sexta-feira, 26 de julho de 2024

Vereda da Poesia = 67 =


Trova Humorística de Taubaté/SP

ARGEMIRA F. MARCONDES

Levando um coice da mula,
minha sogra se mandou;
a mulinha nem calcula
o galho que me quebrou.
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Poema de Brusque/SC

MARIA LUIZA WALENDOWSKY

Tristeza

Tristeza d´alma
vá para longe...
não fiques me sufocando
com esta angústia,
dor no peito
sem fim.
- De onde vens?
São tantos os motivos...
mas por que insistes em ficar?
Deixe-me ser livre... solta!
Voar bem alto
e, no infinito,
mergulhar em meu íntimo,
a sorrir com orgulho,
de uma vida prestes
a desabrochar...
tímida e imprevista.
- Por favor,
não insistas mais
em ficar.
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Aldravia de Ipatinga/MG

MARÍLIA SIQUEIRA LACERDA
retratos
pela
casa
digerir
saudades
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Soneto de Jaboatão dos Guararapes/PE

PAULINO DE ANDRADE
(1886 – ????)

Olinda

No alto, a paisagem verde-escura e acidentada.
Em baixo, o ouro da praia e a saudade do mar...
Sugere lendas... reis magos... terra encantada...
Fidalgas castelãs... troveiros a cantar...

É bem de vê-la sob a tragédia sagrada
Do crepúsculo: é grande, heroica, singular!
Eu, quando a vejo assim, tenho a alma amplificada
E uma dilatação de beleza no olhar.

E se, pela alterosa e lendária Palmira
Longa e empolgada, a vista amplamente se estira,
Lembro o Nebo sob a ânsia imortal de Moisés!...

E um ninho azul coroa a epopeica Cidade...
Rumina o coqueiral uma velha saudade,
E a saudade do Mar rumoreja-lhe aos pés...
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Trova Premiada em Maringá

WANDIRA FAGUNDES QUEIROZ
Curitiba/PR

Enfeitando de poesia
suas canções de ninar,
enquanto o filho dormia
mamãe podia sonhar.

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Poema de Belo Horizonte/MG

CARLOS LÚCIO GONTIJO

Peão de Letras

Palavras são novilhos
Novelos de rios e lã
Cavalos bravios, puro-sangue
Na escuridão esperando manhã
Mangue de fala nascente
Veneno de língua poente
Pauta sonhando som
Feno bom para a mente animal
Que não sabe ser silente
Nesta campina sou cavaleiro
Poeta visionário social
Guerreiro, desbravo o dicionário
Matagal de mel em favos
Onde enlaço palavras com laço de céu
Feito abraço, prisão que afaga
Esta é minha saga, minha sina
Que se algum dia termina
Quero meu corpo ao lado da mãe
E o conforto da inscrição final:
"Meu irmão, aqui jaz um peão de letras”
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Trova Popular

Amor com amor se paga:
nunca vi coisa tão justa;        
paga-me contigo mesmo           
saberás quanto te custa.
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Soneto de Curitiba/PR

VANDA FAGUNDES QUEIROZ

Antes de fechar a porta

Recordo, muita vez, sentada à porta
de mim mesma, o tão nosso antigamente!
O que espreito, bem sei, não mais importa
que a mim só que de novo estou presente.

É a mão da saudade que transporta
o que sou ao que fomos. De repente,
tanta coisa, com rótulo de morta,
vive em mim nova vida, inteiramente...

Julgas mera tolice a devoção
de minha ardente peregrinação
ao passado. E me acordas à verdade.

Volvo ao deserto de viver, então.
Mas, antes de esconder o coração,
guardo já dentro mais uma saudade.
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Trova de Juiz de Fora/MG

ARLINDO TADEU VAGEN

Eu vi, ao nascer do dia,
a rosa despetalada
e o assassino que fugia:
o vento da madrugada!
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Poema de Fortaleza/CE

NEMÉSIO PRATA

Poema de vida... sem vida! 

