segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Edwaldo Camargo Rodrigues (Passageiros da Noite)


    Desde que o sol se pusera, era o terceiro espírito errante com que se deparava naquela estrada maldita. Já nem se assustava mais, havia-se acostumado com o fenômeno. Mais esta vez, lívida, a aparição acenou, surgida como que do nada, interpondo-se de repente à frente dos cavalos, que estacaram em pânico, corcoveando. Relincharam dolorosamente e escarvavam com os cascos ferrados o solo duro e pedregoso, com fúria, até produzir faísca; mas foi em vão, tiveram enfim de acalmar-se e submeter-se, bufando, os olhos esbugalhados a brilharem na escuridão da noite.

    Este último, pelo menos, comportou-se educadamente, ao contrário dos anteriores, que simplesmente se apoderaram da brida com um gesto desabrido das mãos descarnadas, cujos ossos alvejavam à luz da lua para, em desabalada carreira, conduzirem eles próprios a parelha alvoroçada até onde lhes interessava, apeando em seguida sem proferir uma única palavra e desaparecendo em meio às trevas da noite, tragados pelas as portas do Inferno, talvez. Pois ele, ainda que o instigasse a curiosidade, prudentemente não os seguiu, a fim verificar seu fatídico paradeiro.

    - Em nome de Cristo, permita-me subir, meu senhor, pois vou cansado – solicitou, polido. – Minhas velhas pernas já não conseguem conduzir-me, e é imperativo que chegue a meu destino antes do alvorecer. – A voz gutural provinha de algum ponto qualquer situado entre as costelas agudas que o albornoz puído mal encobria e as vértebras expostas do longo pescoço, em torno do qual pendiam frouxos os restos encardidos de uma golilha de gorgorão*.

    Porém, seu aspecto geral não era melhor que o das almas penadas anteriores. Os olhos, amolecidos e pegajosos, flutuavam soltos, e seus movimentos descoordenados dentro das órbitas negras faziam lembrar gemas de ovos que se fritam em óleo, a contrastar com o fundo requeimado da frigideira. Era nojento.

    - Por favor... – respondeu entretanto o viajante. E suspirou conformado, desferindo palmadinhas sobre o assento do banco ensebado de madeira, indicando o lugar junto de si na boleia. – Desde que a Vossa Senhoria não aborreça sentar-se aqui comigo, ao lado deste homem rústico, já que a caçamba vai repleta de esterco para o replantio das cepas. – E acrescentou: – Minha viagem é longa e espero em Deus que o itinerário lhe seja conveniente, prezado andarilho. Pois é meu dever avisar que meu patrão não permite, em nenhuma hipótese, qualquer desvio na rota estabelecida por ele; muito menos toleraria atrasos que isto viesse acarretar a seus negócios, se o senhor me compreende. O homem é enérgico e não hesitaria em castigar-me, caso lhe desobedecesse.

    Aceita essa condição, o convidado acomodou-se e pôs-se logo à vontade. Descalçou as botas e arriou o capuz, que lhe velava parcialmente a carantonha* feroz. Que bruto camarada, louvado fosse o Senhor! A ossatura do crânio mostrava-se totalmente exposta e parecia esfarinhar. E por toda a superfície, viam-se interstícios esverdinhados, como se a criatura tivesse há pouco se erguido de um pântano qualquer em que se espojara, e através dos quais despontavam, aqui e ali, falripas mucilaginosas* com a aparência exata de algas apodrecidas. Quanto aos dentes então, restavam-lhe apenas alguns dos incisivos, o que lhe dava, em tudo, o aspecto de uma caveira de burro. E pior: emanava-se dele um mau cheiro execrável de ratazana apodrecida, que nem a brisa da noite que circulava ao redor e tampouco o movimento da velha traquitana* conseguiam dispersar por completo. De todos os seus passageiros, aquele, sem dúvida, prometia ser o mais incômodo, apesar dos modos corteses que exibia.

    Entretanto, uma vez instalado, suspirou e pareceu aquietar-se. – Chamam-me Dom Antônio Alonso – fez ele, estendendo a mão, gesto que o condutor, protegido pela obscuridade que os envolvia, afetou não perceber, hirto de pavor mediante a iminência de um contato com o sinistro desconhecido. Apenas um simples toque daqueles dedos de esqueleto poderia ser fatal, drenando-lhe a alma do corpo, sabia-se lá, e que Deus o protegesse ao longo daquela jornada.

    - Prazer... – gaguejou depois de algum tempo, sem afrouxar as rédeas, que empunhava com firmeza, e sem desgrudar os olhos da estrada, cuja superfície de cascalhos frouxamente embranquecida sob um luar indeciso serpeava adiante. – Meu nome é Pedro Valdez, conhecido também como Pedro, o Troca, pois que atualmente ando por este mundo a mercadejar. Na verdade, trabalho a soldo para um adelo* espertalhão; segundo comentam, um foragido da lei que se homiziou lá para as bandas do meu povoado, um fim de mundo esquecido por Deus. O biltre, apesar de paralítico e avarento, é mais ladino que uma raposa, que nem mesmo o diabo o engabela. Mas é a ele e mais ao meu suor que devo o pão do meu sustento. 

    E após pigarrear um pouco, informou ainda: – Outrora fui também tanoeiro*, ofício aprendido de meu falecido mestre e compadre, o artesão João Dorta, vassalo dos senhores de Valdez, proprietários das quintas de Valdez, e de quem adotei o nome ao sair evadido de seus domínios, lá nas províncias mais ao norte, já que o de um de pai ou de uma mãe não possuo, por desconhecer quem a mim me gerou. Em pequeno, fui colocado na roda, conforme se diz dos enjeitados.

    O homem tinha esse temperamento: quando tenso, disparatava; refugiava-se talvez no som da própria voz, sem conceder muita importância ao significado do que dizia. Não era seu intento falar tanto assim de si, revelar sua vida de supetão, despejando tudo mais ou menos sem propósito, quanto mais a um completo estranho. Amaldiçoou-se por isso, mas era tarde, cumpria conter-se dali em diante, e manter a boca fechada.

    Mas o outro não demonstrou a mais leve perturbação. Pareceu nada ter escutado de toda aquela eloquência despropositada. Aristocrático, com sua voz vácua e quase ininteligível, emitiu comentários imprecisos a respeito do clima, talvez para dissipar qualquer constrangimento pressentido entre os dois, conforme procederia um autêntico cavalheiro.

    Depois de perscrutar a paisagem, negra e indecifrável, prognosticou finalmente chuvas, a virem pela madrugada, com certeza. E assim, aprumando-se com galhardia, sem desmantelar-se aos solavancos do veículo, voltava a cada instante a cabeça para os lados e para o céu, aparentemente sem dar conta do incômodo rangido provocado pelas vértebras ressequidas que se atritavam com aspereza e que se repetia a cada movimento, enquanto falava.

    - Pouco além desta colina junto à qual agora passamos – disse e apontou com o indicador amarelecido, semelhante a uma antiga batuta entalhada em marfim, uma massa escura apenas perceptível em meio à vegetação intrincada que margeava o caminho –, avistaremos em seguida um frondoso sicômoro*. Rogo-lhe que paremos um pouco sob suas ramagens. De modo que os cavalos poderão descansar – justificou. Mas logo a seguir, inclinou-se para o outro, acrescentando em tom confidente, as mandíbulas trêmulas a tatalarem com enleio: – E é lá também que espero encontrar uma pessoa que me é muito cara, se o senhor não se opõe, é claro.

    Tão logo ali chegaram, abrigaram-se sob a vasta copa da árvore, pois, conforme previra a distinta assombração, uma tempestade ameaçadora, anunciada pelos graves ribombos das trovoadas, aproximava-se rapidamente. Sob os lívidos clarões de relâmpagos intermitentes, Pedro Valdez entreviu, em sucessivos relances, um vulto encaminhar-se em direção a eles. Pareceu-lhe uma mulher. Vinha trilhando uma vereda inculta, desviando-se de túmulos e capelas que mal se podiam distinguir, tal a confusão de urzes, heras e mandrágoras, que medravam por tudo, incontroláveis e bravias, compondo um cenário desolador de abandono e ruína.

    Os animais, que até então, aproveitando a pausa, roçagavam* a relva em sossego, pressentiram aproximar-se a desconhecida e assustaram-se novamente, reagindo irrequietos, nutrindo com sofreguidão desconfiada. – Calma, Penedo! Quieto Ferrabrás! – sofreava-os o dono, empunhando a brida com energia.

    - Permita-me que lhe apresente, senhor Valdez – interveio, nesta manobra difícil, o muito solícito Dom Antônio, exibindo a palma estendida num meneio gracioso, como quem oferece um ramo florido, amparando-o entre o polegar e o indicador –, eis aqui a senhora dona Risoleta Alonso y Olavarria, minha falecida esposa e companheira perpétua. – E, sem esperar por resposta, estendeu os braços, ajudando-a a embarcar, fazendo com que ela se sentasse, apertando-se, com artríticos estralejos*, no exíguo espaço que restava entre os dois na estreita boleia.

    Era arriscado supor que a mulher sorrisse, pois nenhum vestígio de pele se lhe restava aderido ao carão escaveirado, de forma que a única expressão facial possível para a infeliz era aquele esgar impudico a expor permanentemente os dentes arreganhados. Os quais, entretanto, permaneciam em excelente estado de conservação, condição que permitia com que a maxila e a mandíbula, quando unidas, se ajustassem mutuamente com admirável elegância, sem que se percebesse a mínima falha ao longo das arcadas.

    Em todo caso, relanceou o condutor e acenou altivamente com a cabeça, em cuja fronte, ocupando as cavidades que em vida contiveram olhos provavelmente belos, lampejaram momentaneamente, bem lá no fundo, dois minúsculos glóbulos esverdeados, ambos semelhantes a vaga-lumes feridos que agonizassem, quase ocultos em meio à vegetação sombria. E – mais inacreditável! – no cocuruto daquele crânio limpo e alvadio*, equilibrava-se uma touça* de cabelos ressequidos como palha, sobre a qual a vaidade feminina havia espetado um largo pente de tartaruga cujas pontas sustinham a orla de uma mantilha negra e rendada, que descia abundante e cascateava-lhe pelas costas e em redor da figura esquálida da morta, chegando-lhe às ancas, no melhor estilo andaluz, nobre e suntuoso.

