domingo, 17 de dezembro de 2023

Contos e Lendas do Mundo (Japão: O Pardal Agradecido)

Em tempos que lá vão, num dia ensolarado do princípio da primavera, uma velha mulher, de sessenta e poucos anos, estava sentada em frente da sua casa e catava piolhos. No pátio, um pardal saltitava. Algumas crianças que brincavam por ali começaram a atirar pedras no pássaro e uma delas, acertando, quebrou-lhe as costas. Enquanto este se contorcia no chão, esforçando-se debalde para erguer voo, um corvo que passava flechou em sua direção.

— Oh! que horror! O corvo vai pegá-lo! — gritou a velha.

E correndo para perto do pardal, ergueu-o. Depois, bafejou-o com seu hálito quente, soprando-o, e deu-lhe de comer. Colocou a avezinha num pequeno tonel, e recolheu-o para dentro de casa, para passar a noite. 

Na manhã seguinte, deu-lhe algum arroz e preparou-lhe um remédio com pó de cobre. Os seus filhos e netos disseram, caçoando:

— Ora, vejam que mulher tão amável! Agora resolveu cuidar dum pardal!

Sem fazer caso, a velha continuou a cuidar ternamente do pardal, por muitos meses, até que, afinal, logrou pô-lo novo, ágil e lampeiro. Conquanto fosse um mero pardal, ele sentia-se muito venturoso e grato àquela que lhe tinha restaurado a saúde. Toda vez que a boa mulher saía de casa, por mais breve que fosse a incumbência, deixava ordens expressas à família:

— Olhem o pardal e não o deixem sem alimento.

Os filhos e netos riam-se dela e mimoseavam-na com gracejos.

— Que engraçado! Por que tanto incômodo por causa dum pardal?

— Podem dizer o que quiserem, mas é uma pobre criaturinha indefesa — argumentava ela.

E graça à sua solicitude, o pardal pôde afinal voar novamente.

— Agora nenhum corvo o pegará — disse a mulher e levou-o ao ar livre para ver se já voava bem. Quando o pôs na palma da mão e estendeu o braço, lá se foi ele, com um ruflar das leves asinhas. 

Depois desse dia, na monotonia e solidão de sua vida, a mulher sentia saudades do pássaro. Dizia, às vezes:

— Que pena ele ter ido embora, ao cabo de tantos meses e dias em que eu o recolhia à noitinha e lhe dava de comer pela manhã!

Como de costume, todos riam dela.

Decorridos cerca de vinte dias, a mulher escutou o chilrear vibrante de um pardal lá fora.

— Ora, é um pardal! Talvez seja o mesmo, que voltou — pensou ela, e saiu para ver.

De fato, era o mesmíssimo pardal.

— Oh! que coisa comovente! Que comovente é que não se tenha esquecido de mim e haja voltado! — disse ela.

O pardal, depois de ter relanceado o olhar para a mulher, deixou cair do bico algo minúsculo com o evidente intuito de deixá-lo, fosse o que fosse, para ela e foi-se embora.

— Que terá deixado cair? — admirou-se a mulher.

Aproximou-se e constatou que o pássaro deixara cair apenas uma semente de abóbora.

— Alguma razão deve ter tido para trazer isto — conjeturou ela, apanhando a semente. 

Seus filhos chasquearam:

— Que beleza! Agora recebe presentes de um pardal e dá-se ares de quem ganhou um grande tesouro!

— Podem dizer o que quiserem, vou plantá-la e ver o que acontece — respondeu a mulher, e fez o que dissera.

Quando chegou o outono, a planta deu farta messe de abóboras. Não eram do tipo usual, e sim muito maiores e em maior cópia. A mulher não cabia em si de contente. Por mais que as colhesse ou delas fizesse presente aos seus vizinhos, sobravam ainda, mais do que poderia utilizar.

Seus filhos e netos, que tinham zombado dela, comiam abóbora todos os dias.

Por fim, depois de ter distribuído abóboras a toda a gente do lugar, tomou a decisão de deixar curando sete ou oito das maiores e mais vistosas para fazer purungas. Escolheu-as e pendurou-as dentro de casa para secar. Depois que se passaram vários meses, inspecionou-os, julgando que por esse tempo, estivessem quase no ponto. Efetivamente, as abóboras tinham bela aparência, mas quando dependurou uma delas, surpreendeu-se ao constatar quão pesada estava.

Cortou-a assim mesmo, mas somente para descobrir que estava recheada com alguma coisa. Quando a despejou para ver o que seria, constatou que a abóbora eslava cheia de arroz branquinho! Admirada de tal prodígio, esvaziou o conteúdo da abóbora numa jarra grande, mas, mal tinha acabado de fazê-lo, eis que a abóbora estava de novo cheia, como quando principiara. Atônita e radiante de alegria, disse: – Isto é muito fora do comum. O pardal deve andar por trás disto.

Passou o arroz para as jarras e guardou-o na despensa. Quando examinou as outras abóboras, verificou que estavam também cheias de arroz. Podia despejar ou usar no arroz que quisesse, sobejava sempre muito mais do que podia aproveitar; assim, tornou-se uma mulher muito rica. Os outros aldeães pasmavam e lhe invejam a boa fortuna.

Então, os filhos da velha da casa vizinha disseram à mãe:

— Outras pessoas, embora não tenham nada diferente da senhora, conseguem ficar ricas, mas a senhora não sabe mexer uma palha.

Em consequência de tais queixas, a velha resolveu visitar a sua vizinha afortunada.

— Então, o que há, afinal de contas? Ouvi conversas sobre um pardal, mas, de fato, nada sei. Por favor, conte-me a história inteira, como aconteceu, desde o princípio.

— Tudo veio de eu plantar a semente de abóbora que um pardal deixou cair — respondeu a primeira mulher, e não quis fornecer mais detalhes.

Mas a segunda continuou a fazer pressão:

— Insisto em saber. Conte-me tudo, por favor.

A interpelada, julgando que não devia ser niquenta (que se ocupa de ninharias), nem guardar segredo  do caso, contou:

— Tomei conta dum pardal que tinha quebrado as costas e tratei-o até ele sarar. Deve ter ficado tão agradecido que me trouxe uma semente de abóbora, que plantei. Foi isso o que aconteceu.

— Por favor, dê-me uma só dessas sementes — pediu a segunda mulher. 

Mas a outra recusou:

— Eu lhe darei um pouco do arroz que estava dentro das abóboras, mas não lhe posso dar as sementes. Essas, digo-lhe francamente, não as posso dar a ninguém.

Tendo falhado em sua tentativa de obter uma semente, a velha começou a procurar com o máximo empenho, na esperança de descobrir também algum pardal de costas quebradas, de que pudesse cuidar, mas não conseguiu achar nenhum nessas condições.

