segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Vereda da Poesia = 101 =

                   

Trova Paranaense

HELENA KOLODY
Cruz Machado, 1912 – 2004, Curitiba

Para muitos, a ventura
é clarão que vem e passa,
um sorriso que não dura,
um reflexo na vidraça.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Poema de Huambo/Angola

MARIA ALEXANDRE DÁSKALOS

O garoto corria corria
não podia saber
da diferença entre as flores.
0 garoto corria corria
não podia saber
que na sua terra há
morangos doces e perfumados,
o garoto corria corria
fugia.

Ninguém lhe pegou ao colo
ninguém lhe parou a morte.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova de Uruguaiana/RS

LUIZ STABILE

Sou da estirpe farroupilha
e sei desde pequerrucho
que na luta e na guerrilha
moldou-se o homem gaúcho.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Soneto do Rio de Janeiro/RJ

J. G. DE ARAÚJO JORGE
(José Guilherme de Araújo Jorge)
Tarauacá/AC (1914 – 1987) Rio de Janeiro/RJ

Dedicatória

Este meu livro é todo teu, repara
que ele traduz em sua humilde glória
verso por verso, a estranha trajetória
desta nossa afeição ciumenta e rara!

Beijos! Saudades! Sonhos! Nem notara
tanta coisa afinal na nossa história...
E este verso - é a feliz dedicatória...
onde a minha alma inteira se declara...

Abre este livro... E encontrarás então
teu coração, de amor, rindo e cantando,
cantando e rindo com o meu coração...

E se o leres mais alto, quando a sós,
é como se estivesses me escutando
falar de amor com a tua própria voz!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova Premiada em Saquarema/RJ, 2015

JOÃO BATISTA VASCONCELLOS 
Nova Friburgo/RJ

Águas límpidas e mansas...
Lagoa envolta em luar...
E um passado de lembranças
goteja do meu olhar!...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Poema de Catanduva/SP

ÓGUI LOURENÇO MAURI

Solitários Passos

Pra mim, és agasalho das Alturas,
Que chegou à metade do caminho.
Contigo, jamais estarei sozinho,
Pois somos cúmplices nas horas duras. 

Teus olhos reergueram minha autoestima;
A mando dEle, na raia tu entraste.
De minha vida, tu foste o guindaste;
De Deus, para eu dar a volta por cima. 

Hoje; estar só, não passa de lembrança,
Solitários passos foram de vez.
No mar bravio, o tempo se refez;
Finda a tempestade, veio a bonança. 

Foste o bálsamo pra minha ferida,
Que surgira em meus passos solitários.
Trouxeste os ingredientes necessários
Ao amor, em retomada de vida. 

És mais um anjo do que uma mulher.
E teu aconchego, igual nunca vi.
Dos reclusos passos antes de ti,
Não tenho saudade, um pingo sequer…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova Popular

Sonhei contigo esta noite,
mas oh! Que sonho atrevido!
Sonhei que estava abraçado
à  forma  do  teu  vestido!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Soneto de São Paulo/SP

HUMBERTO RODRIGUES NETO

Bentinho e Capitu

Oh! Flor do céu! Oh! Flor cândida e pura,
em cujos lábios demorou meu beijo,
se ontem foste a razão do meu desejo,
hoje és causa da dor que em mim perdura!

Eu fui o teu Bentinho de alma impura
que fez de ti, em juízo malfazejo,
a fonte da vergonha e do meu pejo,
a causa, enfim, da minha desventura!

Foi preciso que ao roxo da mortalha
na tua mudez me desses a entender
por quanta vez a nossa mente falha!

E hoje distante, esse teu meigo ser
parece das alturas me dizer:
¨perde-se a vida, ganha-se a batalha¨!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova do Rio de Janeiro/RJ

LUIZ POETA
Luiz Gilberto de Barros

Afasto-me de quem sou,
quando quem sou não me basta,
sou os sonhos que me dou,
meus sonhos não têm nem casta.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Poema do Rio de Janeiro/RJ 

CATULO DA PAIXÃO CEARENSE
São Luís/MA, 1863 — 1946, Rio de Janeiro/RJ

O azulão e os tico-ticos

Do começo ao fim do dia,
um belo azulão cantava,
e o pomar que atento ouvia
os seus trilos de harmonia
cada vez mais se enflorava.

Se um tico-tico e outros bobos
vaiavam sua canção,
mais doce ainda se ouvia
a flauta desse azulão.

Um papagaio, surpreso
de ver o grande desprezo
do azulão, que os desprezava,
um dia em que ele cantava
e um bando de tico-ticos
numa algazarra o vaiava,
lhe perguntou: " Azulão,
olha, diz-me a razão
por que, quando estás cantando
e recebes uma vaia
desses garotos joviais,
tu continuas gorjeando,
e cada vez cantas mais?!"

