A caminho da bela e lendária Pedra do Reino
Inspirada no Romance d'A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta, de Ariano Suassuna, a tradicional cavalgada de São José do Belmonte chega à sexta edição prometendo atrair mais de 800 cavaleiros (sem falar nos turistas "preguiçosos" que fazem o percurso de carro). Este ano, o evento acontece entre os dias 29 e 31 deste mês, oferecendo aos participantes uma chance imperdível de conhecer um pouco mais sobre a "tragédia sebastianista" ocorrida em Pernambuco há 160 anos e conferir algumas das mais típicas manifestações da cultura popular.
Promovida pela Associação Cultural da Pedra do Reino, a Cavalgada relembra o movimento liderado por João Ferreira, em 1838, na chamada Pedra do Reino, na Serra do Catolé, em São José do Belmonte (na verdade composta por duas grandes formações rochosas, uma com 30 e outra com 33 metros de altura). No local, o auto proclamado Rei João Ferreira formou uma comunidade de fiéis prometendo um reino de justiça, liberdade e prosperidade, onde os pobres ficariam ricos e até os pretos renasceriam brancos.
Tudo isso aconteceria depois da ressurreição de Dom Sebastião, antigo Rei de Portugal, desaparecido na África durante a batalha do Alcácer-Quibir, no século 16. No começo, aos fiéis pedia-se apenas que acreditassem, aguardassem e vivessem segundo as leis do Rei João Ferreira (que incluíam o direito de passar a noite com cada noiva da comunidade, no dia do casamento delas!).
Chegou um ponto em que passaram a ser exigidos sacrifícios humanos. João Ferreira (chamado de Dom João II) pregava que Dom Sebastião só desencantaria se a Pedra do Reino fosse lavada com sangue. O resultado foi a morte de 11 mulheres, 12 homens e 30 crianças (sem falar em 14 cachorros). O próprio João Ferreira terminou sendo morto e outro rei assumiu o seu lugar, Pedro Antônio, que só passou um dia no poder.
A Guarda Nacional, integrada por fazendeiros da região, decidiu intervir e mais 22 pessoas morreram (entre sebastianistas e soldados). O então prefeito da comarca de Flores, Francisco Barbosa Paes, descreveu o episódio como "uma das maiores carnificinas acontecidas no Sertão Pernambucano. O caso mais extraordinário, mais terrível, nunca visto, quase incapaz de acreditar-se".
O EVENTO
A história é contada no romance de Ariano Suassuna e revivida anualmente na Cavalgada da Pedra do Reino (que este ano acontece no domingo, 31, precedida de outras celebrações a partir da sexta, 29). Os participantes, com trajes, armas e bandeiras de inspiração medieval, partem da praça central de São José do Belmonte, por volta de 05h da manhã, depois que tiros de bacamarte ecoam pela cidade e o padre abençoa os cavaleiros. Cinco horas depois, chegam à Pedra do Reino, onde é celebrada uma Missa com a presença de cantadores e violeiros, seguida por uma grande festa. Este ano, uma das atrações é a banda Comadre Florzinha.
Convidado especialíssimo, o escritor e secretário de cultura do estado de Pernambuco, Ariano Suassuna, lidera a comitiva com o título de Imperador da Pedra do Reino, concedido pela Associação. Junto a ele segue seu filho, o artista plástico Dantas Suassuna, Rei da Cavalgada, acompanhado da Rainha, Elizandra Carvalho, escolhida por concurso entre as garotas do município. Também na comitiva de frente, os membros da Ordem dos Cavaleiros da Pedra do Reino, em seis pares de vermelho e azul.
Um ritual um tanto mágico parece estar acontecendo, à medida em que os cavaleiros seguem até a Pedra do Reino, entoando tradicionais aboios (cantigas de vaqueiros), com trajes elaborados especialmente para a ocasião. Mais envolvente só mesmo o romance de Ariano sobre o tema, indispensável para quem quiser captar toda a essência do evento.
Para quem não tiver chance de lê-lo, vale ir se familiarizando com a história a parte do Memorial da Pedra do Reino, que será inaugurado no próximo domingo, dia 24, em Belmonte. No local, funcionará um museu com objetos, fotos e documentos sobre as mortes nas pedras e sobre a criação da festa. Uma das salas terá o nome do Imperador Ariano Suassuna.