A Rosa, cheia de vida, 
de viço e beleza, tida, 
das flores, a preferida 
de todos, foi bem nascida, 
agora, vive esquecida 
em uma jarra partida 
sem viço, beleza e vida!
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Trova Humorística de São Paulo/SP

THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA

"Com Deus, vou subir a serra
sem perigo... eu tenho fé!"
Na curva, o bebum se ferra...
Deus subiu... mas foi a pé!
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Soneto de de Dublin/Irlanda

OSCAR WILDE
(Oscar Fingal O'Flahertie Wills Wilde)
Dublin/Irlanda (1854 – 1900) Paris/França

Soneto à Liberdade

Não que eu ame teus filhos cujo olhar obtuso
Somente vê a própria e repugnante dor,
Cuja mente não sabe, ou quer saber, de nada
É que, com seu rugir, tuas Democracias,

Teus reinos de Terror e grandes Anarquias
Refletem meus afãs extremos como o mar,
Dando-me Liberdade! -à cólera uma irmã.
Minha alma circunspecta gosta de teus gritos

Confusos só por causa disso: do contrário,
Reis com sangrento açoite ou seus canhões traiçoeiros
Roubavam às nações seus sagrados direitos,

Deixando-me impassível e ainda, ainda assim,
Esses Cristos que morrem sobre as barricadas,
Deus sabe que os apoio ao menos parcialmente. 
(tradução de Nelson Ascher)
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Trova Potiguar

ADEMAR MACEDO
Santana do Matos/RN (1951 - 2013) Natal/RN

Muda-se a cor preferida,
troca-se a corda do sino,
muda-se tudo na vida…
Mas não se muda o destino.
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Glosa do Rio de Janeiro/RJ

REGINA COELI

MOTE: 
Nessas rosas em que espelhas
teus delicados primores,
meu amor, tu te assemelhas
a uma flor me dando flores! 
Humberto-Poeta 
(São Paulo/SP)

GLOSA:
Nessas rosas em que espelhas
teu perfume e tua cor,
há um exército de abelhas
tornando em mel teu amor.

Sinto em tão doce fragrância
teus delicados primores,
pinçados com elegância
das rosas em belas cores.

Se o telhado tem nas telhas
instrumento pra abrigar,
meu amor, tu te assemelhas
à pérgula a perfumar.

Teu doce encanto me enleva
a jardins encantadores;
comparo-te — luz na treva —
a uma flor me dando flores! 
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Trova de Bragança Paulista/SP

MARINA GOMES VALENTE

Contemplar o mar infindo,
entender sua poesia,
ver o sol se despedindo
é sentir paz e alegria.
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Soneto de Manaus/AM

ANIBAL BEÇA
(1946 – 2009)

Mala com alça

É da lama essa mala que retiro
para subir a encosta (como a pedra
que Sísifo ainda empurra todo dia)
numa viagem cheia de sequelas.

Não há como negar tantos espinhos
na travessia turva de mistérios
que vão-se descobrindo nos caminhos:
a mão negada, a fome, o vitupério,

o rito solidário que esquecemos
em troca a vaidade transitória.
Somos do barro e ao barro voltaremos.

A verdade do Homem e de sua Hora
vem com mala e alça, disto sabemos,
mais o peso do corpo e sua história.
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Trova Premiada em Sete Lagoas/MG , 2000

MARINA BRUNA 
Franca/SP, 1935 – 2013, São Paulo/SP

Em cada dia eu renasço
- apesar de envelhecer –
descobrindo, passo a passo,
a alegria de viver!
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Poema de Três Corações/MG

MEIMEI CORREA

Brincando com versos

Um verso
Disperso
Na calada da noite
Pensou ser esperto
E passou de mansinho
Caminhou no meu leito
Bateu forte no peito.

Invisível aos olhos
Sorriu para o coração
Que na distração
Do sonho acordado
Dormiu nessas linhas
Que fingem ser minhas.

Um poema sem métrica
Sem réplica se fez
Escorreu pela alma
Em forma de tintas
Colorindo a madrugada
Que foi enganada
Pelo sono que não veio
Estando em recreio
Com os pingos da chuva
Que uma nuvem esqueceu
No telhado da imaginação!
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Triverso de Curitiba/PR

ÁLVARO POSSELT

Curitiba não nos poupa.
Ontem eu tomei sorvete,
Hoje eu tomo sopa.
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Setilha de Natal/RN

JOSÉ LUCAS DE BARROS
Serra Negra do Norte/RN, 1934 – 2015, Natal/RN

O Pai não deixou talentos
iguais para os filhos seus.
Os seres não são iguais
na família dos pigmeus
nem também na dos gigantes,
e, se somos semelhantes,
já damos graças a Deus.
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Trova de Caicó/RN

PROFESSOR GARCIA

O sol, a brisa e esta rede,
no entardecer, que esplendor!
E o mar morrendo de sede,
mata-me a sede de amor!
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Hino de Cabo Frio/RJ

Cabo Frio, minha terra amada,
Tu és dotada de belezas mil,
Escondida vives num recanto,
Sob o manto deste meu Brasil...