Numas volatas sonoras,
o azulão lhe respondeu:
"meu amigo, eu prezo muito
esta garganta sublime,
este dom que Deus me deu!

Quando há pouco, eu descantava,
pensando não ser ouvido
nestes matos, por ninguém,
um sabiá que me escutava,
num capoeirão, escondido,
gritou de lá: "meu colega,
bravo!....Bravo!...Muito bem!"

Queira agora me dizer: -
quem foi um dia aplaudido
por um dos mestres do canto,
um dos cantores mais ricos
que caso pode fazer
das vaias dos tico-ticos?!"
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova Humorística de São Paulo/SP

THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA

No açougue foi tal o susto
ante o preço do filé,
que a peruca do "seu" Justo
ficou de cabelo em pé!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Dobradinha Poética de Bandeirantes/PR

LUCÍLIA ALZIRA TRINDADE DECARLI

Quero…

Constato ao alvorecer,
também ao clarão da lua:
mesmo depois de morrer
quero ser somente tua!

Quero sentir de novo as tuas mãos
a tatear meu corpo, docemente…
Quero apagar meus pensamentos vãos
para entregar-me a ti, confiantemente.

Quero pisar sem medo em quaisquer chãos,
seguir feliz na estrada à minha frente.
Quero a renúncia pronta dos meus nãos,
dar-te o meu sim, sonoro e ardentemente!

Porque quem ama sempre retrocede,
porém as consequências nunca mede,
quando a paixão reinflama o coração...

Por isso eu quero tudo o que quiseres,
ser a  mais tua dentre outras mulheres:
— aquela que te amou... sem restrição!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova Carioca

ELEN DE NOVAES FÉLIX
Barra do Piraí/RJ,  1946 - 2015, Niterói/RJ

No sertão pobre e carente
chuva é a mão que Deus descerra
e apaga a fogueira ardente
que queima a face da terra.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Poema de Vila Velha/ES

APARECIDO RAIMUNDO DE SOUZA

Prelúdio 4

Hoje eu soube apreciar com emoção
O feliz casal que despertou sorrindo...
A MANHÃ e o SOL!
Ambos com um misto de beleza e esplendor
Num canto primaveril de amor infindo…

Senti-me também assim,
Como eles, feliz e esplendoroso
todo cheio e orgulhoso
Com o coração a cantar em mim!...

É porque hoje... hoje irei vê-la
Com o seu sorriso de criança
Falando-me de carinho e paixão
E de nós dois...

Sem mais receios, ou embaraços...

Hoje, serei o SOL e ela, a MANHÃ,
Feliz e envolta
Bem solta
Em meus braços!...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova de Campinas/SP

ARTHUR THOMAZ

A lágrima, pura e bela,
tão límpida e transparente,
que se enxerga através dela
a dor que a pessoa sente.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Soneto do Rio de Janeiro/RJ 

RITA MOUTINHO

Soneto da ausência seleta

A saudade, hoje, é alvo da pungência
e certa flecha bêbada vagueia
na aura da chama anil da inconsciência,
porque a verdade de hoje escamoteia

realidade avessa, de carência,
que não quero entender porque a meia
estadia na vida, por sua ausência,
faz-me vítima, abate-me e fundeia.

O que queria ver é o que vês,
o que queria ser é o que és,
o que queria ter é o que tens.

Mas nunca para isso haverá vez:
somos aos nossos, não a nós, fiéis
e seleta é a sensata insensatez.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova Premiada em Saquarema/RJ, 2015

MILTON S. SOUZA   
Porto Alegre/RS, 1945 – 2018, Cachoeirinha/RS

Velha lagoa... drenaram
o teu leito cristalino...
e ao te matarem, mataram
meu brinquedo de menino...
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Poema de Maringá/PR

ARMANDO BETTINARDI

Caminhando

Por que o sol,
a praça,
o burburinho da cidade
estão aqui?

Por que: a luz
o dia aberto diante de mim,
o convite à vida,
se eu estou sozinho?

Sem você, o momento
passa como o vento,
sem consumação,
naturalmente, inutilmente.

Não entendo momento,
só momento, sem ação,
sem movimento,
sem nós dois
que juntos somos vida.

Só aceito momento,
que não seja fugaz nem
efêmero;
- que seja total completamente.

Então, seremos nós
eu e você,
caminhando juntos,
de mãos dadas
rasgando a luz da tarde;
rumo ao crepúsculo.

Agora, o dia ainda está todo
aberto diante de nós;
e, é um convite à vida.

