terça-feira, 20 de agosto de 2024

Vereda da Poesia = 89 =


Trova de Fortaleza/CE

SANTIAGO VASQUES FILHO
Teresina/PI, 1921 – 1992, Fortaleza/CE

Ante meus olhos tristonhos,
chorando minhas idades,
abro a cortina dos sonhos
num festival de saudades!
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Poema em Dupla de São Paulo/SP

SANDRA PERES 
LUIZ TATIT
 
Gramática

O substantivo
É o substituto do conteúdo

O adjetivo
É a nossa impressão sobre quase tudo

O diminutivo
É o que aperta o mundo
E deixa miúdo

O imperativo
É o que aperta os outros e deixa mudo

Um homem de letras
Dizendo ideias
Sempre se inflama

Um homem de ideias
Nem usa letras
Faz ideograma

Se altera as letras
E esconde o nome
Faz anagrama

Mas se mostro o nome
Com poucas letras
É um telegrama

Nosso verbo ser
É uma identidade
Mas sem projeto

E se temos verbo
Com objeto
É bem mais direto

No entanto falta
Ter um sujeito
Pra ter afeto

Mas se é um sujeito
Que se sujeita
Ainda é objeto

Todo barbarismo
É o português
Que se repeliu

O neologismo
É uma palavra
Que não se ouviu.
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Trova de Curitiba/PR

MARIO A. J. ZAMATARO

Todo dia um novo dia...
tramas do tempo que invento,
essa coisa que vicia...
O que fica é sentimento.
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Soneto de Niterói/RJ

VILMAR DE ABREU LASSANCE
(1915 – 2009)

Descansa, coração

Ausentei-me do amor - vou descansar.
Tudo cansa, afina, até o amor...
Dei demais, de mim mesmo, sem pensar,
e, agora, vou parar, para recompor

meu pobre coração que, sem cessar,
levou anos e anos num furor
de paixões, num querer sem fim, sem par,
num paroxismo que atingia à dor.

Hoje, vou descansar - fechei a porta
à última ilusão,  já quase morta,
que pretendia penetrar-me o peito:

disse "não", ao amor que retornou.
Ao amor que se foi e, hoje, voltou,
eu disse, num soluço: - "Não te aceito!"
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Trova Premiada em Salinópolis/PA, 2005

JAIME PINA DA SILVEIRA
São Paulo/SP

Não chores nunca, meu filho,
querendo no céu brilhar.
A estrela-do-mar, sem brilho,
é o brilho do próprio mar...
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Poema de Águeda/Portugal

MANUEL ALEGRE
(MANUEL ALEGRE DE MELO DUARTE)

Trova do vento que passa

Pergunto ao vento que passa
notícias do meu país
e o vento cala a desgraça
o vento nada me diz.

Pergunto aos rios que levam
tanto sonho à flor das águas
e os rios não me sossegam
levam sonhos deixam mágoas.

Levam sonhos deixam mágoas
ai rios do meu país
minha pátria à flor das águas
para onde vais? Ninguém diz.

Se o verde trevo desfolhas
pede notícias e diz
ao trevo de quatro folhas
que morro por meu país.

Pergunto à gente que passa
por que vai de olhos no chão.
Silêncio -- é tudo o que tem
quem vive na servidão.

Vi florir os verdes ramos
direitos e ao céu voltados.
E a quem gosta de ter amos
vi sempre os ombros curvados.

E o vento não me diz nada
ninguém diz nada de novo.
Vi minha pátria pregada
nos braços em cruz do povo.

Vi minha pátria na margem
dos rios que vão pró mar
como quem ama a viagem
mas tem sempre de ficar.

Vi navios a partir
(minha pátria à flor das águas)
vi minha pátria florir
(verdes folhas verdes mágoas).

Há quem te queira ignorada
e fale pátria em teu nome.
Eu vi-te crucificada
nos braços negros da fome.