A obra de Ariano Suassuna
“O assunto da obra esteia-se no mistério da decifração da morte de Sebastião Garcia-Barretto; afinal, é, aparentemente, por estar ligado a ela que o narrador se encontra preso e depondo num processo que constitui(rá) a narrativa. Essa morte é atribuída, pelo narrador, a motivos políticos que se relacionariam à sucessão do trono do Imperador do Brasil, da dinastia de João Ferreira, fanático que se proclamou rei do Brasil, em 1836, na comarca de Vila Bela.
No plano histórico, a década de 30 é marcada por confrontos políticos. Fundem-se o real e o imaginário, para surgimento da ficção, o que corresponde à proposta quadernesca de ajeitar o real para que possa ‘caber nas métricas da Poesia’.
Na verdade, a morte instaura apenas um enigma, gerador de um discurso sobre fatos mais relevantes: a genealogia de Quaderna, que lhe impõe um Destino, as atividades dessa personagem, o desaparecimento, no dia do crime, de Sinésio, filho de Sebastião Garcia-Barretto, e o posterior aparecimento do rapaz do cavalo branco.
Esse assunto apresenta características de epopéia: está em jogo o destino da Vila e, pela megalomania do narrador, o do Brasil; há a volta de um herói, tido por morto, depois responsável por grandes façanhas que incluem a vingança do pai assassinado e o estabelecimento de uma nova ordem (‘um reino de glória, justiça e paz’), condizente com os mais elevados destinos da Raça e da Nação brasileira, se amolda ao projeto de Quaderna.
(...)
O rapaz do cavalo branco e o próprio Quaderna são ‘assinalados’, isto é, devem cumprir um Destino como os heróis Ulisses, Enéias, Gama.”
(MICHELETTI, Guaraciaba. Na Confluência das Formas, ed.Clíper, 1997, p. 75-76)
“Para atingir seus objetivos, Quaderna, respaldando-se na sua tradição familiar, funda a religião Católica-Sertaneja, que toma de outras princípios básicos, refundindo-os, de acordo com seus propósitos.
Desta religião, essencialmente pragmática, nasce outra demanda: a política. As duas confundem-se no ‘rapaz do cavalo branco’, que se revela herdeiro do mito de D.Sebastião e da tradição cavaleiresca do Santo Graal. D.Sebastião é o casto guerreiro que, em seu cavalo branco, em Alcácer-Qibir, luta contra os mouros, me defesa dos ideais cristãos. Roberto do Diabo, depois pai de Ricarte da Normandia, um dos Doze Pares de França, purgou suas culpas, redimiu-se, quando montado em seu cavalo branco, que ‘era encantado’, livrou o reino de sua amada de um grande traidor. Ambos, mito e romance, partilham da crença de que os novos tempos são anunciados pela chegada do predestinado.”
(MICHELETTI, p. Cit., p. 66)
A PEDRA DO REINO
Publicado em 1970, A pedra do reino continua sendo considerado um romance completo, pois até hoje as duas outras partes da trilogia não vieram a público, pelo menos em edições comerciais. Em vista disso, a possibilidade de análise é um tanto precária, apesar de a obra oferecer, em suas mais de 600 páginas, matéria suficiente não apenas para ensaios como para livros inteiros.
De leitura um pouco árida na primeira centena de páginas, A pedra do reino, mesmo isolada da trilogia de que faz parte, é um verdadeiro monumento literário que se liga à cultura caboclo-sertaneja nordestina, muito marcada pelas tradições do mundo ibérico (Portugal e Espanha), trazidas pelos primeiros colonizadores europeus e transformadas ao longo dos séculos.
Em linhas gerais, A pedra do reino é a apresentação do memorial - obviamente em primeira pessoa - de D. Dinis Ferreira - Quaderna, que, preso em Taperoá, faz sua própria defesa perante o corregedor e, para tanto, conta a história de sua família, das desavenças, das lutas e das controvérsias políticas, literárias e filosóficas em que se vira envolvido. Como diz um crítico, na obra de Suassuna podem ser percebidas "duas distintas tradições a informarem a concepção de mundo do herói: a tradição mítico-sertaneja e a tradição erudita" (J. H. Weber). O que faz, como no caso de todas as demais obras da nova narrativa, com que A pedra do reino se diferencie claramente do romance brasileiro tradicional.
O Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-Volta foi publicado no Rio de Janeiro em agosto de 1971. Seu sucesso foi imediato e as reedições traduzem o interesse dos leitores (janeiro de 1972, agosto de 1972).
