quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Gislaine Canales (Glosas Diversas) LXVI


NUDEZ DA PRAIA

MOTE:
À noite, pousando o olhar
no leito em que o mar desmaia,
vejo um raio de luar
cobrindo a nudez da praia.
Adilson S. Maia
Rio de Janeiro/RJ

GLOSA:
À noite, pousando o olhar
nesse mar que eu amo tanto,
eu me ponho a imaginar
e escuto um doce acalanto!

Muito amor podemos ver,
no leito em que o mar desmaia,
e é difícil descrever
esse amor que o mar espraia!

A beleza está no ar
e, num prateado bonito,
vejo um raio de luar
chegando lá do infinito!

Esse luar que aparece
e que fica de atalaia,
carinhosamente desce,
cobrindo a nudez da praia.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

A PRAIA DORME AO LUAR

MOTE:
É noite… A praia vencida
pelas carícias do mar,
se entrega ao sono, envolvida
numa réstia de luar.
Elen Novaes Félix 
Barra do Piraí/RJ,  1946 - 2015, Niterói/RJ

GLOSA:
É noite... A praia vencida,
depois de ganhar mil beijos,
fica até, meio perdida,
em meio ao mar de desejos!

Fortemente acariciada
pelas caricias do mar,
sente-se, a praia, cansada,
cansada de tanto amar!

Pede, então, uma guarida.
Caindo em sono profundo,
se entrega ao sono, envolvida,
no maior sonho do mundo!

E se enrola, tão dengosa,
no sonho que está a sonhar,
que tem sua luz preciosa
numa réstia de luar.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

CASTELOS...

MOTE:
Castelos de areia erguidos
na praia do sentimento,
duram mais que os construídos
com tijolos e cimento!!!
Izo Goldman  
Porto Alegre/RS, 1932 – 2013, São Paulo/SP

GLOSA:
Castelos de areia erguidos
com alicerces de amor,
jamais serão destruídos
pelas vazantes da dor!

Quando feitos com ternura
na praia do sentimento,
trarão somente ventura
e jamais o sofrimento!

Com algas verdes, vestidos,
os castelos da emoção
duram mais que os construídos
sem alma e sem coração!

Nesses castelos da sorte,
vivamos nosso momento,
pois nenhum será mais forte
com tijolos e cimento!!!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

CAIS DA SOLIDÃO...

MOTE:
Esta saudade que aporta
no meu cais de solidão...
me lembra uma praia morta,
onde a lua brilha em vão...
Maria Lua
Nova Friburgo/RJ

GLOSA:
Esta saudade que aporta
que chega, assim, devagar,
é malvada, nem se importa,
se com ela vou chorar!

Ela ancora todo o dia
no meu cais de solidão,
me faz triste, e angustia
meu sofrido coração!

Saudade, não reconforta,
pois sempre, em sua tristeza,
me lembra uma praia morta,
que perdeu toda a beleza!

Até o luar fica triste
quando se perde a ilusão...
Eu sinto que nada existe
onde a lua brilha em vão…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

PASSARELAS

MOTE:
As praias que são tão belas
quando o sol as incendeia,
transformam-se em passarelas
feitas de espuma e de areia!
Orlando Brito 
Niterói/RJ, 1927 – 2010, São Luís/MA

GLOSA:
As praias que são tão belas
enfeitam o nosso dia,
quais bonitas aquarelas
pintadas com maestria!

Estremecem de prazer
quando o sol as incendeia,
nós quase as podemos ver,
fazendo amor com a sereia!

Chega o verão! Todas elas
ganham mais beleza ainda,
transformam-se em passarelas
de uma festa que não finda!

Passarelas diferentes
na maré baixa, ou na cheia,
são coloridas e quentes,
feitas de espuma e de areia!

Fonte: Gislaine Canales. Glosas Virtuais de Trovas XXII. In Carlos Leite Ribeiro (produtor) Biblioteca Virtual Cá Estamos Nós. http://www.portalcen.org. Novembro de 2004.

Contos e Lendas do Mundo (México: A lenda do Charro Negro)

Nas vastas terras do México, onde a história e a mitologia se entrelaçam, surge a lenda do Charro Negro, uma figura enigmática que capturou a imaginação de gerações. Esta lenda, enraizada na tradição mexicana, tece uma narrativa cheia de mistério, romance e um toque sobrenatural que perdurou ao longo do tempo.

Origens da lenda

As raízes da lenda do Charro Negro se entrelaçam com as histórias dos charros. Charros são figuras emblemáticas da cultura mexicana ligadas aos cowboys e muitas vezes envoltas num ar de romantismo e aventura. Porém, O Charro Negro distingue-se pelo seu carácter sombrio e pela sua ligação com o sobrenatural.

A lenda do Charro Negro evoluiu a partir das ricas tradições orais do México, onde histórias de personagens misteriosos e encontros sobrenaturais foram transmitidas de geração em geração. A figura do charro, com raízes no folclore mexicano, serviu de tela para dar vida a esta narrativa única.

