domingo, 16 de junho de 2024

Vereda da Poesia = 35 =

 


Trova Humorística de de Maringá/PR


ELIANA PALMA

Corpo mole, mal antigo,
não é dengue nem catiça*...
O seu mal, meu velho amigo,
é excesso de preguiça.
 = = = = = = = = =  = 
* Catiça = mau olhado.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 
Poema de Maringá/PR

JORGE FREGADOLLI

João-de-barro, engenheiro da floresta

Feliz é o joão-de-barro,
constrói em qualquer lugar.
Ninguém, pois, lhe tira o sarro,
não lhe vai incomodar!

João-de-barro é engenheiro,
doutor pela natureza.
Porém, trabalha o ano inteiro…
sua casa, que beleza!

Um passarinho de nada
faz as casas em paineira.
Não tem diploma, que nada,
neste palco ele gorjeia!

João-de-barro, inteligente,
nem estudou – quem diria!
É arquiteto, docente,
um mestre em engenharia!

Não tem medo, se o tivesse,
não faria belo ninho.
Deus, ouvindo sua prece…
joão-de-barro, passarinho!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Aldravia de Juiz de Fora/MG

CECY BARBOSA CAMPOS

estrelas
choram
lágrimas
prateadas
lamentando
ausências
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Soneto do Rio de Janeiro/RJ 

RITA MOUTINHO

Soneto da clareação do breu

Anos a fio, busco os ancestrais
desta angústia que sinto — precisão
de entender os contornos de entes duais
que se amam no ar e não no esteio-chão.

Interno-me no breu. Não saturnais,
temos, porém, orgíaca união
quando nos encontramos nos beirais
das palavras melífluas da emoção.

Preciso saber se fui real amada,
se se aplicam os vernáculos "amante"
e "amor" na nossa história. A alma apurada

exige este radar na madrugada.
Depois de anos, — serena concludente —
posso dizer que somos mago e fada!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova Premiada em Pouso Alegre/MG, 2004

A. A. DE ASSIS
Maringá/PR

São maridos mais leais
os de agora... quem diria?...
- É que manter “filiais”
sai muito caro hoje em dia!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Poema de Maringá/PR

JOSÉ USAN TORRES BRANDÃO

O médico

Entre quatro paredes, seu mundo restrito
De grandes emoções, suas horas, dia-a-dia
Aliviar a dor, salvar vidas, está escrito
Sua missão, um sacerdócio sem hipocrisia.

Marcas do tempo, cedo batem à sua porta
Esclerose, enfarte, cansaço, depressão
Seu lar, que não é seu ninho, teme sua sorte
Médico, imagem tão mudada neste mundo cão.

Já não se fala dele como ser superior
Hoje, nome desgastado, luta pra viver
Como qualquer ser, anônimo, sem valor
Num mundo de mercado em que mais vale ter.

Médico, operário de Deus, salvando vidas
Também chora, também ama e também sonha
Na sua labuta com alma e corpo, suas feridas
Leva uma existência bem tristonha.

Não é sem luta que ele ganha fama
Nem é na flor que ele vê espinho
Num pedestal também joga-se lama
Médico, não ligues, segue o teu caminho.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Quadra Popular de S. Domingos de Rana/Portugal

JOÃO BAPTISTA COELHO

Foi por não ter ido à escola
com a atenção que é devida,
que ando, hoje, a pedir esmola
na outra escola : a da Vida.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Soneto do Rio de Janeiro/RJ

MANUEL BANDEIRA
(Manuel Carneiro de Souza Bandeira Filho)
Recife/PE, 1886 – 1968, Rio de Janeiro/RJ

Inscrição

    Aqui, sob esta pedra, onde o orvalho roreja,
    Repousa, embalsamado em óleos vegetais,
    O alvo corpo de quem, como uma ave que adeja,
    Dançava descuidosa, e hoje não dança mais...

    Quem não a viu é bem provável que não veja
    Outro conjunto igual de partes naturais.
    Os véus tinham-lhe ciúme. Outras, tinham-lhe inveja.
    E ao fitá-la os varões tinham pasmos sensuais.

    A morte a surpreendeu um dia que sonhava.
    Ao pôr do sol, desceu entre sombras fiéis
    À terra, sobre a qual tão de leve pesava...

    Eram as suas mãos mais lindas sem anéis...
    Tinha os olhos azuis... Era loura e dançava...
    Seu destino foi curto e bom... — Não a choreis.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova de Maringá/PR

OLGA AGULHON

Quanto sonho não vivido
do jeito que foi sonhado!
Mas tudo tem mais sentido
quando, enfim, é conquistado.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Poema de Santos/SP

CAROLINA RAMOS

A grande mestra

 Não temas que o Destino te atraiçoe
 pondo pedras demais no teu caminho.
 Usa as pedras que acaso ele te doe,
 e, ao construir, não estarás sozinho!

 Se Deus te deu a luz da inteligência
 e o poder de ir e vir em liberdade,
 tens o solo, a semente e, com paciência,
 um dia hás de colher felicidade!

 Não creias, por temor e covardia,
 que só o Destino teu porvir decida!
 – Destino tu constróis, a cada dia!
 E a Grã Mestra da Obra é a própria Vida!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Haicai de Curitiba/PR

MÁRIO ZAMATARO

Escrevi na terra
 o mesmo que li nas nuvens…
 O vento espalhou!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Sextilha de São Simão/SP

THALMA TAVARES

Que o meu canto converta todo pranto
na mais viva certeza de bonança
no semblante do irmão desesperado
e nos olhos ansiosos da criança.
De outro modo meu canto faz-se estéril,
sem os sons que dão vida e esperança.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova de Maringá/PR

JEANETTE DE CNOP

Enorme sabedoria
vem nesta simples lição:
doar afeto e alegria,
pra burlar a solidão.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Glosa de Fortaleza/CE

NEMÉSIO PRATA

MOTE: 
As minhas mãos calejadas 
plantam sementes de amor,
que nascem e são cuidadas 
e se transformam em flor! 
Arlene Lima 
Maringá/PR

GLOSA:
As minhas mãos calejadas 
na semeadura do Amor 
serão sempre abençoadas 
pelo Sumo Lavrador! 

