sábado, 4 de novembro de 2023

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) – Capitulo 20: Noite de amor

Alguns dias se passaram. A natureza se movimentou. É noite que vai, dia que vem... Os peões trabalharam nas plantações e a vida continuou, sem cessar, a escrever as histórias de seus filhos. Histórias distintas, mas entrelaçadas na velha teia do destino da existência. 

Depois da lida, e do surgir de uma noite bonita, o casal apaixonado, Juca e Amélia, comemoraram seus dez anos de união, e trocaram repetidas confissões. 

- Há dez anos fiz a melhor escolha da minha vida. – disse o marido, com seu olhar apaixonado. 

- Digo o mesmo, meu querido. Tu és o presente que a vida me deu. 

- Somos o presente um do outro, minha flor.

- Atrasei o jantar. Queria preparar algo especial para nós dois. Até acendi umas velas, apanhei flores para enfeitar a mesa, perfumei o ambiente, tudo para um jantar romântico igual ao que vi uma vez no cinema.

- Está tudo lindo. Aliás, tudo que vem de ti é lindo, farto, cheio de entusiasmo. Vou me banhar. E já volto. 

Após o jantar, eles trocaram beijos ardentes. Juca, num impulso, puxou Amélia pela mão e os dois saíram para olhar as estrelas, agradecer a união rara, apegada e ao mesmo tempo, leve, livre, solta.  Eram como um casal de pássaros, livres na maneira de viver. Fizeram seus agradecimentos aos céus, e recordaram histórias passadas.

- Quando eu era guri, tu me perseguias – disse Juca.

- Eu?...

- Deixa de ser dissimulada... 

Eles eram filhos de agricultores de uma região próxima. Estudavam na mesma escola. Eram muito amigos, mas por volta dos onze anos de idade, Amélia, descobriu-se apaixonada pelo garoto que tinha o sonho de futuramente ser o capataz de uma grande fazenda. Foi Amélia quem se declarou, no recreio da aula de uma certa tarde de verão. Juca foi pego de surpresa. Sua timidez o deixou corado. Sorriu, e sem saber o que dizer, saiu correndo atrás dos colegas que estavam jogando futebol. Estava tão nervoso, que no primeiro chute, caiu, torceu o tornozelo e teve de ficar uma semana de repouso em casa. Amélia sentiu-se culpada, mas não era nada grave. E logo tudo voltou ao normal.  É curioso perceber o quanto as meninas amadurecem mais cedo do que os meninos. Ela, corajosa, decidida, e ele, cheio de medos. 

O momento romântico trouxe à tona essas e outras doces lembranças. A noite estava calma, mas a presença mágica da paixão a perfumar a atmosfera, a deixou agitada. E o minuano, antes escondido, à espreita da conversa do casal, se fez presente. As nuvens encobriram a lua e as estrelas, o vento soprou as flores, as folhas, inclinou os galhos das árvores. Cheio de marra, veio uivando o seu cantar impiedoso e rebelde, arrepiando a pele daqueles corpos presentes, quentes, sempre sedentos de amor.  Mas o frio não podia conter o ardor da paixão dos amantes, e logo o vento cessou. E as estrelas voltaram a brilhar no firmamento. Depois das tantas conversas, dos risos, dos beijos e abraços, eles despiram-se de suas roupas, e sem pudores, ali, em meio à natureza, ora rebelde, ora branda, se amaram na terra úmida de orvalho. 

- Eu te amo! – disse ele.

- Eu amo mais! - retribuiu ela, sussurrando. 
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continua…

Fonte: Enviado pela autora

sexta-feira, 3 de novembro de 2023

Isabel Furini (Poema 51): Metamorfose I

 Fonte: Isabel Furini. Flores e Quimeras. 2017. Ebook.   (ver no Calibre)
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Isabel Furini ocupa a cadeira n. 10, da Confraria Brasileira de Letras, tendo por patrono Dario Vellozo

Mensagem na Garrafa – 23 -

Criação JFeldman com Microsoft Bing

Charles Chaplin
Londres/Inglaterra (1889 - 1977) Corsiersur-Vevey/Vaud/ Suiça

CAMINHADA

Tua caminhada ainda não terminou
A realidade te acolhe
dizendo que pela frente
o horizonte da vida necessita
de tuas palavras
e do teu silêncio.

Se amanhã sentires saudades,
lembra-te da fantasia e
sonha com tua próxima vitória.
Vitória que todas as armas do mundo
jamais conseguirão obter,
porque é uma vitória que surge da paz
e não do ressentimento.

É certo que irás encontrar situações
tempestuosas novamente,
mas haverá de ver sempre
o lado bom da chuva que cai
e não a faceta do raio que destrói.

Tu és jovem.
Atender a quem te chama é belo,
lutar por quem te rejeita
é quase chegar a perfeição.
A juventude precisa de sonhos
e se nutrir de lembranças,
assim como o leito dos rios
precisa da água que rola
e o coração necessita de afeto.

Não faças do amanhã
o sinônimo de nunca,
nem o ontem te seja o mesmo
que nunca mais.
Teus passos ficaram.
Olhes para trás...
mas vá em frente
pois há muitos que precisam
que chegues para poderem seguir-te.