Todas as manhãs, quando ia esquadrinhar o quintal, via por lá alguns pardais saltitando perto da porta dos fundos, debicando quanto grão de arroz houvesse espirrado por ali. Então, pegava em pedras e atirava-as nos pardais com a esperança de acertar algum. Como atirasse muitas pedras sobre numerosas aves, naturalmente acabou por atingir um, ferindo-o de modo que ele não pôde mais voar. Muito satisfeita da vida, acercou-se do passarinho e, depois de certificar-se de que suas costas estavam devidamente quebradas, apanhou-o, deu-lhe de comer e administrou-lhe remédios com imenso cuidado. Depois refletiu:

— Se a mulher da casa do lado obteve tanto em paga de haver tomado conta de um único pardal, quão mais rica eu não poderia ser se tivesse vários! Seria superior a ela e meus filhos haveriam de elogiar-me.

Espalhou um pouco de arroz numa peneira e ficou à espreita. Quando alguns pardais se ajuntaram ali para comer o arroz ela se pôs a jogar pedra atrás de pedra contra eles, até lograr abater três. Estimando que bastava por ora, colocou os três pardais feridos num tonel, pulverizou um pouco de cobre e deu a eles. Depois de vários meses de tratamento, todos se restabeleceram, Muito alegre, levou-os ao pátio e eles se foram, tatalando as asas.

— Como sou esperta! — refletiu a mulher.

Os pardais, no entanto, lhe votavam o ódio mais amargo, pois ainda que tivesse tratado deles, fora ela quem lhes partira as costas.

Uns dez dias mais tarde, os pardais regressaram. Muito contente, a velha tratou logo de ver se traziam algo nos bicos; com efeito, cada um deixou deles cair uma semente de abóbora, e partiu voando.

— Bem o esperava! — disse ela, e apanhando jubilosamente as sementes, plantou-as em três lugares diversos. Os rebentos brotaram com rapidez desusada e logo estavam bem grandes. Mas não deram tantas abóboras: apenas sete ou oito por pé. A mulher, entretanto, contemplava-as com um sorriso de ventura e dizia aos filhos:

— Vocês diziam que nunca prestei para nada, mas vou mostrar-lhes que valho mais que a mulher da casa vizinha.

Eles agora estavam persuadidos de que as coisas seriam como ela afirmava. Por serem as abóboras poucas, a velha, que tencionava extrair delas o máximo possível de arroz, não quis dai nenhuma a ninguém, nem comeu nenhuma ela própria.

Mas os filhos disseram-lhe:

— A mulher que mora ao lado deu algumas abóboras aos vizinhos e ela própria comeu algumas. Mais razão para fazer o mesmo tinha a senhora, que já começou por três sementes. Devia dar algumas de presente, e nós nos incumbiríamos de comer outras tantas.

Atendendo ao conselho, ela escolheu uma boa parte das abóboras e repartiu-as entre os vizinhos e a família. Mas a s abóboras provaram ser horrivelmente amargas, provocando náuseas e tonturas em todo o mundo. Todos que as comeram caíram gravemente doentes, e os indignados vizinhos, congregados e em compacta ordem unida. dirigiram-se à casa da presenteadora a fim de passar lhe solene sarabanda (descompostura).

Que droga nos terá impingido? — perguntavam uns aos outros. — Que grande vergonha! Até aqueles de nós que mal cheiravam uma, vomitaram! E ficamos todos tão adoentados que quase morremos.

Quando, porém, chegaram a casa, encontraram a mulher e os filhos jazendo pelo solo, a vomitarem espasmodicamente. Parecendo-lhes, assim, que já não havia grande proveito em fazer a queixa, os vizinhos se retiraram, cada um para sua casa.

Foi só ao cabo de dois ou três dias que todos se restabeleceram.

Então, a velha conjeturou: "Eu pensava em guardar as abóboras até que todas produzissem arroz, mas fomos muito precipitados em comê-las. Certamente foi por isso que aconteceu o acidente." 

Ajuntou as abóboras que restavam e escondê-las. Passados vários meses, quando calculou que as abóboras estivessem no ponto desejado, dirigiu-se à despensa levando uns vasilhames para recolher o arroz que fosse despejando. Impava de contente e a sua boca de velha desdentada expandia-se em um riso que ia de uma orelha a outra, enquanto vertia numa tigela o conteúdo de uma das abóboras. Mas o que desta saiu, em vez de arroz, foram vespões, abelhas, centopeias, escorpiões, serpentes, e mais criaturas desse jaez que, caindo sobre ela, ferretoaram-na nos olhos, no nariz, e no corpo todo.

Contudo, no momento, a mulher velha não sentiu dor nenhuma. Pensou que fossem apenas grãos de arroz que esborrifavam da tigela e lhe batiam no rosto.

— Esperem um pouco, meus pardaizinhos! Vou dar um bocadinho para todos — disse.

Os inúmeros insetos venenosos que surgiam das sete ou oito abóboras picaram e morderam os seus filhos também, e a própria velha foi picada até morrer. Parecia que os pardais, que a odiavam por ela lhes ter quebrado as costas, haviam persuadido todos os insetos a se ocultarem dentro das abóboras e a os auxiliarem em sua vingança. O pardal da casa ao lado ficara reconhecido à velha que cuidara dele e o restituíra à saúde, quando suas costas estavam quebradas e ele se via em perigo iminente de ser arrebatado por um corvo. 

Não devemos ter inveja dos outros.

Fonte: Contos Japoneses (Uji Shui Monogatari)século XIII

Eduardo Affonso (Implicância)

Cuidado com as suas implicâncias. Lenta e inexoravelmente, elas irão tomar conta de você e se tornar obsessões.

Minha mãe sempre implicou com edifícios sobre pilotis. Criada em casa de chão de terra batida, não sentia firmeza nas construções empoleiradas naquelas perninhas finas.  Resmungava cada vez que via um prédio desses – ou seja, resmungava sempre que ia à rua. 

Com a idade – e o Alzheimer – as vigas e pilares das construções nas encostas (trem mais comum em Minas que que chamar as coisas de trem) se tornaram uma ideia fixa. Um incômodo palpável. Era preciso distraí-la (“Olha que cor horrorosa aquela casa!”) sempre que seu olho se sentia atraído pelos monstrengos em pernas de pau encarapitados em cada aclive, declive, murundu ou pirambeira. Porque minha mãe também implicava com as cores das casas, mas os roxos, laranjas, vermelhões e verdes bandeira não eram páreo para as construções levantadas do chão.

Desde então venho pensando: qual será o meu piloti quando eu ficar velho (mais velho) e chato (mais chato)?

Tenho vários candidatos.