Todos que no seu canteiro 
plantam sementes de Amor 
colherão, o ano inteiro, 
os frutos do seu labor! 

Quando fizeres lavradas 
planta sementes de Amor, 
que nascem e são cuidadas 
pelas mãos do Criador! 

As sementes mais assentes 
são as sementes de Amor; 
formam rebentos latentes 
e se transformam em flor!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Aldravia de Dores do Rio Preto/ES

CIMAR PINHEIRO

saudade
estrada
comprida
distância
desencontros
esperança
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Rondel** de Novo Hamburgo/RS

DENISE SERVEGNINI

Arrependimento

Chama intensa de amor que ainda arde
Num coração sem respostas finitas
Bate, descomposto, fazendo alarde
Nas tormentosas nuvens que habitas

Tu não sabes das alegrias benditas
Nem queres entender, esta verdade:
Chama intensa de amor que ainda arde
Num coração sem respostas finitas

Para teres tanta dor, fui covarde
Que te fiz? Foram ações malditas?
Abandonei-te! Querida, será tarde?
Teu jeito mulher, em mim, incitas
Chama intensa de amor que ainda arde.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova Premiada  em Nova Friburgo/RJ, 2005

DILVA MARIA DE MORAES 
Rio de Janeiro/RJ

Preenchi a tua vida:
fui musa, amante, modelo.
Mas, hoje, a minha partida…
resiste a qualquer apelo!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Poema de Maringá/PR

JAIME VIEIRA

Quem me dera

este azul do céu
ainda me envolve,
este sol tecendo
a tarde me comove.

outra noite lá fora,
quem me dera
devolver estrelas
à escuridão do agora!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Triverso de Londrina/PR

DOMINGOS PELLEGRINI

Tem visita que nem senta
tem visita que acampa
visita que seca avenca
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Spina de São Paulo/SP

RONNALDO DE ANDRADE

Paixão desvairada

Perdido nesse seu
encanto de gueixa
eu ando cantando.

O tempo vai passando, passando,
qual aqueles ponteiros de relógio:
um mais devagar, quase parando,
o outro prosseguindo com rapidez,
parece uma roda: girando, girando!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova de São Jerônimo da Serra/PR

DÉSPINA ATHANÁSIO PERUSSO 

Belo e vetusto pinheiro!
Tão alto... é grande a distância...
foi meu leal companheiro
nos doces anos da infância...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Dobradinha Poética* de Bandeirantes/PR

LUCÍLIA ALZIRA TRINDADE DECARLI

Resgate

Sem te esquecer, este amor,
num desvario sem fim,
quer atrair teu calor
para bem junto de mim…

Ah! Deste amor quero espalhar mil rastros
reverdecidos, por todo este chão…
Irrefreável, tendo em mira os astros,
voarei confiante em pertinaz paixão!

Ah! Neste amor implantarei meus lastros,
ladeá-lo-ei com vigas da emoção;
da justa posse empilharei cadastros
onde discorro, dele, a apropriação…

Com perspicácia em mim prosseguirá,
a sua luz, no espaço espargirá,
no meu transcurso à celestial morada…

Habilidoso, irá juntando aos passos
ode infinita, que atrairá teus braços:
– tua serei… a eterna namorada!…
= = = = = = = = = = = = = =
* Dobradinha poética = trova e soneto
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Poetrix de Porto Alegre/RS

ISIARA CARUSO

queimada

na mata o fogo corre 
a floresta extingue
a terra morre.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Soneto do Rio de Janeiro/RJ

OLAVO BILAC
(Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac)
Rio de Janeiro/RJ, 1865 – 1918

Música Brasileira

Tens, às vezes, o fogo soberano
Do amor: encerras na cadência, acesa
Em requebros e encantos de impureza,
Todo o feitiço do pecado humano.

Mas, sobre essa volúpia, erra a tristeza
Dos desertos, das matas e do oceano:
Bárbara poracé*, banzo africano,
E soluços de trova portuguesa.

És samba e jongo, xiba e fado, cujos
Acordes são desejos e orfandades
De selvagens, cativos e marujos:

E em nostalgias e paixões consistes,
Lasciva dor, beijo de três saudades,
Flor amorosa de três raças tristes.
= = = = = = = = = = = = = = = =
* Poracé = arrasta-pé, baile
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova de Maringá/PR

NILSA ALVES DE MELO

Se alguém vires paradão,
não vás fazendo premissa.
- Anemia, amarelão,
se confundem com preguiça.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Poema de Maringá/PR

ANTONIO MÁRIO MANICARDI

Tormento da Noite

Quantas noites
eu passo acordado
com os olhos fechados
e o sono não vem!…
Nesta horas
que a tristeza invade
eu sinto saudade
do meu querido bem.

Tormento da noite
me deixa nervoso
meu ser amoroso
me maltrata assim!…
Se acaso adormeço
o sono é um lampejo
eu sinto que A vejo
bem junto de mim.

Estribilho:
Vem, vem querida
nestas noites tristonhas que eu passo
vem em sonho trazer-me guarida
vem em sonho dormir nos meus braços.

Eu falo com ela
nos sonhos que faço
aperto-a em meus braços
com tanta emoção
se acordo de novo
com tristeza a chamo
a mulher que amo
não esqueço não.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 
** O Rondel é um gênero de poesia francesa. Sua forma é sempre a mesma, não varia nunca. É formado por duas estrofes de quatro versos e uma de cinco versos, nesta mesma ordem. Pela maneira que é estruturado, o Rondel irá sempre ter apenas duas rimas. As rimas são: ABAB/BAAB/ABAB.

Tem uma peculiaridade que é o seguinte: os dois primeiros versos da primeira quadra vão ser os dois últimos versos da segunda quadra.

Temos que cuidar ainda, que o primeiro verso da primeira quadra será o último verso do poema (da estrofe de cinco versos).