E o vento não me diz nada
só o silêncio persiste.
Vi minha pátria parada
à beira de um rio triste.

Ninguém diz nada de novo
se notícias vou pedindo
nas mãos vazias do povo
vi minha pátria florindo.

E a noite cresce por dentro
dos homens do meu país.
Peço notícias ao vento
e o vento nada me diz.

Quatro folhas tem o trevo
liberdade quatro sílabas.
Não sabem ler é verdade
aqueles pra quem eu escrevo.

Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.

Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não.
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Trova Popular

Olhos pretos matadores,
cara cheia de alegria,
um beijo na tua boca
me sustenta todo dia.
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Soneto Potiguar

AUTA DE SOUZA
Macaíba/RN, 1876 – 1901, Natal/RN

Lágrimas

Eu não sei o que tenho... Essa tristeza
Que um sorriso de amor nem mesmo aclara,
Parece vir de alguma fonte amara
Ou de um rio de dor na correnteza.

Minh' alma triste na agonia presa,
Não compreende esta ventura clara,
Essa harmonia maviosa e rara
Que ouve cantar além, pela devesa.

Eu não sei o que tenho... Esse martírio,
Essa saudade roxa como um lírio,
Pranto sem fim que dos meus olhos corre,

Ai, deve ser o trágico tormento,
O estertor prolongado, lento, lento,
Do último adeus de um coração que morre...
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Trova do Rio de Janeiro/RJ

LUIZ POETA
Luiz Gilberto de Barros

Onde a rima é uma cor
abençoando a pintura,
o sonho de um trovador
pinta a tela com ternura.
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Poema de Novo Horizonte/SP

REGINA MÉRCIA
(REGINA MÉRCIA SENE SOARES)

Essa Felicidade?

Existe essa tal felicidade?
Essa pergunta faço com tristeza
Era só meu aquele amor
Não era a dois...
De repente a dor me surpreende
Por que um amor não correspondido?
Duvidas surgiram de que eu era...
Iludida, só o meu amor vivia
Sinto muita falta e sinto-me
Entregue aos medos e receios
Feliz fiquei ao perceber
Que estava amando...
Meu coração levava consigo
O aconchego de alguém...
Que havia chegado
Precipitando talvez o encontro
Com esse alguém que quisesse
Realmente me amar...
Só esperando o momento certo
Bem lá escondido no cantinho
Do coração cheio de desejo
Para nascer um grande amor…
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Trova Humorística de São Paulo/SP

THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA

Diz que quer dormir comigo,
em qualquer canto, a Gioconda...
Pra não ter esse "castigo",
comprei a cama... redonda!
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Soneto do Rio de Janeiro/RJ

JACINTO DE CAMPOS
Canavieiras/BA (1900 – ????) Rio de Janeiro/RJ

As duas palmeiras

Quando passo buscando a humana lida,
A alma tecida de ilusões tão várias,
Junto à velha choupana carcomida
Vejo duas palmeiras solitárias.

Uma já morta, outra reverdecida,
Num desmancho de palmas funerárias,
E ao som da harpa do vento a que tem vida,
Saudosa plange salmodias e árias.

— Ó tu, que me olvidaste no caminho,
Meu coração deixando como um ninho,
Sozinho e triste, ao vento balouçando...

A saudade me diz, como em segredo:
Que és a palmeira que morreu bem cedo,
E eu sou aquela que ficou chorando.
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Trova de Bandeirantes/PR

LUCÍLIA ALZIRA TRINDADE DE CARLI

Segue avessa à fantasia
e, embora nem sempre agrade,
é presença a cada dia:
- nossa própria realidade!
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Quadrão à Beira Mar

NEZITE ALENCAR
Distrito de Quixariú/Campos Sales/CE

Pelo mar, entre os abrolhos,
Lembro o verde dos seus olhos,
As lágrimas me descem aos molhos,
Pois é grande o meu penar:
Um dia um barco ligeiro
Levou meu amor primeiro
Vestido de marinheiro
No quadrão à beira mar.
“Beira mar, beira mar,
O quadrão só é bonito
Quando é feito à beira mar”.
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Trova de Campinas/SP