A lenda conta a história de um misterioso charro vestido de preto que vagueia pelas estradas solitárias à noite.. Muitas vezes descrito como atraente e charmoso, o Charro Negro busca companhia em corações solitários, principalmente em mulheres jovens e desprotegidas. O encontro deles pode levar a consequências inesperadas e às vezes trágicas.

Este aspecto a lenda brinca com o tema do romance sombrio e da atração fatal. As descrições do Charro Negro muitas vezes destacam o seu magnetismo, a sua presença cativante que atrai quem se aventura nas noites escuras. É nesses encontros que a trama toma um rumo sinistro.

O diferencial dessa lenda é o suposto pacto que o Charro Negro busca com quem cruza seu caminho. Se diz que oferece um acordo tentador, prometendo amor eterno e riquezas em troca da companhia da vítima. Porém, Este pacto carrega consigo um fardo sombrio e misterioso: a perda da própria alma.

Este elemento acrescenta profundidade à história e explora a relação entre o desejo humano e as consequências de ceder a tentações aparentemente irresistíveis. A dualidade entre o encanto do Charro Negro e o preço da sua empresa cria um conflito emocional que intensifica a narrativa e a torna inesquecível.

Variações regionais

A lenda do Charro Negro evoluiu ao longo do tempo, adotando variações regionais que acrescentam nuances únicas à história. Em algumas versões, o Charro Negro é retratado como uma alma em dor., buscando a redenção através do amor humano. Em outros, está diretamente ligado a o diabo, carregando consigo uma maldição irremediável.

Estas variações refletem a diversidade cultural do México e como as lendas podem se adaptar e transformar, mantendo a sua essência enquanto se misturam com influências locais e interpretações pessoais.

Lendas que desafiam o tempo

O que é fascinante na lenda do Charro Negro é a sua capacidade de transcender gerações e manter o seu apelo. Embora as representações e adaptações possam variar, a essência do encontro noturno com este misterioso charro persiste como uma história que passou de boca em boca, preservando o seu lugar na rica tradição oral mexicana.

O Charro Negro torna-se um símbolo intemporal, ligado a noites estreladas e estradas solitárias que evocam medo e admiração. Este personagem perdura enquanto a lenda se adapta às novas formas de contar histórias, desde conversas familiares até representações modernas na literatura e no cinema.

A lenda do Charro Negro influenciou não só a tradição oral, mas também diversas expressões culturais. Da música ao cinema, este personagem deixou sua marca na arte mexicana, tornando-se um ícone que inspira medo e fascínio.

Artistas e cineastas encontraram no Charro Negro uma fonte de inspiração, explorando sua história sob diversas perspectivas e dando-lhe nova vida no contexto contemporâneo. Este personagem transcendeu as páginas das lendas para se tornar um símbolo cultural que conecta o passado e o presente.

Um exemplo de como essa lenda transcendeu está em uma produção cinematográfica lançada em 2018, intitulada como a história é conhecida.: «A Lenda do Charro Negro». É um filme de animação mexicano produzido pela Ánima Estudios baseado na lenda deste sombrio solitário. Foi lançado em janeiro de 2018 no México e faz parte da série de filmes “A Lenda das Múmias de Guanajuato” produzida pela mesma empresa. O filme é voltado principalmente para o público infantil e faz parte da franquia que explora diversas lendas e tradições do México.

A lenda do Charro Negro: uma trama atemporal de sedução e mistério

A lenda do Charro Negro, com sua mistura única de romance e mistério sobrenatural, continua sendo uma joia no tesouro das histórias mexicanas. Através das noites escuras e das estradas solitárias, a figura do Charro Negro permanece como um lembrete da rica tradição cultural do México e de como as lendas podem resistir ao teste do tempo, mantendo a sua capacidade de cativar e surpreender aqueles que se aventuram a ouvi-las.

À medida que a lenda continua a evoluir e a adaptar-se, continua a lançar o seu feitiço sobre aqueles que procuram explorar as raízes místicas e as narrativas cativantes que definem a riqueza do folclore mexicano. El Charro Negro, com o seu manto de mistério e influência na cultura, continua a ser um testemunho da capacidade duradoura das lendas de capturar a imaginação e transcender as fronteiras temporais.

É por tudo que uma mistura perversa de sedução e mistério foi criptografada em A lenda do Charro Negro: mistérios inesquecíveis da cultura mexicana que transcendem o tempo e permanece no imaginário coletivo de seus seguidores.

Fonte:
texto de Naomi Fernandez. Disponível em https://www.postposmo.com/pt/a-lenda-do-charro-negro/. 19.11.2023.

O Nosso Português de cada dia (Você é macérrimo?)

Você conhece alguém que seja macérrimo? Certamente, sim. Calma, isso parece palavrão, mas é só o superlativo erudito de "magro". Se você já esqueceu, superlativo é uma das flexões de grau do adjetivo. Não se assuste com os nomes, aparentemente complicados. Adjetivo você lembra o que é. É palavra que modifica um substantivo, atribuindo-lhe qualidade, característica, estado etc.

Em "prefeito incompetente", "prefeito" é substantivo, e incompetente" é adjetivo. Pode-se querer realçar a qualidade que o adjetivo indica, e para isso existem alguns recursos. Um deles é lançar mão de um reforçador direto desse adjetivo. Pode-se dizer, por exemplo, "prefeito muito incompetente" ou "prefeito extremamente incompetente".