Resumir A Pedra do Reino seria, sem dúvida, destruir uma obra composta de idas e vindas, de momentos líricos e cômicos, de debates políticos e filosóficos, de múltiplas citações, alusões e referências históricas e literárias. Basta esboçar o argumento narrativo para se convencer da dificuldade da empreitada : Pedro Dinis Ferreira-Quaderna, poeta, humorista, memorialista e bibliotecário da Vila de Taperoá, no sertão da Paraíba, decide relatar os acontecimentos que o trouxeram onde se encontra no início do livro, ou seja na cadeia. Elabora assim um Memorial dirigido «aos magistrados e soldados, toda essa raça ilustre que tem o poder de julgar e prender os outros […] aos nobres Senhores e belas Damas de peitos brandos…» Após a evocação do fator determinante, isto é a chegada do Donzel Branco, seu primo, Sinesio o Alumioso, e o assassinado do tio de Quaderna, éste conta a história de sua família, ligada à proclamação de um reino, estabelecido sobre duas pedras «encantadas», situadas no Alto Sertão de Pernambuco. Descreve seu itinerário pessoal e até íntimo : sua infância, sua formação poética com um cantador, a descoberta do passado da família e do mundo da cavalaria, a tomada de consciência de herdeiro do reino, a longa viagem iniciática que lhe permite reencontrar este passado, seus mestres e os problemas filosóficos, literários e políticos que os ocupam, o espírito aventureiro que leva Quaderna a organizar a sua reconquista do Reino Perdido e lhe permitirá talvez, um dia, revelar a verdade sobre a morte rocambolesca do seu tio. A chegada do Rapaz do Cavalo Branco, misterioso e perigoso, será o início da grande aventura de Quaderna, sua "Demanda do Graal" : demanda da identidade do rapaz, busca da verdade, procura de um tesouro perdido mas, antes de mais nada, espera e procura da Revelação, do «Sacramento» que o tornará Imperador do Sertão e Gênio da Raça. A aventura de fato não começou : o romance inteiro não é senão preparação à aventura, relato mesclado de muitas histórias ou anedotas ligadas, direta ou indiretamente, à narrativa principal.
1. Uma Pedra movediça ou a constelação de variantes
Se o Auto da Compadecida foi imediatamente traduzido e representado em várias línguas no mundo inteiro, A Pedra do Reino, apesar do entusiasmo que desperta em críticos e leitores, assustou os editores estrangeiros pelas suas dimensões (625 páginas) tanto quanto pelo seu mundo denso de referências culturais brasileiras, eruditas e populares. As editoras alemãs tomaram a frente : a edição, em dois volumes reunidos numa caixinha, teve um formato semi-bolso, uma diagramação atraente e uma capa original.
Os editores franceses reagiram positivamente à leitura do romance mas pretenderam aplicar uma regra então quase generalizada para as obras volumosas de autores estrangeiros pouco conhecidos : a redução do volume por amputação de uma ou várias partes. Jorge Amado já tinha sido vítima deste procedimento e sua Tereza Batista só foi editada na sua integridade textual nos anos 90 : na primeira edição francesa, faltavam o primeiro e o último capítulos o que resultava num considerável empobrecimento do significado da obra.
1.1. Informado, Ariano Suassuna começou recusando mas reavaliou posteriormente a sua posição e entregou (à sua tradutora), em 1976, uma primeira tentativa de redução textual, uma variante do primeiro livro do Romance d’A Pedra do Reino, intitulada A Pedra do Reino, versão para Franceses e outros estrangeiros sensatos. Mas as negociações de edição foram suspensas e a reescritura parou neste ponto. Esta primeira versão reduzida foi vertida para o francês e figura, com autorização do autor, em anexo da minha tese de Doutoramento em Letras, na Universidade de Paris III , juntamente com poemas e textos de outros autores, membros do Movimento Armorial. Esta «Antologia Armorial» não saiu, até o presente momento, das páginas da tese.
Contudo, o trabalho de redução assim iniciado não restringiu somente o volume global de palavras por capítulo como atingiu aos poucos a própria estrutura do romance, obrigando o autor a uma re-visão de sua obra. Deste modo, Suassuna elabora uma variante que não se destina mais exclusivamente à tradução. A redução do texto implica corte de parte do volume inicial, as duas primeiras partes que relatam a infância e a formação literária do narrador-protagonista, Quaderna. Por outro lado, são suprimidas varias citações e alusões diretas ou indiretas a obras literárias, em particular a folhetos, cantigas ou quadras populares.
