento vinha coroar as suas ambições.

Casaram-se. O professor visitou-as no fim de oito dias, e achou-as felizes. Felizes, ou mais ou menos se passaram os primeiros meses. Um dia, o professor teve de ir viver em Nova Friburgo, e as sobrinhas ficaram na corte, onde os maridos eram empregados. No fim de algumas semanas de estada em Nova Friburgo, eis a carta que a mulher do professor recebeu de Luísa:

Titia,

Estimo que a senhora tenha passado bem, em companhia do titio, e que dos incômodos vá melhor. Nós vamos bem. Candinho agora anda com muito trabalho, e não pode deixar a corte nem um dia. Logo que ele esteja mais desembaraçado iremos vê-los.

Eu continuo feliz; Candinho é um anjo, um anjo do céu. Fomos domingo ao teatro da Fênix, e ri-me muito com a peça. Muito engraçada! Quando descerem, se a peça ainda estiver em cena, hão de vê-la também.

Até breve, escreva-me, lembranças a titio, minhas e do Candinho.

Luísa.

 Marcelina não escreveu logo, mas dez ou doze dias depois. A carta dizia assim:

 Titia,

Não lhe escrevi há mais tempo, por andar com atrapalhações de casa; e aproveito esta abertazinha para lhe pedir que me mande notícias suas, e de titio. Eu não sei se poderei ir lá; se puder, creia que irei correndo. Não repare nas poucas linhas, estou muito aborrecida. Até breve.

 Marcelina.

— Vejam, comentava o professor; vejam a diferença das duas cartas. A de Marcelina com esta expressão: — estou muito aborrecida; e nenhuma palavra do Soares. Minha mulher não reparou na diferença, mas eu notei-a, e disse-lhe, ela entendeu aludir a isso na resposta, e perguntou-lhe como é que uma moça, casada de meses, podia ter aborrecimentos. A resposta foi esta:

Titia,

Recebi a sua carta, e estimo que não tenha alteração na saúde nem o titio. Nós vamos bem e por aqui não há novidade.

Pergunta-me por que é que uma moça, casada de fresco, pode ter aborrecimentos? Quem lhe disse que eu tinha aborrecimentos? Escrevi que estava aborrecida, é verdade; mas então a gente não pode um momento ou outro deixar de estar alegre?

É verdade que esses momentos meus são compridos, muito compridos. Agora mesmo, se lhe dissesse o que se passa em mim, ficaria admirada. Mas, enfim, Deus é grande...

Marcelina.

— Naturalmente, a minha velha ficou desconfiada. Havia alguma coisa, algum mistério, maus-tratos, ciúmes, qualquer coisa. Escreveu-lhe pedindo que dissesse tudo, em particular, que a carta dela não seria mostrada a ninguém. Marcelina animada pela promessa, escreveu o seguinte:

Titia,

Gastei todo o dia a pensar na sua carta, sem saber se obedecesse ou não; mas, enfim, resolvi obedecer, não só porque a senhora é boa e gosta de mim, como porque preciso de desabafar.

É verdade, titia, padeço muito, muito; não imagina. Meu marido é um friarrão, não me ama, parece até que lhe causo aborrecimento.

Nos primeiros oito dias ainda as coisas foram bem: era a novidade do casamento. Mas logo depois comecei a sentir que ele não correspondia ao meu sonho de marido. Não era um homem terno, dedicado, firme, vivendo de mim e para mim. Ao contrário, parece outro, inteiramente outro, caprichoso, intolerante, gelado, pirracento, e não ficarei admirada se me disserem que ele ama a outra. Tudo é possível, por minha desgraça...

É isto que queria ouvir? Pois aí tem. Digo-lhe em segredo; não conte a ninguém, e creia na sua desgraçada sobrinha do coração.

Marcelina.

— Ao mesmo tempo que esta carta chegava às mãos da minha velha, continuou o professor, recebia ela esta outra de Luísa:

Titia,

Há muitos dias que ando com vontade de escrever-lhe; mas ora uma coisa, ora outra, e não tenho podido. Hoje há de ser sem falta, embora a carta saia pequena.