Os vícios de linguagem são os mais óbvios. São eles que me impedem de assistir à programação da CNN, porque minha cota diária de tolerância a barbarismos se esgota em cerca de 60 segundos.

Também tem a franja. Eu entendo a sombra verde, os óculos com correntinha, a sobrancelha imitando a logo da Nike, o pírcim no lábio – mas franja está além da minha compreensão.

Implico com gente falando alto ao celular em local público. Implico com gente falando alto. Ultimamente, dei para implicar com gente, mesmo calada, em local público – mas isso vai passar com a pandemia.

Implico com tatuagem. Com sotaque carioca em filme dublado. Com cachorro usando roupa. Com barba desenhada. Com locutor de supermercado.

Mas, correndo por fora e com grandes chances de chegar ao pódio, está a ombreira.

O que leva um ser humano do gênero macho a inflar artificialmente os ombros e ficar parecendo um jogador de futebol americano que botou um terno por cima do shoulder pad?

O Merval Pereira conta que, num voo, sentou-se ao seu lado um sujeito espaçoso, cheio de correntes de ouro e que não largava o celular, ignorando os pedidos da aeromoça para que desligasse o aparelho. Era o Wassef. Suponho que estivesse com o cabelo emplastado. E, possivelmente, com suas inseparáveis ombreiras – que o Merval não menciona, mas que não me escapariam.

A ombreira é o viagra do paletó.
A ombreira define o homem.
Diz-me se usas ombreira e eu te direi quem és.

Eu não reparo no cabelo do Guga Chacra. No olho de gatinha da Renata Vasconcelos. Na franja da Nina Lemos. Nunca reparei na peruca do Chico Xavier, nos anéis do Walter Mercado, no nariz do Juca Chaves, na boca da Cleo Pires, no busto (digamos assim) da Inês Brasil, no pescoço rabiscado do Fogaça.

A suposta participação do Wassef numa seita satânica pode dizer alguma coisa do seu caráter. Mas as ombreiras dizem tudo.

Fonte:
https://tianeysa.wordpress.com/2020/06/25/implicancia/. 25 jun 2020.

Estante de Livros (“O vencedor está só”, de Paulo Coelho)

Antes de começar a falar do livro, acho que o mais justo seria dar uma introdução a obra falando sobre o autor. Paulo Coelho é o escritor brasileiro que teve mais exemplares vendidos em todo o mundo, de acordo com pesquisa feita em 2014 ele já havia ultrapassado os 150 milhões de exemplares. O que poucos sabem é que antes de se dedicar apenas a literatura, Paulo Coelho foi diretor, autor de teatro, jornalista e compositor.

Sempre ouvi de amigos leitores que Paulo Coelho é o tipo de autor que você ama ou odeia, não existe um meio termo. Não que eu concorde inteiramente com isso, mas o autor é polêmico, aborda temas diferentes e o desconhecido sempre causa medo, ou nesse caso algum tipo de repulsa. Mesmo existindo um grande preconceito com suas obras por parte dos brasileiros, internacionalmente ele é muito reconhecido. Notamos isso com o número de exemplares vendidos que citei mais acima. Meu primeiro contato com o escritor foi com a obra Brida e logo de cara me apaixonei pela sua escrita e profundidade, quando li O diário de um mago tive certeza que iria para o lado de quem aprecia suas obras e sua maneira maravilhosa de tocar a alma de cada leitor.

O Vencedor Está Só é um livro de tamanho considerável, hoje em dia poucas pessoas conseguem ler 400 páginas sem uma obrigação estipulada, aqui já encontramos algo bem interessante, o livro se passa em um período muito curto, apenas 24h! Você ficara impressionado com quantas coisas podem acontecer em um espaço de tempo tão curto. O cenário é o festival de Cannes e temos uma mistura muito interessante de personagens.

A história tem seu início muito antes do festival de Cannes com o então casal Igor e Ewa, ele um ex-militar que após a guerra conseguiu vencer na vida com muito esforço e dedicação ao seu trabalho, investindo na criação de uma empresa de telefonia em uma Rússia abalada, onde ninguém mais acreditava em seu potencial de vencer. Ewa no começo é apenas a esposa dele, uma figura secundária que vai ganhando cada vez mais destaque quando conhecemos melhor Igor, vamos notando que toda a sua base e sua estrutura advém do amor incondicional que ele sente por sua mulher. O sonho dos dois é construir uma casa bem afastada dos centros urbanos e viverem apenas dos lucros e do amor, mas esse sonho fica cada vez mais distante a medida que Igor fica mais viciado em seu trabalho. Esse é um dos motivos para que Ewa fique deprimida, enquanto seu marido está em reuniões de negócio, em viagens pela empresa, ela permanece só em casa, sem um propósito de vida, sem um motivo para prosseguir. Sentindo a aflição de sua esposa Igor tenta de todas as maneiras melhorar seu animo, em uma conversa ela revela que seu sonho era trabalhar com moda e seu marido para alegrar seus dias abre uma gigantesca loja para ela. Talvez se Igor soubesse que esse seria seu maior erro não teria feito isso. Sua esposa então torna-se uma viciada no trabalho igual ele e em uma das viagens para desfiles de moda acaba conhecendo Hammid H., costureiro da elite que acaba se apaixonando por ela. Por motivos sombrios que serão esclarecidos com a leitura do livro, Ewa decide deixar Igor e ir morar com Hammid, a pior decisão de sua vida. Temos formada a história que antecede o fatídico reencontro dos três no festival de Cannes.

Com a traição de sua esposa Igor se vê perdido, sem chão, não te mais motivo para prosseguir a sua vida então se vicia ainda mais no trabalho, é a única coisa que restou de sólido no meio do turbilhão. Quando Ewa vai embora leva consigo uma promessa de Igor, ele diz que vai destruir universos para ter ela novamente. Sabendo do que seu ex-marido é capaz de fazer ela permanece sempre alerta, mas o tempo vai passando e nada de ruim acontece, fazendo com que ela acredite que Igor a esqueceu, infelizmente para si estava enganada e após 2 anos de sua traição Igor começa a executar seu plano friamente calculado.

Com a passagem de ida e volta já garantida e apenas um objetivo em mente Igor vai atrás de Ewa decidido a destruir universos para ter sua amada novamente. Algo que achei muito lindo e é marca do Paulo Coelho é a definição de universo que Igor utiliza no livro, foi um dos poucos pontos que me reconfortaram com a leitura.

