A alegria no circo era imensa. Ainda que o espetáculo não valesse nada, todos se dariam por bem pagos da viagem pelo simples prazer da reunião. Os convidados do reino das Águas Claras estavam radiantes de se verem com os famosos personagens que até ali só conheciam através dos livros de histórias. E estes, como fazia muito tempo que não vinham à terra, estavam satisfeitíssimos de se verem em companhia de crianças de carne e osso.
Já soara o terceiro sinal e nada do espetáculo ter começo. O “respeitável público” ia ficando irritado. Narizinho achou que o melhor era começar imediatamente.
— Não posso antes de vovó chegar — alegou Pedrinho. — Está se arrumando ainda. Como as princesas vieram, vovó teve de mudar de vestido e está passando a ferro aquele de gorgorão do tempo do Imperador. Tia Nastácia não sei se vem. Está com vergonha, coitada, por ser preta.
— Que não seja boba e venha — disse Narizinho. — Eu dou uma explicação ao respeitável público.
Afinal as duas velhas apareceram — dona Benta no vestido de gorgorão, e Nastácia num que dona Benta lhe havia emprestado.
Narizinho achou conveniente fazer a apresentação de ambas por haver ali muita gente que as desconhecia. Trepou a uma cadeira e disse:
— Respeitável público, tenho a honra de apresentar vovó, dona Benta de Oliveira, sobrinha do famoso cônego Agapito Encerrabodes de Oliveira, que já morreu. Também apresento a princesa Anastácia. Não reparem ser preta. É preta só por fora, e não de nascença. Foi uma fada que um dia a pretejou, condenando-a a ficar assim até que encontre um certo anel na barriga de um certo peixe. Então o encanto se quebrará e ela virara uma linda princesa loura.
Todos bateram palmas, enquanto as duas velhas se escarrapachavam nas suas cadeiras especiais.
— Palhaço! — gritou o Pequeno Polegar.
— Podemos dar começo — disse Pedrinho à menina. — Vá preparar a Emília que eu vou cuidar do palhaço.
Como o primeiro número do programa era uma corrida a cavalo da Emília, Narizinho deu-lhe os últimos retoques e fez-lhe as últimas recomendações. Pela primeira vez na vida a boneca mostrava-se um tanto nervosa. Blem, blem, blem, soou a enxada. Era hora.
Uma cortina se abriu e a boneca entrou em cena montada no seu cavalinho de rabo de galo. Foi recebida com uma chuva de palmas. Emília fez uma graciosa saudação de cabeça, atirou uns beijinhos e começou a correr.
Correu várias voltas, umas sentada de banda, outras, de pé num pé só.
— Que danada! — exclamou dona Benta. — Nunca pensei que Emília se saísse tão bem; até parece o Tom Mix...
Tia Nastácia apenas murmurou “Credo”! e persignou-se.
Quando chegou o momento de pular os arcos, surgiu lá de dentro Faz-de-conta com dois deles na mão. Coitado! Estava mais feio do que nunca na roupa de cowboy que Narizinho lhe arranjara. Aladim virou se para o Gato de Botas e disse: “Este é que é o verdadeiro Cavaleiro da Triste Figura”, e o Pequeno Polegar berrou: “Arranca o prego, bicho careta!”
Aquele prego de Faz-de-conta, cuja cabeça aparecia quando ele estava sem chapéu e cuja ponta furava as costas de todos os seus casacos, era um eterno assunto de discussão no sítio. Pedrinho achava que deviam chamar o doutor Caramujo para operá-lo, cortando com a sua serrinha o extravagante apêndice. Mas a menina era de opinião que tal ponta de prego constituía a única arma do coitado. Além disso, era um bom cabide que ela costumava utilizar nos seus passeios com a boneca. Para pendurar coisas leves, como chapéu ou o guarda-chuvinha da Emília, nada melhor. E em vista dessa utilidade a ponta de prego ia ficando nas costas do coitado.
Faz-de-conta não ligou importância às troças que o público fez à custa dele. Trepou num banquinho e segurou com toda a convicção o arco de papel vermelho que Emília ia pular. A boneca botou o cavalo no galope, correu duas voltas e na terceira — zupt! deu um salto. Os espectadores romperam em palmas delirantes. O segundo arco era de papel azul e o terceiro, de papel verde. Emília pulou com a mesma habilidade o azul; mas ao pular o verde houve desastre.
Imaginem que o cavalinho entendeu de pular também! Pulou, não há dúvida, mas o seu rabo de pena enganchou no prego de Faz-de-conta, onde ficou dependurado. Quando o público viu que o rabo de pena havia passado do cavalinho para o cabide do boneco, foi uma tempestade de gargalhadas. Não percebendo o que havia acontecido, Faz-de-conta recolheu-se aos bastidores balançando ao vento aquele penacho.
Emília também não percebeu o desastre, e julgando que as risadas e vaias eram para ela, parou, vermelhinha como um camarão, e botou uma língua de dois palmos para o público. E recolheu-se furiosa.
— Não brinco mais! — disse lá nos bastidores, arrancando e espatifando o saiote de gaze. — Não sou palhaço de ninguém.
Foi um custo para Narizinho explicar o que havia acontecido e provar que a vaia tinha sido no cavalo e no boneco, não nela. A raivosa Emília voltou-se então contra o pobre Faz-de-conta.
— Estupido! Onde se viu tamanho homem andar de fisga nas costas, feito anzol?
— Que culpa tenho? — gemeu o feiúra tristemente. — Nasci assim...