Vamos pois, inebriados
beber a vida, gota a gota
até o fim, enquanto,
juntos caminhamos.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova de Maringá/PR

A. A. DE ASSIS

A prata, em nosso cabelo, 
faz ninho se a idade vem... 
Que pena ela não fazê-lo 
em nossos bolsos também!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Décima de Fortaleza/CE

FRANCISCO JOSÉ PESSOA
1949 – 2020

Meu sertão sou teu pedaço
Berço de gente feliz
Que dança ao som de Luiz
no escurinho do terraço.
Tem sol quente tem mormaço,
Tem ave de arribação,
Xaxado xote e baião
Tem um Santo Padim Ciço.
Quem nunca viu tudo isso 
Não sabe o que é sertão. 
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova da Princesa dos Trovadores

CAROLINA RAMOS
Santos/SP

Esse que vive algemado
às paixões, odiando a esmo,
mesmo sendo alforriado,
segue escravo de si mesmo!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Hino de Feira de Santana/BA

Salve ó terra formosa e bendita
Paraíso com o nome de Feira
Toda cheia de graça infinita
És do norte a princesa altaneira

Bem nascida entre verdes colinas
Sob o encanto de um céu azulado
Ao estranho tu sempre dominas
Com o poder do teu clima sagrado

Sorridente como uma criança
Descuidosa da sua beleza
Do futuro és a linda esperança
Terra moça de sã natureza

Poetisa do branco luar
Pelas noites vazias de agosto
Fiandeira que vive a fiar
A toalha de luz de sol posto

De Santana és a filha querida
Noite e dia por ela velada
E o teu povo tão cheio de vida
Só trabalha por ver-te elevada
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova de São Mateus do Sul/PR

GÉRSON CÉSAR SOUZA

Bondade, segundo eu penso,
é a peça que está perdida
do quebra-cabeça imenso
que nós chamamos de vida.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Dobradinha Poética de Campo Mourão/PR

JOSÉ FELDMAN

Sonhos

Vejo uma luz no horizonte,
a paz no mundo a brilhar.
Pode ser sonho distante...
Um dia ele irá vingar...

Sempre quis pintar um mundo encantado,
com tintas da aquarela de meus sonhos,
Pintar na tela um céu todo estrelado,
e lá no fundo, corações risonhos.

Sempre quis espargir versos no mundo,
perfumá-lo com aura de esperança,
plantando sementes em chão fecundo,
qual o amor num coração de criança.

A vida é um caminho de idas e vindas,
momentos de alegria e de tristeza,
no anseio de encontrar paisagens lindas,

anda-se encruzilhadas da incerteza,
fazendo o destino em ruas infindas,
com toda a força de nossa grandeza.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Trova Paulista

CLÁUDIO DE CÁPUA
São Paulo/SP, 1945 – 2021, Santos/SP

Nesta noite prateada
minha sombra, junto à tua,
vai trilhando a mesma estrada,
tendo por cúmplice a lua.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

Fábula em Versos da França

JEAN DE LA FONTAINE
Château-Thierry, 1621 – 1695, Paris

O marido, a mulher e o ladrão

Um marido extremoso,
Que adorava a mulher
Sendo, embora, feliz — julgava-se inditoso.
Dos olhos dela nunca um só fugaz volver,
Um modo gracioso,
Uma frase de amiga, um lânguido sorrir,
Mil expressões gentis, rápidas, mas sinceras,
Lisonjeando o descrido,
Conseguiram jamais de leve persuadir
Que era amado deveras.
Enfim... era um marido!

Se amor neste himeneu,
Como bênção divina,
Mudado lhe tivesse a tão estéril sina...
Mas... tal não sucedeu!
Batida pela sorte,
Sem mais um desafogo,
Nem mimos para o triste e mísero consorte,
Esta esquiva mulher
Ouvia-lhe uma noite o lamentar de fogo,
Sem um suspiro só de todo compreender,
Quando surge um ladrão,
E interrompe o queixume acerbo e dolorido.

Ela sente do susto a fria contorção...
Procura amparo e cai... nos braços do marido!.

«Amigo, exclama então
O jubiloso amante,
Ao pérfido ladrão:
Foram-se os meus pesares!
Sem ti, eu não teria um tão gostoso instante!
Ventura tão intensa!
Toma, leva, arrecada aquilo que encontrares,
Leva a casa também... É justa a recompensa!»

Não se perdem ladrões por homens delicados,
E a crer ninguém se inclina
Que eles sejam um pouco honestos ou vexados:
Este, pois, atirou-se impávido à rapina!

Deste conto se infere
Que o medo é das paixões a que mais largo fere;
Pois quando audaz assoma,
Como vence a aversão,
Algumas vezes doma
O amor que avassalou de todo um coração.

Tu bem viste, leitor,
Somente para ter
Nos braços a mulher...
Um marido o que fez! Foi vítima do amor!

Eu gosto deste amor altivo e temerário
Que brilha e não se estiola,
Que cresce e não se apouca!
O conto me agradou de um modo extraordinário:
Ele bem diz numa alma indômita, espanhola,
Mais sublime que louca!

II Concurso de Trovas da de São Luís do Maranhão (Prazo: 31 de outubro de 2024)

02 trovas inéditas, por concorrente. 

É obrigatório constar a palavra tema no corpo da trova.