Já lhe disse que continuo a ter uma vida muito feliz? Não imagina; muito feliz. Candinho até me chama doida quando vê a minha alegria; mas eu respondo que ele pode dizer o que quiser, e continuo a ser feliz, contanto que ele o seja também, e pode crer que ambos o somos. Ah! titia! em boa hora nos casamos! E Deus pague a titia e ao titio que aprovaram tudo. Quando descem? Eu, pelo verão, quero ver se vou lá visitá-los. Escreva-me.

Luísa.

E o professor, empunhando as cartas lidas, continuou a comentá-las, dizendo que a mulher não deixou de advertir na diferença dos destinos. Casadas ao mesmo tempo, por escolha própria, não acharam a mesma estrela, e ao passo que uma estava tão feliz, a outra parecia tão desgraçada.

— Consultou-me se devia indagar mais alguma coisa de Marcelina, e até se conviria descer por causa dela; respondi-lhe que não, que esperássemos; podiam ser arrufos de pequena monta. Passaram-se três semanas sem cartas. Um dia a minha velha recebeu duas, uma de Luísa, outra de Marcelina; correu primeiro à de Marcelina.

Titia,

Ouvi dizer que tinham passado mal estes últimos dias. Será verdade? Se for verdade ou não, mande-me dizer. Nós vamos bem, ou como Deus é servido. Não repare na tinta apagada; é de minhas lágrimas.

Marcelina.

A outra carta era longa; mas eis aqui o trecho final. Depois de contar um espetáculo no Teatro Lírico, Luísa dizia assim:

... Em suma, titia, foi uma noite cheia, principalmente por estar ao lado do meu querido Candinho, que é cada vez mais angélico. Não imagina, não imagina. Diga-me: o titio foi assim também quando era moço? Agora, depois de velho, sei que é do mesmo gênero. Adeus, e até breve, para irmos ao teatro juntas.

Luísa.

— As cartas continuaram a subir, sem alteração de nota, que era a mesma para ambas. Uma feliz, outra desgraçada. Nós afinal já estávamos acostumados com a situação. De certo tempo em diante, houve mesmo de parte de Marcelina uma ou outra diminuição de queixas; não que ela se desse por feliz ou satisfeita com a sorte; mas resignava-se, às vezes, e não insistia muito. As crises amiudavam-se, e as queixas tornavam ao que eram.

O professor leu ainda muitas cartas das duas irmãs. Todas confirmavam as primeiras; as duas últimas eram, principalmente, características. Sendo longas, não é possível transcrevê-las; mas vai o trecho principal. O de Luísa era este:

... O meu Candinho continua a fazer-me feliz, muito feliz. Nunca houve marido igual na terra, titio; não houve, nem haverá; digo isto porque é a verdade pura.

O de Marcelina era este:

... Paciência; o que me consola é que meu filho ou filha, se viver, será a minha consolação: nada mais...

 — E então? perguntaram as pessoas que escutavam o professor.

 — Então, quê?... O subjetivo... O subjetivo...

 — Explique-se.

— Está explicado, ou adivinhado, pelo menos. Comparados os dois maridos, o melhor, o mais terno, o mais fiel, era justamente o de Marcelina; o de Luísa era apenas um bandoleiro agradável, às vezes seco. Mas, um e outro, ao passarem pelo espírito das mulheres, mudavam de todo. Luísa, pouco exigente, achava o Candinho um arcanjo; Marcelina, coração insaciável, não achava no marido a soma de ternura adequada à sua natureza... O subjetivo... o subjetivo...

Fonte:
Publicado originalmente em A Estação, em 15/07/1883.
Disponível em Domínio Público 

segunda-feira, 14 de agosto de 2023

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 32

 

Humberto de Campos (A lição)

- Toma cuidado contigo, Enedina! – recomendava a bondosa D. Matilde, repreendendo a filha. - Essa mania de bailes, de festas, e passeios e esses vestidos muito curtos e muito decotados, podem prejudicar-te. É preciso um pouco mais de decoro, de zelo, de discrição. Isso, assim, não vai bem!

- Ora, mamãe! - respondia a linda moça, num muxoxo. - Mamãe não quer, então, que eu me case?

- Quero, sim! Mas não é assim, indo a toda parte, e mostrando as pernas até os joelhos, e o colo até o estômago, que encontrarás um bom casamento.

A resposta era, porém, a mesma, com o mesmo estouvamento gracioso:

- Ora, mamãe!...