Outro recurso é usar um sufixo, elemento que se coloca no fim da palavra que se quer modificar. No caso do prefeito, pode-se dizer que ele é "incompetentíssimo". O sufixo "-íssimo" eleva o adjetivo ao grau superlativo. O superlativo de "incompetente" não causa surpresa, o que também ocorre com o de alto (altíssimo), rico (riquíssimo), inteligente (inteligentíssimo), fraco (fraquíssimo) e tantos outros.

O problema começa quando, na passagem para o superlativo, a raiz do adjetivo se altera e volta para a língua de origem – o latim, por exemplo. Surgem então as chamadas formas eruditas, que costumam surpreender muita gente. E o caso de "macérrimo", que nada mais e do que o superlativo de "magro".

Quem é muito magro é macérrimo. Duro é convencer alguém a usar isso na mesa do bar. O que as pessoas dizem mesmo é "magérrimo", que os dicionários ou não registram ou dão como mera forma popular. Vale lembrar que é mais do que legítima a forma "magríssimo", apoiada na raiz portuguesa da palavra.

Vamos ver outros superlativos eruditos: o de negro é nigérrimo; o de nobre é nobilíssimo; o de soberbo é superbíssimo; o de pobre é paupérrimo; o de cruel é crudelíssimo. Caetano Veloso compôs uma obra-prima chamada "O quereres" ("Onde queres revólver, sou coqueiro…"), Na letra, há uma passagem ("construir-nos dulcíssima prisão") em que Caetano faz uso do superlativo erudito de "doce" ("dulcíssimo"). Trata-se de uma canção popular, escrita, porém, em português mais do que culto, o que é bastante comum na obra de Caetano.

Na língua do dia-a-dia, recentemente surgiu um sufixo que também denota o superlativo. Trata-se do "-ésimo", que se ouve em palavras como "gostosésimo", "chiquésimo", "tranquilésimo”, etc. Seu uso é limitado à linguagem publicitária e a algumas situações com familiares ou amigos. Surgiu também, de início na linguagem da garotada e agora em várias faixas etárias, o superlativo feito com "mó"; "mó legal", "mó frio", "mó chato", "mó bom".

Voltando à flexão culta, uma surpresa. As gramáticas e os dicionários dizem que alguns adjetivos terminados em "io", como frio, sumário, sério, devem ter o "i" dobrado na passagem para o superlativo; friíssimo, sumariíssimo, seriíssimo. 

Acredite se quiser. Use se tiver coragem.

Fonte: Pasquale Cipro Neto. Inculta & Bela. SP: Publifolha, 1999.

Renato Benvindo Frata (As pedras do meu estilingue)

Drummond teve a sua no caminho, a lhe barrar os passos; Golias recebeu a de Davi no cocuruto e foi pro bebeléu; Fernando Pessoa ou o blogueiro ‘Nemo Nox’, (não se sabe a autoria), guardou-as para construir com elas um castelo; Michelângelo, Míron, Fídias, Policleto, Clímaco,  Praxíteles, Lisipo e outros, viveram as burilando para as belíssimas esculturas; os clássicos lapidários, ao longo do tempo, continuam a dar magnificência a dedos e colos femininos ao lapidá-las; os riachos fazem delas  gargantas de belas vozes a lhes tirar um marulhar contínuo, e, cada qual com cada qual de nós, teve, tem, terá bom ou mau uso das suas deixando-as rolar como seixos, nas ribanceiras da vida, ou impedindo-lhes ações mais graves e violentas. 

Pedras são tropeços, dirão uns, ou material de construção, dirão outros na heterogeneidade que faz a beleza da vida. Com elas se constroem castelos, estradas, pontes, joias, estátuas, e também muros – como o Das Lamentações! - em qualquer das acepções que lhes queiram dar. Bem assim, pedras são como a flecha atirada ou saídas da malha de um estilingue em relação às palavras ditas, ou mal ditas – que não poderão ser impedidas até atingirem o alvo, e às vezes fazem estragos, às vezes refrescam a alma, acalentam o espírito, alimentam a vida e põem sorriso em lábios circunspectos.

As pedras do meu estilingue eram fatais. Considerando o tempo – mais de 65 anos, o espaço rurícola, a cultura de massa e a realidade vivenciados, não me criam remorsos, mas um certo mal-estar perante o conceito de caça de hoje e havia uma razão: matávamos animais para o sacio (a mesma fome que hoje grassa a roer estômagos sem a alternativa que tínhamos), vez que o caçar era livre e incentivado diante de um plantel gracioso e multicolorido exposto nas matas, campos, cafezais e que serviam de refeição principal adicionada à indefectível polenta.

As pedras, no entanto, nunca perderão sua especificidade seja para o bem ou para o mal, assim como a fome, aliás que hoje – vejam a vergonha! - acomete milhões nesse rico país. O desleixo com carentes grita ensurdecedora nos becos, nas vielas, nas ruas, nos pontilhões, nos casebres e nas praças.

