sexta-feira, 16 de agosto de 2024

Vereda da Poesia = 85 =


Trova de São Paulo/SP

HUMBERTO RODRIGUES NETO

As mulheres são primores,
que Deus fez pensando em mim...
e ao perceber que eram flores,
plantou-as no meu jardim.
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Poema de Cachoeira do Sul/RS

JAQUELINE MACHADO

Sou

Sou a lenda de mim mesma...
A sombra de um devaneio do mundo.
Sou a luz de um sonho contido
guardado numa cápsula divina!
A criança que ainda está por nascer...
Sou tudo. 
E sou nada.
Pedacinho e plenitude.
Sou um planetinha invisível 
a deslumbrar a imensidão  do universo...
Dentro do Ventre 
da Grande Mãe Natureza 
a quem devo a vida! 
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Trova de São Francisco de Itabapoana/RJ

ROBERTO PINHEIRO ACRUCHE

Ao abrir minha janela,
inundada de luar,
mais forte a lembrança dela
fez a saudade apertar.
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Soneto de Santos/SP

CAROLINA RAMOS

Meu Pai...
(O soneto que ele não teve tempo de ler)
      
Quando te vejo, assim, domando a vida,
com a fibra invulgar do cavaleiro
que não teme as corcovas da subida,
nos reveses e quedas, altaneiro...
 
cabeça branca, face já curtida 
pelo tempo e inclemência do roteiro,
velho e valente, fronte sempre erguida,
que a rude estrada forja o caminheiro...
 
mesmo que eu queira te dizer o tudo
que na alma eu sinto, meu falar é mudo,
minha voz na garganta se retrai!

Assim... faço dos versos o ofertório...
do coração, um cálido oratório...
e neles rogo a Deus por ti, meu Pai! 
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Trova Premiada em São Paulo/SP, 2003

DOMITILLA BORGES BELTRAME
São Paulo/SP

Lembro o passado risonho,
e esta saudade se acalma,
quando teu vulto, no sonho,
acaricia minha alma...
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Poema de Balneário Camboriú/SC

PEDRO DU BOIS
PEDRO QUADROS DU BOIS
Passo Fundo/RS, 1947 – 2021, Balneário Camboriú/SC 

Futuro

Não havia o traço esbranquiçado
rasgando o firmamento, nem a britadeira
e o caminhão misturando cimento e areia:

manualmente transportados
manualmente contados
manualmente colocados
blocos de pedras
superpostos
sobrepostos
erguiam paredes
em pequenos arcos
de telhados

sobre o topo o homem
sonhava traços de fumaça
cortando o firmamento.
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Trova Popular

Menina você me espera,
deixa correr esta sorte,
não temas, que serei firme
até na hora da morte.
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Soneto de de Montanha/ES

LINDA LACERDA

Soneto da flor da infância

 Eu me lembro, eu me lembro, doce perfume da flor!
 Brancas gotas perfumadas e tinham cheiro de amor...
 Inebriavam as noites, da minha infância perdida,
 Uma cascata verde e branca no verde da minha vida...

 Lua serena no céu, a embranquecer minha ruazinha,
 Sem saber que o jasmineiro por me ver assim sozinha,
 Eu menina inocente, a me embalar em seus galhos,
 Flores lançava aos meus pés, qual fina colcha de retalhos... 

 Foram-se meus verdes anos, cirandas e brincadeiras,
 A doce lembrança da infância, da juventude que passou...
 Joia que o tempo levou em leves asas ligeiras...

 De menina me fiz mulher, mas na memória ainda há dor
 Da doce lembrança dos dias, das minhas tardes trigueiras
 Quantas saudades eu sinto, meu jasmineiro em flor!
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Trova do Rio de Janeiro/RJ

LUIZ POETA
LUIZ GILBERTO DE BARROS

Aquele que se disfarça,
quando vai se procurar,
tem a farsa por comparsa
da farsa do próprio olhar.
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Poema do Ceará

SIMPLÍCIO PEREIRA DA SILVA

Galope por Dentro do Mato

Companheiro, eu do mar não conheço nada, 
     Nunca fui à praia e menos ao banho, 
     Pois o mar é um lago pra mim tão estranho, 
     Que parece até um mistério de fada... 
     Eu gosto bastante é de uma caçada, 
     Lá no meu sertão, muito embora que ingrato! 
     Pra você não pensar que estou com boato: 
     Uma meia hora vamos pelejar...
     Pegue lá seu peixe por dentro do mar, 
     Que vou caçar peba por dentro do mato.