Leandro Bertoldo Silva (A moça fantasma)

Há muitos anos existia uma mulher tão linda que fazia estremecer de inveja as ricas filhas dos homens mais ricos da recém-fundada Belo Horizonte. Eu disse “filhas”? Não somente elas, mas as mães também. Estamos no ano 1899, mais precisamente no dia 1º de janeiro, na inauguração de uma das entidades recreativas mais auspiciosas da nova capital — o clube Rose, no Palácio da Liberdade, sob os cuidados de D. Ester Brandão, nada menos do que a primeira dama do Estado e, portanto, a esposa do presidente Silviano Brandão. Que festa! Belo Horizonte acabava de completar o primeiro aniversário.

A causadora de tanta inveja chamava-se Magnólia, outros a conheciam Jasmine, pela semelhança alva que possuía. De qualquer forma era mesmo uma flor cândida e pura. Não me alongarei na descrição da adorável criatura, basta saber que sua beleza cegava os homens de tal maneira que não importava serem casados. Eram atraídos como ímãs e perdiam a noção do espaço e do tempo, o que causava óbvios constrangimentos às senhoras. Na festa, até mesmo as melhores artistas de então, justamente por serem mulheres, ficavam incomodadas em perder a majestade da presença. Ora, o que valia a “Serenata”, de Schubert, até mesmo "Fantasie-Impromptu", de Chopin ou "Dance des Sylphes", de Berlioz tão bem executadas pelas artistas? Nada disso apagava o brilho de Magnólia (ou Jasmine).

Vale lembrar que a capital, com pouco mais de um ano, tinha uma população ainda muito escassa, aumentando sobremaneira a fama de Jasmine (ou Magnólia), e o ciúme das senhoras, filhas e artistas da cidade já estavam à flor da pele. Então concluíram: Era preciso que a moça se mudasse dali, ou qualquer outra coisa que lhe fizesse desaparecer. Porém, demitir a moça de seus serviços domésticos e festivos não diminuiria sua atração ao passear pelas ruas. Fazia-se necessária uma atitude mais drástica como o caso exigia. Calma lá! Nada de violência... Isso não fazia o feitio das senhoras, donzelas e moças casadoiras da sociedade que se iniciava na capital mineira. Mas uma coisa seria a vingança perfeita: ela que cegava os homens com a sua beleza incutindo-lhes desejos e, por isso mesmo, poderia ter o namorado, noivo e esposo que quisesse, ficaria impedida de amar quem quer que fosse. Mas como? 

Bem, como dito, a população era pequena e qualquer coisa que se fizesse ficaria logo à vista de todos. Era preciso uma ocasião propícia. E ela veio: O carnaval!

Nos primeiros anos do século passado, essa festa era uma das principais realizações de rua da cidade, em que um préstito com pomposos carros de tração animal, ricamente decorados, desfilavam pelas ruas centrais da cidade, para alegria das famílias que faziam verdadeiras batalhas de confetes e atiravam das janelas das casas flores e serpentinas. Era uma grande festa, ideal para o intento de um grupo de senhoras que necessitavam que todos, principalmente os maridos, estivessem entretidos com o alarido. Nesse dia, o cortejo partiu do barracão do Congresso. Essa casa legislativa situava-se entre a rua da Bahia e a rua Tupis e a avenida Afonso Pena. O barracão referido ficava nos fundos desse prédio, lugar perfeito para atrair a moça sem riscos de serem vistas tão logo a festa ia adiante. Uma das senhoras, com a desculpa de pedir Jasmine para ir ao barracão buscar mais serpentinas, providenciou que as outras já estivessem lá quando da chegada da moça. Foi a última vez que Jasmine ou Magnólia, seja como for, fora vista, para o lamento dos homens e felicidade das mulheres... 

A moça, mantida presa nesse barracão, fora transferida na quarta-feira de cinzas para um outro cárcere ao pé da Serra do Curral, de onde só saía a noite, sem mais ter o direito de ver a luz do dia. Inocente e obediente — e não se sabe por qual razão — voltava sempre antes dos primeiros raios da manhã, de forma que toda a sua formosura foi se misturando com o negrume da noite até que a morte veio selar seu destino: tornou-se aquela que, por falta de amar e sendo filha da solidão, descia em branco desespero as mediações do bairro dos Funcionários, pois fora ela uma funcionária obediente e infeliz, a recolher os amores nascidos na iminência de se separarem para nunca mais se encontrarem. Era mesmo, como disse Carlos Drummond de Andrade: "um vapor que dissolve quando o sol rompe na Serra".

É por isso que até hoje quem passa pelo bairro dos Funcionários em madrugadas sem neblina sente, vindo do sopé da Serra, o rastro frágil e hesitante da Moça Fantasma em um aroma característico de dama-da-noite, às vezes jasmim outras vezes magnólia, a perfumar os amores perdidos...
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Pois é... Arthur Azevedo, durante sua viagem a Minas Gerais, por volta de 1902, já dizia: “Ao lado do brilho, os detritos. As ruínas de uma dúzia de velhos bairros se amontoavam no chão. Para onde iria toda essa gente?” E assim, Belo Horizonte é conhecida como a capital dos fantasmas: o Avantesma da Lagoinha, a Loira do Bonfim, Maria Papuda e tantos outros; inclusive, a Moça Fantasma que trago aqui nessa história 

Com um tantinho assim de que quem conta um conto aumenta um ponto.... A propósito, você já viu ou conhece alguém que tenha visto algum deles? Eita... Diz aí!