    Uma vez colocados os três em seus respectivos lugares, nenhuma alternativa lhes restava senão espremerem-se entre si, caso desejassem prosseguir viagem. Apesar disso, a dama recuava tentando evitar a proximidade do humilde carroceiro, cujo contato parecia repugná-la. De modo que, com gestos impacientes de repulsa e desdém, cosia-se o mais possível junto ao marido, agarrando-se-lhe aos braços, inclinada sobre ele a protestar com um murmúrio cavo e continuado, que se escapava provavelmente através dos desvãos da grade torácica.

    - Não, vida minha – replicava-lhe o conciliador Dom Antônio aos cochichos, tentando a custo conter as diatribes da companheira e, ao mesmo tempo, não ser ouvido pelo outro –, desista, por favor, não é possível viajar lá atrás. Transporta-se estrume do gado, compreende?... Porque é assim mesmo, é a estação, é para o plantio das vides*... – E ensinava paciente: – Recorda-se de como acontecia em nossa herdade e na quinta de seu pai, no início da primavera? Pois é igual; acredito que as práticas não mudaram desde aquele tempo, e é com certeza o procedimento que ainda hoje utilizam os labregos* na lide das glebas.

    A mulher todavia inquietava-se, não compreendia, salmodiava sem parar sua queixa exaltada, quase incorpórea, provinda do além. – Você está confusa, meu bem – ponderava o esposo –; provavelmente ainda não despertou por completo de seu longo sono – cogitou ele, segurando-lhe carinhosamente o queixo pontudo. E esclareceu: – O homem não é um salteador, um birbante*... Trata-se apenas de um camponês, um trabalhador, e está nos ajudando sem nada exigir em contrapartida. Isto é mais do que se pode esperar de um rústico cristão.

    E, após ouvir-lhe uma modulação sibilante, que deveria expressar ainda alguma dúvida que a atormentava, garantiu-lhe em tom cabal, no qual se percebia uma leve ponta de contrariedade, o osso do polegar direito a indicar perfurante para trás: – Não, é claro... Não é dele. O cheiro provém do maldito carregamento que o coitado tem de distribuir por aí, pelos campos, por dever de ofício, conforme já lhe expliquei, ou por outras razões que apenas a ele dizem respeito, sei lá, mulher.

    Entrementes, seguia o grupo, madrugada adentro, assim composto: o arrieiro*, muito inteiriçado e esgazeado, e o heteróclito* casal entrelaçando reciprocamente as mãos alvacentas, ambos coniventes a respeito de seu destino sobrenatural, que somente eles conheciam. E seus corpos chocalhavam a cada solavanco da viatura, que rolava estrídula*, as rodas resvalando sobre a via tortuosa, atapetada de seixos irregulares. Era de admirar que as duas múmias não se desconjuntassem de todo, esfacelando-se de uma vez por todas, como um jogo de varetas sobre um tabuleiro, ou que se reduzissem finalmente a pó.

    Não obstante, passados alguns momentos, rouquejou o nobre, apontando os restos de uma edificação que se erguia um pouco recuada, apenas vislumbrada a assomar entre a vegetação espessa, talvez um antigo portal ou peristilo*, cujos fragmentos branquejavam ainda por um instante sob o luar evanescente da madrugada:

    - Eis acolá onde desejamos finalmente ficar, meu amigo; e o senhor, depois disto, poderá prosseguir em paz, sob as bênçãos do Céu.

    - Oooo! – Ouviu-se na paisagem silente. E, mais alguns passos, a parelha estacou, homem e bestas aparentemente aliviados.

    - Estamos muito agradecidos – disse o falecido, ajudando apear a sua cara metade, que, naquela simples operação, cambaleava a cada movimento, muito indecisa, enroscando-se na trama dos seus complicados véus. E, infaustamente, apesar das atenções e cuidados com que a cercava o devotado esposo, alguma coisa saíra errada, talvez que enganchasse os pés quebradiços no estribo enferrujado, resultando com que a infeliz tropeçasse e se estatelasse inteira contra a lama do chão, todo encharcado da chuva recente. A brava senhora reduziu-se instantaneamente a uma ruma* de ossos, de cambulhada* com rendas e tecidos que se esgarçavam desfibrados, tudo aquilo se confundindo numa patética mixórdia, asquerosa e irreconhecível.

    - Aqui residimos e vivemos os melhores dias das nossas vidas – explicou Dom Antônio, em sua fleuma incorrigível, acenando com um gesto abrangente a seu redor, tão amplo que então indicaria o próprio céu, estrelado e prenunciador da aurora. Porém, humilde, agachou-se em seguida, e via-se que tentava com seus dedos, quebradiços e desajeitados, organizar uma trouxa transportável daquela massa confusa que se espalhava pelo solo à sua frente, os despojos de sua amada. O companheiro fez menção de acudi-lo naquela tarefa penosa, porém o cavalheiro não lho permitiu. Afastou-o com um meneio da mão impositiva, declarando, formalizado: – Vou levá-la para nossa alcova, onde repousará – justificou, erguendo-se lentamente, a sobraçar com dificuldade o volume amorfo. – Lá, eu a recomporei, pedaço por pedaço, e ela ressurgirá da maneira exata como a conheci, tão jovem e fascinante, e cuja lembrança, passado tanto tempo, ainda agora me deslumbra e me faz perder o fôlego, emocionado. – E após um suspiro profundo, completou, contemplativo: – Seremos felizes novamente, pode ter certeza. A morte ainda não nos venceu, nem poderá separar-nos definitivamente.

    E, voltando-se, afastou-se com seu fardo precioso, penetrou entre as ramagens hirsutas dos tojos* retorcidos e das tanchagens* peçonhentas que bordejavam o caminho e foi corajosamente transpor a barreira formada por partes de empenas* e colunas que, em meio à penumbra indecisa da alvorada, divisavam-se além, derrocadas sobre a relva, espalhadas em confusão, e atrás da qual, amparando-se precariamente, desapareceu por fim, enquanto o pipilar dos primeiros pássaros despertados ecoava pelas frondes sombrias das árvores em redor.

    Pedro Valdez suspirou, uma comoção indefinível picou-lhe o coração piedoso. Desatrelou os machos e estapeou-lhes as ancas, amistosamente, dando-lhes liberdade, a fim de que debandassem e se apascentassem finalmente tranquilos, depois daquela noite extenuante.

    Um regato oculto entre a vegetação rumorejava por perto. Descobriu-o sem muito esforço. E, bebendo da água fresca, viu refletir-se na superfície encrespada que resvalava buliçosa sobre claros seixos, iluminado pelo sol da manhã, que surgia radiante, seu semblante cansado. Também este se desfazia, o rosto cadavérico parecendo diluir-se, puxado pelo movimento borbulhante da modesta corredeira.

    Lembrou de seu patrão, o Abílio Tornado, que lhe parecia o próprio demônio, da primeira mulher, a Aldonça, e dos filhos pequenos, cujos nomes restavam apenas nas lápides mesquinhas em que haviam sido talhados, em algum lugar, remoto e esquecido, e viu-se morto, de repente morto, só não sabia desde quando e por que ainda vagava sobre a terra.
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Glossário em Ordem Alfabética:
Adelo – aquele que compra ou vende roupas e objetos usados.
Alvadio – alvacento, esbranquiçado.
Arrieiro – arreeiro, tropeiro.
Birbante – que ou aquele que vagueia, sem pouso ou trabalho certos; vagabundo, viajante, vadio.
Cambulhada – reunião de coisas diversas; mistura.
Carantonha – cara fechada; cara feia; carranca.
Diatribe – discurso escrito ou oral, em tom violento e geralmente afrontoso, em que se ataca alguém ou alguma coisa.
Empenas – qualquer parede lateral, especialmente as construídas nas divisas do terreno.
Estralejo – o mesmo que estalejo, estalar.
Estrídula – som agudo, ruidoso, penetrante,
Falripas mucilaginosas – cabelos curtos e ralos viscosos.
Golilha – Gola.
Gorgorão – tecido encorpado de seda, com relevos formando finos cordões, originalmente fabricado na Índia.
Heteróclito – pouco comum; bizarro, extravagante, excêntrico, singular.
Labrego – certo tipo de arado, munido de um varredouro entre as aivecas com que limpa da terra as raízes.
Peristilo – pátio rodeado por colunas.
Plantio das vides – plantio das videiras.
Roçagar – passar levemente por; roçar, arrastar-se.
Ruma – pilha, montão.
Sicômoro – árvore de até 20 m (Acer pseudoplatanus) da família das aceráceas, nativa da Europa e Oeste da Ásia, de folhas com cinco lobos e flores pêndulas, cultivada como ornamental, pela madeira branca, especialmente usada em instrumentos musicais e mobiliário, como melífera, dando ao mel cor esverdeada, e pela tintura vermelha que se extrai da raiz.
Tanchagem – design. comum a diversas plantas do gênero Plantago, da fam. das plantagináceas, de ervas ou arbustos geralmente de uso medicinal e cujo pólen é notoriamente um causador da febre do feno.
Tanoeiro – aquele que fabrica tonéis, pipas, barris etc.; toneleiro.
Tojo – arbusto de até 2 metros.
Touça – conjunto, agrupamento.
Traquitana – automóvel velho, maltratado, de mau aspecto; lata-velha.
(Fonte do glossário: Dicionário Houaiss)


Fonte:
Texto enviado por João Libero

domingo, 24 de novembro de 2019

Varal de Trovas n. 124


Luiz Poeta (Texto para um Natal)


É tempo de Natal. Das vitrines mais sofisticadas aos ambulantes mais simplórios, os chamarizes natalinos convidam as pessoas que passam, para ornamentarem suas salas, ambientando-as para a celebração do nascimento de Jesus. Para os comerciantes, mais do que falar do nascimento do menino de Belém, é preciso vender porque, afinal, o cliente está com dinheiro e comprar é o verbo mais conjugado e qualquer presente orçamentário é sempre uma bênção.

As propagandas para fomentar a aquisição de produtos do gênero são específicas: ou exibem o glamour de uma delicatessen, cujas sofisticadas cestas de vime expõem gêneros importados sob o brilho de neon das luminárias cuidadosamente preparadas para esse fim, ou espalham-se pelos luminosos corredores dos shopping centers repletos de gorduchos e sorridentes papais noéis - artificiais - cujo movimento para trás e para frente, mecanicamente repetitivo, parece reverenciar o dinheiro do gastador compulsivo diante de tantas ofertas em cada uma das lojas.