No sertão, à caçada, eu fui certo dia, 
     Num mato fechado, bem desconhecido, 
     Mas eu, na caçada, fui meio atrevido; 
     Chegando no mato, o sol já pendia ... 
     Tinha onça por praga, e eu não sabia; 
     Saí pisando devagar no sapato; 
     Senti um mau cheiro, pensei que era gato. 
     Quando vi a onça e a onça me viu: 
     O corpo tremeu e meu rifle caiu... 
     Foi carreira feia por dentro do mato!
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Trova Humorística de Salto/SP

GASPARINI FILHO

“Esse biquíni agarrado...
Meu bem, o que aconteceu?
– Foi na água que, molhado,
rapidinho se encolheu...
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Soneto do Rio de Janeiro/RJ

JORGE DE LIMA
JORGE MATEUS DE LIMA
União dos Palmares/AL (1893 — 1953) Rio de Janeiro/RJ

Velho tema, a saudade

Quem não a canta? Quem? Quem não a canta e sente?
— Chama que já passou mas que assim mesmo é chama...
A Saudade, eu a sinto infinda, confidente.
Que de longe me acena e me fascina e chama...

Mágoa de todo o mundo e que tem toda gente:
Uns sorrisos de mãe... uns sorrisos de dama...
..Um segredo de amor que se desfaz e mente...
Quem não os teve? Quem? Quem não os teve e os ama?

Olhos postos ao léu, altívagos, à toa,
Quantas vezes tu mesmo, a cismar, de repente
Te ficaste gozando uma saudade boa?

Se vês que em teu passado uma saudade adeja,
— Faze que uma saudade a ti seja o presente!
— Faze que tua morte uma saudade seja!
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Trova de Bandeirantes/PR

LUCÍLIA ALZIRA TRINDADE DE CARLI

Foste brisa mansa, leve
e um vendaval, na paixão...
Deixaste, pós vida breve,
as marcas de um furacão!
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Spina de São Paulo/SP

ARTUR JOSÉ CARREIRA

Mudos

Encerra por aqui 
Todo aquele vão 
Entre eles, nós.

Pedaço sem farpas, apenas riscos
por toda superfície ainda áspera...
Nada importa, pessoas todas sós,
talvez, em busca por companhias 
antes que, afônicas, percam voz!
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Trova de São Tomé-Açu/PA

JAIR ALMEIDA SALES

A Trova é uma luz pequena,
de clarear tão profundo,
que quando surge na cena
acende as paixões do mundo.
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Soneto Mineiro 

ALPHONSUS DE GUIMARAENS
AFONSO HENRIQUE DA COSTA GUIMARÃES
Ouro Preto, 1870 – 1921, Mariana

Soneto da defunta formosa

Temos saudade, pálida formosa,
De tudo quanto o pôr-do-sol fenece:
Ou seja o som final de extrema prece,
Ou seja o último anseio de uma rosa...

E mais ligeiramente a gente esquece
Uma hora que a alma de carinhos goza,
Que de ter visto, em roxa luz saudosa,
Uma imperial tulipa que adoece...

Um lírio doente no caulim de um vaso
Faz-nos lembrar um luar em pleno ocaso
Morrendo ao som das últimas trindades...

E nem eu sei, amor, por que perguntas,
Tu que és a mais formosa das defuntas,
Se eu de ti hei de ter loucas saudades.
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Trova Premiada em São Paulo/SP, 2003

ERCY MARIA MARQUES DE FARIA
Bauru/SP 

Às investidas do mal
murmure a prece com calma,
pois Deus escuta afinal
melhor, as súplicas da alma...
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Poema de Santiago de Chuco/Perú

CÉSAR VALLEJO 
1892 – 1938, Paris/França

Os Anéis Fatigados

Há ânsias de voltar, de amar, de não ausentar-se,
e há ânsias de morrer, combatido por duas
águas unidas que jamais hão de istmar-se.

Há ânsias de um beijo enorme que amortalhe a Vida,
que acaba na África de uma agonia ardente,
suicida!

Há ânsias de... não ter ânsias, Senhor,
a ti aponto-te com o dedo deicida:
há ânsias de não ter tido coração.