ARTHUR THOMAZ

Em um lugar no passado...
Hoje, ao ver nosso retrato
esquecido e amarelado,
eu culpo o destino ingrato.
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Soneto do Rio de Janeiro/RJ

OLEGÁRIO MARIANO
(OLEGÁRIO MARIANO CARNEIRO DA CUNHA)
Recife/PE (1889 – 1858) Rio de Janeiro/RJ

O meu retrato

Sou magro, sou comprido, sou bizarro,
Tendo muito de orgulho e de altivez.
Trago a pender dos lábios um cigarro,
Misto de fumo turco e fumo inglês.

Tenho a cara raspada e cor de barro.
Sou talvez meio excêntrico, talvez.
De quando em quando da memória varro
A saudade de alguém que assim me fez.

Amo os cães, amo os pássaros e as flores.
Cultivo a tradição da minha raça
Golpeada de aventuras e de amores.

E assim vivo, desatinado e a esmo.
As poucas sensações da vida escassa
São sensações que nascem de mim mesmo.
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Trova Premiada em Salinópolis/PA, 2005

GÉRSON CÉSAR DE SOUZA
São Mateus do Sul/PR

Parece que estão brigando
mas, na verdade, é uma farra:
casal de siris dançando
vira um tal de agarra "a garra"...
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Poema de Dom Pedrito/RS

SIMONE BORBA PINHEIRO

Brincando de ser mulher

Brincando de ser mulher,
aquela mulher-menina
sem saber bem o que quer,
segue a sua triste sina...

Á quem pagar o seu preço,
ela cede os seus favores.
Pobre mulher-menina,
desgraçados os senhores.

De shortinho bem curtinho
na esquina a caminhar,
acena a pobre menina
para quem de carro parar.

Mal sabe a pobre menina
que o tempo vai passar,
e um dia, sem que perceba,
se a doença não lhe pegar,
nas mãos de algum cretino,
a morte vai encontrar.
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Trova de Maringá/PR

A. A. DE ASSIS

Antiguidade, doutor, 
é coisa muito engraçada: 
algo que cresce em valor 
quando não vale mais nada...
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Pantun de Caicó/RN

PROFESSOR GARCIA

Pantun de elevada prece

TROVA TEMA:
Na aurora de cada dia,
a Deus elevo uma prece;
- Pai, enchei de poesia
nosso povo que padece!
Joamir Medeiros 
Natal/RN

PANTUN:
A Deus elevo uma prece;
ó Pai, salvai por favor,
nosso povo que padece
por falta de pão, de amor,

Ó Pai, salvai por favor,
os excluídos do afeto,
por falta de pão, de amor,
vivem sem lar e sem teto.

Os excluídos do afeto,
não têm voz, nem têm razão,
vivem sem lar e sem teto
ante a cruel exclusão.

Não têm voz, nem têm razão,
por berço, a melancolia,
ante a cruel exclusão
na aurora de cada dia.
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Trova da Princesa dos Trovadores

CAROLINA RAMOS
Santos/SP

Ante a lua, o mar se alteia,
tenta alcança-la na altura,
mas é nos braços da areia,
que encontra a paz que procura!...
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Hino de Dourados/MS

Sob um céu de alvorada fagueira,
Surge a terra de amor e afeto;
Eis Dourados, vibrante, altaneira,
Nosso berço, rincão predileto.

Sob um céu de alvorada fagueira,
Surge a terra de amor e afeto;
Eis Dourados, altaneira,
Nosso berço, predileto.
Eis Dourados, altaneira,
Nosso berço, predileto.