Fonte: Árvore das Letras. Enviado por email pelo autor.

Caldeirão Poético LXX (O Livro em versos)

Criação JFeldman com Microsoft Bing

António Ramos Rosa
Faro/Portugal, 1924 – 2013, Lisboa/Portugal

A LEITORA

A leitora abre o espaço num sopro subtil.
Lê na violência e no espanto da brancura.
Principia apaixonada, de surpresa em surpresa.
Ilumina e inunda e dissemina de arco em arco.
Ela fala com as pedras do livro, com as sílabas da sombra.

Ela adere à matéria porosa, à madeira do vento.
Desce pelos bosques como uma menina descalça.
Aproxima-se das praias onde o corpo se eleva
em chama de água. Na imaculada superfície
ou na espessura latejante, despe-se das formas,

branca no ar. É um torvelinho harmonioso,
um pássaro suspenso. A terra ergue-se inteira
na sede obscura de palavras verticais.
A água move-se até ao seu princípio puro.
O poema é um arbusto que não cessa de tremer.
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Clarice Pacheco
Porto Alegre/RS, 1989 – 2002

VIAJAR PELA LEITURA

Viajar pela leitura
sem rumo, sem intenção.
Só para viver a aventura
que é ter um livro nas mãos.
É uma pena que só saiba disso
quem gosta de ler.
Experimente!
Assim, sem compromisso,
você vai me entender.
Mergulhe de cabeça
na imaginação!
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Florbela Espanca
Vila Viçosa/Portugal, 1894 – 1930, Matosinhos/Portugal

A UM LIVRO

No silêncio de cinzas do meu Ser
Agita-se uma sombra de cipreste,
Sombra roubada ao livro que ando a ler,
A esse livro de mágoas que me deste.

Estranho livro aquele que escreveste,
Artista da saudade e do sofrer!
Estranho livro aquele em que puseste
Tudo o que eu sinto, sem poder dizer!

Leio-o, e folheio, assim, toda a minh’alma!
O livro que me deste é meu, e salma
As orações que choro e rio e canto! …

Poeta igual a mim, ai que me dera
Dizer o que tu dizes! … Quem soubera
Velar a minha Dor desse teu manto! …
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Luísa Ducla Soares
Lisboa/Portugal (1939)

LIVRO

Um amigo para falar comigo.
Um navio para viajar
Um jardim para brincar
Uma escola para levar debaixo do braço
Livro um abraço para além do tempo e espaço.
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Jorge Luis Borges
Buenos Aires/Argentina, 1899 – 1986, Genebra/Suiça

OS MEUS LIVROS

Os meus livros (que não sabem que existo)
São uma parte de mim, como este rosto
De têmporas e olhos já cinzentos
Que em vão vou procurando nos espelhos
E que percorro com a minha mão côncava.
Não sem alguma lógica amargura
Entendo que as palavras essenciais,
As que me exprimem, estarão nessas folhas
Que não sabem quem sou, não nas que escrevo.
Mais vale assim. As vozes desses mortos
Dir-me-ão para sempre.
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Sammis Reachers
São Gonçalo/RJ

CARTA AO LIVRO DE BOLSO

Adolescido tomo
lanterna dos afogados

paraninfo da literatura
rancho da tropa, democrática
classe econômica
talismã, lítero muiraquitã iniciático

sustentáculo dos sebos, colecionário
de ceitils, centavos e xelins

ingresso de matinê
na nau de Stevenson, na floresta
de London
na faiscante Paris espadachim e amante
dos Dumas

condensário das imensidões
de Moby Dick ao pai Quixote

dramas d’antanho em prosa e papel jornal
poemas seletos lidos com lenta pressa
enquanto sacoleja o bonde ou o busão

lâmpada de celulose que exulta
na cama de solteiro do quartinho dos fundos
tanto te devemos, fiador dos desamparados
bengala dos moços, livro de bolso
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Wallace Stevens
Reading/EUA, 1879 – 1955, Hartford/EUA

A CASA ESTAVA QUIETA E O MUNDO CALMO

A casa estava quieta e o mundo calmo.
Leitor tornou-se livro, e a noite de verão

Era como o ser consciente do livro.
A casa estava quieta e o mundo calmo.

Palavras eram ditas como se livro não houvesse,
Só que o leitor debruçado sobre a página

Queria debruçar-se, queria mais que muito ser
O sábio para quem o livro é verdadeiro

E a noite de verão é como perfeição da mente.
A casa estava quieta porque tinha de estar.

Estar quieta era parte do sentido e da mente:
Acesso da perfeição à página.

E o mundo estava calmo. Em mundo calmo,
Em que não há outro sentido, a verdade

É calma, é verão e é noite, a verdade
É o leitor insone debruçado a ler.
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Fonte: Sammis Reachers (seleção e edição). Poemas sobre Sua Majestade, o LIVRO: uma microantologia. ebook gratuito.