Equivalem à pedra de Drummond, a lhe barrar o caminho e que hoje conspurca a vontade, mata desejos, cria obstáculos e impede as conquistas que todos, indistintamente, têm o direito de almejar. 

Fonte: Texto enviado pelo autor

quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Ademar Macedo (Ramalhete de Trovas) 15

 

Mensagem na Garrafa – 54 –


Artur da Távola 
(Paulo Alberto Moretzsonh Monteiro de Barros)
Rio de Janeiro/RJ, 1936 – 2008

ONDE ESTÁ A DESPEDIDA?

Há despedidas para sempre e que não são patentes na hora do afastamento. Não se lhes percebe o estalo da separação, permanente ou temporária, que pode estar no instante de mau humor, na resposta infeliz, na alegria que não se repete ou na palavra que deixamos de dar e receber. Às vezes, está na palavra que dizemos.

Nem sempre as pessoas se separam: esgarçam-se às vezes. Viver esgarça. Despedir-se é sutil, nem sempre aparece. Seres em mutação, vivemos a mudar, sem saber. Na mudança, transforma-se em recordação o que antes era união e vontade, amizade ou convivência. De tudo se faz retrato, álbum, caderno, poema, carta, saudade ou memória. A despedida não é por querer: acontece a despeito. Um simples "até já" pode conter inimagináveis nuncas. Ou sempres. Nada é mais triste que uma fotografia alegre. Quantas despedidas podem estalar dali em diante? Nada pode vir a ser mais enganoso que um simples até logo.

Maravilhosa e cruel a vida! Tudo pode acontecer. As ligações, salvo poucas, fazem-se precárias e falíveis. Nosso destino é preso a acontecimentos não controláveis. Os impulsos, cansaços e as discordâncias são imprevisíveis. E geram despedidas antes inesperáveis. Ninguém sabe de quem se afastará. Nem quais as amizades e amores de toda a vida, nada obstante existam. Raros captam a dor que estala em cada hipótese de despedida. Separar-se contém sempre a hipótese da despedida. Por isso uma dor sempre se infiltra em cada afastamento. Algo se assusta, escondido, em tudo o que se separa. Ainda que para ir ali pertinho e logo voltar.

As grandes despedidas dão-se - contudo - sem que o percebamos. As que sabemos e sofremos não são despedidas completas, pois a saudade e a memória hão de trazer de volta o sentimento genuíno que agora causa dor. As grandes despedidas infiltram-se no cotidiano e nos atos corriqueiros de cada dia, sem serem percebidas. Muitos anos depois, vamos verificar que, disfarçadas em dia-a-dia, ali estavam e estalavam saudades antecipadas, vários nuncas dos quais jamais suspeitamos. Nunca se sabe onde está uma despedida. A não ser muito depois.
(texto enviado pelo autor)

Silmar Bohrer (Croniquinha) 99

A criatividade do ser humano sempre tem novidades. Recentemente apareceu o  Seguro de Morte, quando então o falecido  não se incomoda com nada dos trâmites  da sua passagem. Nem os familiares. Alguém vivo comunica a seguradora, que é responsável pelas exéquias. São momentos difíceis para os que ficam. Soluços, choros, dores. 

Nenhum contratempo ao finado, nenhum incômodo. O local da despedida está definido, haverá café e chá, ou água. Alguém para contar histórias e estórias. E as risadas em meio ao silêncio dos que respeitam o morto. No sul também tem chimarrão e uma cachacinha nas noites mais frias de velório, enquanto o ido, ou o que se foi, segue em paz. 

Para sempre. 
Fonte: Texto enviado pelo autor 

Irmãos Grimm (As moedas que caíram do céu)


Era uma vez uma garotinha cujos pai e mãe já haviam morrido, e ela era tão pobrezinha que nem sequer tinha um lugar para ficar, ou uma cama para dormir, enfim ela não tinha nada além das roupas que usava e de um pedaço de pão em suas mãos que alguma alma caridosa lhe havia dado. 

No entanto, ela era boa e piedosa. E assim vivia ela abandonada pelo mundo.

Um dia ela estava caminhando pela estrada afora, e confiava no bom Deus. Então, um homem pobre a encontrou, e disse, "Ah, será que você não tem alguma coisa para eu comer, estou com tanta fome!

Ela pegou o seu pedaço de pão inteiro, e disse, "Que Deus lhe abençoe e que isto lhe ajude!" e continuou andando. 

Mais adiante, ela encontrou uma criança, que chorava e disse, "Tenho muito frio na cabeça, me dê alguma coisa para protegê-la.

Então, ela tirou a sua touca e deu para a criança. 

Quando ela tinha andado um pouquinho mais, ela encontrou uma outra criança que não tinha blusa e estava congelada de frio.

Então, ela tirou a blusa e a colocou na criança; mas, pouco depois alguém lhe pediu um agasalho, e ela deu tudo o que ela tinha. 

Finalmente, ela chegou a uma floresta e já estava ficando escuro, e lá vinha uma outra criança, e lhe perguntou se ela tinha uma camisa, e a boa garotinha pensou consigo mesma, "Está tarde da noite e ninguém está me olhando, então, eu poderia dar a blusa que estou usando." e ela tirou a blusa, e deu para a criança. 