Estribilho: (2 vezes)
Eis Dourados cintilante
De labor e anseios mil
No futuro confiante
Lindo Oásis do Brasil.
Eis Dourados cintilante
De labor e anseios mil
Joia brilhante - do Brasil

Seu passado vai longe com glória
Da esperança foi sempre uma flor,
O seu nome desponta na história
Com beleza, com paz e amor!

Seu passado vai longe com glória
Da esperança foi sempre uma flor,
O seu nome, na história
Com beleza - Paz e amor!
O seu nome, na história
Com beleza - Paz e amor!

Estribilho: (2 vezes)
Eis Dourados cintilante
De labor e anseios mil
No futuro confiante
Lindo Oásis do Brasil.
Eis Dourados cintilante
De labor e anseios mil
Joia brilhante - do Brasil
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Trova de São Vicente/SP

JOSÉ AUGUSTO RITTES 
(1914-2009)

Contemplo, à luz da saudade,
 a meia cama vazia...
 Outrora, nessa metade,
 meu mundo inteiro cabia.
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Poema de Paços de Ferreira/Portugal

JOSÉ CARLOS DE VASCONCELOS
(JOSÉ CARLOS TORRES MATOS DE VASCONCELOS)

Os Versos Guardados

Tímido previdente avaro
guardei os versos
ano após ano

como lençóis de seda fina
ou anel de noivado

como guarda o pobre
as migalhas que não come

como guarda a menina
a boneca antiga

Tímido previdente avaro
guardei os versos
ano após ano

pelo tempo fora
o tempo todo

caminhando descalço
sobre um rio
de lume

ou lodo
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Trova de São Simão/SP

THALMA TAVARES

Se tenho um amigo ao lado,
sinto menos solidão...
E me acho mais confortado
se este amigo for meu cão.
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Fábula em Versos da França

JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry, 1621 – 1695, Paris

O Sol e o Vento

Entraram em contenda o Sol e o Vento
Sobre qual tem mais força, mais alento.
Passava nesse tempo um caminhante,
Assentaram que havia ser triunfante
O que tivesse forças, que lhe bote
Dos ombros para fora o seu capote.

Fez o Vento tal força, que mostrava
Que já por esses ares lhe levava,
Mas o dono às mãos ambas o sustenta;
Porém foi tal a força da tormenta,
Que ele já de sustê-lo desanima,
E, enrolando-se bem, deitou-se em cima.
O Vento andou de roda, deu-lhe um jeito,
Deu-lhe outro; porém tudo sem efeito.

Entrou na empresa o Sol, mas sem violência,
Antes com mansidão e com clemência:
No meio de uma tal serenidade
Os raios tinham tanta atividade
Que já os não sofria o passageiro.
Chegou-se a um sombrio castanheiro,
O capote depôs, que o martiriza,
A veste, e fica em mangas de camisa:
Com assombro do Vento furioso,
Ficou por manso o Sol vitorioso.

Recordando Velhas Canções (Se eu morresse amanhã de manhã)


(Samba-Canção, 1953)

Compositor: Antônio Maria 

De que serve viver tantos anos sem amor
Se viver é juntar desenganos de amor
Se eu morresse amanhã de manhã
Não faria falta a ninguém
Eu seria um enterro qualquer
Sem saudade, sem luto também
Ninguém telefona, ninguém
Ninguém me procura, ninguém
Eu grito e um eco responde: "ninguém!"
Se eu morresse amanhã de manhã
Minha falta ninguém sentiria
Do que eu fui, do que eu fiz
Ninguém se lembraria
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A Solidão e a Efemeridade da Vida em 'Se Eu Morresse Amanhã De Manhã'

A música 'Se Eu Morresse Amanhã De Manhã', de Antônio Maria, é uma reflexão profunda sobre a solidão e a efemeridade da vida. A letra aborda a sensação de insignificância e a falta de conexão emocional com outras pessoas. O eu lírico questiona o valor de viver muitos anos sem amor, sugerindo que a vida sem afeto é repleta de desenganos e desilusões. Essa perspectiva melancólica é reforçada pela ideia de que sua morte não faria falta a ninguém, destacando um sentimento de invisibilidade e abandono.