— Pois não nascesse! — rematou a boneca — e por força do hábito pendurou-lhe na ponta do prego o esfrangalhado saiote de gaze.
––––––––––––––
Continua… Circo de Cavalinhos – VI – O desastre
Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa
Já soara o terceiro sinal e nada do espetáculo ter começo. O “respeitável público” ia ficando irritado. Narizinho achou que o melhor era começar imediatamente.
— Não posso antes de vovó chegar — alegou Pedrinho. — Está se arrumando ainda. Como as princesas vieram, vovó teve de mudar de vestido e está passando a ferro aquele de gorgorão do tempo do Imperador. Tia Nastácia não sei se vem. Está com vergonha, coitada, por ser preta.
— Que não seja boba e venha — disse Narizinho. — Eu dou uma explicação ao respeitável público.
Afinal as duas velhas apareceram — dona Benta no vestido de gorgorão, e Nastácia num que dona Benta lhe havia emprestado.
Narizinho achou conveniente fazer a apresentação de ambas por haver ali muita gente que as desconhecia. Trepou a uma cadeira e disse:
— Respeitável público, tenho a honra de apresentar vovó, dona Benta de Oliveira, sobrinha do famoso cônego Agapito Encerrabodes de Oliveira, que já morreu. Também apresento a princesa Anastácia. Não reparem ser preta. É preta só por fora, e não de nascença. Foi uma fada que um dia a pretejou, condenando-a a ficar assim até que encontre um certo anel na barriga de um certo peixe. Então o encanto se quebrará e ela virara uma linda princesa loura.
Todos bateram palmas, enquanto as duas velhas se escarrapachavam nas suas cadeiras especiais.
— Palhaço! — gritou o Pequeno Polegar.
— Podemos dar começo — disse Pedrinho à menina. — Vá preparar a Emília que eu vou cuidar do palhaço.
Como o primeiro número do programa era uma corrida a cavalo da Emília, Narizinho deu-lhe os últimos retoques e fez-lhe as últimas recomendações. Pela primeira vez na vida a boneca mostrava-se um tanto nervosa. Blem, blem, blem, soou a enxada. Era hora.
Uma cortina se abriu e a boneca entrou em cena montada no seu cavalinho de rabo de galo. Foi recebida com uma chuva de palmas. Emília fez uma graciosa saudação de cabeça, atirou uns beijinhos e começou a correr.
Correu várias voltas, umas sentada de banda, outras, de pé num pé só.
— Que danada! — exclamou dona Benta. — Nunca pensei que Emília se saísse tão bem; até parece o Tom Mix...
Tia Nastácia apenas murmurou “Credo”! e persignou-se.
Quando chegou o momento de pular os arcos, surgiu lá de dentro Faz-de-conta com dois deles na mão. Coitado! Estava mais feio do que nunca na roupa de cowboy que Narizinho lhe arranjara. Aladim virou se para o Gato de Botas e disse: “Este é que é o verdadeiro Cavaleiro da Triste Figura”, e o Pequeno Polegar berrou: “Arranca o prego, bicho careta!”
Aquele prego de Faz-de-conta, cuja cabeça aparecia quando ele estava sem chapéu e cuja ponta furava as costas de todos os seus casacos, era um eterno assunto de discussão no sítio. Pedrinho achava que deviam chamar o doutor Caramujo para operá-lo, cortando com a sua serrinha o extravagante apêndice. Mas a menina era de opinião que tal ponta de prego constituía a única arma do coitado. Além disso, era um bom cabide que ela costumava utilizar nos seus passeios com a boneca. Para pendurar coisas leves, como chapéu ou o guarda-chuvinha da Emília, nada melhor. E em vista dessa utilidade a ponta de prego ia ficando nas costas do coitado.
Faz-de-conta não ligou importância às troças que o público fez à custa dele. Trepou num banquinho e segurou com toda a convicção o arco de papel vermelho que Emília ia pular. A boneca botou o cavalo no galope, correu duas voltas e na terceira — zupt! deu um salto. Os espectadores romperam em palmas delirantes. O segundo arco era de papel azul e o terceiro, de papel verde. Emília pulou com a mesma habilidade o azul; mas ao pular o verde houve desastre.
Imaginem que o cavalinho entendeu de pular também! Pulou, não há dúvida, mas o seu rabo de pena enganchou no prego de Faz-de-conta, onde ficou dependurado. Quando o público viu que o rabo de pena havia passado do cavalinho para o cabide do boneco, foi uma tempestade de gargalhadas. Não percebendo o que havia acontecido, Faz-de-conta recolheu-se aos bastidores balançando ao vento aquele penacho.
Emília também não percebeu o desastre, e julgando que as risadas e vaias eram para ela, parou, vermelhinha como um camarão, e botou uma língua de dois palmos para o público. E recolheu-se furiosa.
— Não brinco mais! — disse lá nos bastidores, arrancando e espatifando o saiote de gaze. — Não sou palhaço de ninguém.
Foi um custo para Narizinho explicar o que havia acontecido e provar que a vaia tinha sido no cavalo e no boneco, não nela. A raivosa Emília voltou-se então contra o pobre Faz-de-conta.
— Estupido! Onde se viu tamanho homem andar de fisga nas costas, feito anzol?
— Que culpa tenho? — gemeu o feiúra tristemente. — Nasci assim...
— Pois não nascesse! — rematou a boneca — e por força do hábito pendurou-lhe na ponta do prego o esfrangalhado saiote de gaze.
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Continua… Circo de Cavalinhos – VI – O desastre
Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa