sábado, 18 de maio de 2024

Aluísio de Azevedo (A Serpente)

João Brás foi jantar à Santa Teresa com o seu amigo Manuel Fortuna, como costumava fazer invariavelmente todos os domingos.

Eram ambos do comércio: João guarda-livros e o outro estabelecido com uma loja de alfaiate. Grisalhando já entre os quarenta e os cinquenta, não tinham eles todavia vinte anos quando se conheceram, e essa longa amizade jamais fora perturbada pelo menor atrito de caráter.

– A paz dos anjos seja nesta casa! – exclamou João Brás, no tom risonho e tranquilo com que, ao chegar os domingos à casa do velho amigo, dizia sempre e sempre essa mesma frase.

– Bons ventos o tragam, compadre! - respondeu Manuel, estendendo-lhe a mão. – Como tem passado? E minha afilhada como vai?

– Sem novidade, graças a Deus. Lá foi mais o marido e os filhos visitar a sogra, na Piedade. Naturalmente só voltam amanhã no trem das nove e meia.

– D. Maria, já sei, está lá dentro?

– Está. Vá entrando compadre.

E o guarda-livros enfiou sem cerimônia até à cozinha para ir entregar à Dona Maria, que lá estava as voltas com o jantar e com a cozinheira, os pacotes de doces e frutas que ele trazia pendurados da mão esquerda.

Abraçaram-se formalmente, entre as palavras e os risos do costume.

João Brás era viúvo já pela segunda vez. Do primeiro matrimônio ficara-lhe uma filha, que, pelo batismo, o fizera compadre de Manuel, e depois, dezoito anos mais tarde, lhe dera um lindo casal de netos, agora constituídos no alegre enlevo da sua velhice.

Aqueles jantarzinhos domingueiros em casa do amigo tinham para ele o irresistível encanto do mais velho hábito de sua vida. Mal cumprimentava os donos da casa, trocava a sobrecasaca por um rodaque de linho branco e estendia-se numa cadeira de balanço, sob as árvores do jardim, à espera que o chamassem para a mesa. O cozido, o vinho virgem e os motivos da conversa entre os três eram quase sempre os mesmos. Depois do café, os dois compadres armavam sobre as pernas o tabuleiro do gamão e enfiavam partidas até às dez e meia da noite, enquanto D. Maria se arranchava lá fora com as famílias da vizinhança fazendo roda à porta da chácara ou passeando pelas redondezas da casa.

Manuel todavia não era casado com a sua companheira. Tendo, aos trinta anos, a recolhido como empregada para lhe tomar conta da casa, da despesa e das roupas brancas, deixou-se afinal entrar passivamente no inventário dessas coisas, e ela acabou por tomar conta também dele.

Quando deram por si, estavam unidos pela mais legítima ternura e estavam conviventes no mais perfeito pé de igualdade.

D. Maria era honesta por índole, era sadia e limpa; o negociante sentiu-se bem ao lado dela e deixou-se ficar.

Terminado o jantar, Manuel foi, como de costume, buscar o gamão, e assentados um frente ao outro, dispuseram-se os dois amigos à pachorrenta campanha, trocando logo as primeiras facécias (chacotas) e as primeiras risadas de todas as suas inumeráveis partidas.

– Mas então, compadre, i– nterrogou João, armando o jogo - afinal que me diz você do que falei outro dia a respeito de D. Maria?… Está resolvido a…

– Aí mau! Já aí vem você com a mania! Tardava-me essa cantiga! Ora para que lhe havia de dar!

– Mania não, homem de Deus! É tudo que há de mais razoável e de mais justo! D. Maria é uma senhora séria… você não tenciona separar-se dela… por que, pois não se casam logo?…  Seria mais bonito!

– Mas por que diabo hei de me casar, se somos felizes assim como vivemos há treze para quatorze anos… Nunca até hoje nenhum de nós pensou em semelhante coisa… As nossas relações de amizade não podem ser mais limitadas e modestas. Ela não tem pretensões e eu, cá pelo meu lado, nada espero nem desejo fora do meu canto, onde vivo em boa paz, graças a Deus! Quando queremos sair, saímos! Vamos ao teatro! Vamos ao Passeio Público! Vamos à toda a parte! Ninguém repara em nós! Por que então hei de eu agora tirar-me dos meus cuidados e casar?!… Não me dirá você?!…

– Seria mais bonito!…

– Ora deixe-se disso, compadre!

– É uma questão de moral!…

– Então, seu João, eu sou um homem imoral?… Por quê?

– Não digo isso, mas…

– Se tivéssemos filhos, vá! Convenho que seria de vantagem o casamento… mas, se até hoje eles não vieram, é natural que nunca mais venham.

– Não, compadre, o seu casamento com D. Maria não é só um ato de moralidade, é também um dever de gratidão e é bom cumprimento de justiça! Pois então uma mulher uma senhora, dedica-se durante quatorze anos a um homem, procedendo sempre com a mais severa honestidade, ajudando-o na vida, tratando dele, aturando-o enfim e, ao cabo de todo esse tempo, ele se não resolve a fazer por ela um pouco mais do que no primeiro dia das suas relações!… Não! não é justo, seu compadre! Tenha paciência, mas não é justo!

– Homem! Sabe de uma cousa? Não falemos mais nisto! Você quando mete a cabeça para um lado não há meio de tirá-la daí!

– Pois não falemos! Não falemos! O meu protesto, porém, fica de pé! Não falemos, não falemos. – mas no domingo seguinte, durante o joguinho, o compadre João Brás voltou à carga e acrescentou às novas escusas do amigo:

– É! Nas suas condições dizem os homens geralmente a mesma coisa e afinal acabam sempre casando à última hora, quando a mulher está a despedir-se da vida e já nada aproveita por conseguinte com a tardia resolução do seu ingrato companheiro; ao passo que esse mesmo ato de justiça praticada antes, em pleno gozo da existência, seria honroso motivo de verdadeira felicidade para ela!