E assim ela ficou, com o corpo todo desprotegido, quando de repente estrelas começaram a cair do céu, e elas eram nada mais do que muitas moedas de ouro, e embora ela tivesse dado a única blusa que usava, ela poderia agora comprar uma nova feita com o tecido mais fino. Então, ela foi juntando todo o dinheiro que caía, e viveu rica todos os dias de sua vida.

Fonte: Contos de Grimm. Publicados de 1812 a 1819. Disponível em Domínio Público.

Dorothy Jansson Moretti (Trovas ao entardecer) – 6


A lua, ansiosa, insegura,
em andante de sonata,
dispõe notas de amargura
no pentagrama de prata.
= = = = = = = = = 

A lua não se contendo,
sua tristeza desata
e as lágrimas vão descendo
pelas esteiras de prata.
= = = = = = = = = 

Brota a semente ao milagre
da vida em continuação:
Que o novo fruto consagre
as bênçãos que vêm do chão!
= = = = = = = = = 

Cerro os olhos, comovida,
e ainda me faz sonhar
a voz suave e querida
de minha mãe a cantar.
= = = = = = = = = 

Chegando ao guichê da vida,
eu compro a minha passagem,
e levo, já de partida,
só saudades, na bagagem.
= = = = = = = = = 

Da pena malabarista
(repórter, poeta, escritor),
cumpre pena o jornalista,
penando em qualquer setor.
= = = = = = = = = 

Desencantada e vencida,
as armas enfim, deponho;
não há batalha na vida
que reconquiste o meu sonho.
= = = = = = = = = 

Desfloram ipês, sem pressa,
de Agosto ao fim da estação,
e a primavera começa
no atopetado do chão.
= = = = = = = = = 

Encomendei um feitiço
pra te esquecer, minha linda;
mas reverteu, deu enguiço,
e eu te quero mais ainda.
= = = = = = = = = 

Entre pausas e gemidos,
na sua cantiga ingrata,
o vento faz-me aos ouvidos
enfadonha serenata.
= = = = = = = = = 

"É por pouco, eu logo parto",
diz a Vaidade, matreira.
Coração cede-lhe um quarto,
e ela invade a casa inteira.
= = = = = = = = = 

Lembro os mestres, no passado,
e me enche a alma de dor
ver hoje, tão humilhado,
o antes... Senhor Professor.
= = = = = = = = =

Miragem... sonho às avessas...
Lá do horizonte se alteia
um céu de falsas promessas
sobre um mar de pedra e areia.
= = = = = = = = = 

Mulher, que firme resistes,
enfrentando os preconceitos,
que teu prêmio, enfim, conquistes
e assumas os teus direitos!
= = = = = = = = = 

Na miséria que o consome,
o mundo, velado e escuro,
é o negativo da fome
no retrato do futuro.
= = = = = = = = = 

Na treva de minha vida
treme débil claridade;
é a minha ilusão perdida,
fogo fátuo da saudade.
= = = = = = = = = 

Na vida, em sua viagem,
o "poeta fingidor"
finge que em sua bagagem
leva só versos... de dor.
= = = = = = = = = 

Ouvindo a doce cantiga
das aves, na madrugada,
bendigo a rama que abriga
tão maviosa alvorada!
= = = = = = = = = 

Para esquecer meus fracassos
dei tempo ao tempo, e ele assim,
entregue a outros abraços,
também se esqueceu de mim.
= = = = = = = = = 

Para quem olha, somente,
jangada é poema-canção;
para quem aos pés a sente,
é a incerteza do seu pão.
= = = = = = = = = 

Pela vida, passo incerto,
sem amigo, sem escolta,
sou beduíno no deserto,
em viagem que não tem volta.
= = = = = = = = = 

Resto de amor que não vibra,
que chega alquebrado e tarde
é sentimento sem fibra,
é fogo que já não arde.
= = = = = = = = = 

Sortilégio ou bruxaria,
que importa o nome que eu der,
se vivo preso à magia
desse feitiço-mulher?!
= = = = = = = = = 

Um pensamento secreto
faz o milagre. Eu ajoelho
e o teu perfil vem, discreto
refletir-se em meu espelho.
= = = = = = = = = 

Vendo a existência que finda,
torno ao fio de nossas vidas
querendo que o tempo, ainda,
resgate as horas perdidas.

Fonte: Dorothy Jansson Moretti. Painel do entardecer. Cachoeirinha/RS: Texto Certo, 2013.
Enviado pela trovadora.

Maria Amália Vaz de Carvalho (A preceptora)

Chamava-se Martha de Vasconcellos.

Era alta, loura, delicada como uma figura de keepsake (recordação).

Uma fisionomia suave e infantil que captava pelo seu encanto inconsciente.

À primeira vista, nas soirées semanais do comendador Gonçalves, vestida de branco, com um simples veludo negro nos seus cabelos crespos de um louro fulvo e ardente, parecia uma criança despreocupada e frívola.

Não o era.

Quem a conhecesse de perto sabia que ela tinha a seriedade precoce dos que já padeceram muito.