Sua primeira vítima é uma garota que vende artesanatos e esse personagem vai ganhar extrema importância na trama, o que achei super válido. A menina conta sua história quando percebe que vai morrer, tenta de alguma maneira tocar o coração de Igor que não será abalado. Utilizando uma técnica marcial ele a mata de maneira limpa e deixa seu corpo em um banco próximo esperando que alguém a encontre. Após cometer o crime manda uma mensagem para sua ex dizendo que destruiu o primeiro universo por ela. Ela será o primeiro de vários outros delitos que Igor irá cometer até chegar no seu objetivo.

Pode parecer que nosso personagem principal é um maníaco, que não tem nenhum sentimento de humanidade, mas fica claro que ele age por amor. De uma forma doentia mas é por amor. Ewa quando percebe o que esta acontecendo fica apavorada, sabe que seu ex é capaz de tudo e tenta alertar Hammid, que não lhe dá ouvidos nenhum, não sabe do que Igor é capaz.

Com o decorrer das páginas vemos um Igor beirando a insanidade até que um fato o demonstra que Ewa não merece todo o sacrifício que ele esta fazendo, sua missão deve ser concluída mas não da maneira como foi planejada anteriormente. Os planos mudam, os alvos não. O desfecho da história acabou me surpreendendo, valeu a pena deixar de lado a vontade de abandonar o livro.

Tem pontos positivos, tem citações e pensamentos maravilhosos como é de se esperar do autor, mas não chega a ser tão profundo como Veronika Decide Morrer ou até mesmo O Diário de um Mago.

Fonte: Texto de Igor Matheus. Disponível no Cinemundo. 3 ago 2015.
https://cinemundo.com.br/resenha-o-vencedor-esta-so-paulo-coelho/

sábado, 16 de dezembro de 2023

Therezinha D. Brisolla (Trov" Humor) 20

 

Mensagem na Garrafa – 56 -

Aparecido Raimundo de Souza
Vila Velha/ES

COMO UM PASSAGEIRO EM TRÂNSITO...

Pense no dia que ainda não nasceu:
e a Manhã chegará linda e sorridente.

Pense na esperança:
e ela lhe sorrirá com ternura.

Pense no amor:
e ele transformará a sua vida.

Pense na paz:
e ela estará sempre ao seu lado.

Pense no seu trabalho:
e ele será recompensador.

Pense no seu semelhante:
e ele lhe abraçará em retribuição.

Pense no silêncio:
e ele acalmará as suas horas mais difíceis.

Pense em coisas boas:
e elas brotarão de  dentro do seu “eu” gradativamente.

Pense em fazer alguém feliz:
e verá que esse sonho nunca saiu do seu lado.

Pense na noite encantadora que se avizinha:
e ela lhe trará o descanso merecido e necessário.

Pense no futuro:
e ele simplesmente acontecerá.

Pense nos seus filhos e netos:
e descobrirá a magia imensa em ter alguém lhe chamando de Papai ou Vovô.

Pense nos amigos:
e compreenderá que somente os verdadeiros nunca nos deixarão sem socorro.

Pense na alegria de estar vivo e com saúde:
e agradeça pelo sopro benfazejo da plenitude.

Pense na morte:
e faça tudo aquilo que deixou para realizar no dia seguinte.

Pense nos que se foram e nos deixaram num vazio imenso:
e dobre os joelhos em oração para que descansem em paz.

Pense na escuridão:
E se congratule pela visão perfeita que lhe permite enxergar além dos horizontes.

Pense, por derradeiro, em se prostrar, ou melhor, se detenha, de fato, diante de um espelho e vasculhe longamente buscando o interior de si mesmo:
e certamente concluirá que, tendo Deus na sua vida, na sua alma, e, principalmente, em seu coração, NADA LHE SERÁ NEGADO E COISA ALGUMA SE FARÁ IMPOSSÍVEL.

Monsenhor Orivaldo Robles (A travessia)

A historieta é antiga e já foi narrada de várias maneiras. Alternam-se os personagens, muda o contexto, mas com quaisquer pormenores a lição é idêntica. E um corolário de profunda sabedoria. A mais recente versão a que tive acesso transmitiu-a, segundo consta, o educador Paulo Freire. Diz assim:

À margem de largo rio, de travessia penosa e arriscada, trabalhava um barqueiro. Sua profissão era atravessar as pessoas de um para outro lado cruzando as águas nem sempre mansas. Numa dessas viagens, ele conduzia na canoa um advogado e uma professora. Muito falante e, quem sabe, para afastar o medo, o advogado perguntou: "Barqueiro, você tem algum conhecimento sobre leis"? "Não, senhor", respondeu ele educadamente. O advogado, compadecido e com ar de superioridade: "É pena, amigo. Você perdeu metade de sua vida".

Interveio então a professora. Simpática, preocupada em socorrer o pobre homem, quis saber: "Mas você sabe ler e escrever, não é"? "Também não, dona. Fui criado na beira deste rio, longe de escola. O que sei aprendi aqui mesmo". "Que pena", tornou ela. "Você perdeu metade da vida".

Nisso, uma onda forte virou o barco lançando os três na água. Apreensivo, enquanto dava a primeira braçada, o barqueiro perguntou: "Vocês sabem nadar"? À resposta negativa dos outros, concluiu com tristeza: "É uma pena, porque já, já, vocês vão perder a vida inteira".

Conclui brilhantemente o educador: Não há saber maior ou menor. O que existe são saberes diferentes.

Numa sociedade escrava do aprendizado formal livresco, é importante afirmar que o conhecimento humano não se restringe a um formato único. Existem muitas formas de saber. Mesmo distintas, são igualmente válidas, indispensáveis até. Já ouvimos que ninguém é tão pobre que nada possa dar, nem tão rico que nada precise receber. Igualmente, ninguém é tão ignorante que nada possa ensinar, nem tão sábio que nada tenha que aprender.

Por endeusar o (certamente) válido conhecimento técnico-científico, o homem moderno tende a fechar os olhos a tudo que não procede das ciências exatas ou humanas. Diz o brocardo que o saber não ocupa lugar. Acrescente-se: também não procede de fonte única. Há saberes distintos, porém consistentes e respeitáveis, portanto dignos de reconhecimento. Ninguém espera que um caboclo do Amazonas interprete os dados de uma lâmina em análise num microscópio. Da mesma forma, não pode exigir de um bioquímico a habilidade de pescar tambaqui com uma azagaia, no Rio Negro, dentro da escuridão da noite. Se pretendem, porém, prestar serviço eficiente, tanto um como outro devem dominar o saber próprio exigido por sua área de atuação. Precisam, além disso, conjugar as distintas competências para o fim comum, que é o bem de toda a sociedade. Um não tem o direito de desprezar o outro. Ofícios diferentes não significam superioridade nem inferioridade. Não revelam dignidade maior ou menor deste ou daquele.