A preferência do versos é de sete ou oito sílabas poética(não é rígido).
(Fonte: Dicionário InFormal http://www.dicionarioinformal.com.br/rondel/)

Recordando Velhas Canções (Andança)


Compositores: Edmundo Souto / Danilo Caymmi / Paulinho Tapajós

Vim, tanta areia andei
Da Lua cheia, eu sei
Uma saudade imensa

Vagando em verso, eu vim
Vestido de cetim
Na mão direita, rosas
Vou levar

Olha a Lua mansa a se derramar (me leva, amor)
Ao luar descansa, meu caminhar (amor)
Meu olhar em festa se fez feliz (me leva, amor)
Lembrando a seresta que um dia eu fiz
(Por onde for, quero ser seu par)

Já me fiz a guerra por não saber (me leva, amor)
Que esta terra encerra meu bem-querer (amor)
E jamais termina meu caminhar (me leva, amor)
Só o amor me ensina onde vou chegar
(Por onde for, quero ser seu par)

Rodei de roda, andei
Dança da moda, eu sei
Cansei de ser sozinha

Verso encantado, usei
Meu namorado é rei
Nas lendas do caminho
Onde andei

No passo da estrada, só faço andar (me leva, amor)
Tenho meu amor pra me acompanhar (amor)
Vim de longe léguas, cantando, eu vim (me leva, amor)
Vou, não faço tréguas, sou mesmo assim
(Por onde, for quero ser seu par)

Já me fiz a guerra por não saber (me leva, amor)
Que esta terra encerra meu bem-querer (amor)
E jamais termina meu caminhar (me leva, amor)
Só o amor me ensina onde vou chegar
(Por onde for, quero ser seu par)

(Me leva, amor)
(Amor)
(Me leva, amor)
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 
Andança: Uma Ode à Jornada do Amor e da Vida
A música 'Andança', interpretada pela icônica sambista Beth Carvalho, é uma verdadeira celebração da jornada da vida e do amor. Com uma melodia que embala o ouvinte nas cadências do samba, a letra fala sobre a caminhada de uma pessoa que, mesmo tendo percorrido longos caminhos e vivido intensas experiências, ainda tem muito a descobrir e a sentir. A areia que foi andada e a Lua cheia são metáforas para as fases e ciclos que todos enfrentamos, marcados por saudades e memórias.

A repetição do pedido 'me leva, amor' sugere a busca por companhia e parceria, alguém que acompanhe o eu-lírico nessa andança pela vida. A seresta mencionada remete à tradição da música romântica brasileira, evocando um sentimento de nostalgia e alegria. A guerra mencionada pode ser interpretada como as lutas internas e externas que enfrentamos, e o reconhecimento de que o amor é o guia que nos mostra o caminho a seguir. A música, portanto, fala sobre a importância do amor como bússola para a jornada da vida, e como ele nos ensina e nos transforma.

Beth Carvalho, conhecida como a 'Madrinha do Samba', foi uma artista que dedicou sua vida à música e à cultura brasileira. 'Andança' é uma das canções que marcaram sua carreira, e sua interpretação carrega a emoção e a autenticidade características de sua arte. A canção é um convite para que o ouvinte reflita sobre sua própria jornada, as escolhas feitas e o desejo de não caminhar sozinho, mas sim acompanhado pelo amor, seja ele romântico ou fraterno, que nos move e dá sentido à nossa existência.

Estante de Livros (“Juiz de Paz na Roça”, de Martins Pena)

Juiz de Paz da Roça (1833) é obra de Luís Carlos Martins Pena (1815-1848), autor romântico que  praticamente não evoluiu literariamente, ou seja, o que se encontra em sua estreia, justamente a peça em análise, é o mesmo das outras 25, como se se tivesse prendido à repetição de moldes. Haveria apenas uma diferenciação em O Noviço e O Judas em Sábado de Aleluia, nos quais se encontra o clímax do domínio da estruturação dramática. Ainda assim, seu mérito está na introdução da dramaturgia em nossa literatura, o que realizou com qualidade, tornando-se uma ilha em nosso contexto cultural. Dessa forma, é aproximado a Gil Vicente, que também gerou sua obra praticamente no vácuo. Além disso, traz também, sob a influência dos franceses – o que o faz ser chamado de Molière brasileiro –, o teatro que, por meio do riso (outro ponto de contato gilvicentino), a descrição e a crítica aos costumes do Rio de Janeiro de meados do século XIX. E tudo de forma simples, natural, espontânea, ágil.

A texto em questão, escrito quando Martins Pena tinha 18 anos, é considerado o nosso Monólogo do Vaqueiro, já que é o inaugurador, literariamente, de nosso teatro. Como seu título indica, a trama dedica-se a descrever os costumes da zona rural, o que era a preocupação das primeiras obras do autor. Depois de infeliz passagem para a tragédia, o dramaturgo voltaria às comédias, mas ambientadas na Corte. No entanto, como se verá, o foco de sua crítica não mudou.

Assim como nas peças de Gil Vicente, somos jogados de chofre no meio da história. Essa técnica recebe o nome de “in media res”. Assim, por meio do diálogo de mãe (Maria Rosa) e filha (Aninha) sobre a labuta do pai (Manuel João), tomamos conhecimento de todo o sofrido universo de valores, costumes e tarefas da roça, como a necessidade de mais mão-de-obra escrava, atrapalhada por dificuldades econômicas. É interessante como essas preocupações por demais pragmáticas são apresentadas diante de um público romântico e com tendência à evasão e à idealização. Até que ponto estaria ocorrendo um desvio aos padrões estéticos burgueses?

Aninha, ciente da iminente chegada do pai, cansado do trabalho, lembra a mãe que este iria gostar de jacuba (um tipo de refresco). A senhora sai de cena, para a preparação da bebida. Tratava-se de um expediente da menina para que ficasse sozinha e recebesse seu namorado. Esses estratagemas são muito comuns no tipo de teatro que Martins Pena estava inaugurando. Dão mais agilidade à trama.