Nenhuma sentimentalidade falsa no seu olhar azul, meigo e pensativo. Nenhuma ideia errada, nenhuma quimera juvenil na sua cabecinha de uma lucidez singular.

Sabia conservar-se na sombra, sem deixar de ser digna; tinha a consciência da mesquinhez do seu destino, sem ter nunca aprendido a ser humilde.

Pouco falavam com ela, e, no entanto, parecia não dar pelo desdém quase brutal de toda aquela gente que a cercava.

Tinha um modo dócil e meio risonho de sentar-se ao piano, e tocava uma noite inteira valsas, contradanças, lanceiros, que outras dançavam, na expansão da sua alegria burguesa.

Nunca lhe perguntavam se estava cansada, nunca lhe davam a menor mostra de interesse ou de simpatia.

Pagavam-lhe integral e generosamente, tinham direito aos serviços correspondentes a essa remuneração.

As suas relações paravam aqui.

Não sabiam se ela tinha uma alma, se essa alma se iria azedando a pouco e pouco ao contato daquela indiferença cruel; não sabiam do seu passado senão que era honesto e puro, nunca pensavam no seu futuro senão vendo-a eternamente curvada ao peso do mesmo destino ingrato.

Martha era mestra de duas filhas do comendador, duas rapariguinhas de treze a quinze anos, muito presumidas da sua riqueza, muito vaidosas do seu luxo, das carruagens em que andavam, dos vestidos de seda que vestiam, das festas com que os pais alteravam de vez em quando a chata monotonia do seu viver de negociantes retirados.

O comendador tinha um filho muito mais velho do que as irmãs, que se educara na Alemanha; e que depois de viajar pela Europa inteira, havia regressado enfim à casa paterna, onde, aqui para nós, se enfastiava poderosamente.

O comendador queria dar também às filhas uma educação brilhante, uma educação que correspondesse às dimensões da sua burra, eis porque, depois de as tirar do convento, onde tinham estado até àquela idade, escolhera para professora Martha de Vasconcellos.

De resto as ideias do comendador e da mulher sobre a educação de suas filhas, não eram das mais engenhosas e atiladas.

A pobre gente — neste caso, pobre significa riquíssima — a pobre gente não era obrigada a ter um ideal muito levantado.

Sabiam que a filha do barão de tal tocava piano, e queriam que suas filhas soubessem tocar muito melhor.

Tinham ouvido louvar os desenhos da menina Fulana e juraram aos seus deuses que as suas meninas lhe haviam de levar a palma.

Não tinham ideias absolutas, tinham simplesmente ideias relativas.

Excitar a admiração parecia-lhes uma coisa relés e insignificante; o que eles queriam era excitar a inveja.

As pequenas compreendiam isto maravilhosamente.

Em vendo uma amiga da infância, uma conhecida qualquer com um vestido mais bonito ou com uma prenda intelectual mais preciosa, tinham ataques de desespero surdo.

Ralava-as uma vaga inveja de todos os esplendores sociais.

Andavam à busca de gente a quem pudessem ofuscar.

Eram simplesmente ridículas!

Às vezes entravam no quarto de Martha e diziam-lhe num transporte de cólera:

— Quero saber alemão. A Mariquinhas sabe alemão, enquanto eu não sei.

— Quero aprender a bordar de matiz, a Julia fez um quadro que eu não sei fazer.

Era assim que iam progredindo no estudo.

Marta conformava-se docilmente às aspirações das discípulas: ensinava-lhes tudo o que sabia, mas o que ela de todo não pudera, era inocular-lhes a vida interior que animava e coordenava todos os seus conhecimentos adquiridos ou intuitivos.

Dizia-se que Marta conhecera melhores dias, afirmava-se mesmo que não fora para servir de mestra a burguesinhas pretensiosas que seu pai, um pai extremoso, lhe adornara o espirito de todos os primores de uma educação excepcional.

Conhecia as línguas modernas, mas não como as conhecem as meninas que por aí conversam com os diplomatas, resumindo nisso todas as suas ambições de estudo.

Penetrara no espírito delas, compreendera o gênio especial de cada uma, sabia de cor e escolhia principalmente os poetas que sintetizam uma nacionalidade ou uma civilização.

Tinham-lhe ensinado a raciocinar, a pensar, a estudar a fundo todos os problemas em que outras mulheres tocam somente ao de leve.

A curiosidade natural ao espírito feminino, essa qualidade preciosa, que, descurada, se torna quase sempre em um vício antipático, fora nela tão bem dirigida, disciplinada com tal mestria, que se tornara em fonte dos mais puros gozos do seu espírito.

Não sabia can-cans de salão, sabia o que dizem na sua muda língua os astros e as plantas; não tentara penetrar na vida intima das suas amigas, contentava-se em saber a vida intima da Criação.

Nunca lhe viera à ideia penetrar com o espírito no pélago revolto das paixões insalubres; a sua curiosidade insaciada debruçava-se da melhor vontade no pélago profundo das ondas, a quem horas e horas perguntavam pelas misteriosas riquezas do seu seio.

No meio disto, despretensiosa e simples, julgando-se a mais ignorante das criaturinhas do bom Deus, não sabendo que era artista, que era inteligente, que tinha alma capaz de entender todas as grandes coisas.