Aleatórias à inteligente metodologia das vendas, do outro lado da rua movimentada, precisamente nas calçadas, as instigantes e estridentes vozes dos camelôs, mais do que convidar, intimam o comprador. Eles espalham seus produtos geralmente contrabandeados sobre enormes plásticos e dão logo o seu recado: - Aí, freguesa: Papai Noel a bateria! Pisca-pisca! Árvores de natal de todos os tamanhos! Leva duas e paga uma! Seu filho vai adorar!

Mas quando se trata de vender e comprar - ressalvada a natural hipocrisia para cada caso - povo é povo em qualquer situação. A premente necessidade de adquirir e exibir o objeto conquistado, mesmo quando os recursos são ínfimos, é irrevogável. É preciso mostrar mostrando-se, presentear e presenteando-se. O resultado das compras natalinas é diversificado, mas o cenário é único para cada celebração.

Nas casas mais luxuosas, os anfitriões exibem suas mesas enormes, modeladas caprichosamente por cozinheiros e maitres contratados, repletas de iguarias que parecem posar para o paladar mais exigente, num delicioso mosaico desenhado por talheres e travessas de prata e pratos de porcelana contendo o melhor bacalhau, perus, chesteres, pernis, tortas, bolos e pudins, além das cerejas, tâmaras, figos, pêssegos, nozes, castanhas, amêndoas, avelãs, frutas cristalizadas e afins, cujos nobres obeliscos de toda aquela deliciosa panorâmica da ceia são garrafas e cálices de vinhos do Porto e champanhas franceses.

Sem a menor cerimônia, dão-se ou trocam presentes valiosos: casas, carros, iates, colares de pérolas e diamantes, pingentes, cordões, anéis, alianças e pulseiras de ouro do mais nobre quilate, passagens para cruzeiros com destino às ilhas fiscais, além de uma infinidade de essências importadas, roupas, bolsas, cintos e sapatos de grife.

Sem grandes cômodos que possibilitem a movimentação natalina, um número expressivamente maior de cidadãos comuns comemora este evento à sua maneira, contentando-se com suas cervejas, feijoadas, farofas, refrescos, rabanadas, pastéis e aletrias, realizando seus alvoroçados e espumantes brindes às vezes no próprio quintal, onde é exibido um portentoso churrasco de asas e coxas de frango e carnes de segunda. Tudo é festa!

Sua troca de presentes é modesta: camisas, blusas, lenços, edredons, toalhinhas-de-mão, meias, perfumes baratos, panelas e móveis de questionável durabilidade, mas o que importa mesmo é a reciprocidade produzida pela alegria do dar e receber.

Porém, longe do fogo do carvão que assa carne ou da lareira que conforta os pés, tendo por cama apenas os papelões que embalam os melhores presentes, e por telhado o brilho das estrelas que desconhecem Belém, os ditos miseráveis amargam a solidão de mais um dia sem calendário, sem mesa posta... sem presentes, sem Natal.

Enquanto o Jesus verdadeiro teima em nascer sublimemente no melhor e mais fervoroso silêncio das pessoas mais sensíveis... em várias casas, no aconchego das líricas manjedouras, os aparentemente eternos sorrisos desenhados nos rostos de gesso e louça de diversos menino Jesus artificiais parecem demonstrar, em lugar da compreensão por cada um dos sentimentos humanos, um divino enlevo diante do atraente marketing produzido pelo premiadíssimo vendedor e simpaticíssimo herói natalino Santa Claus.

Fonte:
Luiz Gilberto de Barros (Luiz Poeta). Canção de Ninar Estátuas. 1.ed. Ilhéus/BA: Mondrongo, 2014.
Livro enviado pelo autor.

Baú de Trovas VIII


Benditos são os mecenas!
Não deixam a arte morrer!
São os pilares das cenas
na cultura e no saber!
Abílio Kac
Rio de Janeiro/RJ


Quem não aprende em menino,
tem que aprender na velhice,
que ter pai pobre é destino
mas sogro pobre é burrice!…
Aloisio Alves da Costa
Umari/CE, 1935 – 2010, Fortaleza/CE


Para que tanta igualdade
nesta partilha de amor?
- Fique com tudo: a saudade,
esta tristeza e esta dor!
Antonio Carlos Rodrigues
Rio de Janeiro/RJ

Diz o velhote à mocinha,
mal disfarçando o cansaço:
"Eu já te guardo, todinha,
no fundo do marca-passo!"
Antonio Carlos Teixeira Pinto
Brasília/DF


As paredes que sustentam
meus sonhos, meus ideais,
são tão sólidas que aguentam
os mais fortes vendavais!
Antonio Siécola Moreira
S. Rita do Sapucaí/MG


Esse mesmo pai que um dia
Deus me ofertou ao nascer,
é o pai que eu escolheria,
caso pudesse escolher!
Carolina Ramos
Santos/SP


Na esperança verde e bela
há o otimismo de luz.
Se a porta fecha, a janela
se abre em paz e o sol reluz!
Dinair Leite
Paranavaí/PR


Minhas mágoas disciplino
com a força da oração:
tenho um médico divino
que jamais deixa o plantão!
Elbea Priscila S. Silva
Caçapava/SP


Só se salva de verdade,
nesta enchente de amargor,
quem faz da fraternidade
o seu barco salvador
Flávio Roberto Stefani
Porto Alegre/RS


Qual um pastor diligente
cuidando do seu rebanho,
pastoreio no presente
minhas saudades de antanho!
Gutemberg L. Andrade
Fortaleza/CE


Galgo nuvens montanhosas,
sou na vida um alpinista;
mesmo em trilhas perigosas,
busco os sonhos da conquista.
Jessé F. Nascimento
Angra dos Reis/RJ

Sentimento? Que universo
de verdade e imaginário!
Mundo de verso e reverso;
formidável relicário!
João Bosco dos Santos
Salvador/BA


Sob a marquise silente
sem futuro, ao rés do chão,
dorme o menino carente,
sem lar, sem porvir, sem pão!
José Valdez C. Moura
Pindamonhangaba/SP


Queres definir o amar?
Dentro de minha visão
amar é não precisar
jamais pedir perdão!
Loris Turrini
Tremembé/SP


Cidade dos passarinhos,
Arapongas, Paraná.
Aqui se constroem ninhos
que a todos acolhem cá!
Maria Granzoto
Arapongas/PR


Quando novos, nós dizemos
que o tempo é detalhe à toa.
Só mais tarde percebemos
que ele passa...e não perdoa!
Maria Helena O. Costa
Ponta Grossa/PR

O presente mais bonito
fui eu mesma que me dei:
num momento de conflito,
dei-me a paz… e perdoei.
Maria Ignez Pereira
Mogi-Guaçu/SP


Volte agora com vontade,
ser o amor que me encantou.
traga consigo a saudade.
que ao partir, você deixou!
Maria Luíza Walendowsky
Brusque/SC

Paciência é necessário
quando meus versos escando:
os dedos viram rosário
e pensam que estou rezando!
Maurício Leonardo
Ibiporã/PR


Num relógio, vendo a hora,
no outono de minha lida,
vejo que não há demora
no ocaso de minha vida!
Mauricio N. Friedrich
Curitiba/PR


Quem tem coração de paz
vive de culpa liberto,
porque faz do bem que faz
um céu de sol mais aberto!
Nilton Manoel
Ribeirão Preto/SP

Revendo entulhos e tacos,
na tapera dos meus sonhos,
chorei por ver tantos cacos
dos meus dias mais risonhos!
Professor Garcia
Caicó/RN

No refúgio desmanchamos,
quando ficamos a sós,
esses nós que carregamos
no fundo de todos nós!
Selma Patti Spinelli
São Paulo/SP


No poente desta vida,
já sentindo os membros lassos,
eu desisto da corrida
e me abrigo nos teus braços.
Zeni de Barros Lana
Belo Horizonte/MG

Nilto Maciel (Eles têm Olhos Azuis?)


Eu lia Jorge Garstman, quando ouvi gritos vindos da rua. Preocupado, fechei o livro e, enquanto me dirigia à janela, repetia o nome de Jacó Rabbi, como se do outro lado da parede ele estivesse sendo assassinado. O doido Manuel açoitava o tempo com os braços, pregando à pequena multidão de moleques e vagabundos do bairro.

– Os holandeses vão chegar. Já estão nas proximidades de Jacaúna – bradava o orador.

Vaias estrondavam em meio a gargalhadas escandalosas e assobios estridentes. O pregoeiro ria um riso de satisfação, olhos além da plateia, do casario, como se alcançasse a praia distante, escondida pela cidade. Decerto orgulhava-se de ser o primeiro a dar a notícia.                         

Ao me avistar, aproximando em zum os olhos para pouco além do foco dos canalhas, avançou em minha direção, rompendo o cerco caçoísta.

– Você é filho do Clemente?

Disse sim e o convidei a entrar. Não me importava estivesse em dia de insânia. Ele sabia mais do que todos aqueles cegos que só viam guerras nos cinemas e o mar aos domingos. E eu nutria uma admiração estranha por aquele sábio menosprezado e insultado, aquele irmão vindo não sei de onde, talvez neto de cariris, de adoradores do Boi Santo, ensandecido por herança. Imagino seus ancestrais dizimados a ferro frio pelos Amaro Maciel Parente e caterva.

Dirigiu-se à porta, que fui abrir, apressado, como se atendesse ordem sua. A multidão acercava-se da casa, sequiosa de novo espetáculo, saudosa do palhaço fugitivo. Fechei porta e janela, ciumento daqueles olhos de esquina, daquelas bocas impiedosas.

Já sob a sombra de minhas telhas, o homem era outro. Transfigurara-se, branco feito vela, trêmulo como chama, nem louco nem Manuel.

– Marina, traz um copo com água para este senhor – gritei.

Indiquei-lhe a cadeira, retirando o livro do assento, enquanto tentava copiar-lhe todas as feições. Enganara-me, de fato – não se tratava do maluco do bairro, a alegria dos que dormiam na coxia e se embriagavam de música todo santo dia.

Marina trazia em uma bandeja um copo com água quente e, oferecendo-o a Manuel, cochichou ao meu ouvido:

– Quero ver se ele é doido mesmo. Eu estava ouvindo a lengalenga dele lá da cozinha.

Não recebeu o copo. Deixasse sobre a mesinha. Apanhou meu livro, abriu-o e dirigiu-se a mim:

– Quero ver se ela não esfria hoje.

Veio-me à cabeça, de imediato, a figura acesa de minha mulher, que logo apaguei, olhos na água.

Pôs-se a ler, em voz alta: "Os nativos dessa zona solicitaram ao Conde Maurício e ao Conselho que tomassem o forte português lá existente a fim de libertá-los da opressão em que viviam."