Não é, infelizmente, o que vemos com frequência. Nem o que muitos formadores de opinião transmitem ao público. Convencionou-se que só é importante aquilo que rende dinheiro ou ostenta posição social. Por ignorância ou orgulho se desprezam valores que fariam bem mais feliz a vida de todos. Fazer o quê? Valores do espírito não causam frisson numa sociedade que vive de aparências.

Fonte: Recanto das Letras do autor.
https://www.recantodasletras.com.br/cronicas/3483105

Nilto Maciel (O Suplício de Geruza)

Cautelosamente mostramos os dentes emprestados para os sorrisos programados, enquanto caminhávamos em perfeita ordem, sob o olhar do público. Cabeças erguidas e olhos enxutos, deveríamos guardar todas as emoções para o final.

Por um instante vi Emanuela nervosa e pálida na plateia. Talvez chorasse ou risse. Não sei se acenava ou dizia adeus. Nosso amor já fazia parte do passado, nossos dias, nossas noites. Desviei os olhos dela e olhei para a água. De que me servia sentir saudades, rememorar nossa vidinha cheia de mistérios e segredos, se com toda a certeza eu não voltaria vivo daquele salto? As águas seriam minhas novas companheiras dali até a morte. Eu terminaria inchado como uma fruta podre lançada ao poço, esquecido tão logo se consumasse meu fim e tão apavorada como nos meus mil sonhos intermináveis.

Nada eu conseguia entender. Por que teríamos de nadar? Que crime eu havia cometido? Por que aquele tipo de punição? Por que o público se deixava enganar, crente de estarmos competindo?

Do alto-falante uma voz não parava de gritar: esporte é cultura, natação é saúde. Os exercícios físicos desenvolvem os músculos, ajudam a circulação sanguínea, dão mais agilidade ao corpo.

A plateia olhava para nós, a mascar chicletes, fumar e beber cerveja em latinhas. Não tive mais ânimo de procurar o choro ou o riso de Emanuela e só ouvi o grito do locutor: atenção, atletas, muita atenção. Vai começar a contagem regressiva: dez, nove, oito...

Saltamos, e o gosto de sal me inundou a boca. Talvez o público batesse palmas, estivesse agitado, de pé nas arquibancadas. As águas frias, viscosas, abundantes pareciam me engolir. E eu me sentia peixe, lépido como serpente.

Pelo regulamento da competição, o último colocado não poderia sair mais da água. Não o deixariam alcançar as margens e, cansado, exausto, morreria afogado. Assim, só nos restava nadar, nadar, nadar.

À minha frente ia um rapaz; ao lado outro, homens e mulheres gementes a revolver as águas em desesperada correria. E não havia mais plateia, só as águas e os muros do canal, infindável, escuro, lodoso. No alto, os fiscais, armados, carrancudos, impassíveis, corriam de lanterna em punho. O primeiro a chegar sorria, o segundo, o terceiro. A uma braçada do ponto final olhei para trás e só avistei Geruza, minha velha amiga. Toquei o muro, e as mãos do fiscal se agarraram às minhas.

Não vi mais nada: o pavor me entregava à salvação.

E acordei sozinho nos braços de Emanuela, a perguntar por Geruza.

No outro dia brigamos sem razão: Geruza não existia. Assim mesmo teimamos.

Fonte: Nilto Maciel. Babel. Brasília/DF: Editora Códice, 1997. Enviado pelo autor.

Professor Garcia (Sonetos Avulsos) – 3 –


IMAGINAÇÃO

Partirei bem mais triste e tão sozinho,
deste mundo feliz que tanto amei,
ao lembrar da alegria do meu ninho,
nos instantes felizes que passei.

Peço a Deus que me mostre outro caminho,
sem fronteiras, por onde eu passarei,
de onde eu possa enxergar mais um pouquinho
deste mundo que um dia eu deixarei.

Não desejo partir. Pai, nem tão cedo,
mas eu sei que esta vida tem segredo
que jamais a ninguém vai revelar.

O que quero é esquecer meus pesadelos,
curtir muito esta paz dos meus cabelos
no meu simples, feliz e doce lar!
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NOITE ENLUARADA

Quando a lua clareia a noite escura,
rasga o manto das trevas seculares,
eu contemplo a mais linda criatura,
versejando, no topo dos altares.

Poetisa que inspira, com brandura,
nossos prantos, soluços e cantares...
Lua cheia, no céu, doce ternura,
que enfeitiça o poeta, encanta os mares.

Da varanda do quarto, abro a janela,
para vê-la, no céu, tão pura e bela,
desfilando sozinha na amplidão...

E eu, sozinho, em meu quarto, estendo os braços,
adormeço, matando os meus cansaços,
contemplando o luar na solidão!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

OBSTINAÇÃO

Quando eu vejo, no espelho, a crueldade
que uma réstia do tempo me causou,
eu percebo, de fato e na verdade,
que o meu tempo de infância já passou.

Até hoje eu carrego, com saudade,
tudo aquilo que o tempo me levou.
Dos feitiços banais da mocidade,
a lembrança foi tudo que restou.

E ao lembrar desta infância tão querida,
nunca esqueço do amor de minha vida,
descoberto na infância, certa vez.

E este amor que, na vida, foi meu sonho,
na velhice me torna mais risonho,
explodindo o meu lar com sensatez!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

SENTIMENTO

Quando o dia se apressa e vai embora,
num silêncio que fere e que angustia,
a tristeza me invade e me devora,
nos instantes de dor do fim do dia!

Como quem diz adeus e triste chora,
vai-se o sol, num delírio de agonia,
e a cortina da noite, Deus decora,
com luz tênue, de vã melancolia.

Já distante, nas trevas, muito além,
a tristeza me acena, como quem
se despede de alguém que já morreu.

Foi apenas a luz de um dia lindo,
que cansada, acenou quase dormindo,
e, nos braços da noite, adormeceu!
= = = = = = = = = 

 TEU RETRATO

Na moldura, contemplo o teu retrato,
que me deste sorrindo, um certo dia,
e por vê-lo, confesso e te relato,
que ainda vivo este sonho e fantasia.

Passa o tempo e não passa esta alegria
que conservo na mente e não maltrato,
porque sem conservá-la, a nostalgia,
transformava este sonho em sonho ingrato.

Vendo o teu rosto lindo e sedutor,
como eu lembro da força deste amor,
nestes seus lábios ternos, sensuais...

Ah! Que pena que o tempo nada sente,
e o que guardo comigo eternamente,
é uma foto, consolo dos meus ais!
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Fonte: Francisco Garcia de Araújo. Cantigas do meu cantar. Natal/RN: CJA Edições, 2017.
Enviado pelo poeta.

Graciliano Ramos (A espingarda de Alexandre)

— Os senhores querem saber como se deu esse caso do veado, uma história que apontei outro dia? perguntou Alexandre às visitas, um domingo, no copiar. Ora muito bem. Olhem aquele monte ali na frente. É longe, não é?