– Ora, deixe-me em paz, compadre! Deixe-nos viver como vamos vivendo e preste mais atenção ao jogo, se não prego-lhe um gamão cantado.

– Pois vivam, continuem a viver seguros pela mão esquerda, mas eu cá ficarei com o direito de revoltar-me, se um dia, em caso extremo, resolver-se você a coonestar (dar aparência honesta) à sua união com D. Maria!

Manuel soprou com mais força e arregaçou as sobrancelhas, dando silenciosa cópia de quanto fatigava aquela torturante catequese. E continuou a jogar sem dizer palavra. 

O outro prosseguiu, distraído do jogo:

– Além disso, é que pode você morrer de um momento para outro, sem ter tido tempo de pôr em ordem os seus negócios, e a pobre senhora ficar por aí desamparada no mundo! Você tem parentes em Portugal, até irmãos se me não engano, pois saiba então que mesmo com testamento, esta casa e o que você possui no banco há de tudo parar em poder deles arriscando ficar D. Maria sem ter onde cair morta e precisando na velhice andar pelas esquinas a pedir por amor de Deus um bocado de pão para matar a fome! Vamos lá! Isto lhe parece justo, seu compadre?!

– Oh! Não diga isso, criatura, que você me aperta o coração! Ora já se viu?!

– Pois é cumprir com o seu dever, homem. Case-se por uma vez!

E, como D. Maria nesse momento entrava do passeio, o moralista levantou-se, deixando o tabuleiro do gamão sobre as pernas do parceiro, e foi ter com ela, para lhe dizer à queima roupa:

– Estive até agora conversando com o compadre a seu respeito, D. Maria! Mas isto é um cabeçudo de marca! Pergunte-lhe pelo que lhe falei e ajude-me também pelo seu lado!

Manuel soltou uma gargalhada.

– Sabes tu qual é agora a mania do João?… disse ele, voltando-se para a companheira. É casar-nos! Ora já se viu para que lhe havia de dar?… E não me larga, o teimoso! Não me fala noutra coisa!

– E não lhe parece que eu tenho razão? – perguntou João Brás, dirigindo-se por sua vez a D. Maria, que os escutava imóvel, sorrindo em silêncio.

– Ah! – respondeu ela com doçura. – Eu estimaria… isso com certeza… Para que negar?… Casada sempre é outra coisa: Pode uma mulher andar de cabeça erguida e pode mandar em voz alta, porque manda no que é seu! Mas cá por mim, em boa hora o diga! Dou-me por muito feliz em ter Deus me chegado para um homem como seu compadre, e nada exijo nem reclamo, porque muito já é o que ele faz por mim e pelos meus!

– E não dói a você a consciência, seu Manuel ? – exclamou João Brás com a voz tragicamente comovida, estendendo o braço e derreando para um lado a cabeça. – Não dói a você a consciência ao ouvir estas palavras, que são a expressão pura da virtude e da resignação?

– Pois bem! Pois bem! – rosnou Manuel, quase vencido. – Havemos de ver! Havemos de ver!

– Não! – replicou o outro energicamente –  “Havemos de ver” é uma promessa de caloteiro! Você o que não quer, já sei, é incomodar-se, pois eu me encarrego de tudo! Amanhã mesmo trato dos papéis. Está dito?

– Sim, sim! Veremos amanhã.

– Não! não! Já daqui não saio sem autorização para correr os banhos! Quando me meto numa coisa, é assim! O caso é estar convencido da justiça e da razão!

– Mas que falta de sofrimento! Que sangria desatada! – exclamou Manuel. – Irra! Parece que você vai salvar o pai da forca!

– Nada, meu amigo! O que se tem de fazer, faz-se logo. – O pão endurece de um dia para outro! E lá a senhora, D. Maria, ajude-me a arrastar este egoísta! Segure-o pelos ombros, que eu o seguro pelas pernas, e despejemos com ele do terraço abaixo, se não nos autorizar já e já a tratar amanhã mesmo dos papéis do casamento!

– Pois com um milhão de raios! vociferou afinal o perseguido, fugindo ao terrível compadre, que por pilhéria o agarrava já pelas pernas. Arranje! Arranje você lá os papéis que quiser! Arranje o diabo! Mas deixe-me em paz e nunca mais me fale em semelhante coisa! Arre! Pode gabar-se, meu caro, de que é um serrazina de primeira força! Nunca vi coisa igual!

– Ora bravo! aplaudiu João, batendo palmas. Até que enfim você provou que é um homem de bem! Venha de lá este abraço! E, quanto à senhora, os meus parabéns de amigo sincero! Amanhã mesmo trato dos papéis!

– Mas olhe lá, seu João… – atalhou o outro, segurando-lhe o braço. – Observo-lhe que não estou absolutamente disposto a prestar-me ao ridículo nesta idade! Só consinto no casamento se este for coisa muito íntima, muito em segredo, sem festas sem convites e sem nada de barulho.

– Ó homem! – volveu João Brás .–  O casamento faz-se de madrugada, um dia destes, na competente igreja sem que ninguém tenha que meter lá o nariz! E depois ficam vocês casados e dignamente unidos para sempre! Podemos é jantar, nós os três juntos esse dia; o que, para não alterar a praxe, bem pode ser num domingo. Hein? Que lhes parece?…

– Bom… Assim vá lá! – cedeu Manuel.

– Fica então marcado para o domingo que vem?…

– Pois marquem lá para domingo! Irra!

E assim foi. No domingo seguinte Manuel levou D. Maria à igreja de sua freguesia e voltaram de lá marido e mulher, graças a João Brás que tinha tudo despachado, com uma expedição capaz de envergonhar ao mais ativo agente de casamentos.