Noites Claras teu luar famoso,
Este luar que viu meus ancestrais...
O teu povo se orgulha tanto,
E de ti, não esquecerá jamais...

Tuas praias, Teu Forte,
Olho ao longe e vejo o mar bravio
A esquerda um pescador afoito,
Na lagoa que parece um rio...

O teu sol, que beleza!
No teu céu estrelas brilham mais...
Forasteiro, não há forasteiro,
Pois nesta terra todos são iguais…
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O Canto de Orgulho e Beleza de Cabo Frio
O 'Hino de Cabo Frio - RJ' é uma ode à cidade localizada no estado do Rio de Janeiro, exaltando suas características naturais e a sensação de pertencimento que ela proporciona aos seus habitantes e visitantes. A letra começa com uma declaração de amor à terra, destacando as belezas naturais que a cidade possui, como se estivesse escondida, mas ainda assim sob a proteção do Brasil.

A referência ao 'luar famoso' e aos ancestrais do narrador evoca um sentimento de continuidade histórica e de conexão profunda com o lugar. O orgulho do povo de Cabo Frio é ressaltado, indicando que a memória e a valorização da cidade são passadas de geração em geração. As praias e o Forte são mencionados como marcos geográficos, enquanto a visão de um pescador e a lagoa que se assemelha a um rio pintam um quadro da vida cotidiana e da relação harmoniosa com o meio ambiente.

Por fim, a canção destaca a igualdade entre as pessoas que se encontram em Cabo Frio, sejam elas moradores ou visitantes, sugerindo uma atmosfera acolhedora e inclusiva. A beleza do sol e o brilho das estrelas no céu são metáforas para a vivacidade e a energia positiva que a cidade emana, reforçando a ideia de que Cabo Frio é um lugar especial tanto para quem vive quanto para quem a visita. https://www.letras.mus.br/hinos-de-cidades/467125/ 
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Poetrix de Palmeira das Missões/RS

CARLOS VILARINHO

um verbo

Entre nós um verbo
Que não cresce
Nem aparece…
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Soneto de Sorocaba/SP

DOROTHY JANSSON MORETTI
Três Barras/SC, 1926 – 2017, Sorocaba/SP

Um olhar sobre Sorocaba

Em pleno ciclo de tantas tropeadas,
quer de mulas, ou quer também de bois,
Sorocaba levanta as mãos armadas...
Mil oitocentos e quarenta e dois. 

Passa o século. A poeira das estradas              
vai-se apagando e vão florir, depois,              
as lindas laranjeiras carregadas...              
Mil novecentos e quarenta e dois. 

Os ciclos vão-se de outros distanciando...
Do bandeirante ao têxtil se afastando,
a indústria abre, imponente, o seu roteiro. 

E hoje, aos ventos do tempo e seus avanços,              
Sorocaba levanta os braços mansos,              
e torna irmãos... filhos do mundo inteiro.       
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Trova de Maringá/PR

A. A. DE ASSIS

O fruto é um santo produto
do mais generoso amor.
Por isso é que antes do fruto
quis Deus que ele fosse flor!
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Conto em Versos do Rio de Janeiro/RJ

ARTHUR DE AZEVEDO
São Luís/MA, 1855 – 1908, Rio de Janeiro/RJ

Improbus amor...

O Alfredo era poeta,
E na imprensa chamavam-lhe eminente;
Todavia, gostava loucamente
De uma mulata quase analfabeta,
Que desdenhava o seu amor ardente,
Pois que lhe preferia
O primeiro caixeiro
De um armazém de secos e molhados.

Suspirando e gemendo noite e dia,
E tirando do fundo do tinteiro
Chorosos versos, versos inflamados,
Que a mulata não lia,
E quando os lesse, não os entenderia,
As esperanças não perdia Alfredo
De, mais tarde ou mais cedo,
Aquele coração tornar mais brando.

Um dia, um belo dia, eis senão quando
Uma poetisa de talento, e bela,
Branca e não amarela,
Misto de musa e fada,

Olhos da cor do céu sereno e puro,
E cabelos da cor da madrugada
Quando reponta no horizonte escuro,
— Apaixonou-se pelo nosso Alfredo,
E tais olhares lhe lançou, tão fundos,
Que não pôde guardar o seu segredo.

O poeta, nos seus versos gemebundos,
Continuou a lastimar, coitado,
Viver pela mulata desprezado
Como folha arrastada pela brisa,
E não deu atenção à poetisa.