— Muito longe, respondeu o cego preto Firmino.

— Como é que o senhor sabe, seu Firmino? grunhiu o narrador. O senhor não vê.

— Não sei não, seu Alexandre, voltou o negro. Eu disse que era longe porque o senhor é o dono da casa e deve saber. O senhor achou que era longe e eu concordei. Não está certo?

— Está, resmungou Alexandre. Mas eu quero a opinião dos outros. Que distância vai daqui àquele monte, seu Libório?

Seu Libório arriscou meia légua. Mestre Gaudêncio afastou o monte para duas léguas. E Das Dores afirmou que ele devia estar a umas cinquenta:

— É o que eu digo, meu padrinho. Cinquenta léguas, daí para cima.

Alexandre, moderadamente, repreendeu a afilhada:

— Isso não, Das Dores. Que desconchavo! Assim também é demais. Deixe esses despotismos, para os nossos amigos não fazerem mau juízo, não pensarem que eu ando com invenções. As minhas histórias são exatas.

— Tudo ali no duro, opinou seu Libório. Ponha meia légua.

— Eu propus duas, disse mestre Gaudêncio.

— E eu cinquenta, cochichou Das Dores. Mas parece que foi bobagem.

— Foi, gritou Alexandre. Vamos dividir isso. Juntamos tudo e depois repartimos. Cinquenta com dois são cinquenta e dois. Mais meio: cinquenta e dois e meio. Qual é a terça de cinquenta e dois e meio, Cesária?

— Isso é um número muito comprido, respondeu Cesária. Se eu tivesse aqui os meus caroços de mulungu, a resposta ia logo; mas assim de cabeça, que dificuldade! Negócio de conta é um desespero, Alexandre. Você conhece a adivinhação dos lenços? Não conhece. Pois eu digo. Uma rua tem cem casas, cada casa cem janelas, cada janela cem moças, cada moça cem vestidos, cada vestido cem bolsos, cada bolso tem cem lenços, cada lenço quatro pontas e cada ponta um vintém. Quanto é o dinheiro que há na rua? Hem? Nunca houve quem soubesse. Quebro a cabeça desde pequena e não sei. Faz vergonha a gente confessar que ignora um troço? Não tenho vergonha não, Alexandre. Esses lenços me têm estragado os miolos. Conta é um buraco. Vou acender o cachimbo lá dentro. E penso na sua pergunta, Alexandre, que não gosto de pensar misturada com outras pessoas. Já volto.

Cesária entrou, alguns minutos depois regressou cachimbando e falou:

— Alexandre, a terça de cinquenta e dois e meio é muita coisa, mais de quinze, mais de dezesseis. Talvez chegue a dezessete e ainda um pedacinho. Mas para que saber isso tão direito? Ninguém vai medir a terra. Bote dezessete léguas, Alexandre. Que acha?

— Acho que devem ser pouco mais ou menos dezessete léguas, concordou Alexandre. Ou antes: apurada a opinião de vocês todos, ficam dezessete léguas bem estiradas. Eu não dei opinião, aceito o que os outros disseram. É muita légua, não é? Pois, meus amigos, tenho uma lazarina que engole todas elas e não falha. Nunca houve outra igual.

Alexandre levantou-se, foi à sala e voltou com uma espingarda velha e enferrujada, a coronha meio comida pelo cupim, enrolada em arame:

— Olhem que beleza. Meu irmão tenente, em troca do couro da onça, ofereceu-me esta maravilha, quando entrou na polícia. Que presente! Qualquer dia hei de mostrar aos amigos quanto ele vale. Só vendo, seu Firmino. O senhor vai ver. Isto é: os outros vão ver e o senhor terá notícia. Já falei no porco bravo que partiu a cachorra pelo meio? E nas duas araras? Bem. O porco e a cachorra dão para uma noite e vêm depois, mas as duas araras podem vir logo, e os senhores ficarão de queixo caído. Um dia destes acordei ouvindo gritos. Cheguei aqui ao copiar e avistei duas araras, uma voando muito alto, outra mais baixo. Corri mais que depressa, fui buscar a espingarda e atirei nos bichos. Vinha amanhecendo, ainda havia um resto de escuridão, era difícil enxergar as coisas afastadas. Mas, como já sabem, este olho torto vê tudo. As araras morreram. A que voava mais baixo caiu ali no terreiro ao meio-dia; a outra chegou às seis horas da tarde e esbagaçou-se na queda. Eu não tinha intenção...

— Quer dizer que a espingarda junta o chumbo, não é, seu Alexandre? perguntou mestre Gaudêncio.

— Por que, seu Gaudêncio? Que lembrança foi essa?

— É que as araras estavam longe. Se o chumbo se espalhasse, não havia pontaria que servisse.

— Perfeitamente, seu Gaudêncio. O senhor entende. Faz gosto a gente conversar com uma pessoa de tino assim. A espingarda junta o chumbo. E não respeita distância. Só falei nas duas araras para mostrar aos amigos até onde vai um tiro dela. O que agora me ferve no pensamento é o caso do veado. Conhecem, não? Pois foi aquilo mesmo. O veado apareceu acolá, em cima do monte, espiou os quatro cantos, desconfiado, depois sossegou e pôs-se a comer. Percebi todos os movimentos dele. Um animal bonito e fornido. Peguei a espingarda, examinei a carga, limpei o cano por dentro com o saca-trapo e mudei a espoleta, já velha. Dormi algum tempo na pontaria, puxei o gatilho e — bum! — vi na fumaça o bicho dar um pulo, correr algumas braças e amunhecar. — “Aquele está esfolado e comido”, pensei. Saí de casa, andei muito, dezessete léguas, pela conta de Cesária, e achei o corpo já frio, com dois caroços de chumbo, um na cabeça, outro no pé direito

— Que está dizendo, seu Alexandre? exclamou o cego. O senhor garante que o veado tinha um caroço na cabeça, outro no pé?

— Que pergunta, seu Firmino! Pois se eu tirei o couro dele e mandei fazer aquele gibão que está ali dentro, pendurado no torno!

— Mas, seu Alexandre, insistiu o negro, o senhor não disse que a espingarda junta o chumbo? Se a espingarda junta o chumbo, como é que os dois caroços estavam tão separados? Creio que houve engano.

Alexandre baixou os olhos, tirou do aió um rolo de fumo e palha de milho, desembainhou a faca de ponta e fabricou lentamente um cigarro, procurando a resposta, que não veio.

— Seu Firmino, o senhor duvida da minha palavra?

— Deus me livre, seu Alexandre. Quem é que duvida? Estou só perguntando.