Aumentando a velocidade do texto, as cenas são curtas, tendo apenas a extensão necessária para o desenrolar dos fatos. Tudo é essencial, econômico, importante, inclusive as rubricas (marcações da cena), que são precisas e significativas até no vestuário. O autor demonstra aqui a consciência de que o teatro é encenação, é para ser visto principalmente. Isso explica a importância de se lembrar que o namorado de Aninha, José (note a simplicidade dos nomes) veste roupas brancas. Em plena roça, esses trajes reforçariam uma tendência, disseminada em outros momentos, da personagem a não enxergar que seu papel é trabalhar e não pensar em prazeres da vida apenas, como se fosse um bon vivant.

Nesta segunda cena ocorre o encontro amoroso entre José e Aninha. Nela se manifesta uma característica comum do autor, que é a utilização do exagero caricaturesco, percebido no instante em que Aninha recusa o abraço de seu amado. Só depois do casamento é que pode! E ainda alfineta dizendo que esse “abuso” fora causado pelos maus costumes adquiridos na Corte.

Há também nesta cena, por meio do diálogo dos namorados, um elemento que é crucial na obra do autor: o contraste entre a roça e a Corte. O rapaz, após a estranha explicação de que não sobrara vintém do bananal que recebera de herança – revelador, no mínimo, da imaturidade da personagem –, diz como pretende se arranjar com sua vão-se casar às escondidas e se mudarão para a Corte. Para seduzir Aninha, faz uma descrição completamente distorcida da Capital, apegado apenas ao aspecto exótico, como se a vida lá fosse prazer, diversão.

Essa visão distorcida provoca riso na plateia, composta de burgueses da Corte. No entanto, fica subentendida uma crítica de Martins Pena à mania desse grupo em tentar se equiparar à Europa, não se tocando de que é tão provinciana – trata-se de uma nação recente – quanto a roça. A maneira como Aninha imagina a Corte (em que acaba até comicamente misturando tudo o que José descreveu) deve ser a mesma maneira como enxergavamos e ainda enxergamos o Primeiro Mundo.

Enfim, o encontro é abreviado por causa da iminência da chegada de Manuel João. Assim, combinam o casamento para o dia seguinte, de manhã.

A chegada do pai serve para que mais uma vez entremos no cotidiano simples da classe baixa rural. Ficamos sabendo das lamentações por uma vida trabalhosa, das tarefas feitas e a serem realizadas e até da janta (carne seca, feijão e laranjas).  Não se poupa nem mesmo a menção ao fato de já ter acabado carne seca. Lembra o esforço, muitas vezes fracassado, que algumas novelas globais tentam de retratar o dia-a-dia.

Ao bater da porta, mais uma vez o ridículo será utilizado, dessa vez por aspectos visuais (um procedimento também comum em Martins Pena, que remonta à tradição circense e que deu origem ao pastelão): Manuel João trata de esconder a comida e ainda – beiramos o grotesco – lambe os dedos. É pobreza extrema misturada a mesquinharia e sovinice.

Quem entra em cena é o Escrivão, que traz uma intimação do Juiz de Paz: Manuel João tem de levar até a cidade um prisioneiro como recruta para a revolta que estava havendo no Rio Grande do Sul. João não entende por que justo ele tem de realizar tal tarefa, o que representaria a perda de um dia de trabalho. As preocupações imediatas, ligadas à sobrevivência, entram mais uma vez em foco. O Escrivão informa que ninguém a aceitava. João mais uma vez protesta, dizendo que ele não tinha culpa nenhuma dos problemas arranjados pelo governo. Nem mesmo dá atenção ao argumento ligado a patriotismo. No entanto, cede, diante da ameaça de prisão.

Observe-se que há críticas fortes aqui que chegam a se chocar com o conjunto de valores burgueses. Seu efeito só não é de imediato fulminante porque tudo se dilui em meio ao humor e principalmente por estar na boca de uma personagem que age de forma tão estabanada.

A partida de Manuel João é feita em meio a inúmeras recomendações sobre as tarefas a serem feitas de ambos os lados, tanto para os que ficam, quanto para o que vai. Mais uma vez o cotidiano simples retratado de forma viva, natural e colorida. Destaque seja feito ao pedido que Aninha faz ao pai: já que vai à cidade, que lhe trouxesse sapatos franceses. Outra crítica que se dirige não à roça, mas à Corte e ao seu apego à ostentação das superficialidades do universo europeu.

A próxima cena é já na casa do Juiz de Paz, funcionário que tem a função de conciliador dos conflitos de sua jurisdição. É provavelmente o melhor momento da obra, por causa principalmente dos jogos de palavra que se estabelecem.

Em primeiro, ficamos sabendo de um presente recebido pela autoridade: 
“Tomo a liberdade de mandar a V. Sª um cacho de bananas maçãs para V. Sª comer com a sua boca e dar também a comer à V. Sª Juíza e aos Srs. Juizinhos. V. Sª há de reparar na insignificância do presente; porém, Ilmo. Sr., as reformas da Constituição permitem a cada um fazer o que quiser, e mesmo fazer presentes; ora, mandando assim as ditas reformas, V. Sª fará o favor de aceitar as ditas bananas, que diz minha Teresa Ova serem muito boas.”

É saborosa a maneira com que o autor enfoca a simplicidade do povo, por meio, primeiro, de pleonasmos (“comer com a boca”) e por expressões inadequadas, mas cômicas (“V. Sª Juíza”, no lugar de “esposa do Juiz”, e “Srs. Juizinhos”, no lugar de “filhos do Juiz”). Há também a confusão que se faz entre o tom cerimonioso, adequado à situação, e o familiar, íntimo, inadequado. Mas há ainda uma crítica à corrupção do magistrado, pois Manuel André, a personagem que presenteia o juiz, participará, como se verá, de uma ação litigiosa. Além disso, olha a visão distorcida (será?) que se tem sobre os efeitos da Nova Constituição.

O primeiro caso a ser resolvido envolve Gregório, Inácio José e sua esposa Josefa Joaquina.

Martins Pena manipula com eficiência e colorido os elementos dramáticos, reproduzindo com fidelidade não só a linguagem coloquial, mas também a psicologia das personagens. Prova disso é que Gregório e Joaquina desviam-se da resolução de sua contenda em meio a ofensas. Fica nítido, por exemplo, que o aspecto infantil do raciocínio de Joaquina, que, ao invés de apresentar argumentos na discussão, devolve ofensa, atacando a mãe do oponente.