Um amigo do peito,
Que de tudo sabia,
Protestou contra essa anomalia:
— Alfredo! Com efeito!
Isso é depravação! Pois tu enjeitas
O amor de uma senhora inteligente,
Líndíssima, atraente,
Que faz poesias e que as faz bem feitas,
Pelo menos tão boas como as tuas,
Por não poderes esquecer um diabo
Uma mulher das ruas,
Que de ti dará cabo
Se não tomares juízo?!...
Vamos! Que os olhos abras é preciso!
Não podes hesitar entre elas duas!…

— Meu caro amigo, respondeu Alfredo,
Tu tens toda a razão, mas eu não cedo.
É uma fatalidade! O fado nosso
Não depende de nós; aquela eu amo,
E outra, seja qual for, amar não posso!
Insulta-a! Não reclamo!
Dize contra ela o mal que bem quiseres;
Mas ha milhões, bilhões de outras mulheres
E não posso outra amar senão aquela,
Que não é boa e nem sequer é bela!

Tanto amor teve, enfim, a recompensa:
A mulata, depois de percorrida
Uma carreira imensa
Que não podia ser menos abjeta,
Condoeu-se do poeta.

Hoje comem os dois à mesma mesa,
Hoje dormem os dois na mesma cama,
Não sei se ela é feliz, mas com certeza
Ele o é, porque a ama,
E a felicidade nada mais precisa.
Por uma coincidência, a poetisa
Casou-se com o caixeiro
De secos e molhados,
Que da mulata o amor logrou primeiro;
E creiam todos que são bem casados.

(convertido para o Português atual por José Feldman)

Luís da Câmara Cascudo (O bem se paga com o bem)

A onça caiu numa armadilha preparada pelos caçadores e, por mais que tentasse escapar, ficou prisioneira. Resignara-se a morrer, quando viu passar um homem. Chamou-o e lhe pediu que a libertasse.

— Deus me livre! — disse o transeunte. – Se você ficar solta, devorar-me-á.

A onça jurou que seria eternamente agradecida, então o homem desatou as cordas que seguravam a tampa do alçapão e ajudou a onça a deixar a cova. Logo que esta se encontrou livre, agarrou seu salvador por um braço, dizendo:

— Agora você é o meu jantar.

Debalde o homem pediu e rogou. A onça, finalmente decidiu:

— Vamos combinar uma coisa. Ouvirei a sentença de três animais. Se a maioria for favorável ao meu desejo, comê-lo-ei.

O homem aceitou e saíram os dois. Encontraram um cavalo, velho, doente, abandonado. A onça narrou o caso. O cavalo disse:

— Quando eu era moço e forte trabalhei e ajudei o homem a enriquecer. Qual foi o meu pagamento? Largaram-me aqui para morrer, sem um auxílio. O bem só se paga com o mal.

Adiante depararam com um boi. Consultado, opinou pela razão da onça. Contou sua vida de serviços ao homem e, quando julgava que ia ser recompensado, soube que fora vendido para ser morto e retalhado pelo açougueiro. O bem só se paga com o mal.

O homem, triste, acompanhava a onça que lambia o beiço, quando viram um macaco. Chamaram o macaco e pediram o seu parecer. O macaco começou a rir. A onça ia-se zangando:

— Por que tanta risada, camarada macaco?

— Não é fazendo pouco, — explicou o macaco — é que eu não acredito que o homem caísse na armadilha que ele mesmo preparou.

— Ela não caiu. Quem caiu foi eu. — contava a onça.

— Foi você? Então como é que esse homem fraquinho pôde libertar um bicho tão grande e forte como a camarada onça?

A onça, despeitada pelo macaco julgá-la mentirosa, foi até o alçapão e saltou para o fundo do fosso, gritando lá de baixo:

— Está vendo? Foi assim!

Mais que depressa o macaco empurrou o engradado de varas pesadas que fazia de tampa e a onça tornou a ficar prisioneira.

— Camarada onça! - sentenciou o macaco — O bem só paga com o bem. E como você fez o mal, receba o mal.

E se foi embora com o homem, deixando a onça para morrer de fome na armadilha.

Fonte> Luís da Câmara Cascudo. Contos Tradicionais do Brasil. Publicado originalmente em 1946. Disponível em Domínio Público. in Jangada Brasil, Abril 2011 - Ano XIII - nº 146 . acesso em 20 de dezembro de 2012. 