Sábado último, desejando oferecer à filha uma joia custosa para as futuras festas ao Rei, veio D. Matilde à cidade, e parou, com ela, diante das vitrines da casa Adamo, na Avenida:

- Aquele não te agrada? - indagou, mostrando à moça um dos mais lindos colares da exposição.

- Não! Não quero aquele.

- E aquele?

- Também não quero.

E convidando D. Matilde:

- Vamos ver lá dentro?

Entraram.

- Colares de pérolas ou de brilhantes. - pediu a conhecida senhora.

O dono da casa abriu o cofre forte, pondo-lhes sob os olhos um chuveiro de pedrarias.

- Quero este! - pediu a moça, batendo as mãozinhas, contente.

No automóvel, de caminho para casa, D. Matilde indagou da filha:

- Achaste mesmo esse colar muito bonito?

- Achei-o, sim!

- Mas havia outros mais bonitos, na vitrine.

- Havia.

- Por que não escolheste um deles?

E a moça:

- Mesmo. Porque estavam tão expostos, tão à mostra... Toda gente já os viu! Este, não e, com certeza, há de despertar mais interesse, mais curiosidade! Não é?

A estas palavras, D. Matilde sorriu, carinhosa, e, tomando nas suas mãos enluvadas, as mãozinhas de neve da sua Enedina, observou-lhe, maternal:

- Minha filha, sirva-te isto, pela última vez, de lição. Os homens são pelas mulheres o que as mulheres são pelas joias: preferem as que se acham guardadas, recolhidas, às que vivem permanentemente no mostruário, expostas a todas as vistas! Aproveita, tu própria, minha filha, a tua experiência!

E beijando-lhe a testa, bondosa:

- Sê discreta e modesta para seres desejada. Ouviste?

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.
Disponível em Domínio Público 

Luiz Damo (Trovas do Sul) XLVI


A paz intensa e sensata
constelando à gratidão,
é luz que adentra na mata
em noites de escuridão.
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As pedras erguem barreiras
represam águas e lama,
traçam limites, fronteiras,
base firme pra quem ama.
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Distante, sobre o horizonte,
numa linha imaginária,
o sol atravessa a ponte,
surge a noite hereditária.
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É melhor fazer e errar
na busca da solução,
que acomodado e gerar
grave erro por omissão.
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Em qualquer lugar que vá
promova a literatura,
relendo os passos, está,
reconstruindo a cultura.
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Flor do campo, nobre enfeite,
feito pela mão divina,
mastro em cor onde o deleite
ao lado da "flor" germina.
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Grécia antiga, antiga Atenas,
berço da Filosofia,
não só da cultura apenas,
também da sabedoria...
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Homens fortes, protetores,
vanguardeiros nos caminhos!
Sede mais que plantadores
plantai flores, nunca espinhos!
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Liberdade não se exprime
com gestos de rebeldia,
nenhum conceito a define
sem bom-senso e isonomia.
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Luz, um sinal companheiro,
que com seu brilho nos guia,
se à noite tem o “Cruzeiro”
tem-se o Sol durante o dia.
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Nada tem com mais valor
que uma vida em plenitude,
até quem planta uma flor
colhe frutos de virtude.
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O mundo parece grande
porque nós somos pequenos,
quando nosso ser se expande
maiores nos parecemos.
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O planeta está doente
e precisa ser tratado,
requer tratamento urgente
além de ser respeitado,
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Os que só vivem matando,
num mundo de travessuras,
poderão estar cavando
suas próprias sepulturas.
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São Marcos celebra a vida
numa festa sobre as pistas,
da Senhora Aparecida
e dos bravos motoristas.
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São Marcos, povo feliz...
Tem no alto a cruz do Calvário,
no centro a Igreja Matriz
sendo a fé o vivo sacrário.
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Se a lei disser pra você
que algo deve ser cumprido,
nunca pergunte, por quê?
Somente cumpra o pedido.
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Se alguém te pedir um pão
dá-lhe mais, tira-o da rua,
porque a fome desse irmão
amanhã pode ser tua.
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Sempre que numa oração
o sujeito lhe faltar,
não será por omissão
mas oculto pode estar.
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Se um lacre for violado
nos faz levantar suspeitos,
de um produto adulterado
ou repleto de defeitos.
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Toda a humanidade fica
vulnerável na maldade,
porém nada a identifica,
mais que a solidariedade.
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Todo encontro inaugural
se reveste de harmonia,
enche de luz fraternal
sem a qual paz não teria.
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Fonte:
Enviado pelo autor.
Luiz Damo. A Trova Literária nas Páginas do Sul. Caxias do Sul/RS: Palotti, 2014.