Antônio Maria, conhecido por suas composições que frequentemente exploram temas de amor e tristeza, utiliza uma linguagem simples e direta para expressar a dor da solidão. A repetição da palavra 'ninguém' enfatiza a ausência de pessoas que se importem com o eu lírico, criando uma atmosfera de desespero e desamparo. A imagem de um enterro sem saudade ou luto também reforça a ideia de que sua existência não tem impacto significativo na vida de outras pessoas.

A música também pode ser vista como uma crítica à superficialidade das relações humanas e à falta de empatia na sociedade. O eu lírico sente que suas ações e sua presença não são valorizadas, o que leva a uma reflexão sobre o sentido da vida e a importância de se sentir amado e lembrado. A canção, portanto, não é apenas um lamento pessoal, mas também um convite à introspecção sobre como tratamos e valorizamos as pessoas ao nosso redor.                              https://www.letras.mus.br/antonio-maria/282880/ 

segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Daniel Maurício (Poética) 74

 

Lima Barreto (A chegada)

Quando o senador Bastos voltou de Poços de Caldas, onde esteve a espiar a maré dos acontecimentos e a ler pela décima segunda vez As democracias da América, de García Calderón — o evangelho da ditadura militar — e chegou à Cascadura, esperou que os seus amigos o fossem buscar acompanhados da banda de música da linha de tiro 69.

Tal, porém, não aconteceu e só o foi buscar o seu amado discípulo Anófeles que estudava com Sua Excelência, direito constitucional e a criação de galos de briga.

O senador disfarçou o aborrecimento e continuou a viagem olhando os subúrbios sem encanto, que a locomotiva atravessava.

Em dado momento, Anófeles, dirigiu a palavra ao mentor:

— Vossa Excelência certamente imaginava que outros admiradores o viessem buscar, não é verdade?

O discípulo sagaz dissera isto para realçar bem a sua dedicação ao antigo chefe poderoso.

Bastos empertigou-se melhor no banco e respondeu com aquela sua voz sacerdotal:

— Menino, quem é coerente com os princípios republicanos não se admira de levar coices.

Ele gostava muito dessas coisas de cavalos e sempre que podia fazia comparações e metáforas com os fatos que lhes dizem respeito.

— Como devemos entender esses princípios republicanos?

Bastos tossiu, acendeu o cigarro de palha mais uma vez e explicou:

— Primeiro: devemos entendê-los como sendo eu chefe absoluto do país, tal e qual o czar da Rússia; segundo: considerando que somos no Brasil um único povo, um estado tem o direito de reter cereais de que não precisa, para esfomear os outros; terceiro: para favorecer a liberdade, temos a obrigação de decretar um estado de sítio permanente; quarto (e este é o mais importante dos itens): as eleições ou a escolha dos representantes da nação não devem ser feitas pelo povo, mas por uma camarilha que vela como muezins na catedral gótica da República. Podia dizer mais; creio, porém, que isto basta.

O trem chegava à gare da Central e Bastos foi ultimar a sua toalete de desembarque. Quando voltou e olhou pela portinhola, viu que só o esperavam duas dúzias de correligionários.

Pode ainda dizer a Anófeles:

— Antes fosse como em Cartago, meu caro Anófeles. Lá, ao menos, se enforcavam os generais derrotados.

E não pôde olhar o céu, porque a abóbada de zinco da estação escondia-o dos seus olhos.

Fonte: Lima Barreto. Marginália.  Publicado originalmente em 1919. Disponível em Domínio Público.