1.2. Quaderna, o Decifrador (tapuscrito com correções manuais, datado de 1978) reduziu-se de fato a um primeiro livro, A Pedra do Reino ou a Quarta-feira de Trevas. A matéria narrativa continua distribuída em partes, intituladas «Canto» e não «Livro» como na edição de 1971. Estas três partes são :
Canto I – Os Três Irmãos Sertanejos nas teias da sorte cega
Canto II – Os Gaviões Cegadores
Canto III – A Demanda do Sangral
Apesar da transformação do intitulado do segundo canto, podemos encontrar no conteúdo narrativo do livro bem como no intitulado dos «folhetos» ou capítulos, uma exata correspondência com o conteúdo dos Livros III, IV e V da versão editada em 1976.
Suassuna acaba por redistribuir os elementos de sua trilogia : este primeiro volume de Quaderna o Decifrador, A Pedra do Reino ou a Quarta-feira de Trevas, deveria ser seguido por um segundo volume, provavelmente intitulado As infâncias de Quaderna, que retomaria a matéria narrativa dos dois primeiros livros da edição de 1971, parte da História d’O Rei Degolado nas Catingas do Sertão, além dos folhetos publicados sob este título em forma de folhetins semanais no Diário de Pernambuco, de 2 de maio 1976 a 19 de junho de 1977.
Sem prazo para concluir estas transformações do segundo e do terceiro volume, Suassuna prefere manter inédita a nova versão para reeditar os três volumes de uma só vez ou com poucos mêses de distância. Contudo, em curto artigo, datado de 9 de agosto de 1981 e publicado no Diário de Pernambuco, Ariano Suassuna comunica a sua retirada da vida pública e da literatura. O aparente, e tão apressadamente comentado, fracasso do seu engajamento cultural [no Movimento Armorial] juntou-se às dúvidas e questionamentos de um escritor e de um homem que se declarou sempre «perturbado por sonhos, químeras e visões até utópicas da vida e do real».
1.3. Em 1994, antevendo a possibilidade concreta de traduzir A Pedra do Reino e tendo encontrado um editor francês decidido a publicá-la, submeti a proposta a Ariano. A aceitação foi seguida, dois mêses mais tarde, pela remessa de um tapuscrito intitulado A Pedra do Reino, versão para Europeus e Brasileiros sensatos. O título era evidentemente adaptado da primeira versão reduzida e destinada à tradução (a de 1976), contudo Ariano, ao incluir os «Brasileiros» entre os destinatários desta nova obra, manifestou claramente o caráter definitivo desta nova estrutura narrativa e que será algum dia publicada em português. Esta versão retoma o texto de Quaderna, o Decifrador, com muitas correções manuscritas, algumas supressões e alguns acréscimos4, e mantém a mesma estrutura em folhetos (capítulos) de mesmo título, suprimindo contudo a divisão em partes ou «cantos» da versão de 1978. Os folhetos apresentam-se portanto uns após os outros sem qualquer separação ou forma de estruturação.
Este livro, traduzido por mim, foi publicado pelas Editions Anne-Marie Métailié em fevereiro de 1998, poucos dias antes da realização do Salão do Livro de Paris, cujo convidado de honra era, naquele ano, o Brasil. A edição foi primorosa e reproduziu na capa uma xilogravura colorida de Gilvan Samico, intitulada «Alexandrino e o Pássaro de Fogo», escolhida pela editora entre as muitas sugestões apresentadas, sem saber que esta gravura tinha sido preferida por Ariano Suassuna para ilustrar a capa do primeiro disco LP do Quinteto Armorial (capa conservada na edição em CD).
Dispomos portanto de quatro textos distintos d’A Pedra do Reino :
A. O Romance d’A Pedra do Reino, de 1971, editado pela José Olympio, só se encontra hoje nos sebos e saiu há muito tempo do catálogo da editora. Desconfio que esta situação de «quase desaparecimento» seja aceita com certa satisfação pelo autor que deixa se criar um hiato antes da publicação da nova versão;
B. A Pedra do Reino, versão para Franceses e outros estrangeiros sensatos, de 1976, ensaio de redução do primeiro livro (ou parte) que foi interrompido. Foi traduzido para o francês e tornado público como anexo de uma tese (ou seja está inédito para o grande público!);
C. Quaderna, o Decifrador : Livro I – A Pedra do Reino ou a Quarta-feira de Trevas, de 1978, versão completa e inédita em português ;
D. A Pedra do Reino, versão para Europeus e Brasileiros sensatos, de 1994, versão corrigida do texto anterior, inédita em português e publicada em francês em tradução minha, com o título de La Pierre du Royaume, version pour Européens et Brésiliens de bon sens.