— E pergunta muito bem, gritou Cesária, salvando o marido. Seu Firmino gosta de explicações. Está certo, cada qual como Deus o fez. Quer saber por que o chumbo se espalhou? Não se espalhou não, seu Firmino: o veado estava coçando a orelha com o pé.

Fonte: Graciliano Ramos. Histórias de Alexandre. Publicado originalmente em 1944. Disponível em Domínio Público.

Jaqueline Machado (Isadora de Pampa e Bahia) – Capítulo 24: Momentos de incertezas

Após ser socorrida e medicada, Enila permaneceu em observação e se manteve por muitas horas em sono profundo. 

No dia seguinte, logo nos primeiros raios do amanhecer, ela despertou. E sua mãe que havia passado a noite sentada ao lado de sua cama, sorriu aliviada.

- Filha, tudo bem?  Estás a sentir alguma dor? 

- O que aconteceu? 

- Aparentemente, caíste do cavalo.

- Ah, sim, lembrei. 

- Por sorte, sofreste ferimentos leves, mas poderia ter sido muito pior. 

- Me ajude a sentar. Estou com o corpo um pouco adormecido. 

- Claro, filha.

- Espera. Não consigo mexer as pernas.

- O que disse?

- Mãe, chame o médico. Não consigo mexer minhas pernas – pediu, assustada. 

A mãe saiu gritando pelos corredores – Socorro! Socorro! Socorro!

Ao examiná-la, realizaram alguns testes de sensibilidade. 

- Não sinto nada, doutor.

- Fica calma. Vamos fazer uns exames para ver o que está acontecendo. 

Dona Eliana juntava as mãos em prece pela filha, que pouco tempo depois recebeu o diagnóstico.

- Querida Enila, precisas ser forte. Vou dar o diagnóstico sem delongas: fraturaste a coluna. Estás paraplégica. 

- Não! – gritou a mãe. 

Enila desmaiou outra vez ao receber a notícia. 

Toda a família se compadeceu. Vó Gorda repetia: eu avisei. Mas não adianta, quando é pra acontecer...

Enquanto estava hospitalizada, Enila recusou receber a visita do noivo. Sentia que sua vida estava destruída. Recusou até mesmo a visita de Isadora, sua amiga de todos os momentos. Mergulhou em profunda tristeza e pediu a Deus que a levasse, pois seus sonhos estavam desfeitos.

Dias depois retornou para casa em uma cadeira de rodas. Foi recebida por todos em clima de festa. Inclusive pelo noivo, que a recebeu de braços abertos, flores e embrulhos de presentes.

Ela se sentia envergonhada. Jamais se imaginou numa situação parecida.

Seu pai e seu irmão Bruno, conteram as emoções 

- Eu vou cuidar de ti ,“fia”. Tu está viva. Isso é o que importa – disse Vó Gorda, mimosa, apertando – a num abraço fofo. 

- Quero pilotar essa cadeira. Logo poderei ficar mais em casa – disse o irmão.

Isadora, em silêncio, lhe deu um presente. Era um retrato das duas brincando no jardim quando crianças. 

- Meus amores, agradeço muito o carinho de todos, mas preciso ficar um pouco a sós com Júlio. 

Todos saíram da sala para que eles pudessem conversar à vontade. 

Júlio teve o impulso de beijá-la... Mas Enila o rejeitou.

- Por que está me evitando?

- Precisamos romper o nosso compromisso – disse ela revolvendo a aliança. 

- Não tens culpa sobre o que aconteceu. Jamais te abandonaria. Não sejas injusta.

- Não sejas tolo. Como poderei cuidar da nossa casinha e te dar filhos? Logo te cansarás de mim. 

- Podemos contratar empregadas para cuidar das tarefas domésticas, pagar bons médicos para tratar do teu restabelecimento. Quanto aos filhos, acho que nada nos impedirá. Não te deixarei. A não ser que... 

- A não ser que? 

- Que nesses dias de solidão no hospital, descobriste que não me amas o suficiente para passar o resto de teus dias comigo.

- Nada disso. Só estou tentando ser racional. 

- Amor, confesso que estou me sentindo um pouco ofendido com tuas atitudes. Parece estar pondo em dúvida meu caráter e meus sentimentos. Sei que estás nervosa com a nova condição. E relevarei tudo o que dissestes. Aliás, já esqueci.

Me dê tua mão, quero recolocar o anel. E não tire mais. Pessoal, voltem para a sala. Família tem que permanecer unida. 

No quarto, em frente ao seu altar de Orixás, Vó Gorda intercedia, pedindo pelo casal. 

- O amor há de vencer – disse ela com seu rosário na mão.
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continua…
Fonte: Texto enviado pela autora 

quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

Isabel Furini (Poema 52): Metamorfose 2


Fonte: Isabel Furini. Flores e Quimeras. 2017. Ebook

Mensagem na Garrafa – 55 –


Charles Chaplin
Londres/Inglaterra (1889 - 1977) Corsiersur-Vevey/Vaud/ Suiça

A VIDA ME ENSINOU

A vida me ensinou a dizer adeus às pessoas que amo, sem tirá-las do meu coração;

Sorrir às pessoas que não gostam de mim, para lhes mostrar que sou diferente do que elas pensam;

Fazer de conta que tudo está bem quando isso não é verdade, para que eu possa acreditar que tudo vai mudar;

Calar-me para ouvir; aprender com meus erros. Afinal eu posso ser sempre melhor.

A lutar contra as injustiças; sorrir quando o que mais desejo é gritar todas as minhas dores para o mundo.

A ser forte quando os que amo estão com problemas; ser carinhoso com todos que precisam do meu carinho; ouvir a todos que só precisam desabafar;

Amar os que me machucam ou querem fazer de mim depósito de suas frustrações e desafetos; perdoar incondicionalmente, pois já precisei desse perdão;

Amar incondicionalmente, pois também preciso desse amor; a alegrar quem precisa; a pedir perdão; a sonhar acordado; a acordar para a realidade (sempre que fosse necessário); a aproveitar cada instante de felicidade; a chorar de saudade sem vergonha de demonstrar;

Me ensinou a ter olhos para "ver e ouvir estrelas", embora nem sempre consiga entendê-las; a ver o encanto do pôr-do-sol;

A sentir a dor do adeus e do que se acaba, sempre lutando para preservar tudo o que é importante para a felicidade do meu ser; a abrir minhas janelas para o amor; a não temer o futuro;

Me ensinou a aproveitar o presente, como um presente que da vida recebi, e usá-lo como um diamante que eu mesma tenho que lapidar, lhe dando forma da maneira que eu escolher.

Gabriel García Márquez (A luz é como a água)


"(...) mergulharam como tubarões mansos por baixo dos móveis e das
camas e resgataram do fundo da luz as coisas que durante anos
tinham-se perdido na escuridão."