A primavera volta, volta e partirá. E Deus,
curvado em tempo, repete-se, e passa, passa
carregando a espinha dorsal do Universo.

Quando as têmporas tocam seu lúgubre tambor,
quando me dói o sonho gravado num punhal,
há ânsias de ficar plantado neste verso!
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Trova de Maringá/PR

A. A. DE ASSIS

“Deixe-o que faça e aconteça”, 
diz a vovó com carinho... 
E eis que de ponta-cabeça 
vira-lhe a casa o netinho!... 
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Pantun de Caicó/RN

PROFESSOR GARCIA

Pantun do fraterno abraço

TROVA TEMA:
O abraço meigo e fraterno,
refletindo nitidez,
no retrato fez eterno
tudo o que o tempo desfez.
Hélio Alexandre 
Natal/RN

PANTUN:
Refletindo nitidez,
guardo ainda por lembrança,
tudo o que o tempo desfez
nesta foto de criança,

Guardo ainda por lembrança,
a paz dos nossos perfis,
nesta foto de criança
que tanto nos fez feliz.

A paz dos nossos perfis,
está na fotografia
que tanto nos fez feliz
nas marcas de cada dia.

Está na fotografia,
A expressão do amor eterno,
nas marcas de cada dia,
o abraço meigo e fraterno.
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TROVA DE JOAÇABA/SC

MIGUEL RUSSOWSKY
MIGUEL KOPSTEIN RUSSOWSKY
Santa Maria/RS, 1923 – 2009, Joaçaba/SC

Quanto mais o tempo avança
mais eu fico a perceber.
que a saudade é uma lembrança
que se esquece de morrer. 
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Hino de Manaus/AM

Dentre a pompa e real maravilha
Desses belos e grandes painéis
Toda em luz, como um sol surge e brilha
A cidade dos nobres Barés

Grande e livre, radiante e formosa
Tem o voo das águias reais
E eu subir, a subir majestosa
Já nem vê suas outras rivais

Quem não luta não vence, que a luta
Pelo bem é que faz triunfar!
Reparai: O clarim já se escuta!
É a fama que vem nos saudar!

Aos pequenos e aos bons, entre flores
Agasalha e se esquece dos maus
Ninguém sofre tormentos e dores
Nesta terra dos nobres Manaós

Todo o povo é feliz, diz a História
Quando se vê entre gozos sem fim
O progresso passara junto à glória
Em seu belo e dourado coxim!
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Trova do Rio de Janeiro/RJ

COLBERT RANGEL COELHO
Pitangui/MG (1925 – 1975) Rio de Janeiro/RJ

Esperança: o nosso ninho,
pobre, sim... mas com bonança.
Eu e tu... Nosso filhinho...
Ah, meu Deus, quanta esperança!
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Quadrão à Beira Mar* de Ipueiras/CE

DALINHA CATUNDA
MARIA DE LOURDES ARAGÃO CATUNDA

O sol empalidecendo
Ondas subindo e descendo
Nossa paixão acendendo
E o barco a sacolejar.
No balanço do veleiro
Um amor aventureiro
Vivi com meu timoneiro
No quadrão à beira-mar.
“Beira mar, beira mar,
O quadrão só é bonito
Quando é feito a beira mar”
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* De todos os gêneros de poesia popular e cantoria, o Quadrão, que tem a terminação das suas estâncias sempre com o estribilho da sua denominação, tem sido aquele estilo que talvez tenha mais sofrido alterações e adaptações na sua estrutura geral ao longo do tempo. Originariamente, os Quadrões eram compostos em estrofes de oito versos setessílabos, onde rimavam o primeiro com o segundo e o terceiro versos; o quarto com o oitavo; e o quinto verso com o sexto e o sétimo.
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Trova de Campo Belo/MG

ORLANDO CAVALCANTI DE ALBUQUERQUE

Neste mundo de ironias
Deus me deu a recompensa.
- As minhas horas vazias
cheias da tua presença.
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Fábula em Versos da França

JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry, 1621 – 1695, Paris

O leão doente

Um leão vendo-se enfermo,
Passa aviso a seus vassalos
De que à vida vai pôr termo,
E que intenta aconselhá-los
Sobre a regência futura,
Dar-lhes beija-mão, e honrá-los.

Dos leões à fé lhes jura
Que trata bem qualquer fera
Que o visita e que o procura:
Porém na furna as espera,
E quando alguma entrar ousa,
Logo a mata e dilacera.