ÂMBITO NACIONAL/INTERNACIONAL 

LÍRICA/FILOSÓFICA

Veteranos: Tema: Fantasia

Enviar para o fiel depositário Raul Filho, pelo e-mail:  ubttaubateconc@gmail.com

Novo Trovador: Tema: Violeta 

Enviar para o fiel depositário Luiz Antonio Cardoso, pelo email: luizantoniocardoso@gmail.com

HUMORISMO: 

Sem distinção de categorias: Tema: Promessa

Enviar para fiel depositária Anete Simões, pelo e-mail:  anetesimoeslt@gmail.com

ÂMBITO ESTUDANTIL (Estado do Maranhão)

Ensino Fundamental e Médio 

Tema: Professora (lírica/filosófica) .

Enviar para  o fiel depositário José Carlos Sanches, pelo e-mail: jccsanches26@gmail.com

O nosso português de cada dia (Expressões) = 6


(SABER) DE COR

Expressão usada quando alguém tem um assunto claramente guardado na memória.

Tem origem no latim “cor” que quer dizer coração. Portanto, saber de cor é saber pelo coração, pelos sentidos. Em francês diz-se savoir par coeur, literalmente saber pelo coração.

DEEM-ME UMA ALAVANCA E EU ERGUEREI O MUNDO

A frase é do sábio Arquimedes, 287 - 212 a. C. Foi ele um dos primeiros pensadores que começou a compreender a importância das máquinas para realização de trabalhos, lembrando que o esforço físico era considerado indigno de cidadãos livres no Mundo Antigo. Ele estudou , descobriu e formalizou as leis da mecânica, tendo inventado o sistema de roldanas, a alavanca e muitas outras máquinas. Certa feita, querendo ser compreendido no alcance de seus inventos, disse: "Deem-me um outro lugar onde eu possa colocar-me, e uma alavanca de tamanho adequado, e eu deslocarei a Terra". Baseado no princípio da alavanca, ele inventou a catapulta, que acabou por ajudar, e muito, o seu povo a resistir à invasão dos romanos.

DEITAR E ROLAR

Fazer a festa, divertir-se a valer sem nenhuma preocupação, aproveitar a situação da melhor maneira possível.

A expressão é nórdica. Está ligada às antigas tradições pré-natalinas. Muitos costumes têm a sua origem em antigas festas populares pagãs, quando as celebrações realizadas ao romper do inverno rogavam aos deuses a volta plena da natureza "adormecida" na próxima primavera. Um cortejo - bem barulhento -, se formava para afastar os maus espíritos e os fantasmas. As crianças desejavam que nesta data a cidade estivesse coberta de neve para que pudessem construir bonecos de neve, traçar batalhas brancas ou, simplesmente, deitar e rolar sob os flocos frescos, num cenário feito conto de fadas que modificava radicalmente a paisagem urbana, normalmente cinza e sem graça.

DE VENTO EM POPA

Usada quando as coisas vão muito bem, tudo está favorável.

A metáfora é quase literal. Popa é a parte de trás dos navios. Se imaginarmos um barco a velas, numa época em que a propulsão de barcos grandes era apenas assim, será fácil entender o que significava ter o vento a favor, de trás para diante. Os ventos favoráveis são chamados de barlaventos.

DIABO A QUATRO

Confusão generalizada, várias pessoas falando e/ou fazendo muitas coisas ao mesmo tempo sem que ninguém se entenda.

Nos antigos autos medievais (peças de teatro simples, de um só conflito - normalmente o bem contra o mal - de caráter religioso e moralizante e feita em versos), apareciam normalmente quatro personagens vestidas de diabos fazendo horríveis barulhos com o intuito de aterrorizar os espectadores, alertando-os sobre as penas infernais a que todos estavam sujeitos.

DIAS DA SEMANA

Por que os dias da semana são chamados de segunda, terça, quarta, quinta e sexta-feira, sábado e domingo? Esta, talvez, seja uma pergunta feita por quase todo mundo.

A origem dos nomes em português é essencialmente religiosa:

Domingo: vem do latim Dominus, o dia do Senhor, seria então o primeiro dia de festividade religiosa, da feria, para nós a primeira feira; segunda a sexta, as outras feiras ordenadas; e sábado viria do latim sabbatu, que, por sua vez, viria do hebraico shabbath, significando descanso semanal.

As outras línguas europeias deram aos dias origem pagãs, relacionando os nomes aos astros.

Fonte: Nailor Marques Jr. Será o Benedito?: Dicionário de origens de expressões. Maringá/PR: Liceu, 2002.