O mais incrível é a decisão do Juiz, que, além de paternalista, é contraditória. Se por um lado dispensa Inácio e Joaquina, sob a alegação de que umbigada não constitui crime em nenhuma lei, por outro ameaça Gregório de aplicar a lei “às costas” se este continuar a praticar umbigadas. E arbitrariamente encerra o caso com um “Estão conciliados”, o seu bordão.

Em seguida é lido um outro requerimento de Manuel André. E mais uma vez o suborno: na introdução do requerimento, antes de anunciado o assunto, avisa-se, meio que en passant, que um cacho de bananas será enviado ao Juiz. E novamente a mistura cômica do tom familiar com o solene.

Tratava-se de uma questão de divisa de terra. O Juiz delega ao suplente a decisão. O problema é que ambos estavam atarefados com seus próprios roçados. Note-se que o suborno não foi eficiente. Note-se também o descaso e incompetência no exercício das funções jurídicas.

Manuel André protesta. O Juiz ameaça com cadeia. O pleiteante faz lembrar a Constituição, fortemente desprezada pelo magistrado. Confusão é formada – mais um elemento de gosto popular no corpo da peça – e Manuel André acaba fugindo.

O outro caso é entre João de Sampaio e Tomás. O primeiro é dono de um leitão, que invadiu as terras do segundo. Estabelece-se uma briga até física – mais uma cena à pastelão, com os dois reclamos puxando, um de cada lado, o objeto de disputa. O problema é resolvido com a determinação do Juiz – um tanto egoísta – de ficar com o bicho. Ainda manda que seja trazida ervilha para a complementação de um prato que imaginara. E, pior, folgadamente determina que um dos contendores coloque o suíno no chiqueiro. Exibe-se a aplicação torta da lei, apenas para atingir interesses pessoais. No fim, o bordão: “estão conciliados”.

Como um adendo, Sampaio quer que tudo seja citado na Assembleia Provincial. O Juiz não autoriza, achando o assunto irrelevante. Tomás convence-o do contrário, lembrando os votos que o magistrado havia-lhe pedido para os integrantes da tal instituição legislativa. Corrupção, troca de favores, compra de votos... Problemas de longa data!

O próximo caso é de Francisco Antônio, Rosa de Jesus e José da Silva. A transcrição abaixo do requerimento dá mais detalhes: 

“Diz Francisco Antônio, natural de Portugal, porém brasileiro, que tendo ele casado com Rosa de Jesus, trouxe esta por dote uma égua. ‘Ora, acontecendo ter a égua de minha mulher um filho, o meu vizinho José da Silva diz que é dele, só porque o dito filho da égua de minha mulher saiu malhado como o seu cavalo. Ora, como os filhos pertencem às mães, e a prova disto é que a minha escrava tem um filho que é meu, peço a V. Sª mande o dito meu vizinho entregar-me o filho da égua que é de minha mulher’”.

Observe-se como a manipulação da linguagem abre no texto uma ambiguidade saborosa, apesar de rasteira.

A decisão do Juiz seguiu o caminho que parecia mais lógico: em favor de Francisco e Rosa de Jesus. José da Silva protesta, diz que vai recorrer, mas o magistrado faz pouco caso – tem procedimentos jurídicos para invalidar os questionamentos. Há mais reclamações, sufocados quando o magistrado manda prender José da Silva e fazê-lo recruta. Diante do pior, o protestante abre mão das queixas.

Nesse momento, chega Manuel João para receber o preso. E, preocupado com coisas imediatas, obtém autorização para deixar em sua casa o prisioneiro, pois que já estava chegando a noite.

Na chegada à casa de Manuel João ocorre outro expediente típico da dramaturgia popular: a surpresa causada pela descoberta da identidade de uma personagem. Causa curiosidade o espanto de Aninha ao se deparar com o prisioneiro. Depois que pai e mãe saem, a filha solta o recruta e fica-se sabendo tratar-se de seu namorado, José. Havia sido preso, alega, de forma extremamente arbitrária: “Assim que botei os pés fora desta porta, encontrei com o juiz, que me mandou agarrar.” Há um potencial de crítica aqui, que, diluído, não é aproveitado.

O casal foge para se casar. Quando os pais descobrem o que ocorreu, surge alvoroço, revolta e decepção, mas engraçadamente há espaço para um certo alívio de Manuel João, que estava livre da tarefa de levar o prisioneiro no dia seguinte. No fim, toda a culpa recai, comicamente, sobre a guerra que se processava no Rio Grande do Sul. A culpa é do Governo (como dizia uma antiga personagem humorística da televisão). Talvez por isso Manuel João resolva dar parte ao Juiz.

No entanto, é interrompido com a chegada do casal fugitivo, já casado. Tudo acaba em abraços. É essa explosão de felicidade (estamos indo na direção do desfecho da obra) que retira da obra um fôlego mais forte para se dedicar a uma ferrenha crítica social, no estilo do Realismo.

Resolvem, então, dar outra parte ao Juiz, agora de tom mais positivo.

A próxima cena é na casa do magistrado, que comunica ao escrivão a necessidade de consultar um letrado – deixa claro que não entende muito de leis. Antigamente, toda vez que surgia um problema cuja solução não conhecia, simplesmente usava um “Não tem lugar.” e o empurrava. Deixou de utilizar esse expediente porque uma vez quase tinha sido suspenso. Esses são mais ingredientes para que possamos denegrir a imagem desse funcionário. O escrivão até pergunta se tudo isso não era motivo de vergonha. Resposta:  

“Envergonhar-me de quê? O senhor ainda está muito de cor. Aqui para nós, que ninguém nos ouve, quantos juízes há por estas comarcas que não sabem aonde têm sua mão direita, quanto mais juízes de paz...”

Suas reflexões são interrompidas com a chegada de Manuel João, Maria Rosa, Aninha e José, que lhe comunicam o casamento. Dessa forma, livra-se a personagem da obrigatoriedade de se tornar recruta.