Eu quis dizer a Marina que ela estava enganada. Fosse buscar água gelada, deixasse de rir daquele jeito de moleca. Porém, ao olhar novamente para o homem, reconheci nele o doido Manuel. Para tirar as dúvidas, interrompi-lhe a leitura:

– Não serão os alemães?

– Holandeses – gritou, ferindo-me com seus olhos de mensageiro.

– Mas eles não vêm pelo ar?

Não me deu segunda resposta e continuou a ler e rir. Voltei-me para Marina e pensei em lhe pedir desculpas. Não, não estava enganada, deixasse a água quente ali mesmo, esquecesse a geladeira, risse à vontade, assobiasse, vaiasse, molecadamente.

– Acho que vêm de Recife – respondeu-me, por fim.

Em tom de brincadeira e para forçá-lo a dizer de que estava falando, imaginei um hippie nordestino:

– Na certa, são cangaceiros de cabelos oxigenados.

Pareceu não ouvir ou não aceitar minha provocação. E, como se desse por encerrada a conversa e se tratasse de velho amigo nosso, frequentador habitual de nossa mesa, parente muito próximo, levantou-se e dirigiu-se ao corredor, sempre a ler. Tropicou na mesinha, o copo rolou e espatifou-se ao chão, enchendo a sala de água. Nem sequer olhou para o estrago e muito menos pediu desculpas.

Marina levou as mãos à cabeça e ajoelhou-se, irritada. Queria impedir que os cacos de vidro se estilhaçassem ainda mais e a água inundasse toda a sala. Conteve-se e, olhos em mim, como a pedir perdão por ter agido ao primeiro impulso, falou em ir buscar uma estopa à cozinha.

Seguimos os três pelo corredor, ele à frente, seguido dela.

– Aqui está a notícia por inteiro – gritou o visitante, já pisando a sala de jantar. – “Fundeará amanhã na enseada do Mucuripe o navio Nieuw Nederlandt, trazendo índios pernambucanos, cuja missão será a de preparar o terreno para a tomada do Siará pelos batavos.”

Não tive mais dúvidas: estávamos com um louco dentro de casa. E, pior, na cozinha, perto do fogo e das facas. Pensei em pedir socorro a Marina, mas ela voltara à sala e, ajoelhada junto aos cacos de vidro, cantarolava, mirando-se na água, que não esfriava. Talvez fosse possível esconder facas, garfos e fósforos, e convencer Manuel a publicar sua notícia caduca na esquina.

Odiei-me, chamei-me ingênuo, apiedei-me de minha piedade por aquele pobre diabo, aquele maníaco que transformava bulas em tratados de teologia. Amaldiçoei meu cristianismo tantas vezes negado da boca para fora. Desesperado, desejei a invasão imediata de minha terra por tropas estrangeiras. De preferência, holandesas. E seu primeiro ato de brutalidade atingisse Manuel.

Assim pensando, não ouvi quando me pediu água gelada. E, como não lhe atendesse, escancarou a porta da geladeira e despejou goela adentro todo o conteúdo de uma garrafa, em tempo de a engolir.

Só alertei com o vozeirão do louco, livro aberto no rumo das bananeiras do quintal, biquinho, a recitar: “Monsieur le major Garstman, ci-devant commandant de la milice à Siara...”

Fonte:
Nilto Maciel. Tempos de Mula Preta, contos. Secretaria da Cultura do Ceará: 1981.
Livro enviado pelo autor.

sábado, 23 de novembro de 2019

Varal de Trovas n. 123


Malba Tahan (A Lenda Singular do Vaso Torto)


Era assim. Louvado seja Allah!

Era assim que Amid, o velho oleiro de Samarcanda, fazia todos os dias.

Terminada a tarefa, ao cair da tarde, examinava atentamente um por um, os vasos que o jovem Namedin, seu discípulo dileto, havia modelado. Orgulhava-se com o progresso daquele adolescente na difícil e delicada arte da cerâmica. Revelava o principiante, na execução das obras mais finas e delicadas, invulgar talento.

Havia, entretanto, uma particularidade que fazia negrejar a dúvida no espírito do mestre. Todos os dias, entre os vasos impecáveis, esguios e bem torneados, repontava, fabricada pelas mãos ágeis do artífice, uma peça (e uma só!) lamentavelmente mal feita, torta e deformada. Como explicar a presença daquele aleijão único no meio de tantas perfeições e belezas? Decorreria a multidão de uma falha insanável ou não passaria tudo de um simples capricho do aprendiz?

Amid, intrigado com o caso, resolveu desvendar o mistério. Como apurar a verdadeira origem daquele desacerto, daquela anomalia? Vou observar o trabalho (pensou o oleiro) a fim de precisar o momento em que Namedin claudica e erra. E assim fez. Um dia, da manhã até a quarta prece, o mestre acompanhou atento a faina do jovem. Era preciso descobrir a razão de ser do vaso torto...

Afinal, o velho oleiro, sempre vigilante, viu satisfeita a sua curiosidade.
    
Quando o vulto sedutor da namorada surgia, o aprendiz desorientava-se; suas mãos tremiam...
   
Todos os dias, a uma certa hora, graciosa menina que residia para além da mesquita de Chan-Sindah, cruzava vagarosamente a rua. Namedin apaixonara-se por ela; e, por isso, ao vê-la passar sentia-se confuso, perturbado.

Ali estava, afinal, a explicação do mistério. Quando o vulto sedutor da namorada surgia, o aprendiz desorientava-se; suas mãos tremiam e o vaso que se achava, naquele momento, na roda girante, sob os cuidados de seus dedos ágeis, sofria as consequências daquela desatenção.

Como poderia o enfeitiçado oleiro, naquele instante de comoção, guiar com segurança os seus dedos, dominar os voos de seu pensamento e aquietar os anseios de seu coração?

Rejubilou-se o mestre de Samarcanda com a descoberta, e, a partir daquele dia, com mais carinho e interesse dedicou-se à nobre tarefa de orientar o discípulo querido. Ao amor, sim, e não à imperícia do artista deveria ele incriminar o aparecimento do vaso defeituoso. E que importava, afinal, a mutilação de uma peça no meio das outras? A mulher amada, com a sua presença perturbadora, fazia surgir uma obra defeituosa; mas com sua ausência, entretanto, inspirava dezenas de perfeições.

E, ao ter notícia do caso, um poeta árabe, servo de Allah, escreveu três ou quatro poemas admiráveis que foram gravados em ouro e bronze no deslumbrante palácio de Tamerlão. O terceiro poema - lembro-me até hoje, muito bem! - começava exatamente assim:
   
    Ao ver aquele vaso torto
    Entre outros de forma esguia,
    Penso no destino, absorto:
    - A mão do oleiro tremia!...
   
    Louvado seja Allah que criou a Poesia, a Beleza e o Amor!
   
Fonte:
Malba Tahan. Os Segredos da Alma Feminina nas Lendas do Oriente.

J. G. de Araújo Jorge (Prelúdios)


Prelúdio N°. 1
(Paradoxos)


Perdoa, meu amor...
- na alegria imprevista do reencontro
a nos perturbar ,-
este véu de tristeza, vaga nuvem
em meu olhar...

(O amor é mesmo assim, de paradoxo e extremos...)
Perdoa, meu amor,
só agora que te encontro é que me ponho a pensar
no tempo que perdemos...

Prelúdio N°. 2
(embriaguez)


Ah! encher minhas mãos com os teus cabelos louros
assim... nervoso como me vês...
E tomar tua cabeça, e beber, lentamente,
teus beijos, enternecidamente,
até a embriaguez...

Prelúdio N°. 3
(razão da noite)

Enchi minhas mãos de sol, com os teus cabelos
e eles escorreram como luz entre os meus dedos...

Agora que tenho as mãos vazias,
compreendo a razão desta noite
em meus dias...

Prelúdio N°. 4
(Tua boca)


Na tua boca entreaberta, úmida, viva
colhi o último suspiro do anjo
que expirava em teus olhos...

Prelúdio N°. 5
(Desejo)


Ao toque de tuas mãos, esse desejo que arde
em minha fronte, com a ardência de um sol de verão
serena
oh! minha amada,
( e é doce e misteriosa essa estranha emoção),
como o instante de sombra fresca e amena
quando uma nuvem cobre o sol, e sopra
na folhagem ressecada
a viração…

Prelúdio N°. 6
(Lembrança)

Ficou tua lembrança...

A lembrança de teus olhos vidrados
semicerrados,
de tua cabeça num gesto de criança
recostada em meu peito,
de teu cabelo desfeito...
(de teus cabelos em ondas de ouro
em teus ombros...)

Ficou tua lembrança
como uma flor azul de pólen de ouro,
a romper imprevistamente, de um modo que ruiu
em escombros…

Prelúdio N°. 7
(Traição)


Foi traição do destino bipartir nossos rumos
como um caminho frente a uma montanha,
para fazê-los de novo se encontrarem
muito tempo depois...

Para quê? Se cada um de nós podia ser um
isoladamente,
- se tínhamos que ser dois...

Dois, assim
como as margens de um mesmo caminho
que seguem, lado a lado, paralelamente,
até o fim...

Prelúdio N°. 8
(Era uma vez...)

O último anjo entremostrou-se nos restos
de tua timidez...

E eu te contava uma história:
Era uma vez…

Prelúdio N°. 9
(A eleita)

Que importa, se não és ?

Foste e serás a eleita,
a lembrança que foi, e há de ser onde eu for...
Que haja pois, se preciso, a renúncia perfeita
se não pode afinal ser perfeito esse amor...

Fonte:
J. G. de Araújo Jorge. Os Mais Belos Poemas Que O Amor Inspirou. vol. 3. SP: Ed. Theor, 1965.

Contos e Lendas do Mundo (África: Os Filhos das Cabaças)


Bem no alto da montanha morava um espírito poderoso que velava pelo dia a dia do povo Chaga, que vivia no vale que se estendia em baixo. Uma das pessoas de quem gostava especialmente era da Viúva Velha, que vivia sozinha.

Na aldeia, o som que predominava era o do riso das crianças; no entanto, na casa da Viúva Velha, que não tinha filhos nem netos, reinava um silêncio triste.

Quando era preciso ir buscar alguma coisa, ela tinha de ir buscá-la. Quando era preciso carregar, ela tinha de carregar. Quer se tratasse de água, alimentos ou outra coisa qualquer, ela mesma precisava de fazer tudo. Para dizer a verdade, a Viúva Velha só se tinha a si própria como companhia, levando a sua vida por diante o melhor que podia.