Recordando Velhas Canções (Máscara negra)


(Marcha/carnaval, 1967)

Compositores: Zé Keti e Pereira Matos

Tanto riso, oh quanta alegria
Mais de mil palhaços no salão
Arlequim está chorando pelo amor da Colombina
No meio da multidão

Foi bom te ver outra vez
Tá fazendo um ano
Foi no carnaval que passou
Eu sou aquele pierrô
Que te abraçou
Que te beijou, meu amor
Na mesma máscara negra
Que esconde o teu rosto
Eu quero matar a saudade
Vou beijar-te agora
Não me leve a mal
Hoje é carnaval
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = = = = = = = = = = 

A Saudade e o Carnaval: A História por Trás de 'Máscara Negra'
A canção 'Máscara Negra', interpretada pelo icônico sambista Zé Keti, é um clássico do carnaval brasileiro que traz em sua essência a mistura de alegria e melancolia tão característica dessa festa popular. A letra da música descreve o cenário de um baile de carnaval, onde a figura do Arlequim chora por seu amor não correspondido pela Colombina, personagens tradicionais da Commedia dell'arte italiana que foram incorporados ao carnaval.

O eu lírico da canção se identifica como um pierrô, outro personagem clássico, que relembra um encontro amoroso ocorrido no carnaval do ano anterior. A 'máscara negra' que dá título à música pode ser interpretada tanto literalmente, como parte do disfarce carnavalesco, quanto metaforicamente, representando os sentimentos ocultos e a saudade que o narrador sente. A máscara serve como um elemento de anonimato que permite ao pierrô expressar seu amor e matar a saudade através de um beijo, aproveitando a liberdade que o carnaval proporciona.

A música, portanto, captura a dualidade do carnaval: a euforia coletiva e a intimidade dos encontros fugazes. 'Máscara Negra' é um retrato da efemeridade das relações humanas, da alegria passageira e da saudade que permanece, tudo sob o véu da festividade e do anonimato que o carnaval oferece.

Ainda prestigiado pelo sucesso do show “Opinião”, Zé Kéti ganhou o carnaval de 67 com a marcha-rancho “Máscara Negra”. Reproduzindo o lirismo suave que caracteriza o gênero, a composição trata do reencontro de um Pierrô com uma Colombina que conhecera no carnaval anterior.

E, ao contrário de outras canções inspiradas na commedia dell’arte, aqui é o Arlequim quem chora pelo amor de colombina. Tendo acontecido numa época em que a música carnavalesca tradicional saía de moda, o sucesso de “Máscara Negra” pode ser considerado uma façanha.

A propósito, este sucesso chegou a gerar uma polêmica sobre a co-autoria da composição, que seria de Deusdedith Pereira Matos e não de seu irmão Hildebrando, conforme consta na edição. Mas, como os dois já haviam morrido na ocasião, a questão não teve maiores consequências, entrando “Máscara Negra” para o repertório de Dalva de Oliveira como um de seus últimos sucessos 
Fontes:
A Canção no Tempo – Vol. 2 – Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello – Editora 34.

domingo, 1 de setembro de 2024

Varal de Trovas n. 610

 

Trovadora Homenageada do Dia: Vanda Fagundes Queiroz (Trovas em preto e branco)


1
A minha alma adolescente,
de braços dados com a vida,
parece nem ser parente
desta face envelhecida.
2
A primavera, suponho,
que tendo sonhos de amor,
faz, sim, com que cada sonho
nasça em forma de uma flor.
3
Chuva a molhar nosso riso,
riso feliz e molhado…
qualquer tempo é paraíso,
quando o amor é partilhado.
4
– Corte o texto!… Longo assim,
A ideia até se desdoura.
– Pois não, mestre, corto sim,
vou procurar a tesoura…
5
Entro em casa e, no consolo
de ter, no lar, proteção,
piso o primeiro tijolo…
e sinto o céu, no meu chão!
6
Fez plástica no nariz
e comprou peruca loura…
Pirracenta, a outra diz:
- Falta montar na vassoura…
7
Maior prêmio, no decurso
da vida de um trovador,
bem mais que ganhar concurso,
é erguer o troféu do amor!
8
Não basta apenas sonhar,
a vida requer firmeza
de agir, para transformar
uma esperança em certeza.
9
Neste mundo tão mesquinho,
é um prazer ouvir a voz
de quem faz o bem sozinho,
mas usa o pronome “Nós”.
10
Para um garoto, os quintais
eram reinos de magia,
guardando tesouros reais
nos mapas de fantasia…
11
Por mais que o progresso iluda,
deturpe e inverta valor,
o que Deus fez ninguém muda:
o amor será sempre amor!
12
Que imenso mundo se esconde
na pena de intenso brilho
que torna em sábio Visconde
um sabuguinho de milho…
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = =  = 

AS TROVAS DE VANDA EM PRETO E BRANCO
por José Feldman

AS TROVAS UMA A UMA

1. A minha alma adolescente
A poetisa reflete sobre a dualidade entre a juventude e o envelhecimento. A "alma adolescente" representa a vitalidade e a esperança, enquanto a "face envelhecida" sugere a experiência e os desafios da vida. Essa tensão entre o ser interior e a aparência externa provoca uma reflexão sobre a identidade e a passagem do tempo.