Recordando Velhas Canções (Mestre Sala dos Mares)


Compositores: João Bosco e Aldir Blanc

Há muito tempo nas águas da Guanabara
O dragão do mar reapareceu
Na figura de um bravo feiticeiro
A quem a história não esqueceu

Conhecido como o Navegante Negro
Tinha a dignidade de um mestre-sala
E ao acenar pelo mar
Na alegria das regatas

Foi saudado no porto
Pelas mocinhas francesas
Jovens polacas
E por batalhões de mulatas

Rubras cascatas jorravam das costas dos santos
Entre cantos e chibatas
Inundando o coração do pessoal do porão
Que a exemplo do feiticeiro gritava então

Glória aos piratas, às mulatas, às sereias
Glória à farofa, à cachaça, às baleias
Glória a todas as lutas inglórias
Que através da nossa história

Não esquecemos jamais
Salve o Navegante Negro
Que tem por monumento
As pedras pisadas do cais

Mas salve
Salve o Navegante Negro
Que tem por monumento
As pedras pisadas do cais

Mas faz muito tempo
* * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * * 

Navegação pela História: A Ode a João Cândido em 'Mestre Sala dos Mares'
A música 'Mestre Sala dos Mares', composta por João Bosco e Aldir Blanc, é uma homenagem a João Cândido, figura histórica brasileira conhecida como 'O Almirante Negro'. A letra faz referência à Revolta da Chibata, ocorrida em 1910, quando marinheiros se rebelaram contra os castigos físicos, então comuns na Marinha Brasileira. João Cândido liderou essa revolta, lutando pela dignidade e contra as condições desumanas a que eram submetidos os marinheiros, em sua maioria negros e pobres.

A canção utiliza metáforas náuticas e imagens festivas para descrever a figura de Cândido, comparando-o a um 'mestre-sala', personagem tradicional do carnaval brasileiro, que com sua elegância e liderança, guia a escola de samba. A menção às 'regatas' e ao aceno pelo mar simboliza a liderança e o respeito que Cândido conquistou. As 'rubras cascatas' podem ser vistas como uma representação do sangue derramado pelos revoltosos e a resistência dos oprimidos, que mesmo em condições adversas, encontravam motivos para celebrar a vida e a liberdade.

A música também faz uma crítica social ao mencionar que o 'Navegante Negro' tem como monumento apenas 'as pedras pisadas do cais', uma referência à falta de reconhecimento e valorização dos heróis populares na história oficial. A repetição do verso 'Mas faz muito tempo' no final da música sugere que, apesar dos anos, as lutas e injustiças sociais continuam presentes e não devem ser esquecidas.  https://www.letras.mus.br/joao-bosco/663976/

quinta-feira, 25 de julho de 2024

Edy Soares (Fragata da Poesia) 52: Infinitude

 

Mensagem na Garrafa = 127 =


por SILVANA DUBOC

Não se acostume com o que não o faz feliz, revolte-se quando julgar necessário.

Alague seu coração de esperanças, mas não deixe que ele se afogue nelas.

Se achar que precisa voltar, volte!

Se perceber que precisa seguir, siga!

Se estiver tudo errado, comece novamente.

Se estiver tudo certo, continue.

Se sentir saudades, mate-a.

Se perder um amor, não se perca!

Se o achar, segure-o!

O. Henry (Noite Árabe em Madison Square)

 A Carson Chalmers, no seu apartamento perto da praça, Phillips trouxe o correio da tarde. Além da correspondência de rotina, havia dois envelopes tendo o mesmo carimbo postal estrangeiro. 

Em um dos envelopes recém-chegados continha uma fotografia de mulher. O outro, uma carta interminável, em cuja leitura Chalmers se absorveu muito tempo. A carta era de outra mulher, e encerrava farpas envenenadas, adoçadas com mel e emplumadas com insinuações referentes à mulher fotografada.

Chalmers rasgou a carta numa centena de pedacinhos e pôs-se a gastar o seu caro tapete andando de cá para lá sobre ele. Assim age um animal selvagem quando é enjaulado, e assim age um homem enjaulado quando se vê perdido numa selva de dúvidas.

Aos poucos, a inquietação se acalmou. O tapete não era mágico. Podia viajar sobre ele dezesseis pés; três mil milhas estavam além do seu poder.

Phillips surgiu. Nunca entrava; surgia invariavelmente, como um gênio bem azeitado.

– Vai jantar aqui ou fora, senhor? — perguntou.

– Aqui — disse Chalmers — e dentro de meia hora.

Prestou ouvidos, sombriamente, às rajadas de janeiro, que faziam da rua deserta um trombone eólio.

– Espere — disse ao gênio em vias de desaparecer. — Quando vinha para casa, vi no fim da praça, uma porção de homens formando fila. Havia um trepado sobre não sei que, falando. Por que esses homens fazem fila, e por que estão ali?