A primeira reação do Juiz é desmoralizar José, chamando-o de biltre. Mas depois pede para perdoar a ofensa. O magistrado é de fato uma personagem rica em suas contradições, tornando-se extremamente humana, tanto que decide comemorar o matrimônio em sua casa, caindo todos na dança e na cantoria, conforme atesta o trecho final abaixo transcrito: 

TOCADOR, cantando: 
Em cima daquele morro
Há um pé de ananás;
Não há homem neste mundo
Como o nosso juiz de paz.

TODOS: 
Se me dás que comê,
Se me dás que bebê,
Se me pagas as casas,
Vou morar com você.

JUIZ: 
Aferventa, aferventa!...

Tudo termina bem, em festança, em folguedo, afugentando todo e qualquer elemento (e os há na obra em grande quantidade) que pudesse desagradar os padrões do público burguês romântico.

Fonte: Texto de Jayrus Luna (editor) , in http://www.jayrus.art.br/Apostilas/LiteraturaBrasileira/Romantismo/Martins_Pena_Juiz_de_Paz_na_Roca_resumo.htm. (site desativado). Acesso em 16.11.2020.

sábado, 15 de junho de 2024

José Feldman (Analecto de Trivões) 31

 

Aparecido Raimundo de Souza (O choro de uma simples folha de papel em branco)


“Todo mundo chora, até um simples mosquito atormentado pela presença de uma lata de Multi Inseticida, ainda que a embalagem esteja vazia.”
Bicó Marajá, de Realengo (Morador de rua) 

EM UM CANTO bem lá atrás da sala de aula enorme, esquecida, abandonada à sorte no banco de uma carteira, jazia uma folha de papel. Uma dessas simples A4 expulsa da resma por ninguém fazer uso dela. Apenas mais uma entre tantas. Todavia, essa folha, em especial, se sentia diferente de todas as suas demais consanguíneas. Não pelas angustias que carregava, ou pelas palavras que chegavam aos seus ouvidos. Em absoluto. Ela acumulava no âmago e isso lhe afligia, como um látego martirizante. O total estado de abandono e a mais dolorosa falta de companheirismo. Não havia nenhum embaraço em especial, porém, a sua dor se propagava pela história que nunca foi devidamente contada. 

Ou melhor, disseminada como deveria. Sendo assim, ela ouvia nitidamente o coro das algazarras; os sons das carteiras sendo arrastadas; o tec-tec das gotas da chuva; quando caia temporal; as conversas abafadas pelos celulares nos corredores. E não ficavam de fora as vozes barulhentas dos professores; as risadas das funcionárias; o som das campainhas dos celulares; o metálico das moedas dadas em pagamento de algum lanche comprado de última hora na cantina; à música no rádio do carro da diretora; o vai-e-vem dos veículos passando lá fora; tanto de um lado, como de outro; as freadas bruscas dos ônibus (havia um ponto próximo do prédio onde funcionava a escola. Apesar disso, ninguém ouvia as suas dores. 

Tampouco alguém se importava, ou dava a mínima para os seus medos e inseguranças. Suas aflições e desesperos. Ela queria (e somente pretendia) ser mais que uma mera expectadora. Na verdade, almejava fazer parte viva e pulsante da história de alguém. Em seus devaneios, lembrou de um caso passado. De uma recordação acontecida há anos. Certa vez, e esse “certa vez” se prolongava longevo, a lágrima desgarrada de uma menina triste, macambúzia igual a ela, caiu sem querer sobre seu corpo. Era uma lágrima; verdade seja dita; dorida; de enorme tristeza; de melancolia infinda derramada por uma mocinha que acabara de sair do banheiro da escola e ir se acomodar lá nos cafundós em uma carteira apartada. 

A folha de papel, por puro milagre, estava jogada à sorte, esperando ser recolhida por uma das zeladoras que limpavam as dependências, quando as aulas, final da tarde cessavam. Não sabendo como explicar a magia desse acontecimento, por puro acaso, ou milagre, a menina começou a chorar. Num dado momento, uma lágrima caiu em seu corpo.  A folha, também por pura sorte do destino, absorveu essa lágrima. Sentiu seu peso, a frieza com a qual saiu do mais profundo da garota, bem ainda, sugou a salinidade que viera junto. Naquele momento, ela não  se sentiu apenas uma folha de papel sem nada. Ao contrário, se fez, ou melhor dito, se transformou numa confidente silenciosa da dor e dos percalços humanos da indefesa e desabrigada criança. 

De repente, igual a princesinha, a folha de papel se pôs igualmente a chorar. Não por si mesma. Possivelmente pela tristeza pegajosa e pela desinquietação que testemunhava. Ela queria, ou melhor, carecia de oferecer algum tipo de conforto e de atenção à jovenzinha. Incansável, uma pergunta que não calava dentro de si: como poderia? Puxa vida, como, de que forma, tal aspiração se faria real e palpável?  Coitada! Não passava de uma simples folha de papel. No entanto, naquele instante de umidade e sal, ela se tornou mais que isso. Se fez uma página em branco diferenciada, cheia de vida, avivada, dona de si, onde novos começos ainda não percebidos poderiam ser escritos e a esperança desenhada em sua melhor forma de expressão. 

Nesse tom meio que bucólico, a pacata e tristonha folha de papel em branco lembrou que mesmo o mais simples dos objetos (mesmo uma desprezível e esquecida folha de papel) poderia sorver uma nova lágrima, e, nesse ato de sugar, transformar toda a sua infelicidade em harmoniosa esperança de horizontes melhores. E de alguma forma a ser descoberta, ameigar, ou pelo menos tentar tirar do desassossego, da angustia, uma nova alma grandemente vazia e conturbada. Quem sabe, ainda (e isso se consubstanciava num só talvez), fosse o suficiente para que a sua solidão pesada voasse, de vez, para algum lugar distante, bem longe de seu peito dilacerado pela infelicidade de ser apenas e tão somente uma folha de papel abandonada ou esquecida numa carteira de uma sala de aula de uma escola qualquer. Desanimar, nunca. Tampouco gritar a plenos pulmões, como Tisbe, em Shakespeare... “Oh! Perversa, perversa parede...”. Isso, jamais.