Trovadora homenageada do dia: Carolina Ramos, Princesa dos Trovadores (Trovas em preto e branco)

 


1
Alforriada, ela passa
gingando frente ao feitor
e o dengo de sua raça
faz dele escravo do amor!
2
Bendigo o dom da poesia:
- num mundo de tais perigos,
deu-me a serena alegria
de achar um mundo de amigos!
3
Como pode haver poesia
nos rumos da humanidade,
se tarda tanto esse dia
da paz ser PAZ de verdade?
4
Ele chega de mansinho,
velho cão ressabiado...
mas, se conquista um carinho,
nos dá carinho dobrado!
5
Filho, a montanha da vida,
escala devagarinho,
que há muita flor escondida
entre as pedras do caminho!
6
Há contraste em nossas vidas
mas, perfeito é o desempenho:
luz e sombra, quando unidas,
dão força e vida ao desenho…
7
Liberdade de calar
todos têm, mas, cuida, pois,
ser livre é poder falar
e seguir livre depois!
8
Mente com tal propriedade,
que ao mentir jamais hesita
e quando diz a verdade,
nem ele mesmo acredita.
9
Na vida, quanta maldade
não punida, se repete!
E, em nome da liberdade,
quantos crimes se comete!
10
O mundo é paisagem triste,
chora o rico e o pobre chora...
- Meu Deus, se a ventura existe,
onde será que ela mora?!
11
Pobre pássaro!... é de crer
que a prisão não mais suporta
- e vale a pena viver
se a liberdade está morta?!
12
Ser mau é fácil... insiste
em ser bom, sempre a lembrar:
- bondade, às vezes, consiste
em ver, ouvir... e calar!…
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SOBRE AS TROVAS DE CAROLINA
por José Feldman

As trovas de Carolina Ramos mostram temas profundos como amor, liberdade, e a dualidade da vida. Cada uma revela questões sociais e emocionais que levam à reflexão. A seguir observações sobre elas:

Amor e escravidão: a primeira mostra como o amor pode transformar as relações, fazendo com que uma pessoa fique vulnerável ao outro. Essa dinâmica é comum em relacionamentos, onde um se torna "escravo" do sentimento.

Poesia e amizade: A segunda trova destaca a poesia como base de amizade e alegria em tempos difíceis. A arte serve como um escape e uma forma de conexão entre as pessoas.

Busca pela paz: A terceira é um tom de desespero na busca pela paz verdadeira, mostrando uma realidade onde a harmonia parece distante.

Carinho e afeto: Na quarta, o carinho é mostrado como um caminho para o afeto mútuo, mostrando a importância das relações humanas.

A vida como um caminho: A quinta destaca a importância de apreciar as pequenas coisas da vida. A jornada da vida, sugerindo que, apesar dos desafios (as "pedras"), sempre há beleza (as "flores") a ser descoberta.

Luz e sombra: A sexta é sobre a harmonia entre opostos. A luz e sombra não são opostos, mas complementos que dão vida e profundidade à experiência humana.

Liberdade de expressão: Na sétima Carolina discute a liberdade de expressão, lembrando que ser livre também implica responsabilidade nas palavras e ações.

A verdade e a mentira: A oitava mostra a complexidade da verdade e da mentira, revelando como as pessoas podem se perder em suas próprias narrativas.

Maldade e liberdade: A nona conecta a liberdade à repetição de injustiças.

Tristeza universal: A décima mostra a dor compartilhada entre diferentes classes sociais.

A nona e a décima abordam a dor e a injustiça no mundo, questionando a verdadeira natureza da felicidade em uma sociedade marcada por desigualdades.

Liberdade do ser: A décima primeira provoca uma reflexão sobre o valor da vida sem liberdade, um tema central em muitas discussões sobre direitos humanos.

Bondade silenciosa: A última sugere que a bondade pode ser sutil, destacando a importância de saber quando ouvir e quando falar, um aspecto muitas vezes negligenciado nas interações sociais.

Essas trovas são um convite à reflexão sobre a condição humana e as contradições da vida.

Fonte: José Feldman. 50 Trovadores e suas Trovas em preto e branco. IA Open. vol.1. Maringá/PR: Biblioteca Voo da Gralha Azul. 2024.