Febo Vitoriano (Como declamar poesias?)

(Febo Vitoriano, pseudônimo de Rommel Werneck*)
 

Saudações, Ilustre Plêiade e Leitores!

Segue abaixo meu texto sobre esta prática tão bela retomada no meio literário.

A POESIA

A poesia é o gênero literário em que a expressão do estado da voz lírica se encontra num tempo presente que não foi passado e nem será futuro, o Presente Eterno, ou seja, a vitória da atemporalidade sobre os ruídos destruidores do tempo. Para isto acontecer, é necessário que o escritor selecione bem as palavras e emita sua mensagem de modo indireto e subjetivo, ou seja, o texto precisa ser construído racionalmente e com a graciosidade estética que exige.

Sendo o texto literário de uma construção diferente dos nossos diálogos cotidianos e de textos como bula de remédio, reportagem jornalística etc, convém que a recitação literária também seja decorada esteticamente por entonações, gestos, fundo musical etc, afinal, a leitura de uma notícia de jornal em voz alta é muito diferente da leitura de um soneto de Camões no mesmo tom de voz.

TIPOS DE DECLAMAÇÃO

Estas são orientações simples e pessoais que decidi expor aqui, mas que desmitificam lendas literárias das teorias do achismo. A regra geral é ler com confiança seguindo a pontuação, dando um tom artístico conforme pede o poema e, para isto, temos que ter o domínio do conteúdo e da forma também, afinal, ler um rondel é diferente de um soneto já que o primeiro apresenta refrão etc.

DECLAMAÇÃO SIMPLES

Com a intensa propagação e oficialização da poesia marginal, surgiu o mito de que a declamação simples lida é errônea, ultrapassada e sem graça. Afirmar isto seria o mesmo que dizer que os versos regulares também são ultrapassados e todos sabem que nossa luta é contra isto!

Uma declamação simples não consiste em ler em voz alta um poema somente, a graciosidade está na adoção de uma voz dramática para o texto assim como expressões faciais e gestos coerentes que são muito bem-vindos. O declamador lê na frente de todos, mas entoa como se estivesse cantando para si mesmo publicamente. Em um segundo, é possível ler o verso e declamar parte dele olhando para a assistência já que parte dele foi decorada. Pode-se utilizar uma pasta ofício, um livro ou mesmo um pedaço de papel na mão ou mesmo posicionados num ambão, a outra mão pode ficar com o microfone ou fazendo alguns gestos no caso de microfone no pedestal.

Para este tipo de leitura não são recomendados textos longos, pois seria muito cansativo para o espectador. O declamador não precisa utilizar uma vestimenta ou maquiagem toda especial, pode estar apenas um pouco estiloso por estar num sarau. 

DECLAMAÇÃO DECORADA

Consiste em declamar um texto sem ler o que permite mais gesticulação e expressão facial. Recitar um poema decorado sem expressão nenhuma é o mesmo que fazer uma leitura ruim, pois o que merece destaque não é o simples ato de ter decorado o texto e recitar sem ler, o que importa é que decorando pode-se utilizar uma postura mais expressiva. Textos longos são bem-vindos.

DECLAMAÇÃO CÊNICA

Trata-se do caso anterior em um degrau a mais. Tudo que for utilizado para solenizar sua performance deve ter uma razão, regra que, aliás, já serve lá para os outros tipos. A declamação pode ser lida (desde que o ato de ler seja proposital) ou decorada como ocorre com mais frequência. Pode-se utilizar uma música de fundo, um figurino especial, uma entrada silenciosa ou musical, mesclar-se dança, recitar em grupo etc

Esta forma de recitação é perfeita para textos longos, teatrais ou que contenham diálogo, alegorias etc, pois não cansará o público e será uma bela união entre poesia e o gênero dramático e também com as outras artes, como a dança e a moda, além do mais, poemas longos permitem uma entrada triunfal, música de fundo e vários recursos que um poema curto como haicai não permite, afinal, não é agradável ver uma pessoa encenar um poema curtíssimo, porque nem temos o tempo de sentir a intensidade do texto e a dramaticidade exposta.