Eis uma esperta raposa
Para, e diz, sem que entre lá:
«Xau! Que eu observo uma coisa!
Pegadas mil aqui há;
Mas para lá todas vão,
E nenhuma para cá;

Saúde, senhor Leão!
Quero-me à glória eximir
De beijar-lhe a régia mão;
Porque jurei jamais ir
A qualquer casa ou lugar,
Vendo só por onde entrar,
E não por onde sair».

Foi reflexão mui sabida
Esta que fez a raposa;
Que é loucura desmedida
Entrarmos em qualquer coisa
Sem ver se temos saída.
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Trovador Homenageado

Rei da Trova
ADELMAR TAVARES 
ADELMAR TAVARES DA SILVA CAVALCANTI
Recife/PE, 1888 – 1963, Rio de Janeiro/RJ

1
A imagem de nossas almas
está nas águas profundas,
quanto mais tristes, mais calmas;
quanto mais calmas, mais fundas.
2
É nossa alma uma criança,
que nunca sabe o que faz.
Quer tudo que não alcança,
quando alcança, não quer mais.
3
Eu vi o rio chorando,
quando te foste banhar,
por não poder, te banhando,
dar-te um abraço, e parar...
4
O laço de fita preta
dos teus cabelos, faceira,
parece uma borboleta
pousada numa roseira…
5
Onde anda o corpo, é verdade,
vai a sombra pelo chão...
É assim também a saudade,
a sombra do coração.
6
Os búzios guardam das águas
do mar, os fundos gemidos.
- Assim fossem minhas mágoas,
guardadas nos teus ouvidos...
7
Quando a trova nos transmite
seu feitiço singular,
a gente lê, e repete,
e depois, fica a pensar...
8
Quando eu morrer, levo à cova
dentro do meu coração,
o suspiro de uma trova,
e o gemer de um violão.
9
Que tens tu, que és tão sombrio,
e hoje a rir, alegre, assim?...
- Mal sabem que só me rio,
porque riste para mim.
10
Saudade - doce transporte
da alma adejante e ferida...
- É viver dentro da morte!
- É morrer dentro da vida!
11
Todo rio na corrente,
busca um lago, um rio, um mar...
Mas o destino da gente,
quem sabe onde vai parar?
12
Vou vivendo a minha vida,
como Deus quer e consente.
- Sou como a folha caída
levada pela corrente...

Recordando Velhas Canções (A Conquista do Ar)


Compositor: Eduardo das Neves (Rio de Janeiro/RJ, 1874-1919)

A Europa curvou-se ante o Brasil 
E clamou “parabéns” em meio tom. 
Brilhou lá no céu mais uma estrela: 
Apareceu Santos Dumont. 

Salve, Estrela da América do Sul, 
Terra, amada do índio audaz, guerreiro! 
Santos Dumont, um brasileiro!

A conquista do ar que aspirava 
 A velha Europa, poderosa e viril, 
Quem ganhou foi o Brasil! 

Por isso, o Brasil, tão majestoso, 
Do século tem a glória principal: 
Gerou no seu seio o grande herói 
Que hoje tem um renome universal. 

Assinalou para sempre o século vinte 
O herói que assombrou o mundo inteiro: 
Mais alto que as nuvens. 
Quase Deus, Santos Dumont – um brasileiro. 
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A Conquista do Ar: Um Tributo a Santos Dumont

A música "A Conquista do Ar" de Eduardo das Neves é uma homenagem ao pioneiro da aviação, Alberto Santos Dumont, um dos maiores heróis brasileiros. A letra celebra a conquista de Dumont ao conseguir voar, um feito que não só marcou a história do Brasil, mas também a da humanidade. A Europa, que era vista como o centro do progresso e da inovação tecnológica, se curvou diante do Brasil, reconhecendo a importância do feito de Dumont. A música exalta o orgulho nacional e a glória de ter um brasileiro como protagonista de um dos maiores avanços do século XX.

Eduardo das Neves utiliza uma linguagem poética para enaltecer Santos Dumont, referindo-se a ele como uma estrela que brilhou no céu e como um herói quase divino. A letra destaca a importância do feito de Dumont não apenas para o Brasil, mas para o mundo inteiro, rompendo barreiras e desafiando o medo do desconhecido. A conquista do ar é vista como um marco que assinalou o século XX, colocando o Brasil em uma posição de destaque no cenário internacional.