Silmar Böhrer (Croniquinha) 95

Parece que o tempo vai dopando a nossa vida. 

Daqui a pouco temos noventa anos e não percebemos que não fruimos os melhores sabores da existência . 

Fomos negligentes ? 

Indolentes ? 

Imanentes ? 

Você vai descobrir mais cedo  ou mais tarde que o tempo para  ser feliz é curto, e cada instante que vai embora não volta mais. (Arnaldo Jabor) 

Você ama a vida ? Então não desperdice o tempo, porque é desse material que a vida é feita. (Benjamin Franklin) 

Todos os dias devíamos ouvir um pouco de música, ler uma boa poesia, ver um quadro bonito, e se possível, dizer alguma coisas sensatas. (Goethe) 
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Silmar Böhrer ocupa a cadeira n. 06, da Confraria Brasileira de Letras, tendo por patronesse Cora Coralina

Fonte: Enviado pelo autor 

Sammis Reachers (No tempo dos fliperamas...)

A depender da janela de idade, talvez você também tenha curtido a época. Ela durou relativamente bastante: De meados da década de oitenta até meados, ou vá lá, final da década de 10 deste nosso século.

No começo, além das pioneiras e parangoléicas (libertárias e levadas ao êxtase) máquinas eletromecânicas de pinball, os jogos eletrônicos eram restritos a um Pac-Man, um Galaga, um Space Invaders... A coisa era simples. Na década de 90 veio a explosão: Os jogos de luta suplantaram os demais, e multiplicaram o número de usuários (viciados não!). Quem viveu, não tem como esquecer: Street Fighter, The King of Fighters, Samurai Shodown, Mortal Kombat e trocentas outras franquias que corriam por fora. As demais categorias nunca deixaram de existir: Os shoot ‘em ups, que são os tradicionais jogos de navinha; os beat ‘em ups (haja up!), que são os divertidos jogos de andar-e-bater, como Double Dragon, Final Fight, Captain Commando, Cadillacs and Dinosaurs; os jogos de corrida, tiro e outros mais.

Todos os bairros, por mais aloprados e esquecidos das atenções da civilização, tinham suas máquinas, em bares, lojinhas, padarias... Alguns bairros, agraciados, contavam com casas exclusivas, apenas para eles: os fliperamas.

Quanta mãe gonçalense já foi buscar seu rebento que jazia enfurnado naqueles antros de perdição! Mas, passado o tempo, sabemos que a perdição era apenas de dinheiro: Merrecas de fichas, mas verdadeiras fortunas para quem não tinha quase nada.

E era meu caso. Mas dava meu jeito: vendia garrafas, catava ferro-velho nas margens do rio Alcântara e nos lixões do entorno (nos anos oitenta não havia coleta por cá). E havia o corporativismo dos defasados (miseráveis não!): Quando um moleque não tinha dinheiro, o outro tinha; um trabalhava de ajudante aqui, outro via pingar a curta mesada ali, e assim mão lavava mão e as quatro mãos se divertiam. Ou oito, pois havia cabines para até quatro jogadores ao mesmo tempo, e a fruição, o prazer da balbúrdia que é você jogar com mais três amigos de uma vez, naquelas chuvas de bordoadas, naquele bate-apanha-perde-coloca-outra-ficha, naquele esbraveja-xinga-gargalha, ah, é dos prazeres, acredite, maiores que vi na vida.

Tínhamos aqui alguns jargões, “bora pranchar uma ficha”, “bora apertar uma ficha”. E lá íamos para a fonte escolhida. Aqui na região as opções eram muitas: O saudoso Bar do Galego, em Tribobó (“para de xingar aí, moleque!!!”, berrava o inveterado flamenguista com aquela voz rouca), logo sucedido pelo Fliper do Moacir Desenhista, defronte à concessionária Dicasa Fiat, e finalmente o Bar do Marquinhos, "rei dos fliperamas" (e outros lances) cujo império alcançava meia região metropolitana do RJ, para onde alugava cabines e placas de jogos, e cuja base "felizardamente" era ali na passarela do bairro Tribobó, o que nos garantia acesso em primeira mão aos lançamentos, motivo de mui grande honra e também marra de nossa parte. Doutro lado, tínhamos o “Fliperama do Arsenal”, grande casa dedicada que reinou por década na rua do colégio Dalila, próximo ao B. Braun; Seu Djalma no Capote, Dona Marta e Dona Zeza no Palha Seca, Casa Taicorama na entrada do Jockey (a atendente juvenil diabolicamente se vestia como uma pin-up - haja up! - e foi uma de minhas paixonites) e tantos e tantos outros.

Claro, já haviam os videogames, e a certa altura ganhei um – estratégia de minha sofrida mãe para me prender mais em casa – mas os jogos simples do Nintendo não se comparavam aos festivais de cores e efeitos e a variedade dos jogos de arcade.

E aquilo era socializar, faziam-se muitas amizades, e vá lá, alguns inimigos também.

Uma época que “quem viveu, viveu”, seja jogando, seja tendo que dar dinheiro pra filho – seja proibindo-o de entrar na perdição. Com o tempo, o aumento da qualidade dos consoles caseiros (calma, é o nome técnico dos videogames) proporcionou a mesma qualidade técnica dos arcades, podendo ser usufruída no conforto de casa. E isso tornou o negócio não extinto, mas comercialmente inviável.