2. A primavera, suponho
Aqui, a primavera simboliza renovação e novos começos. Os "sonhos de amor" florescem, representando a capacidade de transformar aspirações em realidade. A imagem da flor é poderosa, sugerindo beleza, fragilidade e a natureza efêmera dos sentimentos.

3. Chuva a molhar nosso riso
A chuva é uma metáfora para a alegria compartilhada. Mesmo em tempos difíceis, o amor pode criar um "paraíso". Essa trova destaca a importância da conexão emocional e da partilha nas relações, sugerindo que a felicidade é, em grande parte, uma construção conjunta.

4. – Corte o texto!… Longo assim
Esta trova revela uma crítica à superficialidade na arte. De uma forma humorística, o "mestre" representa a voz da razão que busca simplificação, enquanto a resposta do eu lírico demonstra a disposição em questionar essa autoridade. A tesoura torna-se um símbolo da necessidade de edição e clareza na expressão artística.

5. Entro em casa e, no consolo
A casa é retratada como um santuário, um lugar de proteção e conforto. O "primeiro tijolo" simboliza a construção de um lar e de raízes. A expressão "sinto o céu, no meu chão" sugere uma conexão profunda entre o mundano e o espiritual, enfatizando a paz que se encontra em um ambiente seguro.

6. Fez plástica no nariz
Essa trova aborda a obsessão pela aparência e as pressões sociais que levam à transformação física. A crítica à superficialidade é evidente, com uma personagem que se transforma, mas ainda é alvo de zombarias. Isso provoca uma reflexão sobre a autenticidade e o valor interior versus exterior.

7. Maior prêmio, no decurso
O amor é exaltado como a verdadeira recompensa na vida de um trovador. Essa trova sugere que, embora o reconhecimento externo seja valioso, o amor é a realização mais significativa, ressaltando a importância das conexões afetivas.

8. Não basta apenas sonhar
Aqui, a poetisa destaca a necessidade de ação. Sonhar sem agir é insuficiente; a transformação de esperanças em certezas requer determinação. Essa mensagem é um chamado à proatividade e à responsabilidade na busca por objetivos.

9. Neste mundo tão mesquinho
A voz que faz o bem "sozinho" e usa "nós" sugere uma crítica ao individualismo. A coletividade e a solidariedade são valorizadas, destacando que ações altruístas são mais impactantes quando vistas como esforços conjuntos, reforçando a ideia de comunidade.

10. Para um garoto, os quintais
A evocação da infância e dos quintais como "reinos de magia" simboliza a imaginação e a descoberta. Os "mapas de fantasia" refletem a inocência e a capacidade de ver o mundo como um lugar cheio de possibilidades, evocando saudade e nostalgia.

11. Por mais que o progresso iluda
A poetisa critica a forma como o progresso pode distorcer valores. O amor, como uma essência divina, permanece imutável, destacando a importância de preservar o que é verdadeiro e significativo em meio às mudanças da sociedade.

12. Que imenso mundo se esconde
A metáfora do "sabuguinho de milho" transformado em "sábio Visconde" sugere que há um potencial oculto em tudo e todos. Essa ideia de transformação e descoberta da sabedoria interna reflete um otimismo sobre o crescimento humano e as possibilidades de mudança.

RELAÇÕES DA TEMÁTICA DAS TROVAS DE VANDA COM OUTROS POETAS

As trovas de Vanda F. Queiróz dialogam com diversos poetas, tanto antigos quanto contemporâneos, em vários aspectos. Vejamos:

1. Amor e Natureza
Em tempos de incertezas e crises emocionais, a ênfase de Vanda no amor como uma força transformadora destaca a sua relevância. O amor, em suas diversas formas, é um antídoto contra a alienação e a solidão, promovendo laços que fortalecem a comunidade.

Camões e Bocage frequentemente exploram o amor em conexão com a natureza. Camões, em particular, usa a natureza como um reflexo das emoções humanas. Adélia Prado e Maria Bethânia também utilizam a natureza para evocar sentimentos amorosos, similar ao que se vê nas trovas de Vanda.

2. Juventude e Envelhecimento
A tensão entre juventude e envelhecimento que permeia suas trovas convida à introspecção sobre a identidade pessoal em meio às pressões sociais. Essa reflexão é essencial em uma era em que a imagem e a aparência muitas vezes superam o valor interior.

Fernando Pessoa, especialmente em suas reflexões sobre a passagem do tempo em "Mensagem", aborda a dualidade entre o eu jovem e o eu maduro. Mário Quintana fala sobre o tempo e a nostalgia, ecoando as preocupações de Vanda com a alma jovem em um corpo envelhecido.