– São gente sem teto, senhor — respondeu Phillips. — O homem sobre o caixote procura arranjar alojamento para eles passarem a noite. As pessoas vêm ouvi-lo e dão-lhe dinheiro. Então, ele encaminha a alguma casa e cômodos tantos homens quantos o dinheiro possa pagar. Por isso fazem fila; são encaminhados para os alojamentos na ordem em que chegam.

– À hora em que o jantar for servido — disse Chalmers —, traga um desses homens aqui. Jantará comigo.

– Q-q-qual ? - perguntou Phillips, gaguejando pela primeira vez em todo o seu tempo de serviço.

– Escolha a esmo — disse Chalmers. — Veja que esteja razoavelmente sóbrio… e uma certa dose de limpeza não será de desprezar. É tudo.

Era coisa inusitada Carson Chalmers bancar o califa. Mas naquela noite sentia a ineficácia dos antídotos convencionais para a melancolia. A fim de melhorar o humor, carecia de algo caprichoso e chocante, algo de caráter extravagante e arábico.

Em meia hora, Phillips cumpriu os seus deveres de escravo da lâmpada. Os garçons do restaurante embaixo haviam trazido o deleitoso jantar. A mesa, posta para dois, fulgurava festivamente à luz dos círios com pantalhas rosas.

E então Phillips, como se introduzisse um cardeal - ou mantivesse sob custódia um assaltante -, impeliu suavemente para dentro da sala o tiritante conviva, que fora arrancado à fila de hóspedes mendicantes.

É coisa comum chamar-se naufrágios a tais homens;  se a expressão for aqui usada, sê-lo-á no caso específico de um barco desgraçado pelo fogo. Alguma combustão bruxuleante iluminava ainda o casco à deriva. Sua face e suas mãos haviam sido recentemente lavadas — rito no qual Phillips insistira como homenagem póstuma às convenções trucidadas. A luz das velas iluminava o recém-vindo, verdadeira aberração no decoroso ambiente. Sua face era de um branco doentio, coberta até quase os olhos por um restolho que tinha o tom do pelame avermelhado de um setter irlandês. O pente de Phillips não alcançara dominar o cabelo castanho claro, todo emaranhado, que se havia conformado ao contorno de um chapéu usado permanentemente. Seus olhos estavam cheios de desesperançado e ardiloso desafio, como o que se vê nos olhos de um animal acossado pelos seus algozes. O casaco surrado estava abotoado até em cima, mas um quarto de polegada de colarinho redentor se mostrava acima dele. Suas maneiras demostraram ser singularmente isentas de embaraço quando Chalmers se ergueu de sua cadeira do outro lado da mesa circular.

- Se me conceder a honra — disse o anfitrião — ficarei encantado com a sua companhia ao jantar.

— Meu nome é Plumer — disse o conviva estradeiro, em tom áspero e agressivo — Se você for como eu, gostará de saber o nome da pessoa com quem vai jantar.

— Eu estava a pique de dizer — continuou Chalmers, algo apressadamente — que o meu é Chalmers. Quer sentar-se ali?

Plumer, o das plumas amarrotadas, dobrou os joelhos a fim de que Phillips empurrasse a cadeira para ele sentar-se. Tinha aparência de quem frequentara antes mesas servidas por garçons. Phillips apresentou-lhe as anchovas e as azeitonas.

— Bom! — latiu Plumer —, vai ser servido à francesa, pois não? Está bem, meu jovial soberano de Bagdá. Serei sua Xerazade até o fim, até os palitos. Você é o primeiro Califa de sainete genuinamente oriental que encontro em pleno inverno. Que sorte! E eu era o quadragésimo terceiro da fila. Acabara de contar quando o seu bem-vindo emissário veio convidar-me para o festim. Eu tinha tanta possibilidade de arranjar uma cama hoje à noite quanto teria de ser o próximo Presidente. Gostaria de ouvir a triste história da minha vida, Mr. Al-Rachide? Prefere um capítulo a cada prato, ou a edição integral com os charutos e o café?

— A situação não parece ser inédita para você — disse Chalmers com um sorriso.