Nos seus tempos de jovem, aquela que era agora a Viúva Velha, casara com um bom homem e os dois tinham sido muito felizes juntos. Mas, como acontecia com muitos homens bons, também o seu morrera, ainda por cima antes de terem filhos, e ela jurara nunca mais voltar a casar.

Havia muito pouca mobília na sua casa minúscula. Poucos eram os seus pertences, e tudo o que se encontrava dentro da habitação andava empoeirado e muito descuidado. O mesmo já não se podia dizer em relação à pequena machamba (horta) onde cultivava frutos e legumes. Adorava aquele cantinho e não se passava um dia sem que, protegida pela sombra das bananeiras do vizinho, não cuidasse das suas plantas. Arrancava as ervas daninhas, regava, tirava as pedrinhas e espantava os animais nocivos. Mas as suas plantas preferidas eram as cabaças.

Os aldeões troçavam dela por causa desse gosto. Costumavam dizer que ela amava aquelas cabaças como se fossem seus filhos.

O espírito da montanha não perdia pitada do que diziam. Olhava para a Viúva Velha, como sempre fizera no decorrer da vida desta. Vira-a envelhecer, mas lembrava-se da jovem linda que ela fora no dia do seu casamento, com as costas direitas e os olhos brilhantes. Agora via-a encurvada pelos anos, com os olhos enevoados e os dedos encarquilhados.

A Viúva Velha cultivava as suas cabaças para fazer delas vasos. Deixava-as secar até a casca endurecer, depois transformava-as em vasos de cabaça que vendia no mercado local, arranjando assim o pouco dinheiro de que dispunha.

O espírito que vivia na montanha, ao refletir sobre as piadas dos outros aldeões acerca da Viúva Velha que tratava das cabaças como se fossem seus filhos, resolveu ajudá-la. Dar-lhe-ia filhos a sério - filhos mágicos - que lhe trariam felicidade.

No dia seguinte, estava a Viúva Velha na machamba, a cuidar, como de costume, dos seus frutos e legumes, quando um mensageiro do espírito lhe apareceu por trás. Voltou-se para olhar para ele, mas como o sol lhe dava nas costas, não conseguiu distinguir-lhe o rosto. A sua cabeça desenhava-se como uma silhueta negra contra um sol ofuscante.

- Que deseja? - perguntou-lhe.

- Cuida das próximas quatro cabaças que apanhares com um cuidado especial - disse o mensageiro -, pois elas serão como quatro filhos para ti.

- Que quer dizer? - perguntou a velha. - Como poderei cantar uma canção de ninar a uma cabaça ou dar-lhe amor? Como será ela capaz de me ajudar nas minhas tarefas diárias?

- Confia em mim - disse o mensageiro -, pois fui enviado pelo espírito da montanha.

A Viúva Velha pestanejou e o mensageiro desapareceu. Ela acreditava piamente no espírito e todos os dias lhe rezava... mas o que queria o mensageiro dizer?

Foi então colher as suas quatro cabaças seguintes. Uma delas era a maior e mais gorda que já lhe aparecera em muitos anos.

A Viúva Velha recordou as palavras do mensageiro, no entanto elas continuavam a fazer pouco sentido para si. As cabaças eram de origem vegetal... como poderia ela cultivar vegetais como se fossem seus filhos? Começou a desconfiar que, se calhar, não passava tudo de mais uma das brincadeiras maldosas de algum aldeão.

O melhor lugar para secar as suas cabaças recém colhidas era nas vigas que tinha na sua casa minúscula. Pendurar as quatro cabaças mais pequenas nas vigas não custou muito, mas quando chegou a vez da quarta - a que era enorme, bem cheia - o caso mudou de figura, pois o seu tamanho e peso não permitiram que levasse o mesmo caminho. Ficou, portanto, ao pé do canto onde acendia a lareira.

No dia seguinte, estava a Viúva Velha no mercado, o mensageiro misterioso entrou-lhe em casa e tocou nas três cabaças que estavam nas vigas, depois de o ter feito à que ficara ao pé do lume. Mal isso aconteceu, elas transformaram-se em crianças. A seguir, o mensageiro retirou-se.

As três crianças que se encontravam no cimo das vigas, olharam para baixo e acharam que era demasiado alto para saltarem.

- Ajuda-nos a descer, irmão mais velho - pediram à criança maior, a que saíra da cabaça que ficara junto da lareira. Chamaram-lhe «mais velho» porque sabiam que o mensageiro tocara nele em primeiro lugar.

O irmão mais velho ajudou os outros três a descer e não tardou que se pusessem todos a correr pela casinha da Viúva Velha, rindo e gritando de tanta alegria e brincadeira.

A certa altura, resolveram que era tempo de tratar um pouco da casa. Foram buscar coisas, carregaram-nas, arrumaram e limparam. O irmão mais velho ficou sentado a observá-los, sorridente. Era diferente dos outros. Faltava-lhe esperteza, mas tinha um papel importante a desempenhar: depois do trabalho feito, levantou-os de novo até os instalar nas suas vigas e a seguir foi para o mesmo sítio, junto da lareira.

Quando a Viúva Velha chegou do mercado, encontrou a casa limpa e arrumada como já não acontecia há muitos anos e uma carrada de lenha à porta. Não conseguiu compreender o que se passava. Olhou de relance para as quatro cabaças, mas não lhe passou pela cabeça outra ideia além dos esplêndidos vasos que dariam.

No dia seguinte, encontrava-se a Viúva Velha na sua pequena machamba quando uma das aldeãs mais amigáveis foi ter com ela.

- Quem eram aquelas crianças que ontem andavam a rir, correr, trabalhar e brincar pela tua casa? - perguntou-lhe.

- Crianças? - admirou-se a Viúva Velha. - Não sei de que crianças falas. Quantas eram?

- Que eu visse, umas três - replicou a aldeã -, mas mexiam-se a tal velocidade que pareciam uma vintena delas.

A Viúva Velha começou a dar voltas à cabeça, interrogando-se se recebera, de facto, a visita de um mensageiro do espírito da montanha... Afinal de contas, ela rezava-lhe todos os dias... De modo que resolveu voltar sorrateiramente a casa, a fim de investigar. Ali chegada, deparou, realmente, com três crianças a limpar e a arrumar, perante o olhar do irmão mais velho.

Ao entrar em casa, o irmão mais velho agarrou rapidamente nos mais novos e pendurou-os nas vigas, antes de, também ele, se transformar de novo numa cabaça.

- Não, esperem! - exclamou ela. - São meus filhos, não meus servos. Quero ajudar-vos, mas também desejo amar e cuidar de vocês. Não voltem a transformar-se em cabaças. Deixem-me alimentar-vos e vestir-vos em troca da vossa ajuda.

Então, as cabaças que estavam nas vigas voltaram à sua forma de criança, assim como o irmão mais velho, que depois os colocou novamente no chão da cabana.

Dali em diante nunca mais deixou de se ouvir o som alegre de risos a sair da casa da Viúva Velha e da machamba de frutos e legumes onde as crianças trabalhavam. Eram tão esforçadas e dedicadas que conseguiram cultivar mais frutos, legumes e cabaças do que a Viúva Velha poderia algum dia conseguir sozinha. Não tardou que ela dispusesse de dinheiro para comprar mais terras, chegando mesmo a ficar com as bananeiras do vizinho. A seguir, poupou o suficiente para arranjar algumas cabras... Depois, o bastante para um rebanho inteiro!

Depressa se tornou uma fazendeira rica e não precisou mais de trabalhar nos dias da sua vida.

Nunca mais voltou à velha machamba, mas continuou a cozinhar para ela própria e para os filhos... até que, um dia, tropeçou no rapaz mais velho que, sentado no sítio do costume, junto da lareira, sorria beatificamente.

A Viúva Velha trazia uma panela de guisado nas mãos, guisado esse que se espalhou por tudo quanto era sítio, o que a deixou furiosa.

- Quantas vezes te disse já para não ficares aí sentado que nem um... que nem um... que nem o vegetal inútil que és! - gritou. - Não sei porque hei de dar-me ao trabalho de cozinhar para ti e para os outros três. Afinal de contas, vocês não passam de... de uns vegetais!

Mal acabou de proferir a última palavra, o irmão mais velho transformou-se de novo numa cabaça e as risadas alegres deixaram de se ouvir. A Viúva Velha correu até fora de casa e onde, momentos antes, tinham estado crianças felizes, viam-se agora três cabaças pequenas.

Percebendo o erro que cometera, a Viúva Velha voltou para dentro de casa encharcada em lágrimas.

Viveu ainda durante muitos anos, sentindo-se ainda mais solitária do que antes, pois ter tido filhos e depois perdê-los era bem pior do que nunca os ter tido. Morreu pobre, infeliz... e sozinha.

Fonte:
Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Varal de Trovas n. 122


André Kondo (O Castelo)


Em tempestade, milhares de guerreiros trovejaram contra o grandioso castelo de Himeji*. Os olhos dos samurais, incendiados pelo brilho de suas espadas, relampejavam na escuridão da guerra. Os senhores feudais lançaram-se todos contra o universal domínio do xogum*. Cada qual pleiteava para si uma parcela do poder, desejando, no íntimo, não uma parte, mas a soberania total. Este era um tolo plano de guerra: primeiro destruir o xogum; depois, destruir-se uns aos outros. Quem sobrevivesse seria o governante de uma nação em ruínas,

Não seria uma guerra rápida. Tomar o castelo de assalto era uma tarefa quase impossível. Primeiro, os invasores deveriam ultrapassar o profundo fosso e a colossal muralha que cercavam todo o complexo fortificado. Em seguida, deveriam vencer um confuso labirinto de passagens. Surgiria outra muralha interna... E mais outra. Enquanto isso, lançada das torres, uma chuva de flechas, pedras e óleo fervente cairia sobre suas cabeças. Se chegassem ao coração da fortaleza, a torre principal de cinco andares, os violadores estancariam diante de uma base de impenetráveis rochas.

Portanto, tomar o castelo não era apenas uma questão de força. Era principalmente uma questão de paciência. Se não podiam invadir o castelo, deveriam esperar que o oponente saísse. Sitiar a fortaleza. Com essa conclusão, os inimigos se prepararam para um longo cerco. Os conselheiros procuraram o xogum, que caminhava tranquilamente pelo jardim. Apresentaram uma lista de provisões e cálculos, demonstrando que poderiam resistir por meses dentro das muralhas. Porém, em um cenário como aquele, a vitória seria quase impossível. A verdade era que a situação estava perdida. Mesmo assim, o xogum parecia mais interessado nas pacíficas flores de seu jardim do que na guerra.