3. Solidariedade e Coletividade
A valorização do "nós" em suas obras se alinha com a crescente necessidade de ações coletivas para enfrentar desafios globais, como desigualdade social e crises ambientais. Vanda nos lembra da importância de agir em conjunto, promovendo um senso de comunidade.

Olavo Bilac, em sua obra, valoriza a união e a coletividade, refletindo sobre a importância do "nós". Cecília Meireles também destaca a importância das relações humanas e da coletividade em suas poesias.

4. Autenticidade e Aparência
A crítica à superficialidade e à obsessão por aparências é mais pertinente do que nunca. Em um ambiente saturado de redes sociais e comparações, suas trovas nos incentivam a buscar a autenticidade e a verdadeira essência do ser.

Gregório de Matos critica a hipocrisia social e a superficialidade em suas poesias, semelhante ao olhar crítico de Vanda. Chico Buarque, em suas letras, aborda questões de identidade e aparência, refletindo sobre a autenticidade.

5. Nostalgia e Inocência
A nostalgia e a inocência nas trovas de Vanda F. Queiróz não apenas evocam um sentimento de saudade, mas também funcionam como um chamado à redescoberta das qualidades essenciais da vida. Elas nos lembram da importância de manter viva a capacidade de sonhar, de valorizar as conexões emocionais e de encontrar beleza nas experiências cotidianas. Em um mundo que frequentemente prioriza o material e o efêmero, as trovas de Vanda oferecem um refúgio que valoriza o que é verdadeiramente significativo e duradouro.

Gonçalves Dias, em "Canção do Exílio", evoca a saudade e a nostalgia pela infância e pela terra natal. Marília Mendonça, em suas letras, traz uma forte carga emocional ligada à memória e à inocência perdida.

6. Ação e Transformação
A mensagem de que sonhar sem agir é insuficiente ressoa em um momento em que muitos buscam mudança, tanto em suas vidas pessoais quanto na sociedade. A necessidade de transformar esperanças em realidades é um chamado à ação que pode inspirar gerações atuais e futuras.

Machado de Assis frequentemente enfatiza a necessidade de ação e mudança social em suas obras. Hilda Hilst também fala sobre a importância de agir para transformar a realidade, alinhando-se com a mensagem de Vanda.

7. Mudanças e Permanência
A relação entre mudanças e permanência nas trovas de Vanda F. Queiróz cria um espaço para reflexão sobre a dualidade da experiência humana. Enquanto as mudanças são inevitáveis e muitas vezes desafiadoras, a poetisa nos lembra que certos elementos, como o amor e os valores fundamentais, oferecem estabilidade e significado. Essa interação entre o efêmero e o duradouro é um convite para encontrar beleza e profundidade nas transições da vida, celebrando o que realmente importa em meio às incertezas.

Vinicius de Moraes explora a permanência do amor em meio às mudanças da vida, uma temática que ressoa nas trovas de Vanda. Ruth Rocha também aborda a ideia de que, apesar das mudanças, o amor e as relações humanas permanecem centrais.

Essas relações mostram como Vanda F. Queiróz se insere em um rico diálogo literário, abordando temas universais que atravessam o tempo e ressoam em diferentes vozes poéticas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS 

A temática das trovas de Vanda F. Queiróz, com sua rica exploração de amor, juventude, autenticidade e solidariedade, ressoa profundamente no contexto contemporâneo.

As trovas de Vanda não são apenas um testemunho da beleza poética, mas também um convite à reflexão sobre temas que continuam a ser relevantes em um mundo marcado por rápidas mudanças. Suas trovas servem como um farol, guiando-nos em meio às complexidades da vida moderna, reafirmando a importância do amor, da autenticidade e da solidariedade em um mundo que muitas vezes parece desumanizado. Ao resgatar esses valores, Vanda contribui para a construção de uma sociedade mais empática e conectada, essencial para o futuro que desejamos.

Fonte: José Feldman. 50 Trovadores e suas Trovas em preto e branco. IA Open. vol.1. Maringá/PR: Biblioteca Voo da Gralha Azul. 2024.

Newton Sampaio (Funeral)

Damião entrou de mansinho no quarto abafado. Era mesmo verdade. O amigo não poderia resistir mais tempo. Trazia sulcos grandes no rosto. E os olhos, outrora irrequietos quando anunciavam um novo epigrama, restavam mortiços nas órbitas salientes.

O doente notou-lhe a chegada. Esboçou um sorriso em que punha toda a gratidão. E disse, balbuciante:

— Você... Meu velho amigo.

— É. Eu vim, Frederico. Eu vim.

— Muito... obrigado...

— Não precisa agradecer, não. Mas não fale tanto, Frederico. Você se vai cansar à toa. É preciso repouso, ouviu?

— Não quero.

— Descanse sim. Vai ficar bom mais depressa.

— Qual! Desta vez...

Passou a língua nos lábios secos.

— Chegou o meu dia.

— Ora. Nem diga isso.

Damião se levantou, a troco de nada. Fazia o possível para não chorar.