No Natal os meninos tornaram a pedir um barco a remos.

— De acordo, — disse o pai — vamos comprá-lo quando voltarmos a Cartagena.

Totó, de nove anos, e Joel, de sete, estavam mais decididos do que seus pais achavam.

— Não! — disseram em coro. — Precisamos dele agora e aqui.

— Para começar, — disse a mãe — aqui não há outras águas navegáveis além da que sai do chuveiro.

Tanto ela como o marido tinham razão. Na casa de Cartagena de Índias havia um pátio com um atracadouro sobre a baía e um refúgio para dois iates grandes. Em Madri, porém, viviam apertados no quinto andar do número 47 do Paseo de la Castellana. Mas no final nem ele nem ela puderam dizer não, porque haviam prometido aos dois um barco a remos com sextante e bússola se ganhassem os louros do terceiro ano primário, e tinham ganhado. Assim sendo, o pai comprou tudo sem dizer nada à esposa, que era a mais renitente em pagar dívidas de jogo. Era um belo barco de alumínio com um fio dourado na linha de flutuação,

— O barco está na garagem. — revelou o pai na hora do almoço.— O problema é que não tem jeito de trazê-lo pelo elevador ou pela escada, e na garagem não tem mais lugar.

No entanto, na tarde do sábado seguinte, os meninos convidaram seus colegas para carregar o barco pelas escadas, e conseguiram levá-lo até o quarto de empregada.

— Parabéns. — disse o pai. — E agora?

— Agora, nada. - disseram os meninos. — A única coisa que a gente queria era ter o barco no quarto, e pronto.

Na noite de quarta-feira, como em todas as quartas-feiras, os pais foram ao cinema. Os meninos, donos e senhores da casa, fecharam portas e janelas, e quebraram a lâmpada acesa de um lustre da sala. Um jorro de luz dourada e fresca feito água começou a sair da lâmpada quebrada, e deixaram correr até que o nível chegou a quatro palmos. Então desligaram a corrente, tiraram o barco, e navegaram com prazer entre as ilhas da casa.

Esta aventura fabulosa foi o resultado de uma leviandade minha quando participava de um seminário sobre a poesia dos utensílios domésticos. Totó me perguntou como era que a luz acendia só com a gente apertando um botão, e não tive coragem para pensar no assunto duas vezes.

— A luz é como a água. — respondi. — A gente abre a torneira e sai.

E assim continuaram navegando nas noites de quarta-feira, aprendendo a mexer com o sextante e a bússola, até que os pais voltavam do cinema e os encontravam dormindo como anjos em terra firme. Meses depois, ansiosos por ir mais longe, pediram um equipamento de pesca submarina. Com tudo: máscaras, pés-de-pato, tanques e carabinas de ar comprimido.

— Já é ruim ter no quarto de empregada um barco a remos que não serve para nada. — disse o pai — Mas pior ainda é querer ter além disso equipamento de mergulho.

— E se ganharmos a gardênia de ouro do primeiro semestre? — perguntou Joel.

— Não!- disse a mãe, assustada. — Chega. O pai reprovou sua intransigência.

— É que estes meninos não ganham nem um prego por cumprir seu dever, — disse ela — mas por um capricho são capazes de ganhar até a cadeira do professor.

No fim, os pais não disseram que sim ou que não. Mas Totó e Joel, que tinham sido os últimos nos dois anos anteriores, ganharam em julho as duas gardênias de ouro e o reconhecimento público do diretor. Naquela mesma tarde, sem que tivessem tornado a pedir, encontraram no quarto os equipamentos em seu invólucro original. De maneira que, na quarta-feira seguinte, enquanto os pais viam O Último Tango em Paris, encheram o apartamento até a altura de duas braças, mergulharam como tubarões mansos por baixo dos móveis e das camas, e resgataram do fundo da luz as coisas que durante anos tinham-se perdido na escuridão.

Na premiação final os irmãos foram aclamados como exemplo para a escola e ganharam diplomas de excelência. Desta vez não tiveram que pedir nada, porque os pais perguntaram o que queriam. E eles foram tão razoáveis que só quiseram uma festa em casa para os companheiros de classe.

O pai, a sós com a mulher, estava radiante. — É uma prova de maturidade. — disse.

— Deus te ouça! — respondeu a mãe.

Na quarta-feira seguinte, enquanto os pais viam A Batalha de Argel, as pessoas que passaram pela Castellana viram uma cascata de luz que caía de um velho edifício escondido entre as árvores. Saía pelas varandas, derramava-se em torrentes pela fachada, e formou um leito pela grande avenida numa correnteza dourada que iluminou a cidade até o Guadarrama.

Chamados com urgência, os bombeiros forçaram a porta do quinto andar, e encontraram a casa coberta de luz até o teto. O sofá e as poltronas forradas de pele de leopardo flutuavam na sala a diferentes alturas, entre as garrafas do bar e o piano de cauda com seu xale de Manilha que agitava-se com movimentos de asa a meia água como uma arraia de ouro. Os utensílios domésticos, na plenitude de sua poesia, voavam com suas próprias asas pelo céu da cozinha. Os instrumentos da banda de guerra, que os meninos usavam para dançar, flutuavam a esmo entre os peixes coloridos liberados do aquário da mãe, que eram os únicos que flutuavam vivos e felizes no vasto lago iluminado. No banheiro flutuavam as escovas de dentes de todos, os preservativos do pai, os potes de cremes e a dentadura de reserva da mãe, e o televisor da alcova principal flutuava de lado, ainda ligado no último episódio do filme da meia-noite proibido para menores.

No final do corredor, flutuando entre duas águas, Totó estava sentado na popa do bote, agarrado aos remos e com a máscara no rosto, buscando o farol do porto até o momento em que houve ar nos tanques de oxigênio, e Joel flutuava na proa buscando ainda a estrela polar com o sextante, e flutuavam pela casa inteira seus 37 companheiros de classe, eternizados no instante de fazer xixi no vaso de gerânios, de cantar o hino da escola com a letra mudada por versos de deboche contra o diretor, de beber às escondidas um copo de brandy da garrafa do pai. Pois haviam aberto tantas luzes ao mesmo tempo que a casa tinha transbordado, e o quarto ano elementar inteiro da escola de São João Hospitalário tinha se afogado no quinto andar do número 47 do Paseo de la Castellana. Em Madri de Espanha, uma cidade remota de verões ardentes e ventos gelados, sem mar nem rio, e cujos aborígines de terra firme nunca foram mestres na ciência de navegar na luz.

Fonte: Gabriel Garcia Marquez. Doze contos peregrinos. Publicado originalmente em 1978.