Fonte: Texto enviado pelo autor 

Vereda da Poesia = 34 =


Trova Humorística de Curitiba/PR

ROZA DE OLIVEIRA

Não cresceu... Ficou baixinha,
tem, da tesoura o viés
porque a língua, coitadinha,
corre mais do que os seus pés!...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Soneto de Vila Velha/ES

EDY SOARES

A dor de um poeta

A dor de sentir a perda de alguém
é feito arrancar pedaços da gente…
Ferida profunda e tão permanente,
que não se conhece a cura em ninguém.

É tão singular em cada vivente
que não se compara a dor que se tem
àquela que fere o peito de quem
consegue escondê-la inerte e latente.

Quisera que o tempo andasse ao contrário,
nascer bem velhinho e rumo ao berçário
rejuvenescer, viver sem as pressas…

E a vida, ao final de um ciclo fraterno,
quem sabe voltasse ao corpo materno!…
Quisera viver a vida às avessas…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Aldravia de Ipatinga/MG

MARÍLIA SIQUEIRA LACERDA

minh’alma
constrói
madrugadas
poéticas:
solitárias
palavras
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Soneto de São Paulo/SP

THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA

Lar… doce lar…

Volto à casa, que “era minha”,
risco a calçada e, feliz,
vou pular amarelinha
mas, o pranto apaga o giz!

Hoje, saudosa, eu volto ao lar antigo
e escancarando a porta semiaberta,
procuro em vão… vasculho o doce abrigo…
Nem pai… nem mãe… a casa está deserta!

E volto ao lar, que dividi contigo…
– Vaivém dos filhos, pela porta aberta…
– Visita alegre de um ou de outro amigo…
E, hoje, é a saudade que o meu peito aperta.

Mas, por deixar pegadas nos caminhos,
não fiquei só!… Cercada de carinhos,
eu sou feliz!… Se volta o sonho louco

do teu amor, acalmo o coração
pois, ao sentir que chega a solidão,
no amor dos filhos eu te encontro um pouco.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova Premiada em Itanhaém/SP, 1999 

ELEN DE NOVAIS FELIX 
Rio de Janeiro/RJ

Mesmo numa noite triste
quando meu mar se encapela,
minha canoa resiste:
é que Deus vai dentro dela.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Poema de Itajaí/SC

SAMUEL DA COSTA

Solitude ad aeturnus (teu silêncio em mim)

Só posso entender...
O teu silêncio como recusa
Do meu amor que declaro a ti!

Nessa hora de dor extrema
Fico a pensar nos beijos
Que ainda não te dei.
Penso no sofrimento
Que me condenas
Na vida vazia que tenho...
Sem a tua presença ao meu lado
Sem tu aqui e para sempre ao meu lado

Ouço o teu silêncio com angústia
Que me constrange
 
No meu desespero 
Penso no resplendor do teu sorriso
No teu belo rosto emoldurado 
Pelos longos e trigais cabelos.
São frutos dourados do sol
Nos teus belos olhos postados em mim
Que alegra os meus trágicos dias
Amenizam os dias cruéis
Sem a tua doce presença 
Ao meu lado.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

QUADRA POPULAR

Após um dia tristonho
de mágoas e agonias
vem outro alegre e risonho:
são assim todos os dias.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Soneto de Porto Alegre/RS

IALMAR PIO SCHNEIDER

Soneto à mulher morena 

Linda manhã radiosa me convida
a prosseguir nos passos rumo ao mundo,
porque sonhar amando é tão profundo,
que mais e mais, também prolonga a vida !

Mas se eu pudesse ser um vagamundo,
sem conhecer a estrada percorrida,
com certeza, conceberia a lida
de procurá-la até em um submundo…

Eu sei que vou lhe amar a todo o instante,
com seu sorriso límpido e brilhante,
qual se fosse de Alencar – ´´A Iracema´´!…

E para consagrar meu preito à bela
morena, que não sai da minha tela,
eis o soneto que ainda é o poema !
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova de Campinas/SP

ARTHUR THOMAZ

No momento da partida,
o beijo cala um adeus
e uma lágrima incontida
vem molhar os lábios teus.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Poema de Floriana/ Malta

OLIVER FRIGGIERI

Uma Estrofe Sem Título

Dá-me as palavras de teus olhos, a noite escreve
Uma estrofe purpúrea sobre teu bonito rosto,
Brilha o orvalho, tuas bochechas um branco universo
De onde nada dá um passo descalço sem dor,
Toca estas mãos e sente o despedaçado coração
E nota o sangue quente, o pranto solene.
Pomba, não voes distante  come de minhas mãos,
Este é o grão que não mata, água pura.
Monótono o sino que dá a hora
Para que te vás desta janela entreaberta
Por mim para ti, monótono o suspiro
Gravado como ilusão que vem e vai.
Não voes distante, e diga comigo esta oração:
“Há raios de luz de lanterna enfocados em mim,
Há uma humilde estrela que brilha só para mim,
Há uma flor selvagem que se abre em meu peito,
Há uma chama de vela vacilante só para mim.”

(Tradução:  José Feldman)
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Haicai de Maringá/PR

A. A. DE ASSIS

Hai…tchim!!!

Filas nos postinhos.
Em meio a espirros e tosses,
velhinhos papeiam.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Setilha de Fortaleza/CE

NEMÉSIO PRATA 

Somos três 
(Ao Francisco Pessoa e José Feldman, sobre a “mardita” diabetes)

De doce todos gostamos, 
seja de leite ou goiaba,
de caju, mamão ou coco,
até banana e mangaba;
para completar a vez,
agora somos os três, 
"doces" vítimas da "diaba"!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova de Porto Velho/RO

JERSON LIMA DE BRITO

Sentindo o golpe certeiro
da paixão que me extasia
louvo teu sorriso, arqueiro
de notável pontaria.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Glosa do Rio Grande do Sul

GISLAINE CANALES
Herval/RS, 1938 – 2018, Porto Alegre/RS

Ruas do Céu

MOTE:
Este céu tem lindas ruas
e Deus, para enriquecê-las,
de prata pintou as luas
e bordou o chão de estrelas.
Sarah Rodrigues
Belém/PA

GLOSA:
Este céu tem lindas ruas,
cheias de encanto e harmonia,
de tristezas, estão nuas,
nelas, só existe alegria!