O pai, que a vinha ver muitas vezes à casa da senhora a quem na infância a confiara, disse-lhe um dia com o pejo a ruborizar-lhe as faces, com lágrimas a marejarem-lhe os olhos, que ela era uma filha natural, mas que tencionava reconhece-la, regularizar a sua posição, dar-lhe todos os direitos que ela por tantíssimos lados merecia.

A adorável criança não o percebeu.

Então — castigo terrível das suas culpas — o pai teve de explicar, de fazer compreender àqueles castos ouvidos de quinze anos uma história deplorável, a história do seu crime!

Martha escutou-o num silencio dolorido, com uma expressão de doçura triste no olhar.

Depois abraçou-o melhor ainda que nos outros dias, porque até ali só tivera muito que agradecer e dali por diante sentia vagamente que tinha muito que perdoar.

— E minha mãe? — perguntou depois com uma tremura na voz.

— Tua mãe morreu.

O pai de Martha era casado, tinha filhos, vivia para sempre longe dela nas tranquilas alegrias da família, uma família em que ela só podia ser a intrusa!

Desde esse dia Martha estudou com dobrado afinco, aprendeu com uma ânsia dolorosa, com um não sei quê de impaciência inexplicada.

Sentia que havia de ter muito que sofrer, muito que lutar.

Tratou de robustecer a alma e de dilatar o espírito.

Era uma espécie de iniciação heroica.

O pai de Martha morreu.

Um dia, ao acabar de jantar, caiu para o lado inesperadamente, fulminado pela ruptura de um aneurisma.

A morte surpreendera-o. Não tinha tido tempo de fazer nada em favor da sua desvalida Martha.

Oito dias depois, entrava esta, vestida de luto, muito pálida, mas com uma expressão estranha de firmeza no olhar, em casa do comendador Gonçalves.

Julião, o filho do comendador, tinha 23 anos quando Martha foi para casa do pai. Ao princípio pouco reparou nela. Imaginava-a uma mestra como as outras, o mesmo livro tirado a centenas de exemplares. Reconheceu somente que era um pouco mais bonita que a generalidade das suas colegas.

Um dia, porém, que ele lia Goethe no original, e que uma frase obscura do poeta o fazia parar na leitura um tanto impacientado e confuso, lembrou-se — acaso ou pressentimento — de recorrer à mestra de alemão de suas irmãs.

Entrou na sala de estudo, com um certo desdém a transparecer-lhe na fisionomia.

Pode ser-se educado na Alemanha e não compreender o Fausto: o que era, no entanto, absolutamente impossível, na opinião do moço, era não ter nunca estado na Alemanha e conhecer Goethe como um poeta nosso compatriota.

Martha conhecia-o.

Pegou no livro que Julião lhe estendia, deitou um relance de olhos para o verso de que se tratava, e depois, com um sorriso não isento de certa malícia inocente, explicou a Julião a ideia do poeta.

Havia tanta clareza nas suas palavras, uma tão superior intuição artística nos seus rápidos e despretensiosos comentários, que o moço olhou para ela deveras espantado.

Pareceu-lhe que a via pela primeira vez.

Não lhe disse, porém; pelo contrário, sentiu uma espécie de surda irritação ao perceber a sua inferioridade intelectual perante aquela criança tão simples, e que todos olhavam com tamanho desdém.

Martha percebeu porventura a impressão que despertara; o caso é que a malícia que lhe chispava no olhar acentuou-se com um indeciso cambiante de ironia.

«A pequena creio que se atreve a fazer escárnio de mim», pensou Julião, saindo da sala, onde a juvenil preceptora ficou com as discípulas.

Desde esse dia Julião e Martha observaram-se mutuamente com mais atenção.

Ele achava-a graciosa, simpática e boa sobretudo, tinha muita pena dela, ao vê-la desdenhada por tanta gente que lhe era inferior na inteligência, na coragem, na distinção, em tudo que pôde tornar adorável uma mulher.

Martha sentia-se silenciosamente compreendida, e agradecia àquele moço esbelto e pensativo as delicadezas mudas com que a compensava do desamor de todos os mais.

Tocou então para ele as mais doces e sentidas músicas que sabia; os apaixonados noturnos de Chopin, as queixosas melodias de Schubert, as sonatas mais belas desse sublime surdo chamado Beethoven.

Conversavam um com o outro através da música, sem nunca se falarem de outro modo senão nas coisas mais banais da vida de todos os dias.

Á tarde, depois de jantar, enquanto o comendador ressonava a sua sesta sobre a prosa elegante do Diário de Notícias, enquanto a comendadora meditava o rol daquele dia, digerindo um bom jantar, e um ataque de fúria contra as suas criadas presentes e futuras, enquanto as meninas debruçadas á janela, trocavam substanciosos comentários acerca de um alferes que morava no prédio fronteiro, e de uma menina muito namoradeira que morava no prédio do lado, Martha, sentada ao piano, desfiava sozinha o longo rosário das suas saudades.