Claro que é possível realizar algo cênico com haicais e afins, mas evita-se a maioria dos recursos como sonoplastia, figurino etc. Por texto longo, entende-se algo a partir do tamanho de um soneto (14 versos), uma vez que a declamação cênica pode ser mais lenta para dar espaço aos gestos, movimentações e profundidade do poema.

OBSERVAÇÕES

-Antes de declamar, convém identificar o texto com o autor e o título. A etapa citada pode ser em forma dialogada em casos de uma comunidade literária pequena, porque é uma forma de contar como se chegou ao texto, Uma auto-apresentação também pode acontecer, mas há a opção de realizá-la entre o primeiro e o segundo texto ou mesmo no fim. Termina-se a leitura fazendo um gesto, aceno de cabeça, transformação do tom da voz etc ou dizendo o nome do autor.

- Alguns afirmam que deve haver uma compatibilidade do poema com o declamador, é a crença de que o declamador deve concordar em gênero, número e grau com o poema, portanto, uma mulher não poderia ler um texto de eu lírico masculino, nem uma pessoa jovem recitar um texto de um eu lírico aparentemente mais velho etc Realmente, soa estranho quando não há tal relação, entretanto, se um escritor homem pode escrever como se fosse eu lírico feminino assim como acontecia na Idade Média, por que não podemos hoje declamarmos um belo poema independente do eu-lírico ser isto ou aquilo? Nestes casos o declamador pode deixar a voz um pouco mais aguda e a declamadora pode deixar mais grave e séria, é uma forma de neutralizar quem declama.

- Embora em desuso, mas nunca abolida, a prática de bater os pés nas sílabas fortes é muito criativa, didática e em excelente caimento para todos os tipos citados acima. Ela tem origem nos poetas antigos que seguiam o sistema greco-latino de metrificação denominado pé justamente por esta razão. Agora em que estão considerando ultrapassada a regularidade métrica, creio que não há nada mais pedagógico e cultural que bater os pés nas declamações de sonetos na 6ª e 10ª sílabas, por exemplo, caso dos heroicos, porque é uma forma de mostrar a autenticidade dos versos regulares.

- Talvez, o tipo de verso mais fácil de errar é aquele que contém o cavalgamento, recurso poético também denominado enjambement e encadeamento, que consiste em transferir a parte final da construção sintática para o verso posterior por razões métricas e rítmicas. Observe:

“Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada
E triste, e triste e fatigado eu vinha.”
Olavo Bilac

Neste caso, leríamos sem deixar pausa. A pausa, nós utilizamos entre as estrofes e os símbolos de pontuação.

- Além das observações expostas acima, vale lembrar que é interessante conhecer e compreender o texto antes de ler em público, eliminar as dúvidas etc.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Declamar em saraus é uma prática maravilhosa que merece criatividade, dedicação e lirismo. Seria muito interessante se, em eventos não-literários, existisse uma ou outra declamação como parte da abertura assim como já se faz com a dança, por exemplo, em bailes de formatura, debutante, casamentos, dever-se-ia pensar mais na possibilidade de executar performances literárias bem cuidadas em tais situações.
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* O AUTOR
Febo Vitoriano, pseudônimo de Rommel dos Santos Andrade Werneck (1987), natural de São Caetano do Sul/SC. Graduação em Letras, Especialização em Língua Inglesa, Especialização em Literatura de Língua Inglesa. Cursando Pedagogia. Editor-geral e cofundador do blog Poesia Retrô. Presidente Emérito do Picnic Vitoriano São Paulo. Professor na rede municipal de Santo André, onde reside. Membro ocupante da cadeira nº 29 da Academia Brasileira de Sonetistas, tendo como patrono Álvares de Azevedo.

Conheçam o blog abaixo, além de seu conteúdo, há também e-antologias para baixar gratuitamente.

Fonte:
Poesia Retrô
https://poesiaretro.blogspot.com/2010/08/como-declamar-poesias.html

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) Capitulo 8: Discórdia familiar

Dona Ana permaneceu por longos dias hospitalizada. E, nesse meio tempo, Isadora se preparava para a tal conversa com o pai. 

Ocupando o espaço da mãe à beira do fogão, ela preparava as refeições do senhor Antônio que, mesmo com a esposa correndo riscos de vida, seguia como de costume, sumindo de casa, sabe lá Deus por onde e com quem.