O jantar, já se vê, foi melhor nesse dia e regado mais copiosamente. D. Maria mandou matar peru e recebeu de mimo um leitão assado. Fez doces e comprou frutas e flores. Manuel, à tarde, admirou-se de ver entrarem-lhe pela sala algumas vizinhas com trajes de festa, acompanhadas pelos parentes e não se pôde furtar a parabéns e abraços, que lhe faziam torcer o nariz.

– Aquele compadre João Brás era o diabo! Afinal de contas tudo aquilo estava fora do programa!

Manuel principiava a arrepender-se do que tinha feito e parecia já menos alegre que nos outros dias.

D. Maria, essa pelo contrário, estava radiante e mostrava-se mais empertigada mais dona de casa. À mesa falou aos convivas com um ar empantufado e senhoril, que ninguém, ainda menos Manuel, até aí lhe conhecera.

Contudo, o bom homem, apesar de deveras contrariado por sair dos seus velhos hábitos, não se queixou; e, mal terminados os fervorosos brindes da sobremesa, foi pachorrentamente buscar o tabuleiro do gamão e armou-o sobre os joelhos, no lugar do costume, assentado defronte do vitorioso compadre.

D. Maria acabava nesse instante de assomar à porta da sala, palitando os dentes. Ao ver o marido, que armava a primeira partida, exclamou:

– Também vocês são terríveis com esse infernal gamão! Oh! nem mesmo no dia de meu casamento e com visitas aqui deixam o diabo do jogo!

E arrebatou das pernas dos dois parceiros o tabuleiro, com os dados, as pedras e os copos de couro, que se espalharam pelo chão.

João Brás soltou uma risada supondo que aquilo era simples gracejo. 

– Mas, D. Maria! acrescentou de cara fechada e com voz dura: – Ó senhores! Que diabo, deixem-se dessa sensaboria (contratempo) uma vez ao menos! Tenham um pouco em conta o dia de hoje!

E afastou-se, muito escamada, sacudindo os quadris e abanando-se com o leque.

Os dois compadres, assentados um frente do outro, como se fossem agora jogar o sisudo, olharam-se sem ânimo de proferir palavra.

E assim que se pilharam a sós, Manuel segredou ao amigo:

– Você viu, compadre? Você viu o pano da amostra?

João não respondeu e Manuel murmurou, sacudindo a cabeça:

– Pode ser que me engane, e Deus o queira! Mas suponho que para sempre me fugiu de casa a tranquilidade!…

E tinha razão o pobre homem: tais coisas se foram sucedendo em casa dele que Manuel, meses depois, surgiu um dia no escritório do amigo, e atirou-se numa cadeira esbaforido de cólera.

– Que houve de novo, compadre? Que mais lhe aconteceu? – perguntou o guarda-livros.

– Foi você quem se encarregou dos papéis para casar-nos, não é verdade? – bramiu o negociante. – Pois, meu amigo, trate agora dos papéis do divórcio, porque este que aqui está nunca mais porá os pés na casa em que estiver aquela fúria! Nunca mais, ouviu!?

E aquele homem, até aí tão pachorrento, tinha agora uma catadura (feição) de tigre assanhado e dardejava ferozmente o guarda-chuva, ameaçando quebrar os globos das arandelas do gás.

– Arre! arre! – berrava ele –  Vá para o inferno e o diabo que a ature!

– Mas, compadre, reconsidere, escute! Você está fora de si, homem!

– Não! – berrou Manuel, esbugalhando os olhos e rilhando os queixais. – Não, com mil raios! Se me aproximar daquele demônio é para estrangulá-lo! Não volto a casa! Não quero ser assassino!

– Mas o que mais houve, compadre?

– Que houve?! – E o infeliz soltou uma gargalhada satânica. – Que houve?! Vá lá à casa e veja o estado em que deixamos tudo! Vá ver!

Fonte: Aluísio de Azevedo. Contos. Publicado originalmente em 1893. Disponível em Domínio Público 

sexta-feira, 17 de maio de 2024

Edy Soares (Fragata da Poesia) 46: Bem aventurado

 

Arthur Thomaz (No Tribunal)

Não tenho a mínima noção de onde me encontro. Pareço estar acordando de um sono pro fundo povoado de pesadelos. 

Esfrego os olhos na vã tentativa de afastar essas incômodas imagens. Vozes misturavam-se, até que consegui desembaraçá-las, e pude identificar iradas frases que vinham de uma figura com toga preta nos ombros e que parecia dirigir essas ásperas palavras a mim.

Desligo-me momentaneamente desse inóspito ambiente e tento lembrar de meus momentos anteriores a esse cataclisma. Recordo, imediatamente, das carícias suaves da minha Tereza no leito do motel, em que íamos uma vez ao ano para reacender o relacionamento que já perdurava há uma década.

Ou seriam os deliciosos carinhos da proibida Raquel, amante há algum tempo?

Eu pensei naquele dia em dizer a Raquel que o motel que ela escolhera era o mesmo em que eu ia com Teresa, mas, prudente, calei-me.

Embaralhando meus pensamentos, já não os distinguia neste momento, ainda mais com aquela voz irritante do togado citando insistentemente meu nome.

Culpado, premeditado, má conduta, falsidade, encontrado com a faca nas mãos. Cruéis palavras que me torturavam, explodindo em meu confuso cérebro. Será que fechando novamente os olhos, trocaria esse pesadelo por um sonho mais leve?

Novamente, gritos acusando-me de estar dormindo em pleno julgamento. Essa palavra soou como um míssil tentando explodir minha cabeça. 

Percebi, então, que algo grave estava acontecendo. Que estranho!. Deitado, eu dizia a Raquel para pararmos de beber, mas ela teimosamente pedia mais dois drinques.

De repente, uma estridente e raivosa voz adentra. Um barulho, um grito abafado e algo é colocado em minhas mãos.