Eis o estado da questão em matéria textual : a Pedra do Reino continuará sem dúvida alguma a se mexer e esperamos que chegue a uma edição completa e satisfatória.
2. O processo de tradução de La Pierre du Royaume
Existem dois tipos de tradutores : os que traduzem por amor à língua e os que traduzem por amor a uma obra literária. Não considero evidentemente aqueles que traduzem por apego ao dinheiro porque geralmente desistem logo de ser tradutores! Na França, tradutor tem estatuto, tem tarifa sindical, tem associação representativa. Tradutor de português tem principalmente dificuldades para encontrar um editor que queira publicar obras da literatura portuguesa ou brasileira.
Eu me situo objetivamente entre os tradutores que traduzem por amor a uma obra literária : descobriram um autor ou um livro e querem fazer compartilhar aos seus compatriotas – que não têm a sorte de poder ler no original – o prazer desta leitura. A minha leitura d’A Pedra do Reino foi apaixonada e apaixonante. A tradução do livro tornou-se portanto um objetivo. Durante anos, andei nas editoras parisienses em cada viagem à França, deixava o livro, umas páginas traduzidas e esperava o diagnóstico. Ele sempre foi o mesmo : a obra era magnífica, a tradução de qualidade mas… e no «mas» entrava segundo os anos e as editoras : a crise da edição francesa, a falta de interesse para a literatura estrangeira, o tamanho do livro, o custo da tradução, a situação financeira da referida editora etc.
Em 1994, a França lia e a-do-ra-va um escritor brasileiro, que fazia um sucesso inacreditável e vendia até cinco edições paralelas de um mesmo livro. Precisa dizer o nome ? Pois era mesmo aquele que vocês imaginam : Paulo Coelho. Esta situação me deu força para ir à luta novamente. Resolvi procurar desta vez uma pequena casa editorial que tinha 15 anos de existência e um invejável catálogo de autores brasileiros : Machado de Assis, Euclydes da Cunha, Guimarães Rosa, Cornélio Penna e Raquel de Queiroz figuravam, entre outros, na sua «Biblioteca brasileira». Não precisei de nenhum esforço para convencer Anne-Marie Métailié da importância da Pedra do Reino : mencionei a Versão para Franceses e outros estrangeiros sensatos de 1976 e o Quaderna, o Decifrador, de 1978. Poucos mêses depois, o contrato estava assinado e Ariano me mandava a versão definitiva, corrigida e transformada em Versão para Europeus e Brasileiros sensatos.
O meu trabalho de tradução, correção, releitura e recorreção durou 3 anos, sem exclusiva, claro, porque tradutor, na França como em qualquer parte do mundo, dificilmente vive graças a suas traduções.
Eu pensava conhecer o livro : afinal tinha lido inúmeras vezes, consultado, anotado, fichado, tinha escrito uma dissertação de mestrado sobre A Pedra do Reino como novela de cavalaria e uma tese de doutorado sobre o Movimento Armorial em que a obra figurava e era analisada pormenorizadamente. Tinha feito comunicações, conferências, debates mas nunca havia experimentado esta relação íntima com o texto, este pisar no rasto do autor, este passar pelas próprias palavras as emoções, as dúvidas, as alegrias. A tradução me revelou dimensões da obra que a crítica e a análise não podiam alcançar mas, em compensação, sem este trabalho anterior de longos anos de pesquisa e aprofundamento não somente deste livro senão da obra completa de Suassuna e dos integrantes do Movimento Armorial, nunca teria ousado enfrentar tamanho desafio.
A Pedra do Reino é um livro oral, ele é dito, contado, por um narrador falante e mentiroso, que envolve o seu leitor em conversas, relatos e discursos brilhantes interrompidos por crises de sinceridade ou de medo. Eu traduzi este livro falando em voz alta, frente ao meu computador; revisava teatralizando e muitas vezes preferi tal palavra a tal outra simplesmente porque soava melhor. Esta busca do tom, do som, da justeza da conversa me levou freqüentemente a simplificar as formas verbais porque o subjuntivo, por exemplo, não tem o mesmo valor nem a mesma significação social em português e em francês.