Hoje a jogatina coletiva, muito mais complexa e cara, rola apenas online, no aconchego do lar, e as socializações, embora mais frias e distantes, abarcam agora toda a estatura do orbe: Seu filho deve estar jogando à noite num clã (“guilda”, equipe) que junta coreanos, chineses, mexicanos e outros "quetais". Entendem-se como podem, com rudimentos de inglês, com a linguagem universal que esse grande universo gamer – indústria que, saiba você, movimenta mais dinheiro que a cinematográfica ou qualquer outra indústria de mídia – tem construído. 

Lembra de seu sonho de pirralho de se tornar jogador de futebol? Puff! Um quinto de meus alunos de sexto ano (sim, eu pesquisei), moleques de onze anos, sonham em se tornar profissionais dos e-sports, os esportes eletrônicos. Aquela nossa diversão viciante agora é meio de vida, malandro! Conheci um guri desses que é arrimo de família...

E pensar que no começo tudo se resumia a andanças em ruas de poeira atrás daqueles mágicos caixões de madeira.
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Sammis Reachers ocupa a cadeira n. 16, da Confraria Brasileira de Letras, tendo por patrono Malba Tahan.

Fonte:

quinta-feira, 2 de novembro de 2023

José Feldman (Analecto de Trivões) 16

Criação JFeldman com Microsoft Bing
 

Mensagem na Garrafa – 22 –

Criação JFeldman com Microsoft Bing

Odair Roberto da Silva
Ubiratã/PR

AMAZÔNIA

Oh! Pobre Amazônia!
Berço esplêndido de beleza infinda
Quanto tempo de vida terás ainda?
Teus sequazes predadores não pensam na dor
Que tua destruição provoca em nosso corações.
Humilde berço de um flamejante amor
Galhardeando em tuas razões.

Oh! Linda Amazônia!
Gáudios tempos foram aqueles áureos dias,
Quando a devastação tu ainda não sofrias
E em teu seio reinava a fulgente harmonia natural.
Doiravas ao sol, estrela de imponente ardor.
Deitavas as planícies, esbelta riqueza tropical,
Sonhavas teu futuro num meio de paz e amor.

Oh! Pobres diabos!
Aqueles que em ti cavam a própria sepultura!
Patrimônio da humanidade, berço de tanta agrura.
Falazes homens de monstrengas almas
A podar em ti a vida em seu porvir.
Quando na destruição de tua
existência não te acalmas.
Pobres demônios vêm de tua morte rir.

Oh! Amazônia!
Passado, Presente e futuro.
Vingarás um dia esta realidade dura.
Teus assassinos pagarão dobrado.
Quando na eternidade repousando estiveres,
Encurralados pagarão o alto preço de um pecado,
Chorando ante as memórias de teus caracteres.

A. A. de Assis (Pilates Mental)

Dia desses uma senhora me ligou, meio acanhada, perguntando quanto eu cobraria para escrever uma crônica sobre o avô dela, um dos primeiros moradores de Maringá. Respondi que nutro grande admiração e respeito pelos nossos pioneiros, homens e mulheres de altíssima qualidade, mas não tenho condição de falar de todos eles; por isso tenho escrito apenas sobre alguns com os quais tive ou ainda tenho alguma forma de convivência.

Expliquei também que durante cerca de 30 anos atuei profissionalmente em jornais e revistas, porém hoje ninguém me paga nada pelo que escrevo; faço esta coluna semanal por três motivos: 1. pelo prazer que me traz, 2. por ser um modo de me sentir útil e 3. como uma forma de terapia.

Com 90 anos, tenho consciência de que já estou na gorjeta de Papai do Céu; bem por isso, na esperança de permanecer mais algum tempo entre vocês, procuro seguir mais ou menos à risca o que o juízo manda. A cada seis meses vou lá na clínica do querido amigo médico Dr. Paulo Frascarelli fazer uma revisão geral na máquina. Ao final daquela costumeira bateria de exames, ele me dá um tapinha no ombro e renova as recomendações de praxe – manter uma alimentação prudente, beber bastante água, caminhar um pouco todo dia, fazer ginástica, tomar alguns minutos de sol etc. Na despedida acrescenta, rindo: “Sobretudo continue escrevendo bastante, que isso é bom demais para a saúde”. 

Creio que tal receita sirva para todos os velhinhos como eu. Assim como o corpo precisa ser exercitado, a cabeça também precisa. É o que chamo de “pilates mental”. Meu gosto pela arte de escrever facilita as coisas: enquanto espremo a mente na produção de uma crônica ou de uma trova, a engrenagem cerebral funciona a toda e com isso “enferruja” menos. Além disso, a concentração do pensamento naquilo que estou escrevendo não deixa espaço para grilos.

Sei que nem todos têm como hobby a literatura, no entanto há muitas outras formas de massagear os neurônios, ou seja, muitos meios de não dar moleza à massa cinzenta. Tenho vários amigos idosos que estão sempre alegres, serelepes, com o raciocínio permanentemente alerta, e imagino que isso se deva ao recreio mental que costumam praticar.