Bêbado, deixei para ver depois o que era esse frio objeto. 

Em seguida, sirenes, gritos e algo gelado prendendo meus punhos. Estranhamente, minha doce Raquel nada dizia nessa hora.

Abro os olhos e vejo aquelas sete pessoas e seus 14 olhos perscrutando minha alma.

Parecendo dissecar meus pensamentos e com desejos de arrancar meu coração. Seria aquilo um júri?

Eu só queria voltar a dormir nos braços de uma delas.

Aquela toga levanta-se e pronuncia algo que foi comemorado por uma multidão, que só agora vejo sentada atrás de mim.

Gritos, novos empurrões, algo gelado volta apertando os meus punhos e sirenes. Enfim, me levam ao sossego de um local acolhedor, longe daquela incômoda balbúrdia.

Muitos anos depois, alguém de visível má vontade, escancara aquela porta gradeada e finalmente me encontro na rua.

Agora posso voltar aos braços da proibida Raquel. Em vão, eu a procuro. Aquela voz que algo fez para separá-la de mim continua tonitruante em meus ouvidos.

Repentinamente, reconheço a voz raivosa daquele dia.

Era a de Tereza. Grito desesperado e tardiamente que não fui eu. E nessa hora, nem os paralelepípedos da rua me escutam.

Fonte> Arthur Thomaz. Leves contos ao léu: imponderáveis. Volume 3. Santos/SP: Bueno Editora, 2022. Enviado pelo autor 

Vereda da Poesia = 9 =


Uma Trova de Maringá/PR

A. A. de Assis

Cresce a cidade… que pena…
crescendo, perde a poesia;
– na rua ninguém me acena,
ninguém mais me diz bom-dia!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Um Poema de Porto Alegre/RS

Rodrigo Zuardi Viñas

SE EU PARTIR ANTES DE TI

Quero que isso aconteça
numa manhã tranquila
e agradável
para que o momento
seja eternizado
pela beleza do dia
e pelos sentimentos
que temos um pelo outro.
Ah, se eu partir antes de ti,
sei que, além de saudades,
manterás, por mim,
muito carinho e admiração.
A amizade que nos une
foi construída
com muito respeito, sinceridade
e companheirismo.
Ah, se eu partir antes de ti,
sei que me guardarás
como uma das tuas boas lembranças.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Uma Quadra Popular

Quero cantar, ser alegre,
Que a tristeza não faz bem;
Inda não via tristeza
Dar de comer a ninguém.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  =

Um Soneto de São Mateus do Sul/PR

Gérson César Souza

NEBLINA

Tal qual o véu que cobre um rosto de menina,
tua beleza amanheceu hoje escondida.
Chegou o inverno... e eu te encontro adormecida,
cidade amada, sob um manto de neblina...

Meus passos calmos já conhecem cada esquina,
cada comércio, cada rua ou avenida.
Mesmo esta névoa é uma velha conhecida,
parceira antiga na jornada matutina.

Eu acompanho este momento em que despertas:
luzes se acendem... as janelas são abertas...
e o sonolento vai e vem da nossa gente.

Quando a neblina vai, por fim, se dissipando,
alto no céu há um sol ansioso te esperando
para abraçar teu frio e dar-te um beijo quente!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Uma Aldravia de Ipatinga/MG

Marília Siqueira Lacerda

noite
dia
silêncio
dobrado
feriado
= = = = = = = = = 

Uma Setilha de Natal/RN

José Lucas de Barros
Serra Negra do Norte/RN, 1934 – 2015, Natal/RN

Entre as coisas que a vida me propôs,
desde o tempo feliz da tenra idade,
e eu procuro seguir com todo o empenho,
vêm, na linha de frente, a honestidade
e os princípios do amor e da harmonia,
porque Deus vai querer que eu prove, um dia,
o que fiz pra ganhar a eternidade.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Um Epigrama de Fortaleza/CE

Antônio Sales
Fortaleza/CE, 1868 – 1940

A opinião severíssima
te condena sem razão:
tu serias fidelíssima
se fosses… mulher de Adão.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Uma Sextilha de Porto Alegre/RS

Gislaine Canales
Herval/RS, 1938 – 2018, Porto Alegre/RS

Podemos trocar carinhos
por e-mails todo dia,
e podemos divulgar
mensagens, versos, poesia,
repartindo com o mundo
a nossa eterna alegria!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Uma Trova de Santos/SP

Cláudio de Cápua
São Paulo/SP, 1945 – 2021, Santos/SP

Os braços vindos de guetos,
sob o sol ou sob a lua,
amarelos, brancos, pretos,
clamam justiça na rua.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Um Poema de Lisboa/Portugal

Fernando Pessoa
(Fernando António Nogueira Pessoa)
Lisboa/Portugal, 1888 – 1935

A MORTE É A CURVA DA ESTRADA 

A morte é a curva da estrada,
Morrer é só não ser visto.
Se escuto, eu te ouço a passada
existir como eu existo.

A terra é feita de céu.
A mentira não tem ninho.
Nunca ninguém se perdeu.
Tudo é verdade e caminho.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Uma Décima de Natal/RN

Ademar Macedo
Santana do Matos/RN. 1951 – 2013, Natal/RN

O SERTÃO É UM POEMA…

Deus na sua magnitude,
fez do sertão um palácio,
deixou escrito um prefácio
na parede do açude;
disse da vicissitude
da flor e do gineceu,
de um concriz que se escondeu
nos garranchos da jurema,
o sertão é um poema
que a natureza escreveu.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Mais um Poema de Lisboa/Portugal

Antero Jerónimo

As palavras são janelas ou muros
Levadas a tribunal de audição 
Juízes ou carrascos atentos
São libertação ou podem ser condenação

Entrego as minhas palavras
Como uma bandeira branca
Desfraldada em campo sereno
Onde conseguimos a reconciliação 
No espaço do maravilhoso criar
Onde somos dom e inspiração

Sempre estivemos nesse lugar
Da comunicação em união 
Mas inseguro tropeço em fragilidade 
Nesta minha latente imperfeição

Sejamos então abraço e voz de alma
Que nos transcende e acalma.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Um Indriso* de São Paulo/SP

Isidro Iturat

LUA CHEIA

A velha mandinga contava à sua neta
sobre os sortilégios da Mãe Lua,
lá na boa noite, lá na noite quieta:

“Para a deusa nunca vais olhar,
porque se te mira quando tu a miras,
o Pássaro Prata ouvirás cantar.