O velho chegou atrasado para a janta. Com as botas embarradas e um sorriso incomum estampado na face, que quase sempre se mantinha fechada e sombria.

Cara de homem que havia acabado de sair dos braços de alguma mulher.

Com raiva, Isadora arrumou a mesa e serviu o velho. Mas, tomada por preocupações, não conseguiu provar da refeição.

- Come, “fia”. - disse ele.  

- Pareces feliz. Alguma boa notícia sobre o estado de saúde da mãe? Ligaste ou foste vê-la? - perguntou Isa, controlando a irritabilidade.

-  Não. Passei o dia ocupado. Amanhã vou até o “hospitar".

- Desculpa, meu pai, não quero faltar com o respeito, mas o senhor parece muito feliz para quem está com a esposa hospitalizada. Da onde vens? Da casa de alguma amante, china, mulher da vida? Não sei qual o melhor termo a ser usado nesse tipo de situação.

As suspeitas da filha acenderam em seu Antônio uma raiva ardida que, em segundos, o deixou corado, pegando fogo.

Cheio de ira, imediatamente ele atirou o prato servido na parede e disparou: - Não te criei pra "falá” assim comigo. Só não puxo o rebenque porque ainda não tinha falado “arto” comigo. Que isso nunca mais se repita. Porque se isso acontecer de novo, te darei uma coça de criar bicho. Vai pro quarto! - gritou ele, com os olhos arregalados.  

-  Não lhe faltei com respeito, meu pai. E jamais faltarei. Fui muito bem educada por minha mãe. Já, o senhor, entende pouco de educação e respeito. Nunca tratou sua mulher com a devida deferência. A faz trabalhar como se ela fosse sua escrava. Por certo, a trai com outras mulheres. E o pior, mesmo perante uma situação que não muda, ela insiste em aceitar todas essas humilhações, submissa ao seu egoísmo desmedido.

Isadora não se calou, e o senhor Antônio, sem paciência, fez menção de puxar o cinto.

- Isso, pai, bate! Nenhuma surra pode  doer tanto em meu corpo ou em minha alma quanto a dor que fazes minha mãe sentir. - disse a guria, sem temores.

O velho recuou e repetiu a ordem:

- Vai pro quarto e te ajeita, guria! - disse, saindo porta afora.

Isadora obedeceu e, aos soluços, deixou o pranto fluir...    

No peito dos homens machistas, sentimentos como amor verdadeiro e fidelidade, passam longe. Eles pensam ser os donos do mundo, e vivem como se fossem superiores a todas as mulheres, sejam elas suas esposas ou filhas.

São xucros. Habituados a esses costumes,  não aceitam cabrestos. E preferem morrer a mudarem seus comportamentos. O modelo patriarcal ainda vigente na sociedade em que vivemos, está sempre a colocar a situação do ser feminino em desvantagem” - pensou ela, no escuro do seu quarto, mergulhada no breu de suas emoções. 
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continua…

Fonte:
Enviado pela autora.

Concurso de Trovas de Natal-RN (Prazo: 30 de novembro)


Âmbitos Nacional/Internacional (Veteranos e Novos Trovadores para L/F)

e Estadual 

Tema L/F: VINGANÇA(S)

Tema Humor: CAMA(S)
 
Âmbito Interno - somente para associados ATRN e UBT/Natal-RN

Tema L/F: SILÊNCIO(S)

Tema Humor: VELHACO(S)
 
1. Apenas UMA TROVA por participante;

2. A palavra tema deverá constar na Trova;

3. No âmbito nacional/internacional, em língua portuguesa, deverá haver menção à categoria (veterano ou novo trovador);

4. Novos trovadores concorrerão apenas com Trova L/F, âmbito Nacional/Internacional;

5. Enviar a identificação com nome, endereço, telefone e e-mail;

6. A participação será por E-mail:
 
6.1. Para o âmbito Nacional / Internacional Língua Portuguesa

Por e-mail: 
A/C de Magnus Kelly

magnuskelly@yahoo.com.br

6.2. Para o âmbito Estadual

Por e-mail:
A/C de Jerson Brito

jersonbrito.pvh@gmail.com
 
6.3. Para o âmbito Interno
 
Por e-mail: 
A/C de Marciano Medeiros

editorabisel@gmail.com

7. Prazo máximo para recebimento das trovas: 30/11/2023.
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