— Pelo cavanhaque do profeta, não! — respondeu o conviva. — Nova Iorque está tão cheia de Haruns Al-Rachides de fancaria com Bagdá de pulgas. Por causa da minha história, já me vi detido, com um lauto jantar suspenso sobre a cabeça, mais de vinte vezes. Veja se é capaz de descobrir em Nova Iorque alguém que lhe dê algo por nada. Escrevem curiosidade e caridade com o mesmo jogo de letras de armar. A maioria lhe pagará um chop-suey; uns poucos bancarão os califas na base do filé mignon, mas uns e outros não o deixarão em paz enquanto não lhe arrancarem a autobiografia completa, com notas, apêndices e fragmentos inéditos. Oh, já sei o que fazer quando vejo vitualhas à minha frente na velha e querida Bagdá-Sobre-o-Metropolitano. Toco o asfalto três vezes com a fronte e preparo-me para contar patranhas em troca da janta. Declaro-me descendente do falecido Tommy Tucker, que era forçado a propiciar harmonia vocal em troca da sua pré-digerida sopa de trigo com spoopju.

— Não lhe peço que conte a sua história — disse Chalmers — Digo-lhe, com franqueza, que foi um capricho repentino que me fez mandar vir um estranho para jantar comigo. Asseguro-lhe que nada tem a recear da minha curiosidade.

— Ora, que bobagem! — exclamou o conviva, atacando entusiasticamente a sopa — Não me importo nem um pouco. Sou uma revista oriental bastante razoável, com capa vermelha e folhas cortadas quando o Califa viaja. Na verdade, nós, gente que não tem cama para dormir, cobramos uma espécie de tarifa sindical para coisas dessa espécie. Há sempre alguém querendo saber o que nos fez cair tão baixo na vida. Por um sanduíche e um copo de cerveja, digo-lhes que foi a bebida. Por um bife com couve e café, dou-lhes uma dose da história do impiedoso-senhorio-seis-meses-no-hospital-emprego-perdido. Um bom filé e uns cobres para a dormida merecem a tragédia de Wall Street da fortuna evaporada e da progressiva decadência. Este é o primeiro banquete de classe que me acontece. Não tenho pronta nenhuma história que lhe faça jus. Pois, Mr. Chalmers, já lhe digo o que vou fazer: vou contar-lhe, em troca, a verdade, se dispuser a escutá-la. Será mais difícil de acreditar do que as histórias inventadas.

Uma hora mais tarde o conviva árabe recostou-se na cadeira com um suspiro de satisfação, enquanto Phillips trazia o café e os charutos e tirava a mesa.

- Já ouvia falar alguma vez em Sherrard Plumer? — perguntou, com um sorriso estranho.

— Lembro-me do nome — disse Chalmers — Creio que era um pintor bastante proeminente há uns anos atrás.

— Cinco anos — respondeu o convidado. — Desde então, afundei como um pedaço de chumbo. Sou Sherrard Plumer. Vendi o último retrato que pintei por dois mil dólares. Depois disso, não arranjaria quem posasse nem para um quadro grátis.

— Que foi que aconteceu? — não pôde Chalmers deixar de perguntar.

— Engraçado — respondeu Plumer, sombriamente, — Nem eu mesmo entendi bem a coisa. Durante algum tempo, nadei como uma rolha. Meti-me na roda grã-fina e arranjei encomendas a torto e direito. Os jornais me chamavam o pintor da moda. Então começaram a acontecer coisas engraçadas. Sempre que eu terminava um quadro, vinham pessoas vê-lo e punham-se a cochichar e a entreolhar-se.

“Logo descobri qual era o transtorno. Eu tinha uma grande destreza para externar, no retrato, o caráter oculto da pessoa retratada. Não sei como o conseguia... pintava o que via... mas sei que me arruinou. Alguns dos meus modelos ficaram terrivelmente zangados e recusaram seus retratos. Pintei o retrato de uma senhora de sociedade, muito bela e muito popular. Quando estava pronto, o marido dela olhou-o com uma expressão peculiar no rosto, e na semana seguinte entrou com um pedido de divórcio.

“Lembro-me do caso de um conhecido banqueiro que posou para mim. Enquanto o retrato dele estava ainda em exibição no meu atelier, apareceu um conhecido seu para examiná-lo. 'Deus meu', disse, 'ele tem mesmo essa aparência?' Respondi que o retrato fora considerado extremamente fiel. 'Nunca reparara antes nessa expressão nos olhos dele', declarou o visitante. 'Acho que vou dar um pulo até a cidade e transferir o meu depósito bancário.' Foi até a cidade, mas o seu depósito bancário desaparecera, juntamente com o Senhor Banqueiro.