A música também faz uma referência ao orgulho nacional, ao mencionar que o Brasil gerou em seu seio o grande herói que assombrou o mundo inteiro. A figura de Santos Dumont é elevada a um patamar quase mítico, sendo comparado a um deus que voa mais alto que as nuvens. A letra transmite uma mensagem de admiração e respeito pelo pioneiro da aviação, celebrando sua contribuição para a humanidade e reforçando o sentimento de orgulho e patriotismo brasileiro.

O feito de Alberto Santos Dumont, contornando a Torre Eiffel em seu balão n° 6, no dia 19.10.1901, inspirou diversas composições, entre as quais a marcha "A Conquista do Ar", sucesso de 1902. Uma criação de Eduardo das Neves, a canção glorifica o inventor da aviação em versos desbragadamente ufanistas, que o público da época adorou ("A Europa curvou-se ante o Brasil / e clamou parabéns em meigo tom / brilhou lá no céu mais uma estrela / apareceu Santos Dumont").

Palhaço de circo, poeta, compositor e principalmente cantor, Eduardo das Neves foi o nosso artista negro mais popular no início do século. Pai do também compositor Cândido das Neves, deixou modinhas, lundus, cançonetas, sendo de sua autoria os versos em homenagem ao encouraçado Minas Gerais, feitos sobre a melodia da valsa "Vieni sul Mar", do folclore veneziano.

Aliás, ainda sobre a mesma melodia, o radialista Paulo Roberto escreveria, em 1945, nova letra exaltando o estado mineiro ("Lindos campos batidos de sol / ondulando num verde sem fim..."), mantendo o refrão popular ("Ó Minas Gerais / ó Minas Gerais / quem te conhece não esquece jamais...").

No auge da carreira, Dudu das Neves apresentava-se nos palcos de smoking azul e chapéu de seda. 

A conquista do ar (marcha, 1902) - Letra e música do cantor Eduardo das Neves

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

A. A. de Assis (Jardim de Trovas) 53

 

Hans Christian Andersen (As cegonhas)

Era uma vez uma cegonha que construiu o ninho no teto da última casa da aldeia. A mãe estava no ninho com seus quatro filhotes, que espichavam a cabeça, com seus bicos escuros - porque ainda não tinham ficado vermelhos.

Perto deles estava o pai cegonha, na beirada do telhado, duro e teso, pousado em um pé só, para ter ao menos alguma preocupação, enquanto montava guarda. Parecia até feito de madeira, de tão quieto e duro que estava! E pensava lá consigo:

- É certamente grande honra para minha mulher ter uma sentinela de guarda ao seu ninho! As pessoas não sabem que sou o marido dela, e pensam que tive ordem de vir fazer sentinela aqui... Isto é muito aristocrático!

E continuava parado, sobre uma perna só,

Na rua brincava um bando de crianças; quando viram a cegonha, um dos meninos mais atrevidos começou a cantar a velha cantiga das cegonhas, e os outros o acompanharam imediatamente. Mas cada um cantava os versinhos como lhe vinham à cabeça:

"Cegonha, cegonha da perna comprida!
Vai para o teu ninho, cuidar dos filhotes:
Um deles agora vai ser enforcado;
O outro em seguida será esfolado;
O outro num tiro vai perder a vida;
E o derradeiro dos teus pensamentos
Vai ser no espeto varado e assado!"

- Mas escutem o que aquelas crianças estão cantando! - disseram os filhotes da cegonha - dizem que nós vamos ser enforcados e assados no espeto!

- Ora! Não façam caso deles! - retrucou a mãe cegonha. - Se vocês não lhe derem ouvidos, não terão de que se incomodar.

Mas os rapazinhos continuavam a cantar, apontando com o dedo para as cegonhas, só um pequerrucho, chamado Peter, declarou que era um injustiça se divertirem assim à custa dos pobres animais e não tomou parte na brincadeira.

A mãe cegonha consolava os filhos:

- Não se importem com eles, não se inquietem assim. Olhem para o papai, como está ali tão quieto, e por sinal, em uma perna só!

- Mas nós estamos com tanto medo... - disseram os pequenotes, encolhendo a cabeça para dentro do ninho.