E ao canto da ave o ventre se alua

e do bom marido, saberás das iras”
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 
* O indriso é um poema que consta de dois tercetos e duas estrofes de verso único, isto é, que está organizado segundo um padrão 3-3-1-1, e surge a partir de uma reelaboração do soneto no que poderia explicar-se como um processo de condensação estrófica. Os quartetos do soneto passam a ser tercetos no indriso. Depois, os dois tercetos do primeiro passam a ser estrofes de verso único no segundo. 
O indriso foi criado por Isidro Iturat, que nasceu em Vilanova i la Geltrú, España, 1973. Escritor e professor de lingua e literatura espanholas. Reside em São Paulo desde 2005. (Fonte: www.indrisos.com)

Recordando Velhas Canções (Carinhoso)


Compositores: João de Barro / Pixxinguinha

Meu coração, não sei por quê
Bate feliz quando te vê
E os meus olhos ficam sorrindo
E pelas ruas vão te seguindo
Mas mesmo assim foges de mim

Ah, se tu soubesses
Como sou tão carinhoso
E o muito, muito que te quero
E como é sincero o meu amor
Eu sei que tu não fugirias mais de mim

Vem, vem, vem, vem
Vem sentir o calor dos lábios meus
À procura dos teus
Vem matar esta paixão
Que me devora o coração
E só assim então serei feliz
Bem feliz
Meu coração
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = = = = = = = = = = 

A Doçura e a Saudade na Melodia de 'Carinhoso'
A música 'Carinhoso', composta por Pixinguinha, um dos maiores compositores da música brasileira, é um clássico do choro e da música popular brasileira. A letra, escrita por João de Barro, o Braguinha, expressa um sentimento de amor e saudade, características marcantes da obra de Pixinguinha. A canção foi composta em 1917, mas só ganhou letra em 1937, tornando-se um dos sambas mais conhecidos e interpretados do Brasil.

A letra de 'Carinhoso' fala de um amor não correspondido, onde o eu lírico expressa sua alegria e emoção ao ver a pessoa amada, mesmo que esta não retribua seus sentimentos. A expressão 'meu coração não sei por quê, bate feliz quando te vê' revela a natureza involuntária e intensa do amor, que faz o coração reagir apenas com a visão da pessoa desejada. A repetição do 'vem' no final da música é um convite apaixonado, um clamor para que o amor seja correspondido e para que a paixão que consome o coração do eu lírico seja finalmente saciada.

A música 'Carinhoso' é um retrato da alma brasileira, com sua melodia que mistura tristeza e alegria, e sua letra que fala de amor de forma simples, mas profunda. Pixinguinha, com sua habilidade ímpar de compositor, criou uma obra que atravessa gerações, tocando o coração de quem a ouve. A canção é um hino ao amor e à delicadeza dos sentimentos, e permanece como uma das mais belas páginas da música popular brasileira.

quinta-feira, 16 de maio de 2024

Vanice Zimerman (Tela de versos) 35

 

Humberto de Campos (O furto)

(Conto Amazônico)

A floresta imensa, de árvores augustas e seculares, chegava até à margem do rio quando os primeiros colonizadores, fazendo ressoar o machado nos troncos enormes, ergueram aí a primeira barraca de seringueiro. E pouco a pouco, investindo contra a selva soturna e impenetrável, foi o homem avançando contra a muralha verde, até fixar naquelas brenhas o marco da primeira cidade.

Agora, não era mais o casebre isolado. Alinhados à beira do rio largo e profundo, as casas de negócios e de moradia, comprimidas entre a floresta e a água, eram como ovelhas escuras de um pequeno rebanho, trazidas a beber na torrente por uma legião de gigantes desgrenhados. E entre essas casas, humilde no meio das mais humildes, estava a do Zeferino, caboclo de trabalho, que passara seis meses na pesca do pirarucu e outros seis no alto sertão, na faina dos castanhais.

A cidade pequena ressonava, quieta, naquela noite sem lua, quando o caboclo, descalço, torcendo as mãos vigorosas e ásperas, apareceu à porta escura do casebre. Era um homem baixo, grosso, de tez cobreada cabelos lisos e bigode ralo, tipo inconfundível do índio domesticado. Os olhos, vivos e pequenos, luziam-lhe nas órbitas como vagalumes escondidos nas folhas. Vestia camisa grosseira, de algodão, encardida pelo tempo, a qual lhe descia, até, quase, ao joelho, cobrindo, em parte, a ceroula do mesmo pano. Diante dele, o rio, silencioso, multiplicava-se em claridades, refletindo a abóbada inteira em cada escama do dorso. E, em cima, na altura, O espaço picado de estrelas era uma enorme orgia de luz, como se os anjos tivessem acendido naquela hora, num impiedoso desafio à sua miséria, as mais remotas lâmpadas do firmamento. Na margem, beirando o mistério das águas, velavam, como ciclopes, com o seu olho fixo, os lampiões da iluminação pública. Enfileirados ao longo da primeira rua do lugar, as suas gotas de luz, tristes, mortiças, imóveis, faziam pensar em pequenos astros cristalizados na terra, ou em grandes lágrimas de titãs tombadas soturnamente do céu.