— A florada das cerejeiras deste ano me parece a mais bela de todas... Nunca haverá outra mais bela do que esta.

Conselheiros, guerreiros e cortesãos demonstraram grande inquietação ante o aparente descaso do xogum.

— Perdoe-me, senhor. Mas como pode pensar em flores quando as nossas vidas correm perigo?

Uma brisa soprou, arrancando uma solitária pétala. Com um movimento preciso, o xogum a apanhou no ar, envolvendo-a com a mão.

— Posso impedir que esta pétala caia agora... Entretanto, não posso evitar a sua queda para sempre. Lamento que as suas vidas estejam em minhas mãos, pois não serei capaz de mantê-las eternamente.

Dizendo isso, o xogum desabrochou os dedos, permitindo que a pétala fosse carregada pela brisa que começava a se intensificar em vento.

Houve grande comoção, pois parecia que o xogum já havia desistido de lutar, abraçando a derrota. Acompanhado por todos os guerreiros, um dos generais insistiu em trazer a mente do líder à situação de guerra. Abrindo uma planta do castelo, exibiu o seu plano de defesa. Após ouvir as preocupações do general e de todos os conselheiros, o xogum ergueu o mapa, dizendo:

— Penso que todos acreditam que esta planta é uma representação do castelo. Para mim, nada mais vejo do que a imagem de um homem... Observem o fosso que ele rasga para se separar de tudo aquilo que julga ser "invasor", isto é, diferente de suas convicções. Vejam as muralhas que ele edifica, mascarando as suas fraquezas para enganar os seus medos. Observem o confuso labirinto de aparências que ele traça para enganar outras pessoas, para confundir todos os que querem chegar à torre principal: o seu coração...

Todos ouviam o xogum com grande emoção. Sentiam que faziam parte das pedras de seu castelo. E o xogum continuou:

— Todos os homens são castelos de si mesmos. Mas o que temos de diferente de todos os outros? O que o nosso castelo de Himeji em cada um de nós tem de especial? Quando todos observam de fora a nossa torre principal, o coração de nossa fortaleza, eles só enxergam cinco andares. Mas nós sabemos que existe um sexto pavimento, oculto, na câmara superior. Esse andar, que os estranhos desconhecem e de que até nós nos esquecemos de sua existência, não tem nome. A partir dele, temos a visão geral dos quatro cantos do castelo, temos a consciência de tudo o que nos cerca. Este andar oculto, da consciência em nosso coração, é o mistério da vida. E por ser inominável, invisível e inexplicável... faz do nosso coração um mistério capaz de alcançar o impossível!

Todos os guerreiros no interior do castelo sentiram o coração bater mais forte. O vento soprava. Os olhares, antes receosos, decidiram-se de súbito, Os olhos do xogum se iluminaram:

— Agora, observem a verdadeira força que este castelo possui — dizendo isso, o xogum percorria com o dedo o traçado da fortaleza. — As muralhas, que parecem arraigadas à terra, tomam a forma de um pássaro prestes a alcançar os céus!

Talvez seja por isso que, a partir daquele dia, o castelo de Himeji passou a ser conhecido como Shirasagi-jo, o castelo da garça branca, pois, de fato, o traçado de suas muralhas retrata um pássaro se preparando para alçar voo.

Dizendo isso, o xogum bradou, suas palavras sobrepondo-se aos rumores do vento:

— Não podemos nos tornar prisioneiros de nosso próprio castelo. Somos homens livres! Não devemos deixar que o medo nos aprisione. Não podemos nos permitir sobreviver se o preço do resgate é deixar de viver, pois uma vida aprisionada é um suicídio sem morte! Lutemos para conquistar as nossas asas!

De um só golpe, o vento rugiu ainda mais forte, ultrapassando as muralhas do castelo, fazendo com que as pétalas das flores de cerejeira rodopiassem em fúria, abraçando o xogum e seus guerreiros, que bradavam a uma só voz. Suas espadas voaram contra os inimigos, que foram totalmente surpreendidos por aquele ataque. Os papéis haviam se invertido. Aturdidos e preparando-se para uma situação de sítio e não de combate imediato, pereceram diante da maior arma da vitória: o valor secreto que se revela inesperadamente no coração de um homem livre,

E aquela batalha memorável nunca mais seria esquecida, porque mostrou a todos que um homem não merece o poder apenas por ser forte como um castelo, mas também por ter a coragem de abandonar a segurança de seu ninho, erguendo as suas asas em audaciosos voos.

Após a grande vitória, caminhando ao lado do xogum entre as exauridas cerejeiras do jardim, um dos conselheiros afirmou:

— De fato, meu senhor, nunca houve e nem haverá uma florada mais bela do que a deste ano.

E o xogum respondeu:

— Imagino, agora, que a do ano que vem será ainda mais bela...
_____________________
Notas:
 Castelo de Himeji (em japonês: Himeji-jo), também conhecido como Hakurojō ou Shirasagijō devido ao seu brilhante exterior branco, é um complexo palaciano com 82 edifícios de madeira, localizado na cidade de Himeji, Província de Hyogo, no Japão.
Uma das mais antigas estruturas ainda existentes do Período Sengoku, é considerado como um Tesouro Nacional do Japão, tendo sido classificado como Património Mundial da Humanidade pela UNESCO, em Dezembro de 1993. Juntamente com o Matsumoto-jo e com o Kumamoto-jo, é um dos "Três Famosos Castelos" do Japão e o mais visitado do país. (wikipedia)

Xogum (literalmente "comandante do exército", em português), é a abreviação do termo japonês Seii Taixogum (literalmente "Grande General Apaziguador dos Bárbaros"), foi um título militar, usado no período do Japão feudal, concedido diretamente pelo Imperador ao general que comandava o exército (enviado a combater os emishi, habitantes do norte do país). Até 1192, este título possuia nomeação temporária.
Desde o século XII até 1868 o xogum constituiu-se como o governante de facto de todo o país, embora teoricamente o Imperador fosse o legítimo governante e depositasse a autoridade no xogum para governar em seu nome. (wikipedia)


Fonte:
André Kondo. Contos do Sol Renascente. Jundiaí/SP: Telucazu Ed., 2015.

Luiz Gonzaga da Silva (Trova e Cidadania) 5 - Criança


Cada vez que nasce uma criança há uma possibilidade de adiamento. Cada criança é um novo ser, um profeta em potencial, um novo príncipe espiritual, uma nova centelha de luz que se precipita na escuridão (Ronald Laíng).

O tema criança é abordado aqui porque ela representa a esperança de vermos um mundo melhor, um mundo onde a ambição, a desigualdade e a miséria sejam abolidas das nossas vidas. Mas também porque a criança, assim como a mulher, até o século XIX não era vista como um cidadão, não era levada em conta nas decisões estatais e civis, E é pela boa formação da criança que deve começar o exercício da cidadania.


Quando nasce uma criança,
brota no mundo uma flor...
Flor de uma nova esperança,
nova esperança de amor!
Prof. Garcia - RN
 

Como se fosse riqueza,
inda guardo essa lembrança:
- Um dia eu vi a pureza
nos olhos de uma criança.
Ivaniso Galhardo - RN
 

Em meus sonhos de criança
desejei pescar a lua
e pus anzóis de esperança
nas poças d'água da rua.
Delcy Canalles - RS
 

Um sorriso de criança
mostra um momento profundo,
onde vigora a esperança
de ressurgir novo mundo!
Taciana Canales da Trindade - RS

Infelizmente milhões de crianças vivem abandonadas, sem esperança. É triste vermos todos os dias o que fazemos com as nossas crianças, Elas são as vítimas mais frágeis do nosso desespero e da nossa violência. Sem rumos, perdidos num mundo de violência, não sabemos o que fazer para livrar as nossas crianças do horror e do abandono.

Num mundo sem esperança,
perdido na violência,
como acolher a criança,
tão frágil em sua inocência?
Gonzaga da Silva - RN

Chego a perder a esperança,
vendo ao relento, a dormir,
uma sofrida criança
sem lar, sem paz, sem porvir!
José Valdez de Castro Moura - SP

Vi o pranto derramado
na face de uma criança.
O mundo desnaturado
lhe roubava uma esperança.
Maria Silva Carriço - RN

Passam sempre em meu portão,
trazendo um fardo de dor,
crianças que não têm pão,
pedindo "um pão por favor"!...
Ademar Macedo - RN

Bem caprichosa é a sorte
da infância desprotegida
que vive à espera da morte,
por nada esperar da vida.
Almerinda Fernandes Líporage – RJ

Triste é ver uma criança
no abandono, sem um lar,
pois, sendo a própria esperança
não tem muito o que esperar!
Arlindo Tadeu Hagen - MG

Quanta miséria contida
no olhar tímido e tristonho
de uma criança perdida
entre farrapos de sonho...
Elen de Novais Félix - RJ

Anoitece… aumenta o frio...
E para os guris sem nome,
surge um novo desafio:
dormirão ao lado da fome!
Elen de Novais Félix - RJ

Algumas dessas crianças abandonadas vivem um pouco mais confortáveis quando recolhidas a instituições, uma solução provisória. A adoção poderia ser uma solução mais adequada. Muitos casais anseiam por um filho e gastam enormes somas de dinheiro em clínicas de fertilização. Por que não adotar uma dessas crianças?
 
Por que crianças com frio
não tem o sol de um abraço,
se em tanto braço vazio
há desperdício de espaço?
Almerinda Fernandes Liporage - RJ
 

Quem adota uma criança,
e, além do amor, dá guarida,
abre a porta da esperança
como pai que gera a vida.
Hélio Pedro Souza - RN


Fonte:
Luiz Gonzaga da Silva (org.). Trova e Cidadania. Natal/RN, abril de 2019.
Livro enviado pelo autor.

Chico Anysio (Mudança)


Era em São Paulo, mais precisamente na Rua Traipu. Fechavam-se as portas da mansão, cerrando-se, à mesma hora, alguns anos de mistério e melindrosas estórias.

O último objeto a ser colocado no caminhão-ônibus da transportadora foi um vaso chinês.

— Cuidado. É relíquia — disse ao mulato que levava a peça no ombro.

O mulato, carioca como companhia de transportes, sorriu-lhe.

— Tô sabendo. Tá comigo, tá com Deus.