Frederico gemeu fundo. A testa brilhava, orvalhada. E o corpo todo queria pegar fogo, de tão quente.

Pediu água, numa angústia.

— Quero água, Damião. Bem... gelada.

— Paciência, Frederico. Não pode ser, não.

— Eu quero... Quero.

— Seja forte, menino.

Limpou-lhe o suor brandamente, e encostou um pano molhado na boca do enfermo.

— Eu quero é água.

— Logo. Logo você vai beber. Logo mais.

Revolvia-se, a todo instante, o Frederico.

Do lado de fora do quarto, a cidade sofrendo o sol medonho de dezembro. E do lado de dentro, a febre consumindo, consumindo...

De repente, levou a mão à nuca.

— Aqui.

— Que é?

— Aqui.

Arregalou os olhos.

— Vai estourar. É agora!... Ele vai estourar, já!

Pensava que ia arrebentar um furúnculo na nuca. Depois era a cabeça que estava aberta de lado a lado. A cabeça subiu, subiu. Pegou a cabeça. Atravessou o dedo no ouvido, e o dedo veio sair nos olhos. Os olhos saltaram. Ficaram dançando no ar. Caíram no chão. Era olho dançador! Era só o direito.

Mas a mulher chegou. Pisou, com raiva. Só viu água. A água estava afogando. Então, o furúnculo rompeu na ponta do nariz. Bem na pontinha. O nariz ficou compridíssimo. Chegou a bater na janela. Montou no nariz e saiu correndo. Voaram pela janela, ele mais o nariz. Mas a calçada era de quadradinhos. Deu com o nariz na pedra. Daí entrou na varanda. Socou um tapa no tio... O tio, que balançava na rede, ficou furioso. Deu-lhe uma sova tremenda. Foi aquela sova por causa do roubo da marmelada. Ora, a marmelada! Enterrou o focinho nela.

Encheu-se dela. E a marmelada virou língua. Uma língua danada, que lambia. Que lambia sempre.

Quando retomou consciência, caiu em prostração.

Damião era que sofria tanto como o amigo. Viveu o resto da tarde ali na beira da cama.

À noite, a febre diminuiu. A velha Luísa achava que aquela era a visita da saúde. A última visita. Mas não dizia, não. Podia assustar o moço...

— Você vai sarar logo. Tenho certeza disso.

— Por que, Damião? Não vou prestar mais pra nada...

— Nem fale.

— Eu sei...

Tirou o cabelo dos olhos.

— Sabe, Damião? Sou um caso perdido. Até à minha consciência eu menti sempre.

— Nada disso.

— Eu me arrependo. Fui um inútil. Paciência! Se acaso existisse uma outra vida, seria capaz de me regenerar, acredite.

Piorou, na manhã seguinte. Um febrão!

— Estou me queimando. Não aguento...

— Coragem, menino.

— Mas eu não quero morrer, ouviu? Não quero não... Me salve, Damião. Por favor!

Apenas passou a crise, tentou brincar.

— A bondade, meu amigo, é monótona. A inteligência é incômoda...

— E o romantismo é cretino (completou o outro, recordando as boas tertúlias do passado).

— Isso mesmo.

Fitaram-se longamente.

— Dê-me a sua mão. Como vou morrer logo... quero despedir-me... do único amigo que deixo na terra.

— Bobagem, Frederico.

— Dê-me sua mão. Assim.

E falou, pausadamente, como se estivesse são.

— Cria de alugado, hein? Você, cria de alugado... Lembra-se da palavra de Goethe? Ele falou mais ou menos assim: “Não creia nunca esquecer as dores da meninice...” Está certo?

— Sou capaz até de dizer a página.

Frederico quis sorrir. Mas uma dor aguda cortou-lhe a intenção. Gemeu alto. E quando dona Luísa entrou no quarto o coração do sulista não queria trabalhar mais...

Damião gastou todas as economias no funeral do amigo. Assim mesmo teve de encomendar um de classe inferior.

Os conhecidos, convidados pelo escriturário, prometeram ir, mas não foram.

O morto não deixara mesmo outras amizades. Até mesmo a Jeanette fujona, fora diabólica...

O carro levava duas coroas. E, atrás das coroas, caminhava Damião, em silêncio.

Dona Luísa — a pobre! — arquejava como quê! Só as vizinhas janeleiras é que estavam achando bom o enterro. Porque todo o pessoal as olhava — as únicas moças do acompanhamento.

Nas pernas do grande amigo do Frederico enroscou-se o Chouriço. O cachorro também sabia sentir a morte do dono.

Chouriço ganiu, longamente.

E Damião jurava que a marcha fúnebre de Chopin não podia ser mais triste, mais angustiada do que o ganido daquele vira-lata cheio de pulgas…

(Publicado originalmente em O Dia. Curitiba, 12/11/1936)

Fonte: Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014. Disponível em Domínio Público.