Na quietude daquela hora de assombros, afugentando ou convocando os demônios da treva, coaxavam os sapos, martelando, monótonos, na bigorna do silêncio. Nas moitas úmidas, de onde partiam, confundindo-se tantas vozes anônimas, os pirilampos eram como as centelhas dessa oficina monstruosa, onde os batráquios batiam, talvez, a couraça de ouro do sol.

A noite corria, assim, profunda e calma, suando orvalho pelos poros da terra, na dor ignorada do seu parto, quando a figura do caboclo se desenhou, como uma grande mancha cinzenta, na mancha escura da porta. Desenrolava-se no seu espírito, naquele momento, uma das grandes tragédias da consciência. É que, dentro, na casa modesta, no refúgio doloroso da sua miséria, agonizava o seu filho pequeno, o qual ia morrer, talvez, com sacrifício da sua alma inocente, no horror da escuridão!

Ao regressar do trabalho nos castanhais, onde passara quatro meses, encontrara-o só, entregue aos vizinhos. A mãe, a Rosa, sua companheira de cinco anos, tinha-o abandonado na sua ausência, fugindo para Breves com um turco, negociante de "regatão". Informado de tudo, pensara em sair em perseguição da adúltera, e matá-la, e ao amante. O menino já estava, porém, com a maleita impiedosa, e como não tivesse quem dele tomasse conta, ficara ao seu lado, tratando-o na enfermidade com desvelos de mãe.

O dinheiro trazido do trabalho na castanha tinha-se-lhe ido, todo, nos remédios para o pequeno. Não podendo afastar-se dele para ir à pesca, ou a qualquer outro meio de vida, não tivera um níquel, sequer, na véspera, para comprar uma vela ou um pouco de querosene. E agora, dentro, no quarto, a candeia que lhe iluminava a agonia começava a esmorecer, como um símbolo mesmo daquela vida periclitante, e, em pouco, a Morte entraria, de certo, ali, arrebatando aquele pedaço do seu coração!

No seu pavor, adivinhando o rio e olhando o céu, o caboclo via, já, o seu filho estendendo os bracinhos mirrados, estertorando no escuro, e confundindo, de olhos entreabertos, as trevas passageiras da noite com as trevas eternas do túmulo. Duas vezes chegou à porta e duas vezes entrou, de novo, impelido por um triste pressentimento. Da última vez, encontrou, já, o quarto afogado em escuridão. A lamparina, sem querosene, apagara-se. Tateando nas paredes familiares, fora até à rede onde estava o doentinho apalpando-lhe o corpinho magro, quase um esqueleto, pondo toda a delicadeza nas mãos pesadas. O menino queimava, de febre. Um grunhido estertorante subia-lhe do peito ansiado. A respiração era agitada, pela boca escaldante, que, ao tato, verificara que estava aberta.

- João?... Joãozinho?... meu filho?... - chamou, adoçando a voz.

O mesmo grunhido angustiado, surdo, foi a resposta. O caboclo chegou-lhe a coberta remendada para o peito magro, beijou-o num grande carinho, e saiu, de novo. À porta, estacou, outra vez. Que fazer àquela hora, entre o esquecimento de Deus e o sono dos homens? Onde conseguir, em hora tão avançada, uma vela ou um pouco de azeite, com que alumiasse a agonia daquele inocente, se ninguém o atenderia noite tão alta, e não havia na casa, para bater a uma venda, a moeda mais miserável?

O primeiro galo cantara, longe, perto do rio. Outro respondera mais próximo. A quietude era tamanha que se lhes ouvia o bater pesado das asas. Menos numerosos, os sapos. se acomodavam.

A alma em desespero, o caboclo passeava os olhos pela mudez misteriosa das coisas, interrogando o céu e a noite sobre o destino do seu filho e o remédio do seu sofrimento, quando teve aquela ideia, que os demônios apiedados lhe sopraram. Reentrando no casebre, tomou da lamparina vazia, apalpou ainda uma vez o esqueleto ardente do filho, e desceu à rua, rumo do rio. Ao longe, um lampião, perdido na noite, chorava, triste, o seu pranto de claridade solitária. Encaminhou-se para ele. Ao chegar-lhe junto, mediu a altura do poste esguio, e, tomando nos dentes a lamparina de folha, começou a subi-lo. Ao alto, segurando-se com as pernas, retirou o bocal do candeeiro, e principiava a passar para a sua candeia algumas gotas de querosene, quando ouviu um grito, a dois passos.

- Ladrão!... - bradaram.

Era o fiscal, o rondante (vigia) da iluminação. Atirando-se do poste, o caboclo confessou o seu crime, e pediu misericórdia.

- É para o meu filho!... - gemeu.

- Marche! Vamos!... foi a resposta do guarda, que, impelindo-o para a frente com um repelão, se mostrou inexorável.

- Eu vou, - replicou o desgraçado; - mas pelo amor de Deus, deixe-me ir em casa primeiro, acender a lamparina junto ao meu filho!... Deixe!... tenha piedade!...

- Marche!... - bradou-lhe, imperioso, com outro safanão, o homem da ronda.

Cabeça baixa, o desespero na alma, com uma vontade doida de romper em soluços, o caboclo pôs-se a caminho da cadeia, custodiado pelo guarda. A situação em que fora preso, amesquinhava-o, enfraquecia-o, acovardava-o. Sentia vergonha e raiva, arrependimento e indignação.

Pela cidade adormecida os galos amiudavam. Os sapos calavam-se. As estrelas, piscavam menos. Uma brisa fresca, embalando os ramos, trazia o cheiro da floresta... A chave da cadeia estalou, seca, na fechadura, e rolou, lá dentro, um corpo, impelido por um empurrão.

Já ao entardecer, quase noite, soltaram-no, de ordem do delegado. O caboclo correu à casa, para ver o seu filho.