Chamava-se Gualberto, mas preferia que o chamassem de Guga, diminutivo que o agradava, e que supunha estar de acordo com a sua personalidade. Estava. Sempre cuidadoso, tratando de suas coisas com exagerado esmero, limpando e polindo o que os empregados já tinham polido e limpado.

— Olhe o pó que está no aparador!

Talvez fosse melhor se, em lugar de empregados, preferisse as empregadas. Mas não se dava a esta preferência.

— Mulher só serve para desarrumar — justificava com uma voz grave e viscosa.

Obeso, branco, quase láteo, tinha mãos gordas e dedos absurdamente curtos. Os óculos, aros de tartaruga, insistiam em descer à ponta do nariz, sem que ele se preocupasse em recolocá-los no lugar devido, o que mais o enfeava.

Tomava sol todas as manhãs, inclusive as de frio intenso. Sem nenhuma vergonha, estendia uma vistosa toalha vermelha no jardim e ali se deitava, facilmente visto por quem passasse na rua.

Poderia enganar a idade, coisa que, aliás, fazia. Dizia ter 45 anos, mas já dobrara os 50 há alguns meses. Agradava-lhe sentir-se mais jovem.

— Adivinha minha idade — pedia demais.

— 42 — iludiam.

— E cinco, nenén. E cinco! — repetia, vibrando.

E sungava as calças com os cotovelos, rindo sem entreabrir os lábios. Puxava a barriga e inflava o tórax, na inútil tentativa de transformar em músculos a gordura quase seio. Apesar disso, pisava leve, invulgarmente suave. Poder-se-ia dizer que deslizava.

— O carro está pronto, Doutor.

Era o chofer, que era louro.

— Já vou, Tommy — falava ao motorista.

E Tomaz ia esperá-lo no carro, nada gostando daquele modo agringalhado como o patrão o chamava.

— Rua Augusta, Tommy.

Vestia-se no Minelli, sempre exorbitando na juvenilidade das roupas. O alfaiate, de início, tentara vesti-lo à maneira dos cinquentões. Desistiu quando percebeu que Gualberto preferia que soubessem que era Guga. A camisa não variava de cor. Invariavelmente preta.

— Negro emagrece — explicava, com mingau na voz. Sempre dizia "negro". Dia algum chamou de "preto" a cor por que optava.

— Preto é pobre — definia, dando nojo à palavra. Tratava os rapazes na segunda pessoa. As moças, chamava de você.

— Oi, Margot, você está bem? E tu, Waldir?

Mudava o tom pra ele, sentindo e exibindo que o "tu" era mais íntimo. Apreciava a felicidade de poder ser íntimo de um pequeno time de jovens. Os jovens a quem — não se cansava de falar — adorava.

— Odeio gente usada.

Era dado a formar frases que imaginava viessem a ficar na história. E foi dos primeiros a usar bolsa.

— Homem tem que usar bolsa. As calças, hoje, não têm lugar pra gente guardar nossas coisinhas.

Suas "coisinhas" eram o cartão do CBC e um pente. Fazia uso dos dois com frequência. As contas pagava ele. E era um bom pagador. De gordas gorjetas. A propina, não a deixava no pires; entregava-a, mão-com-mão, ao garçom, que, via de regra, encabulava-se pelo discreto apertar que sentia.

Ele se ria do acanhamento do moço. Não sabia rir. Precisava, após a risada, enxugar-se. Como não usasse lenço, secava o canto da boca com a manga da camisa. Sem pejo da atitude contrastante com sua educação.

— Aceita um licorzinho?

Era o primeiro oferecimento aos moços que traziam as compras que fizera de tarde. Muitas, desnecessárias. Havia os que aceitavam. Guga, menos só, ficava mais alegre.

Lia Fernando Pessoa para os rapazes que lhe levavam os embrulhos. Entontecia-se discretamente com o lança-perfume que misturava à colônia forte em que embebia o lenço. Usava lenço em casa apenas. E unicamente enquanto lia Fernando Pessoa.

— "Eu, que tenho sentido o piscar dos olhos dos moços de fretes, / eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar, / eu, que quando a hora do soco surgiu me tenho agachado. / Para fora da possibilidade do soco".

Banhado pela luz vermelha do abajur que Guga escolhera acender, sem entender coisa alguma, o moço de fretes escutava. Sem entender, mas tudo percebendo. Muitos percebiam, nos dois sentidos.

E agora se ia de mudança. O caminhão da Fink já dobrava na Avenida São João, enfrentando o tráfego difícil do meio-dia. Ele, como um cão que zela pelo dono, seguia atrás, na vigia dos seus pertences.

Cortaria a Via Dutra atrás do caminhão. Sempre temeroso de que a porta se abrisse e por ela caíssem suas relíquias, seus quadros, sua cama, suas coisinhas.

O chofer do seu carro não era mais Tommy. Era um rapaz do Rio. Guga, como sempre, não viajava atrás, mas na boleia. No colo, o livro de Fernando Pessoa.

Fonte:
Chico Anysio. O Enterro do Anão.

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Varal de Trovas n. 121


Rachel de Queiroz (Os Temas Eternos)

    

Recebo uma carta onde o correspondente reclama porque nós, jornalistas, sempre fugimos dos temas eternos. Porque só nos comprazemos com o efêmero — a carestia da vida, as dificuldades da existência urbana, as deficiências dos serviços públicos, os dramas do cotidiano e outras infelicidades transitórias.

A primeira resposta que ocorre é que a gente se ocupa do efêmero porque não tem grandeza suficiente para tratar do eterno. Mas depois dessa reação de humildade, vem a pergunta: na realidade que é que pode ser chamado, em termos humanos, de efêmero e de eterno? Parece que o que se considera eterno ou “temas eternos” são: a Arte, a Beleza, a Ciência, a Religião, o Amor e a Morte. Pelo amor e morte, vá, que são mesmo eternos. Mas os outros conceitos — de beleza, religião, etc., serão eles menos transitórios que as outras preocupações humanas?

Conceito de beleza, por exemplo: nada mais variável. E não só o da beleza feminina que nos primeiros lustros do século rondava pelos setenta quilos de peso e hoje (hélas!*) não pode passar um grama além dos cinquenta. Quem duvidar procure descobrir uma mulher que tenha exatamente as medidas do padrão universal da beleza que é a Vênus de Milo; vistam-na numa roupa de hoje em dia e será um escândalo!

A Vênus terá que ir para a dieta, perder pelo menos uma arroba das suas divinas enxúndias (*). E teremos então uma lição prática de como variam os critérios de beleza,

Ciência. O que para nós é ciência admirável, daqui a cem anos talvez não passe de meras e tateantes primícias. As maravilhas que se inventam hoje, daqui a uns tempos — curtos — hão de ser encaradas com condescendência e ternura, assim como a gente encara a desesperada procura dos alquimistas pela pedra filosofal.

A Arte. Esta, sabemos bem que não é eterna. Ou, mesmo eterna, a sua eternidade depende das modas, pois periodicamente se alteram os motivos da nossa veneração artística pelo passado. O padrão pode estar no Egito e pode estar na Grécia ou na África Negra — e assim exibiremos como modelo de arte eterna uma deusa helênica, um ídolo totem, um gato faraônico. Essas e outras manifestações de arte que consideramos imortais — como os poemas eternos — na verdade quem os leu senão os contemporâneos da obra, quem os lê hoje senão pacientes eruditos?

Eternidade, eternidade, só mesmo para o efêmero que o signatário da carta desdenha. A fome, que se traduz nos problemas de abastecimento e carestia. O Abrigo, que se revela na crise habitacional. E as leis que eternamente regem os homens são: lei do Movimento, que cuida dos transportes, isto é, trens, ônibus, aviões, carros, filas de embarque. E do preço da gasolina. A Lei do Menor Esforço, que nos leva a lutar pela maior comodidade doméstica e funcional — e aí vêm os telefones, a eletricidade, a falta de água, as relações domésticas. A Lei da Procura do Divertimento e do Lazer — e faz com que discutamos cinema, TV, teatro, férias, praias, esportes. Ainda há o Amor e especialmente a Morte, que o correspondente reivindica e ninguém lhe nega — eternos sim mas com a sua venerável, eternidade cabendo quase toda nas notas de polícia.

Não são pois os jornalistas que abandonam os temas eternos. Mais os abandonam os outros que se encerram na metafísica e no hermetismo literário — esses que o vulgo põe tão acima dos simples gazeteiros. Ou, se os não abandonam propriamente tratam esses mesmos temas por outros ângulos que não os nossos: por outro ângulo, sim, mas os temas são os mesmos. Quer se estude o amor fatal num ensaio filosófico quer se conte o caso da moça de programa que tocou fogo na roupa para se vingar do namorado, o tema é o mesmo — o amor, o eterno amor, que governa os deuses e os homens, os filósofos e as mulheres da vida.

Tema eterno é isso.

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Glossário
Enxúndia – a adiposidade no ser humano; gordura, banha.
Hélas – interjeição que exprime dor, queixa, arrependimento; ai de mim, pobre de mim.
 
Fonte:
Rachel de Queiroz. As Menininhas e outras crônicas. RJ: J. Olympio, 1976.

Filemon F. Martins (Poemas Escolhidos) V


ELOGIO AO AMOR

Neste caminho eu sigo contemplando
a Natureza exuberante e bela,
passarinhos nos ramos saltitando
entoando canções em aquarela.

Aonde quer que eu vá, eu vou cantando
a pureza do amor, pintado em teia,
que Deus o produziu, por certo amando,
para mostrar ao mundo, em passarela...

O amor? Triste de quem não tem amor,
nem sentiu nesta vida alguma dor,
nem teve uma saudade a recordar?

Pois o amor é um sublime sentimento
que ferve, vibra e invade o pensamento,
e nos leva ao delírio para amar!

ESPERANÇA DE AMOR

Trago no coração um sonho imenso
que o tempo foi jogando para trás,
cada dia que eu vivo, me convenço:
eu nada sou sem teu amor audaz.

A vida sem amor é um contrassenso,
quem vive sem amor nunca tem paz.
Sou mais feliz se tenho, sinto e penso
no milagre que o teu amor me traz.

Depois do vendaval, vem a bonança,
a vida sempre traz uma esperança
que se renova bela como a flor...

E pelo mundo, então, prossigo amando,
e as esperanças vão nascendo em bando
cantando à vida uma canção de amor!

EXPLICAÇÕES

Nunca mais eu te vi na minha rua,
— quantas noites fiquei à tua espera?
As vezes conversava com a lua
e tu chegavas como a primavera.

Partiste. A dor no peito se acentua,
esquecer-te, talvez, ai quem me dera!
Que a minha vida triste continua,
e sem amor, a mágoa é que prospera.