Há, por exemplo, os que gostam de jogar truco, xadrez, damas. Pensem no quanto a cabeça deles trabalha durante as horas que passam numa roda de amigos tentando um ganhar do outro. Saem dali felizes da vida, ninguém reclamando de cansaço ou dor nas costas, muito menos se queixando de que anda esquecendo os nomes das pessoas e das coisas.

Há também muitas senhoras com mais de 90 anos que, por conta das suas atividades mentais, continuam numa boa. Estão sempre lendo alguma coisa, vendo televisão, ouvindo música, fazendo bordados ou palavras cruzadas. Outras ainda participam de trabalhos sociais voluntários. O importante é estar o tempo todo com a cabeça ocupada.

Daí que, enquanto conseguir fazê-lo, continuarei brincando de tecer letrinhas.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo, em 05.10.2023)

Luiz Damo (Trovas do Sul) L

A dor se estampa no rosto
de abastados e oprimidos,
não maior do medo imposto
pela voz de uns estampidos.
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A escalada rumo à morte
começa no nascimento,
tanto o fraco quanto o forte,
tem seu fim no passamento.
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As chuvas que o céu derrama
são bênçãos de aroma e cores,
que Deus na terra esparrama
sobre os canteiros de flores.
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Assumindo um compromisso
não deixe de executá-lo,
no entanto, se for omisso,
a história pode julgá-lo!
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Combate os teus inimigos,
não vaciles ao surgirem,
doma-os e enfrenta os perigos
como leões a rugirem.
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Da queda, sempre guardamos,
as recordações do fato
e a marca que dela herdamos
nos tira do anonimato.
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Muito mais que a luz do dia,
tens Deus a te acompanhar,
pede-Lhe a paz e harmonia
e o brilho a te iluminar.
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Não quero manchar meu nome,
diz o avô em atroz lamento,
nem ver um neto com fome
sem escola e sem provento.
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Nasce à sombra de um segredo
o anseio de desvendá-lo,
mas também esconde o medo,
da punição ao quebrá-lo.
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No apear da montaria
pisando o solo molhado.
o cavaleiro diria:
preferia andar montado.
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Nunca estou só, no caminho,
há passos de outros e os meus,
sempre ao me sentir sozinho,
paro e sinto, estou com Deus!
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Nunca falte ao paladar
todo o sabor do alimento
e ao solo a missão de dar
seu fruto, nosso sustento.
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O exemplo de um paladino,
o velho quis demonstrar,
esqueceu que era franzino
não pode o sonho alcançar.
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O homem se acha soberano
sob o universo da lei,
erige um trono mundano
sem nunca chegar a rei.
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O tempo desvela a história,
destrona qualquer reinado,
Junta arestas da memória,
pra remontar seu passado.
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Presente, ou futuro incerto,
ao passado se afastando,
enluta a alma, quando perto,
vê-se a morte, aproximando.
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Quando o presente não for
bem vivido e respeitado,
o esforço perde o valor
em recompor o passado.
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Se a luta perde o sentido
a vida entra em convulsão,
o esforço acaba perdido,
sem forças à propulsão.
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Se à manhã, café não tem,
porque alguém, se tem, tomou,
no almoço e janta, também
só come se ontem sobrou.
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Se ao deitar não conquistei
tudo o que ao sol persegui,
é porque nem despertei,
só sonhei, mas não vivi.
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Se ignorar é não saber,
há quem sabe e desconhece,
o valor incluso ao ser
sobre o ter que só padece.
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Sempre, à vida siga avante,
nunca, falte o foco à vista,
passando de coadjuvante
a um feliz protagonista.
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Sempre que algo triste ocorre
pra denegrir a existência,
nunca à dor a vida morre
só se abala em sua essência.
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Se optares viver em tendas,
entenderás as agruras,
longe de serem contendas
mas as vivências são duras.
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Silenciosa madrugada
quebrada pela estesia,
de uma noite enluarada
sempre surge o novo dia.
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Sonhar em fugir do ninho
nos galhos do cotidiano,
é querer ser passarinho
no corpo de um ser humano.
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Fonte: Luiz Damo. As faces da trova. Caxias do Sul/RS: Ed. Do Autor, 2021. Enviado pelo autor.

Marques de Carvalho (O banho da tapuia)

Clareara há pouco a manhã e o dia anunciava-se formoso, na serena pompa das galas equatoriais. Todo o céu escancarava a limpidez da abóbada de turqueza, à espera do sol. Tênue viração suspirava nas ramarias do mato, de onde vinham o papaguear dos periquitos, arrulhos de rolas, trinados de aves invisíveis. Pela praia arenosa, as garças, pousadas sobre folhagens rasteiras, nos milharais grandes, estranhas flores de imaculada alvura. E rente à agua, atravessando o rio caudaloso, um bando de marrecos desdobrava a escura fita do seu voo compassado, quase de margem a margem.

No alto da ribanceira, ao fim do caminho do sítio, entre dunas verdejantes de ajurús (tipo de árvore pequena), apareceu Hortência, a jovem tapuia. Vinha estremunhada ainda. Nas pálpebras, que longos cílios ensombravam, demoravam-se preguiças de sono. A úmida polpa dos lábios tinha esboços de bocejos. O farto cabelo, preso pelo pente de tartaruga ao alto da cabecinha doidivana, a custo se fixava ali, não tão bem que, rebelde, não formasse dos dois lados da nuca, sobre os ombros, pesadas quedas sedosas.