No outro dia, quando as crianças voltaram e  viram as cegonhas, começaram a velha cantiga:

" Um deles agora vai se enforcado;
E o derradeiro dos teus pequenotes
Vai ser no espeto varado e assado!"

- Então nós vamos ser enforcados e assados? - perguntaram os filhotes.

- Nada disso ! Não! - respondeu a mãe. - Vocês vão mas é aprender a voar; eu vou exercitá-los. Depois iremos aos campos, fazer uma visita às rãs, elas nos cumprimentarão lá dentro d'água, e cantarão: Coaxe! Coaxe! Coaxe!...e nós as comeremos. Será um excelente petisco, acreditem-me!

- E depois? - indagaram os filhotes.

- Depois todas  as cegonhas da terra se reunirão em assembleia e começarão as manobras do outono. E vocês todos devem saber voar muito bem, porque isso é muito importante. O general atravessa com o bico todos os que não sabem voar, por isso devem tratar de aprender alguma coisa nos ensaios.

- Então, afinal acabaremos todos no espeto, como disseram os rapazes, e...oh! Lá estão eles cantando outra vez aquilo.

- Ouçam-me a mim, e não aos rapazes. - disse a mãe cegonha. - Depois da grande revista, voaremos para longe daqui, para os países quentes, por sobre montes e florestas. Iremos ao Egito, onde há três casas de pedra, cujo topo alcança as nuvens - chamam-lhes Pirâmides, e são mais velhas do que uma cegonha pode imaginar. E naquela mesma terra há um rio que transborda das margens, e vira o país inteiro em um lodaçal. então nós entramos na lama e comemos rãs.

- O...oh! ...- exclamaram todos os pequerruchos.

- É um lugar verdadeiramente delicioso! A gente pode comer o dia inteiro, e enquanto estamos passando bem por lá, aqui neste país não há uma só folha verde nas árvores! É tão frio aqui que até as nuvens se transformaram em massa geladas e caem em farrapos.

Ela queria falar na neve, mas  não sabia explicar-se melhor.

- E aqueles rapazes malvados também vão ficar em uma massa gelada? E cair em farrapos? - perguntou o filhote mais novo.

- Não; eles não ficam em massa gelada, mas não andam muito longe disso; e são obrigados a ficar apatetados em uma sala triste, enquanto vocês estarão voando em terras estrangeiras, onde há flores e sol quente.

Passou-se algum tempo, os filhotes tinham crescido tanto que já podiam ficar de pé no ninho e olhar em roda. E todos os dias o pai cegonha trazia lindas rãzinhas, cobrinhas, e toda a espécie de manjares do agrado das cegonhas, que podia encontrar. Divertido era ver todas as brincadeiras que ele fazia para distraí-los! Metia a cabeça debaixo da calda, depois batia o bico como se fosse uma pequena matraca, e depois contava histórias, toda elas relativas aos brejos e pauis.

- Vamos, agora devem aprender a voar! - disse um dia a mãe cegonha.

E os quatro nenês se viram obrigados a ir para o beiral. Mas como cambaleavam! Tentaram equilibra-se com as asas, mas quase caíram ao chão.

- Olhem para mim! - disse a mãe. - É assim que devem manter a cabeça! E ponham os pés deste jeito!" Assim! Um, dois! Um, dois! Um ,dois! Isto há de ajudá-los a vencer no mundo.

Ela fez um voo um pouco longo, e os filhotes deram um pequeno salto sem assistência, mas - bumba! Foram abaixo, direitinho, porque ainda tinham o corpo muito pesado.

- Eu não quero voar! - disse um, arrastando-se para o ninho. - Não me importo de ir para as terras quentes!

- Gostarias mais de ficar aqui, e ficar gelado no inverno, feito um bloco? E esperar que os rapazes te venham enforcar, queimar ou assar no espeto? Pois bem, então vou chamá-los já e já!

- Não , não! - disse o filhote, saltando outra vez para o teto, com os outros.

No terceiro dia já começaram a voar um pouco, e pensaram então que já podiam pairar no espaço, amparados nas asas, mas, quando tentaram a façanha, caíram e foram obrigados a bater as asas o mais que podiam. Os meninos tinha aparecido lá embaixo, cantando a sua canção

"Cegonha, cegonha, da perna comprida..."

- Nós não vamos voar para baixo e dar-lhes bicadas? - perguntaram os pequenos.