Pelo punho da rede, tomando conta do cadáver, e entrando-lhe pela boca, pelo nariz, pelos ouvidos, desciam em fileira, em longos rosários fervilhantes, as primeiras formigas…

Fonte: Humberto de Campos. O monstro e outros contos. Publicado originalmente em 1932. Disponível em Domínio Público  

Vereda da Poesia = 8 =


UMA TROVA

Maria Helena Uruhahy Campos Fonseca
Angra dos Reis/RJ

Eu juro, falo a verdade,
em noite morna, altaneira,
eu me escondo da saudade
no livro de cabeceira.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

UM SONETO

Auta de Souza
Macaíba/RN, 1876 – 1901, Natal/RN

PÁGINA TRISTE

Há muita dor por este mundo afora,
Muita lágrima à toa derramada;
Muito pranto de mãe angustiada
Que vem saudar o despontar da aurora!

Alma inocente só de amor cercada
A criancinha a soluçar descora,
Talvez no berço onde o menino chora
Também, ó Dor, tu queiras, desolada,

Erguer um trono, procurar guarida...
Foge do berço! não magoes a vida
Desta ave implume, lirial botão...

Queres um ninho, um carinhoso abrigo?
Pois bem! procura-o neste seio amigo,
Dentro em minh'alma, aqui no coração!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

UMA QUADRA

Antonio Aleixo
(António Fernandes Aleixo)
Vila Real de Santo António/Portugal, 1899 — 1949, Loulé/França

Da guerra os grandes culpados,
Que espalham a dor na terra,
São os menos acusados
Como culpados da guerra.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

UMA POESIA

Carolina Ramos
Santos/SP

SE ELA CHEGAR...

Se ela chegar... eu rogarei baixinho;
- Não te aproximes! Vai! Esquece-o... Parte!
Que ele nem te pressinta!... O seu carinho
é meu... só meu... quem ama não reporte!

Nosso amor é sereno. Tão sereno,
que nem teme rivais! Se sou amada,
amo, também! Afeto puro e pleno,
que o entardecer transforma em alvorada!

Implorarei em prantos; - Não o leves!
Deixa-o comigo... Vês? Inda é tão cedo!
Nossas horas de amor foram tão breves,
tão breves quanto foi nosso segredo!

Mostrarei o teu rosto, belo e calmo,
tal como o vejo agora, meu querido...
Provarei que és feliz e, palmo a palmo,
defenderei teu corpo adormecido.

Tuas mãos - lhe direi - guardam carícias
somente minhas, apesar de o mundo
bafejá-las de intrigas e malícias!
Vai! - pedirei! E com fervor profundo,

esmolarei, ainda, uma migalha,
uma fração de tempo! E, suplicante,
meu coração, beijando-lhe a mortalha,
há de rogar-lhe nesse cruel instante:

- Bem sabes... tanta gente, em vão te espera
e tresloucada, às vezes, te procura!
Vai buscar essa gente sem quimera!
Deixa em paz nosso ninho de ternura!

Esquece que existimos. E, algum dia,
já velhinhos, já trôpegos, cansados,
de tua porta, iremos à porfia,
para beijar-te os mãos, sempre abraçados!

Se ela chegar... e se me ouvir paciente,
ela, que alma não tem, terá piedade,
levará minha angústia, tão somente,
sem acender o círio da saudade!

Contudo, ela chegou! Levou-te, amigo,
alheia ao meu clamor desesperado!
Nem quis a vida que deixou comigo,
cuja metade eu lhe teria dado!

Restou somente a solidão enorme...
O frio intenso... esse terrível frio
que enregela de dor um inconforme,
um pobre e triste coração vazio!…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

UM TRIVERSO TRAVESSO 

A. A. de Assis
Maringá/PR

Ah, havia o espaço
e no espaço havia ação.
Apertem os cintos.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

UM POEMA

Daniel Maurício
Curitiba/PR

O céu de tão azul
Estava um tipo Mário Quintana
E até a minh'alma mundana
Ganhou uma veste celeste
Mesmo sem saber que era prece
Ver o voar da Tesourinha
Que cortava o céu
E costurava sem linha
Um manto azul,
De um toque quase sagrado
Para aqueles que foram perdoados
E nem perguntaram o porquê.

Recordando Velhas Canções (O Bêbado e a equilibrista)


Compositores: João Bosco e Aldir Blanc

Caía a tarde feito um viaduto
E um bêbado trajando luto
Me lembrou Carlitos
A Lua, tal qual a dona do bordel
Pedia a cada estrela fria
Um brilho de aluguel

E nuvens
Lá no mata-borrão do céu
Chupavam manchas torturadas
Que sufoco louco!
O bêbado com chapéu-coco
Fazia irreverências mil
Pra noite do Brasil

Meu Brasil que sonha
Com a volta do irmão do Henfil
Com tanta gente que partiu
Num rabo de foguete
Chora a nossa Pátria, mãe gentil
Choram Marias e Clarices
No solo do Brasil

Mas sei que uma dor assim pungente
Não há de ser inutilmente
A esperança dança
Na corda bamba de sombrinha
E em cada passo dessa linha
Pode se machucar

Azar
A esperança equilibrista
Sabe que o show de todo artista
Tem que continuar
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = = = = = = = = = = 

A Arte de Elis Regina em 'O bêbado e a equilibrista': Um Hino de Esperança e Resistência
A canção 'O bêbado e a equilibrista', interpretada pela icônica Elis Regina, é uma obra que transcende a música para se tornar um símbolo de resistência e esperança em um período conturbado da história do Brasil. Composta por Aldir Blanc e João Bosco durante a ditadura militar, a música se tornou conhecida como o 'hino da anistia', clamando pelo retorno dos exilados políticos e pela liberdade de expressão.