Deteve-se a rapariga, mordiscando folhas silvestres. Seu olhar devassou o listrão serpeante do rio deserto de embarcações e foi-se para o alto, a mirar o nascente enrubescido. Mas a frescura da riba fustigou-lhe os tenros membros mal vestidos pelo saiote curto e pela camisinha branca, de decote rendado. Estremeceu Hortência num arrepio e, alongando os braços, gemeu voluptuosa no derradeiro espreguiçamento matinal. E, já deslaçando o cós da saia, desceu a correr para a água, pregozando a delícia do banho.

Minutos depois, caindo pelos quadris a camisinha cheirosa, Vênus tapuia ostentava na claridade da manhã o encanto irresistível da sua juventude, a triunfal perfeição de sua nudez.

No matagal, houve como um redobramento de canto de passarinhos, ao tempo que o sol, vencendo a floresta, mordia com a tepidez dos primeiros raios as carnes morenas de Hortência. Chapinharam os pequeninos pés; a frialdade líquida provocou brandos ofegos: começara o banho da tapuia.
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Um tempo demorado esteve a rapariga dentro da água. Quem pode resistir à tentação de um banho ao ar livre, na costa marajoara, pela manhã? Já o sol, aguçando os quentes dardos, vencera larga distância pelo espaço. A ela, porém, pouco importavam os insidiosos ataques do astro. Sem parar um momento, ora percorria consideráveis extensões a nado, à flor do rio, ora caprichava em experimentar o próprio fôlego, com aturados mergulhos. Quando emergia a formosa cabeça atrás da qual a correnteza espalhava a negra cabeleira, tinha nos olhos uma jucunda expressão de gáudio, tentadoramente. Ali estava uma das mais requestadas mulheres de Soure, ignorante dos próprios méritos, apenas interessada no desfrute das sensações de bem-estar proporcionadas pela imersão no rio. No entanto, descrer da existência das sereias amazônicas certo não poderia quem a visse então, no banho, erguendo sobre a superfície das águas o bronzeado busto palpitante, de que se destacavam, numa sedução vertiginosa, as linhas corretíssimas dos pequenos seios virginais.

Tais eram, por certo, as reflexões que também estava a fazer, mirando-a, o negro Manoel, por entre as folhagens que limitam o areal da praia. Filho de africanos, enamorado, atrevera-se a amar Hortência. Feio e boçal, bem compreendera a impossibilidade desta paixão pela criatura que tantas vezes repudiara varonis caboclos das fazendas e até dengosos brancos da cidade. Mas o que não pudera evitar e ninguém no mundo conseguiria impedi-lo, era essa cotidiana emboscada, para a ver no banho. Cada dia, não trinavam ainda os primeiros pipilos dos pássaros, já ele estava entre os montículos de areia, agachado na verdura, à espera da tapuia. Enxerga-la nua, era a sua alegria suprema. Não lhe perdia um gesto; nem uma só linha daquele corpo desejado deixava de ser perscrutado, beijado, deflorado pela sua lascívia de hotentote. Concentrava nos olhos todos os arrancos de um vigoroso anseio de posse. Os apetites libidinosos da sua raça ferviam-lhe no peito, à vista da rapariga. Entretanto, jamais ousara sair-lhe ao encontro. É que o receio de uma repulsa quase certa e a consequente descoberta do seu criminoso recurso, detinham-lhe o atrevimento, limitando-o hoje à mesma observação inerte de muitos meses antes. E quem o divisasse mais de uma vez ali parado perante a conturbativa visão, diria erroneamente que, à força de a admirar com respeito, o negro ao fim depurara os desejos, transmudando-os em culto á beleza incoercível.

O momento, porém, que ele, o africano sórdido, mais prezava, era aquele em que Hortência, saindo da água, vinha secar aos toques da brisa a nudez amena do corpo. Ei-la justamente que nada para a beira, fatigada enfim dos prolongados brincos. Já tomou pé e a pouco e pouco vêm aparecendo os braços, o busto com os seios e a doce curva abdominal, os quadris salientes, as roliças pernas, toda a perfeição de linhas femininas; já palmilha sobre a areia, que lhe cobre os pés como com um par de sandálias de missanguinhas brilhantes. E agora, o mádido corpo fica ereto aos beijos do vento, enquanto os longos cabelos pendem sobre as costas, gotejantes. É esta a feroz alucinação do negro. Toda a formosura da virgem ali está patente à sua vista, na majestade do quadro paraense, saudado pelo trinar das aves. Bastar-lhe-ia dar alguns passos, reflete, e estender as mãos, para alcançar e possuir tamanha perfeição. Detém-no, contudo, o receio de trair-se. E o medo de perder a posse mental da tapuia que o inibe de saltar para junto dela, bramando como sátiro silvícola.