São as mais belas de todas
e Deus, para enriquecê-las,
deu-lhes luz de eternas bodas...
Impossível descrevê-las!

Pra não ver mais cores cruas,
com seu pincel de emoção,
de prata pintou as luas
com a mão do coração!

Quis belezas extasiantes
e, assim, para poder tê-las,
pintou as luas distantes
e bordou o chão de estrelas.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Aldravia do Rio de Janeiro/RJ

MARIA BEATRIZ DEL PELOSO RAMOS

Mar
arado
pelos
olhos
colho
saudade
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Soneto de Belo Horizonte/MG

SÍLVIA ARAÚJO MOTTA

Segredo da despedida

Ao meio dia, alegres dois ponteiros,
cantaram juntos para a paz buscar;
o sol tornou dois corpos mais inteiros,
brilho no rio quis logo espelhar!

Testemunhou paixão febril, no olhar,
firmes mãos dadas, toques bem ligeiros
no tim-tim-tim que o copo fez cantar,
canção vibrante quis os tons primeiros.

Água que passa suja, leva tudo,
No entardecer, relógio, chama agora:
-Já são seis horas...tempo fica mudo.

Na despedida penso:-Quero tê-lo!
Tal qual criança sofre e vai embora...
Tristonha vou...não posso mais detê-lo.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova Premiada em Natal, 2022

MARIA HELENA URURAHY
Angra dos Reis/RJ

O sabor do beijo ousado,
naquele adeus na estação,
deixou comigo, guardado,
o amargo da ingratidão...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Poema de Fortaleza/CE

FRANCISCO JOSÉ PESSOA
1949 - 2020

No falado paraíso 
Onde nasceu a manhã 
Onde a primeira maçã 
Tirou do homem o juízo 
Extraído o dente ciso 
Com o velho boticão 
Da boca do velho Adão 
Fato que não se malogra 
Mas Adão foi sorteado 
E por Deus presenteado 
Pois nunca teve uma sogra!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Triverso de Guarulhos/SP

ANTONIO LUIZ LOPES TOUCHÉ

A Maria-sem-vergonha 
Como a rosa e a margarida, 
Cumpre a sina: floresce. 
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Spina de São Paulo/SP

NEUMA TOLEDO

Recado

Soprando, o vento
me contou que
você roubou Deus.

Tirou todo azul do céu 
pôs nos seus lindos olhos,
esqueceu de tingir os meus
que são escuros como graúnas
lembram petróleo cheio de breus.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova de Ribeirão Preto/SP

NILTON MANOEL ANDRADE TEIXEIRA
1945 – 2024

Cavalgando sem rodeios
por galáxias estreladas,
o poeta em seus anseios
tece trovas requintadas.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Pantum de São José dos Campos/SP

MIFORI
(Maria Inez Fontes Rico)

Doa-se um coração

Doa-se um bom coração...
Muito afoito e destemido!
Já viveu tanta paixão,
apesar de ter sofrido...

Muito afoito e destemido,
um eterno sonhador.
Apesar de ter sofrido
da solidão tem horror.

Um eterno sonhador,
por muitos, manipulado.
Da solidão tem horror;
quer amar e ser amado.

Por muitos, manipulado
mas ainda em condição...
Quer amar e ser amado!
Doa-se um bom coração...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Poetrix de Paranavaí/PR

RENATO FRATA

Manhã

Gemido de amor que se cala,
cão vadio que se deita:
– madrugada que se esvai…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Soneto de Santo Amaro da Purificação/ BA

ERÁCLIO SALLES

Teu Presente
 
Pensei que a terra, por demais escura,
Manchasse o alvor de teus formosos braços.
E arrojei-me, quixótico, aos espaços,
Sorvendo aos tragos a amplidão da altura.

Penetrei mundos de celeste alvura,
Cansando o olhar, multiplicando os passos.
Venci desertos, esmaguei cansaços,
De um presente trazer-te, indo à procura.

Fiquei cego de ver tanta miragem,
Fitando estrelas, no ansiar profundo.
Nem só uma escolhi – tantos cuidados! -

Nada te posso dar dessa viagem.
Mas sei, no entanto, que te trouxe um mundo
Na memória dos olhos apagados.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova de Juiz de Fora/MG

MAURO MACEDO COIMBRA

É magia que me encanta
e que a Deus mais enaltece:
a raiz sustenta a planta,
mas quase nunca aparece!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Poema de Portugal

ANTÓNIO GEDEÃO
(Rómulo Vasco da Gama de Carvalho)
Lisboa, 1906 – 1997

Poema da malta das naus

Lancei ao mar um madeiro,
espetei-lhe um pau e um lençol.
Com palpite marinheiro
medi a altura do Sol.

Deu-me o vento de feição,
levou-me ao cabo do mundo.
pelote* de vagabundo,
rebotalho** de gibão.

Dormi no dorso das vagas,
pasmei na orla das praias
arreneguei, roguei pragas,
mordi peloiros*** e zagaias****.

Chamusquei o pelo hirsuto,
tive o corpo em chagas vivas,
estalaram-me a gengivas,
apodreci de escorbuto.

Com a mão esquerda benzi-me,
com a direita esganei.
Mil vezes no chão, bati-me,
outras mil me levantei.

Meu riso de dentes podres
ecoou nas sete partidas.
Fundei cidades e vidas,
rompi as arcas e os odres.

Tremi no escuro da selva,
alambique de suores.
Estendi na areia e na relva
mulheres de todas as cores.

Moldei as chaves do mundo
a que outros chamaram seu,
mas quem mergulhou no fundo
do sonho, esse, fui eu.

O meu sabor é diferente.
Provo-me e saibo-me a sal.
Não se nasce impunemente
nas praias de Portugal.
===============================
* Pelote = Peça de vestuário antiga, de abas largas e grandes
** Rebotalho = refugo
* * * Peloiros = bala de metal
* * * * Zagaias = lança curta