"Não demorou muito para me forçarem a abandonar o negócio. As pessoas não gostam de ver suas mesquinharias secretas mostradas num quadro. Podem sorrir, contorcer as feições, e enganá-lo, mas o retrato não pode. Não houve jeito de eu arranjar encomenda para nenhum outro quadro, e tive de desistir. Trabalhei durante algum tempo como desenhista de jornal , e depois para um litógrafo, mas o meu trabalho com ambos acabou resultando na mesma encrenca. Se eu desenhava sobre uma fotografia, meu desenho mostrava características e expressões que você não poderia encontrar na foto; acho, porém, que estavam no original, sem dúvida alguma. Os fregueses provocavam brigas incríveis, especialmente as mulheres, e nunca consegui manter-me muito tempo num emprego. Assim comecei a repousar a minha fatigada cabeça no seio da Boa Garrafa, em busca de consolo. E não tardou muito, estava eu na fila do leito grátis e praticando ficção oral, por esmolas, nos bazares alimentícios. Será que a expressão da verdade vos entedia, ó Califa? Posso mudar para o desastre de Wall Street, se preferir, mas isso requer uma bebedeira, e receio que não possa suportá-la depois deste excelente jantar.”

— Não, não — disse Chalmers, gravemente —, você me interessa muito. Todos os seus retratos revelavam algum traço desagradável, ou havia alguns que passavam indenes pela prova do seu singular pincel?

— Alguns? Sim — respondeu Plumer. — As crianças, geralmente, muitas mulheres, e um número razoável de homens. Nem todas as pessoas são más, sabe? Quando eram boas, os retratos saíam bons. Como já disse, não sei explicá-los, mas estou-lhe relatando fatos.

Sobre a escrivaninha de Chalmers jazia a foto que recebera naquele mesmo dia na mala estrangeira. Minutos mais tarde, pusera Plumer a trabalhar num esboço, a pastel, da fotografia. Ao cabo de uma hora, o artista ergueu-se e espreguiçou-se fatigadamente.

— Está pronto — bocejou. - Vai perdoar-me por ter demorado tanto. Interessei-me pelo trabalho. Deus, como estou cansado! Não arranjei cama na noite passada, sabe. Acho que vou dar-vos as boas noites agora, ó Comandante dos Fiéis!

Chalmers acompanhou-o até a porta e enfiou-lhe um punhado de notas na mão.

— Oh, aceito! — disse Plumer. — Isso está incluído na queda. Obrigado. Especialmente pelo esplêndido jantar. Vou dormir sobre penas, hoje à noite, e sonhar com Bagdá. Espero que tudo não se revele apenas um sonho, amanhã de manhã. Adeus, excelentíssimo Califa!

De novo pôs-se Chalmers a passear, inquieto, pelo tapete. Mas seu itinerário se afastava da mesa onde jazia o esboço a pastel tanto quanto o permitiam as dimensões do aposento. Duas, três vezes tentou aproximar-se da mesa, mas em vão. Podia enxergar o castanho, o dourado e o marrom das cores, mas havia em torno da mesa uma parede construída pelos seus temores, que o mantinha à distância. Sentou-se e procurou acalmar-se. Ergueu-se e tocou a sineta chamando Phillips.

— Há um jovem artista neste edifício — disse — um certo Mr. Reineman... sabe qual é o seu apartamento?

— Último andar, em frente, sir — respondeu Phillips.

— Vá até lá e peça-lhe por favor que venha até aqui por alguns minutos.

Reineman veio imediatamente. Chalmers apresentou-se.

— Mr. Reineman — disse —, há um pequeno quadro a pastel naquela mesa lá. Ficar-lhe-ia muito grato se pudesse dar-me a sua opinião quanto aos seus méritos artísticos como retrato.

O jovem artista adiantou-se até a mesa e apanhou a pintura. Chalmers voltou-lhe as costas, apoiando-se ao encosto de uma cadeira.

— Que... que acha dele? — perguntou, lentamente.

— Como desenho — respondeu o artista —, não tenho palavras para louvá-lo. É trabalho de um mestre, um mestre audacioso, fino e veraz. Intriga-me um pouco; faz anos que não vejo um pastel tão bom assim.

— O rosto, homem... o tema... o original... que diria dele?

— O rosto — disse Reineman — é a face de um dos mesmos anjos do Senhor. Posso perguntar-lhe quem...

- Minha mulher! — berrou Chalmers, voltando-se, correndo para o atônito artista, agarrando-lhe a mão e batendo-lhe nas costas. — Está viajando pela Europa. Leve esse esboço, rapaz, pinte o melhor quadro de sua vida, e deixe o preço comigo.

Fonte> O. Henry. Caminhos do Destino. Contos. Publicado originalmente em 1909. Disponível em Domínio Público.