Julião ouvia-a, fingindo ler um jornal ou um livro, e a apaixonada artista bem compreendia que uma alma a estava escutando, e que essas límpidas notas que ela arrancava ao piano iam vibrar divinamente em um coração que a entendia.

Tudo os separava na terra: o orgulho feroz de uma família de parvenus (ociosos), o santo orgulho dela, não menos implacável, porém muito mais nobre, os preconceitos, o dinheiro, quase que a honra; mas, que importava?

Podiam entender-se e amar-se através disso tudo.

E Martha, empalidecida pelas comoções que lhe agitavam a sua alma de artista, com uma expressão sofredora e apaixonada nos seus belos olhos de um azul escuro, contava a meia voz naquela linguagem inefável as suas dores, as suas humilhações, as suas lembranças, todas as alegrias que tivera, tudo que ela havia esperado na terra e que um dia se lhe havia desfeito nas mãos, deixando-lhe apenas uma imensa, uma desoladora, uma eterna saudade!

Às vezes o piano chorava com uma desesperação tão inconsolável e tão profunda, que Julião tinha desejos de erguer-se da cadeira em que estava, de protestar contra os enérgicos lamentos que traduziam a dor insanável de um destino, e de gritar:

— Aqui me tem, pronto a lutar peito a peito contra o seu infortúnio, e a vencê-lo.

Mas não se atrevia!

Que diriam todos, que diria seu pai, que diria a própria Martha?

Quem lhe dava a ele direitos de interpretar daquele modo a sublime execução dessa artista ignorada?

Quem pudera afirmar-lhe que era pessoal essa dor misteriosa que tinha soluços tão doces, queixas tão resignadas e tão mansas, lamentações de tão inefável ternura?

Um dia Julião quis sondar o coração tão calado da pobre mestra. Procurou fazer-lhe umas perguntas que não fossem por demais indiscretas.

Martha desatou a rir.

É verdade que no meio da sua cristalina risada os olhos se lhe afogaram em lágrimas; mas nesse instante Julião sentia-se tão envergonhado da curiosidade que revelara, que se não atreveu a olhar para a sua interlocutora.

O comendador Gonçalves era ambicioso.

Pudera!

Ou não fosse ele comendador.

Estava riquíssimo, mas queria que os filhos fossem ainda mais ricos do que ele.

Para isso andara a mourejar a vida inteira, por isso se sustentara de pão negro e de bacalhau durante os anos mais florescentes da mocidade!

O seu mais íntimo amigo, possuidor de um baronato, de avultada riqueza e de uma filha única tão prendada como ele desejava as suas, falou-lhe um dia disfarçadamente, com certa lábia, a respeito de Julião.

A meio entendedor, meia palavra basta; daí a quatro meses o comendador dava uma pequena soirée intima, em que a menina Adriana, filha do sr. Barão de X, e chegada havia dias do Sacré Coeur, era apresentada ao seu futuro noivo, o Sr. Julião Gonçalves.

Estavam só pessoas de família em casa do comendador.

Ele, a mulher, as duas filhas, o filho e Martha. Enquanto ao barão, viera simplesmente acompanhado pela filha.

Adriana era... o que dali a alguns anos haviam de ser as futuras cunhadas.

Tinha a mais umas tinturas de coqueteria parisiense, coqueteria mal ensaiada, mais colegial do que mundana.

Não se iguala nem se descreve o desdém com que ela cumprimentou Martha. Era uma vingança retrospectiva do que as suas próprias mestras lhe haviam feito passar.

Nos olhos azuis de Martha passou um relâmpago de cólera fugitiva, mas não disse nada. O que havia ela de dizer àquela gente, que a considerava um traste... bem pago?

Adriana, a quem cabiam as honras da noite, sentou-se ao piano e tocou.

Tocou as músicas de Martha, com a agilidade e com o brio de uma pianista experimentada.

Depois, levantando-se no meio de palmas e de bravos, indicou à mestra o lugar que deixara numa espécie de altivo desafio.

É que uma das irmãs de Julião lhe dissera num risinho de malícia, que o irmão gostava muito de ouvir Martha.

A moça levantou-se com um gesto automático, sentou-se ao piano e sem mesmo olhar para as músicas dispersas principiou a tocar.

Foi um adeus soluçante, cheio de lágrimas, onde a espaços passavam como brisas refrigerantes, umas vozes indizivelmente carinhosas!

Foi uma história muito triste, que ainda ninguém tinha ouvido até ali, a história de um coração despedaçado!

Como ela lhe havia querido, ao seu belo sonho desfeito, e com que dilacerante agonia lhe dizia para sempre adeus!

Na sala havia um silêncio angustioso e profundo.

O silêncio inconsciente que inspiram as grandes comoções.

Desde esse dia nunca mais ninguém ouviu a querida voz de Martha, aquela voz que tinha por interpretes os mais sublimes artistas do mundo.

Ela continua a dar lições às filhas do comendador, e há no seu sorriso uma expressão divinamente dolorida, quando fala com Adriana, a feliz esposa de Julião.

Fonte: Maria Amália Vaz de Carvalho. Contos e Phantasias. Publicado originalmente em Porto, 1880. Convertido para o português atual por J. Feldman. Disponível em Domínio Público.