Meu coração, no entanto, tão teimoso
insiste em te buscar, sempre ditoso,
sabendo que jamais hás de voltar.

Ao ver morrer meu sonho, morro junto,
mas antes de morrer em vão pergunto:
— que explicações o amor tem para dar?

FESTA DE NATAL

Neste Natal sublime de esperança,
não desejo vaidade nem riqueza.
Não quero desamor, desconfiança,
quero apenas Amor na minha mesa.

Quero o Perdão sobrando na balança,
quero o sorriso simples da Beleza,
quero a vida singela da Criança
contrastando o Poder e a Realeza.

Não quero ver o mundo na pobreza,
não quero ver a terra na aspereza,
prefiro ver o Amor reinando além.

Desejo ver meu coração ornado
pela graça do Amor, afortunado,
pela grandeza de espalhar o Bem.

GARIMPANDO A FELICIDADE

Vou garimpando pela vida afora
a lição da Humildade que conforta
e traz ao coração a Luz da aurora,
mesmo que a crença já pareça morta.

De solo em solo, busco sem demora
o cascalho do amor que aduba a horta.
Busco a pedra da Fé, que revigora
e prepara o caminho abrindo a porta.

Não quero, meu amigo, andar a esmo,
minha sorte depende de mim mesmo,
que a vida pode ser melhor assim.

E se meus passos forem tão errantes,
buscando joias, pedras, diamantes,
- não haverá felicidade em mim!

IMAGINAÇÃO

Caminho pelas nuvens. É verdade.
Gosto de voar com o pensamento;
com ele volto à minha mocidade
e corro pela praia como o vento.

Da terra eu me transporto com vontade,
visito estrelas pelo firmamento
e escrevo versos simples, sem vaidade,
vestidos de paixão e sentimento,

Os poetas têm sonhos e segredos
que, como as ondas, se quebram nos rochedos,
mas sempre voltam para a beira-mar.

Não há fronteiras para os sonhadores
que pelo mundo vão plantando flores
nos corações que vivem para amar.

INTENSO AMOR

Eu nada vou dizer, quando voltares,
quero apenas rever esse teu rosto.
Tu foste a inspiração nos meus cantares
permeados de amor e de bom gosto.

Por isso quero andar por onde andares,
que o medo de sofrer me faz disposto.
A ausência de teus traços singulares
sofrimento maior me tem imposto.

Não quero me perder neste caminho,
antes, quero sorver o teu carinho,
esse néctar que o teu amor me traz.

Com meus cabelos brancos de saudade,
quero te amar com toda a intensidade
como te amei nos tempos de rapaz!

Fonte:
Filemon Francisco Martins. Anseios do coração. São Paulo: Scortecci, 2011.
Livro enviado pelo autor.

Arthur de Azevedo (História de um Dominó)


Perdoem-me os leitores se eu, de ordinário alegre, venho contar-lhes uma história triste, num dia em que todos estão predispostos ao riso; mas. . . que querem? Tenho uma natureza especial: o carnaval entristece-me, e o “Abre alas, que quero passar” soa aos meus ouvidos como um canto de agonia e de morte.
* * *

Dado esse pequeno cavaco, saibam os leitores que conheço um homem, o Abreu, que é o mais triste dos homens: só se compraz na solidão e no silêncio, não tem amigos, vive só, e nunca ninguém o viu rir, nem mesmo sorrir.

Entretanto, esse casmurro, em chegando o carnaval, veste um dominó e sai à rua mascarado. Isto são favas contadas todos os anos.

O ano passado um vizinho teve a curiosidade e a pachorra de mascarar-se também para acompanhá-lo a certa distância, e observar o que ele fazia.

Era domingo gordo; toda a população estava na rua. O Abreu apeou-se do bonde, o mesmo bonde em que vinha o curioso que o acompanhava, um bonde do Catumbi, o bairro onde moravam ambos, e desceu com muita dificuldade a Rua do Ouvidor. Chegando em frente à casa de um alfaiate, em cuja porta estavam sentadas algumas donas e donzelas à espera das sociedades, parou, encostando-se na parede da casa fronteira, e ali se deixou ficar, pegando no grupo das senhoras os olhos, que faiscavam através dos dois buracos da máscara de seda.

O Abreu demorou-se ali seguramente meia hora, e o vizinho, farto de esperar, resolveu abandoná-lo, dizendo consigo: – Ora! é um esquisito!… Deixemo-lo!…

Deixou-o efetivamente, mas uma hora depois voltou, e ainda lá encontrou o Abreu no mesmo ponto e na mesma posição em que o havia deixado. Examinou então com mais cuidado o grupo das senhoras, e reconheceu, surpreso, que uma delas era a mulher do Abreu.
* * *

Sim, que o Abreu tinha sido casado com uma bonita mulher que um dia o abandonou para amancebar-se com um sujeito que ele supunha seu amigo, e ao qual abrira confiadamente as portas de sua casa. O amante lá estava por trás do grupo também à espera das sociedades. Toda a gente os supõe casados.

Desde que lhe sucedeu essa desgraça, o Abreu tornou-se triste, e sua tristeza durou e dura ainda, porque ele amava profundamente aquela ingrata. Amava-a tanto, que neste mundo só uma coisa lhe proporcionava um simulacro de prazer: vê-la de perto.

Entretanto os leitores compreendem que o Abreu não poderia procurar a miúdo tão singular espécie de consolação, e nos raros encontros fortuitos que tinha com ela, não a encarava de modo a satisfazer aquele apetite mórbido.

Mas uma vez, há cinco anos, disseram-lhe que sua mulher tinha assistido ao carnaval sentada à porta do alfaiate e, no ano seguinte, o Abreu, metido num dominó alugado, foi verificar se ela escolhera o mesmo ponto. Encontrou-a, e durante muitas horas conseguiu vê-la de perto e à vontade.

Daí por diante o infeliz marido não perdeu um carnaval, e é muito provável que amanhã lá esteja a postos em frente à casa do alfaiate. Os leitores, com alguma pachorra, poderão certificar-se de que este conto não é inventado.

Fonte:
Arthur de Azevedo. Contos Vários.

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Varal de Trovas n. 120


Nilto Maciel (O Castigo de Deus)


Olhei para o chão. Uma sombra deslizava, corria. Respirei e senti cheiro de coisa queimada. Mormaço insuportável. Olhei para o céu, na esperança de ver alguma nuvem de chuva. O sol, pardacento, quase me cegou. Levei as mãos à testa e corri para junto de mamãe, que lavava roupa junto ao tanque cheio de água. Ela nem deu resposta à minha inquietação. Antes, quis saber a causa de tanta tropelia. Fosse brincar na sala e não lhe desse mais sustos. Terminava me batendo.

Assustado, corri, atravessei o corredor e alcancei a porta da rua. Às janelas, mulheres estiravam os olhos para as bandas do céu. E mexericavam medos antigos de fogos vindos do alto para castigar os pecadores. Nas calçadas, esquecidas pelos meninos, castanhas de caju se assavam. Pés descalços não suportavam a quentura do chão. Evolava-se dele uma fumaça espessa.

– Incêndio, minha gente, incêndio!

O homenzinho parecia aflito, suava muito e fedia à cachaça. Talvez fugisse para a serra. O jumento, no entanto, mostrava-se manso, sem a mínima vontade de andar. Com certeza, se sentia cansado de carregar carga tão pesada de bugigangas nos caçuás. Nem olhava para trás nem para o alto.

– Incêndio, meu povo, incêndio!

À falta de ouvintes para sua notícia, o homem vibrava o chicote no ar, como para alertar o animal. O fogo devorava a fábrica do Seu Cordeiro. E ninguém ia apagar as chamas? O jumentinho dava um passo, catava capim, resfolegava. Aproximava-se deles outro curioso, olhos fitos na fumaça cinzenta que passeava sobre todas as coisas. Ninguém ia apagar o fogo?

Medo redobrado, voltei ao quintal e acocorei-me ao pé das bananeiras, onde sempre fazia frio. A terra úmida molhava meus pés e me confortava. No alto, porém, a fumaça corria e, de vez em quando, fazia sombra. Parecia até nuvem de chuva. O homem e seu jumento talvez já tivessem ido embora. Fui até junto ao muro. Não fossem os cacos de vidro, eu poderia ver as ruas, a fábrica do Seu Cordeiro, o incêndio. Línguas vermelhas a lamber o céu azul. E as casas, toda a cidade. Sim, o fogo devoraria tudo, coisas e pessoas. A menos que fôssemos todos para o meio da rua, as praças. Ou para a igreja matriz. Lá o fogo não entraria. Na casa de Deus a salvação. Quando o mar invadisse a terra, no dilúvio do fim do mundo, quem quisesse se salvar, buscasse abrigo no interior da igreja. As águas não passariam dos degraus do patamar, enquanto o mundo estaria alagado.

– O mundo vai se acabar.

E, se não fosse pela água, seria pelo fogo. Por que então não corríamos todos para a matriz?

– Vamos, mãe.

Fazer o quê na igreja àquela hora do dia? Deixasse de besteiras, fosse brincar.

Obediente, atravessei de novo a casa, aos pulos. Da janela avistei o jumentinho, a comer o capim da rua, conformado com sua carga, manso como antes. O homem, suado, no entanto, falava mais alto e gesticulava muito, cercado de curiosos. No céu, a fumaça negra fazia sombras enormes no chão.

Aflito, busquei refúgio no quarto de dormir e me ajoelhei diante do santuário. Deus nos protegeria. Olhei para o teto: a telha de vidro servia de claraboia. No entanto, a luz do sol quase não penetrava no quarto. E papai, onde estaria? Corri mais uma vez para perto de mamãe. Ela saberia me dizer. Nem tive tempo de abrir a boca. Fosse logo tomar banho.

– Seu pai está para chegar.

Precisava ter certeza daquilo e, numa carreira medonha, atravessei a cozinha, a sala de janta, o corredor, e cheguei à sala.

– O que é isso, meu filho?

Ele tirou o chapéu e se dirigiu aos fundos da casa. Estava salvo.

Mais longe, o jumento não parava de comer capim. Onde andaria o homenzinho suado? Estiquei o pescoço – o desgraçado apareceu à porta da bodega de Seu Quincas e cuspiu.

– Venha tomar banho logo, menino mal-ouvido.

Fonte:
Nilto Maciel. Tempos de Mula Preta, contos. Secretaria da Cultura do Ceará: 1981.
Livro enviado pelo autor.