- Não; deixem os meninos- disse a mãe. - Escutem o que eu digo; isto é muito importante - um...dois...três! Agora vamos voar para a direita. Um...dois...três! Agora para esquerda, ao redor da chaminé. Foi muito bem! Este último golpe de asas foi tão lindo, e tão direito, que dou licença de voarem comigo amanhã para o brejo. Estão já aparecendo lá algumas famílias de cegonhas muito elegantes, e todas com seus filhos, quero que se veja que os meus são os mais bem-educados de todos, e recomendo que andem por lá com o devido grau de altivez, porque isso produz bom efeito e traz consideração.

- E não vamos nos vingar dos rapazes perversos?

- Ora! Deixemo-los gritar quanto quiserem. Vocês podem voar até as nuvens, e ir para a terra das Pirâmides, enquanto eles estão ficando gelados, e não veem uma só folhinha verde, nem tem uma maçã doce para comer.

- Sim, mas nós havemos de nos vingar! - cochicharam eles entre si.

E foram exercitar-se de novo.

De todos os meninos da rua o mais encarniçado em repetir a cantiga escarninha era o pequenote que a cantara no primeiro dia, e era tão pequeno, que mal teria seis anos. Os filhotes, porém, julgavam que ele havia de ter pelo menos cem, pois era maior que as cegonhas grandes. Mas - que sabem os filhotes de cegonha da idade das crianças, ou da gente grande? O certo é que tinham resolvido dirigir a sua vingança contra aquele rapazinho, porque fora ele o primeiro a cantar, e teimava sempre em motejar deles. Os filhotes estava muito irritados, e quanto mais cresciam menos paciência sentiam para aturar insultos e sua mãe viu-se afinal obrigada a prometer-lhes que seriam vingados, sim, mas somente no dia da partida.

- Precisamos ver primeiro como vocês se portam na revista geral, Se vocês não cumprirem seu dever, e o general tiver de espetá-los com o bico, então os rapazes terão razão de falar, pelo menos nesse ponto. Vamos pois esperar até as grandes manobras.

- Sim, a senhora vai ver! - disseram os filhotes.

E deram-se tanto trabalho, ensaiando todos os dias que chegaram a voar com muita elegância e leveza: era um prazer vê-los.

Chegara enfim o outono, tempo em que todas as cegonhas começam a reunir-se e partem afinal para os países quentes, deixando para trás o inverno. E que manobras! As avezinhas recém- empenadas receberam ordem de voar sobre florestas e aldeias, para ver se já sabiam voar direito, porque tinham uma longa viagem a fazer. Mas as jovens cegonhas deram tais provas de capacidade, que seu certificado rezava assim: " Voaram com maestria notável - com uma rã e uma cobra de prêmio." Era certamente prova palpável de que se saíram a contento; e podiam agora comer a rã e a cobra - e não perderam tempo em começar!

- Agora - diziam eles - à nossa vingança!

- Sim, certamente, - disse a mãe cegonha - e descobri qual há de ser a mais bela vingança. Sei onde fica a lagoa em que estão esperando todas as criancinhas humanas, até que as cegonhas as vão buscar, para levá-las a seus pais. Lá estão dormindo as criancinhas mais lindas do mundo, e sonhando sonhos tão suaves como jamais tornarão a sonhar no futuro. Todos os pais desejam muito um filhinho, e todas as crianças querem um irmãozinho. Ora, vamos agora voar para a lagoa e trazer um para cada uma das crianças que não cantaram aquele canto perverso, nem escarneceram das cegonhas.

- Mas o menino malvado, aquele menino feio, que foi o primeiro a cantar a cantiga - gritaram os filhotes - que vamos fazer dele?

- Há lá na lagoa um nenezinho que ficou sonhando, e não  acordou: ele está agora morto. Vamos levá-lo para a casa do menino mau e ele vai chorar, porque nós lhe levamos um irmãozinho morto. Mas para aquele menino bonzinho - vocês não se lembram dele? - aquele que disse que era uma pena escarnecer dos animais? Pois para esse vamos levar um irmão e uma irmã. E, como aquele menino se chama Peter, vocês todos ficarão com o nome de Peter, em honra dele.

E assim se fez. Desde então todas as cegonhas se chamaram Peter, e assim são chamadas até hoje.

Fonte> Hans Christian Andersen. Contos. Publicados originalmente entre 1835 – 1872. Disponível em Domínio Público