Além da dimensão oral, A Pedra do Reino é um livro visual, com ilustrações reproduzidas na edição de 1971 em página inteira ou integrada no texto. Para a edição francesa, Ariano Suassuna retrabalhou seus desenhos a modo de vinhetas situadas na abertura de cada folheto, lembrando as iluminuras e iniciais ricamente ornamentadas dos manuscritos antigos. O efeito é surpreendente e belíssimo.
O léxico apresenta-se sempre como a dificuldade mais visível de uma tradução. A pesquisa lexicográfica representa sem dúvida uma parte importante do trabalho : alguns termos de geografia, culinária ou história foram mantidos no texto, sem nota quando se tratavam de termos já dicionarizados, como caatinga ou sertão, ou com nota de rodapé, retomados num glossário no final do livro, quando muito específicos como foi o caso de certas manifestações folclóricas ou plantas.
Por outro lado, o respeito do texto obriga a desconfiar do peso adquirido por certos termos na língua-meta : um dos meus leitores (foram vários) criticou minha tradução, aparentemente preguiçosa, de «um Negro meio sangue de Índio-Tapuia» (un Noir demi-sang d’Indien-Tapuia) e sugeriu «um Nègre métis d’Indien-Tapuia». Desprezando este «meio-sangue» que, em português como em francês, refere-se à mistura de sangue da raça eqüina, ignorou a paixão do narrador Quaderna pelos cavalos : as comparações entre homens e cavalos são freqüentes no romance e sempre positivas enquanto o termo «mestiço» conserva, em ambas as línguas, uma carga semântica negativa.
Outro objeto de debate, o nome do Estado, a Paraíba. A prática habitual dos geógrafos consistiria em traduzí-la por «la province du Paraïba», termo que me pareceu de imediato muito estreito para designar o que, para o narrador, representa um verdadeiro país e até o centro do Império do Sertão, seu território mítico. A estrutura federal do Brasil impõe, por outro lado, de não assimilar um Estado a uma simples província, que se define em relação a um centro, numa perspectiva centralizadora e jacobina inaceitável no Brasil. O Estado da Paraíba apresenta-se nesta obra como um país designado no feminino em razão do seu final em –a. Escrever-se-á portanto la Paraïba como se escreve la Louisiane ou la Californie. Le Paraïba, no entanto, continuou designando o rio Paraíba e Paraïba, «tout court», foi reservado à capital do Estado que mudou de nome em 1930 para escolher o nome do seu Presidente assassinado, João Pessoa.
La Pierre du Royaume, version pour Européens et Brésiliens de bon sens não obedece, portanto, a critérios acadêmicos : os famosos exercícios de aprendizagem de língua estrangeira, latim ou grego, version ou thème, que a universidade francesa continua valorizando ao extremo, para as línguas vivas tanto quanto para as mortas. Todos os anos, por ocasião da preparação dos concursos que dão acesso à carreira docente (Capes e Agrégation) as traduções das obras inscritas ao programa são analisadas, dissecadas e geralmente condenadas por professores universitários que perseguem o «faux-sens», o «contre-sens», o «solécisme» ou qualquer um destes graves pecados da vida docente. E propõem textos impecáveis, conservando todos os modos e pretéritos perfeitos e imperfeitos, mas geralmente textos mortos, destruídos pelas marteladas conjugadas da erudição e da gramática. Não estou defendendo o erro e muito menos a aproximação ou a falta de rigor mas, como no teatro, a tradução deve se tornar de algum modo interpretação para conseguir atingir a verossimilhança discursiva e a poética.
Assim, me atrevo a concluir esta reflexão com a ajuda de Samuel, personagem de A Pedra do Reino :
«[…] quando um Poeta brasileiro ou português traduz uma obra estrangeira, para mim, o original fica sendo o trabalho dele. Sou nacionalista, e, podendo, pilho os estrangeiros o mais que posso! Para mim, Manoel Odorico Mendes é o autor dos originais da Ilíada e da Eneida brasileira : Homero e Virgílio são, apenas, os tradutores gregos e latinos dessas obras dele! Castilho é o autor do Fausto e do Dom Quixote, assim como José Pedro Xavier Pinheiro é o verdadeiro autor da Divina Comédia que Dante traduziu para o italiano!»
Posso portanto com tranquilidade e orgulho assinar este texto :
Idelette Muzart Fonseca dos Santos
autora de La Pierre du Royaume,
Version pour Européens et Brésiliens de bon sens,
obra traduzida para o português por Ariano Suassuna.
Fontes:
http://educaterra.terra.com.br/literatura/litcont/litcont_6.htm)
http://www.geocities.com/ail_br/lapierreduroyaume.html)