A letra é rica em metáforas e imagens poéticas que evocam a melancolia e a luta do povo brasileiro. A figura do bêbado, que remete ao icônico personagem Carlitos de Charlie Chaplin, simboliza a tristeza e a irreverência do povo. A 'Lua, tal qual a dona do bordel', pode ser interpretada como uma crítica à exploração e à corrupção, enquanto as 'nuvens no mata-borrão do céu' sugerem a censura e a repressão que manchavam o país.

A esperança, personificada na 'equilibrista', é o fio condutor da canção. Mesmo diante das adversidades e do 'azar', ela dança na 'corda bamba de sombrinha', representando a delicadeza e a coragem necessárias para seguir adiante. A música termina com um lembrete de que, apesar dos riscos, 'o show de todo artista tem que continuar', uma mensagem de persistência e continuidade da luta pela liberdade. Elis Regina, com sua interpretação emocionante, eternizou essa canção como um marco da resistência cultural brasileira.
https://www.letras.mus.br/elis-regina/45679/

quarta-feira, 15 de maio de 2024

José Feldman (Analecto de Trivões) 28

 

Contos das Mil e Uma Noites (Farruz e sua esposa)

Conta-se que certo rei estava sentado um dia no terraço de seu palácio quando viu, no terraço da casa oposta, uma mulher cuja beleza não tinha igual entre as mulheres. O rei perguntou:

“A quem pertence essa casa?” Responderam-lhe: “A teu servidor Farruz, e essa mulher é a sua esposa.”

O rei desceu do terraço, embriagado por uma súbita paixão. Chamou Farruz e disse-lhe: “Pega esta carta e vai entregá-la em tal cidade e volta com a resposta.”

Farruz pegou a carta e, de volta a casa, colocou-a sob o travesseiro. Pela manhã, despediu-se da mulher e dirigiu-se para a cidade, sem suspeitar das intenções do rei. 

Assim que o viu partir, o rei disfarçou-se e foi bater na porta da casa de Farruz. A mulher abriu-lhe. 

“Vim visitar-te”, disse o rei. 

Ela sorriu e respondeu: 
“Refugio-me em Alá desta visita. Pois não vejo nela nada de bom.” 

Retrucou o rei: “Sou o amo de teu marido. Parece que não me conheces.” 

Respondeu ela com determinação: “Com certeza conheço-te. És o soberano de meu marido e meu soberano também. Também entendi a tua manobra, e sei o que queres de mim. E para te provar que compreendo o que te traz, vou recitar para ti estes versos do poeta”:

Não trilharei o caminho da fonte
se outros podem colar os lábios na rocha úmida.
Jogarei fora as melhores carnes,
se for dado às moscas partilhá-las comigo.

Depois de recitar os versos, a esposa de Farruz acrescentou:

“E tu, ó rei, beberás da fonte onde outros pousaram os lábios antes de ti?”

O rei escutou-a com estupefação, voltou as costas sem dizer uma palavra e fugiu daquela casa com tamanha precipitação que deixou uma de suas sandálias no chão atrás de si. 

Ora, Farruz deu-se conta no meio do caminho que esquecera a carta do rei sob o travesseiro, e voltou para apanhá-la. Vendo a sandália do rei, compreendeu por que tinha sido enviado a cidade tão longínqua, apanhou a carta em silêncio e saiu sem deixar a esposa perceber a sua volta. Após cumprir a missão, apresentou-se ao rei, que o recompensou com cem dinares. Farruz levou os cem dinares ao mercado dos joalheiros, comprou magníficos ornamentos que ofereceu à mulher, dizendo: “Estes são uma lembrança da viagem. Pega-os e tudo que te pertence e volta para a casa de teus pais.” 

“Assim farei,” disse a mulher sem nada perguntar ou comentar. Adornou-se com as joias, apanhou seus pertences e foi para a casa dos pais. Quando um mês se passou sem que Farruz procurasse a mulher, o irmão desta visitou-o e disse-lhe: “Se não queres revelar o motivo de tua cólera contra tua esposa e o abandono em que a deixas, terás que te explicar diante do rei.” 

O marido concordou, e foram juntos à presença do rei.

O rei transferiu-os ao cádi que estava sentado a seu lado. O cunhado disse: “Que Alá assista o nosso senhor cádi! Eis a minha queixa: eu e minha família possuíamos um lindo jardim, protegido por altos muros, cuidado e plantado de flores aromáticas e de árvores frutíferas. Entregamo-lo a este homem. E ele, depois de colher as flores e comer as frutas, e depois de demolir os muros e abandonar o jardim aos quatro ventos, quer romper o contrato e devolver-nos o jardim no estado em que o pôs. Tal é nossa queixa, ó nosso senhor cádi.”

O cádi perguntou a Farruz: “Que tens a dizer, ó jovem” 

Farruz respondeu: “Devolvo-lhes o jardim com vontade e sem vontade! O motivo desta restituição é que, um dia, entrei no jardim e vi nele as pegadas de um leão. Tive medo de que, um dia, ele acabe por me devorar”.

O rei prestava atenção sem o deixar perceber.

Ao ouvir as palavras de Farruz, compreendeu-lhes o sentido e o alcance e interveio, dizendo a seu servidor: “Ó Farruz, acalma teu coração e apazigua tuas dúvidas. Pois, pela verdade e pela santidade do islã, é o jardim mais bem defendido que encontrei em toda minha vida. Suas muralhas o protegem contra qualquer assalto. E suas flores são as mais belas que já vi.” 

Farruz compreendeu e fez a paz com a mulher e amou-a. Nem o cádi nem as demais pessoas presentes compreenderam de que se tratava. Pela forma alegórica dada ao pensamento de cada um, o segredo ficou limitado ao rei, a Farruz e ao irmão da esposa.

Fonte: As Mil e uma noites. (tradução de Mansour Chalita). Publicadas originalmente desde o século IX. Disponível em Domínio Público.