Inocente e tranquila, sem desconfiar da luxuriosa surpresa, a banhista, num gesto peculiar, que desvenda o emocionante emaranhamento das axilas, toma os cabelos, torce-os à direita, esgotando-os e os enastra (ata com fita) em trança farta, que prende sobre a cabeça. Veste depois a camisa, passando por último a saia de riscado azul. E ainda amarrando-lhe o cós, dirige-se cantando por entre as dunas cobertas de ajurús, até o caminho que leva ao sítio.

Só então, o negro Manoel sai do matagal, corre à praia, ao ponto onde, momentos antes, estivera a tapuia. Tem os olhos injetados de sangue, os lábios entreabertos: arqueja. O rosto, coberto de ralos pelos que se juntam em ponta bipartida sobre o mento (queixo), é bem o de um fauno espicaçado pela animalidade da berra (cio). Revolve-se no chão, gemendo em ansioso deliquio (prostração) de erotômano. E, para acalmar o veemente anelo insatisfeito, espoja-se, crava os dentes no solo, — esfrega as faces e a fronte no lugar onde a água, escorrendo do corpo da rapariga, tinha ensopado a areia, enchendo-a de frescura.

Do seio da mata, sobe, expirando à distancia, o canto jovial da tapuia; e ali perto, qual ironia da floresta, uma ave sibila persistente a escarninha palavra que lhe deu o nome:

— Bem te vi!

Fonte:
João Marques de Carvalho. Contos do Norte. Belém/PA: Typographia Elzeveriana, 1907. Disponível em Domínio Público. Convertido para o português atual por JFeldman.

Estante de Livros (“Thais”, de Anatole France)


Thaís é um livro de Anatole France. Publicado pela primeira vez em 1889. 
A obra se passa no Egito, parte da literatura francesa e uma crítica aos costumes da época.

Com um estilo fluente, cético e sarcástico Anatole France foi um dos escritores mais característicos da literatura francesa. Nascido em Paris, foi coerente com sua paixão e, por isso, adotou o pseudônimo France. Mas, seu nome verdadeiro era Anatole Jacques Thibault. Crítico feroz aos costumes e instituições do seu tempo, fez-se a voz da cidade, daquela Paris herdeira e centro da cultura da sabedoria e da arte do mundo ocidental. Anatole France – um filósofo epicurista – produziu várias e sucessivas obras-primas, e em 1912 recebeu o Prêmio Nobel de Literatura.

Thais é a obra que assinala o zênite da força criadora do autor. Ambientada no Egito, é a história de uma meretriz e de um monge. O triunfo do corpo sobre a alma – Epícuro contra o estoicismo – foi mais finamente traçado, com tanta beleza e melodia de estilo.

Thais se passa na Alexandria, é a história de uma meretriz, que no livro é chamada de ''comediante'', e de um monge, Paphnucio, que se enamora dela, mas logo entra em conflito com suas convicções religiosas por conta desse amor. Ora, Paphnucio é um cristão primitivo, e um de seus objetivos na vida se trata de obter um tal grau de pureza espiritual que o obrigaria a passar por caminhos que pressupunham privações extremas, não só a supressão dos desejos carnais, como também os cuidados básicos de higiene, insistindo em ver no sofrimento causado por infecções, causadas por prolongados jejuns, uma forma de aproximar-se de Deus. Chega mesmo a fazer do alto de uma das colunas de um velho monumento em ruínas, o seu lar, para se elevar acima do resto da humanidade e chegar mais perto de Deus.

Pode-se perceber que Paphnucio, bastante radical, não aceita a beleza, a saúde e o bem-estar como algo bom, mas como coisas que afastam o ser humano do divino. O monge originava-se de uma abastada família de Alexandria, e foi educado para seguir o princípio do prazer; porém curiosamente, desvia-se do caminho que sua família havia traçado para ele, e resolve seguir uma nova e ainda estranha para muitos, filosofia: o Cristianismo, que então já começava a se espalhar entre as classes mais ricas, sofrendo nessa época, menor perseguição do que em seus primórdios.

Thais, jovem e bonita, desfruta de tudo o quanto a vida e a sua beleza podem oferecer; riqueza, fama, homens, arte. O monge, por sua vez, vive uma vida de castidade e preces no deserto até o momento em que, perturbado por pequenos demônios, decide deixar o monastério e ir para a cidade, em busca de Thais.

Paphnucio em seu afã, exagera em sua convicção, que se torna bastante radical, e acaba por destruir a própria vida e a da mulher amada.

Na obra, o monge faz de seu objetivo de vida fazer com que a meretriz Thaís abandone a vida devassa e, dessa forma, conseguisse a salvação de sua alma. Entretanto, o monge se apaixona pela meretriz e depois que percebe que a alma dela está salva, percebe que não era isso que ele queria.

O enredo é muito bem construído, com certa dose de crítica e sátira (que ao meu ver é incomum para a época - 1890), e é de uma leitura gostosa, muito embora tenha um vocabulário um tanto quanto rústico.

De um modo geral o autor redige a trama com doses de entranhamento filosófico e um toque de sátira sem perder um estilo artístico e literário mais refinado. De maneira objetiva, também retrata muito bem o cristianismo, ainda nos seus primeiros séculos de existência (aproximadamente em 300 d. C.)
Fontes:
Ana Ruppenthal, disponível em skoob