sábado, 6 de abril de 2013

Helena Parente Cunha (O Pai)

Aquele cansaço de existir, aquela gosma impregnando os ossos, os músculos, os tecidos, o sangue estagnado sob a pele desbotada, nem mesmo um gesto a se estender no ar, ela parada na porta, nem indo nem vindo, só ali, não se mexendo, há quanto tempo a última alegria? o último sorriso? cansaço, esforço inútil de respirar, gosma grudando o ar e a parca luz do quarto fechado, cada um na sua bolha fofa e fria, frágil fio por partir num sopro.

O pai parado na porta entre o quarto e agora. Por que você chegou tarde? Onde já se viu moça de família na rua a estas horas? Você sabe que horas são? Há anos são dez horas da noite, nunca mais amanheceu. Quem é aquele vagabundo que estava com você na saída da escola? A manhã inteira esfregando a saia de flanela azul pregueada no banco, o quadrado da hipotenusa é igual à soma do quadrado dos catetos, no universo nada se perde, tudo se transforma. Tudo se transforma em quê? Quem é aquele sacana que estava com você na saída da escola? A escola, sempre a escola. Professora ou aluna, sempre a escola. Diante da turma, que vontade de mandar todos os alunos para aquele lugar, que horror, de que adianta ensinar o teorema de Pitágoras? as meninas esfregando nos bancos as calças blue jeans, o que é cateto? já pensou, o quadrado do cacete?

O pai parado na porta, entre o triângulo e a buzina do carro. Quem é aquele desgraçado que lhe deu carona? São dez horas da noite no universo inteiro e tudo se transforma em triângulos exatos. Quem é aquele... Pelo amor de Deus, pai, eu tenho quarenta anos, até quando você vai pedir satisfações de minha vida? Desculpe, pai, papaizinho, eu rasguei meu vestido brincando no quintal, desculpe.

O pai parado na porta, entre a boneca e a tarde. Quem é aquele menino que estava correndo na rua atrás de você? Você não sabe que é feio menina brincar com menino? E o muro? Você não sabe que menina não sobe em muro? Desculpe, papai, eu só queria ver o que havia do outro lado. Do outro lado do muro havia o havia. As meninas se encontravam com os meninos atrás do muro. Mas papai, eu quero tanto ir ao aniversário de Teresinha, não tem nada demais, eu já estudei, já fiz todos os deveres, estou cansada. Cansaço gosmento na cabeça, nos olhos inchados.

O pai parado na porta, entre o barulho dos ônibus e o tapa. Quem é aquele rapaz que estava conversando com você na esquina? Não tem nada de quinze anos nem nada, sua mãe nunca conversou comigo sozinha antes do casamento. Mas papai, a gente não mora na roça.

O pai parado na porta, entre o caixão que saía e o retrato da mãe vestida de noiva, o retrato pendurado na parede. De agora em diante, minha filha, você tem que tomar conta de seu pai, fazer companhia a ele, seja uma boa filha. Namorar? Quem é aquele miserável que quer desgraçar a sua vida? Você não tem pena de seu pai? Você sabe que horas são? Onde já se viu escola terminar a esta hora? Que reunião que nada. A escola, sempre a escola. Os ângulos de um triângulo somam 180°. Por quê? Nunca, mas nunca mesmo poderá mudar? Esta soma será eternamente mesma num universo onde nada se perde e tudo se transforma? Nada se perde, nem os dias nem os anos nem as horas, nada se perde, mas tudo se transforma num monturo de lembranças rançosas de tudo que não pôde ser no baile de formatura. Professora, sim, senhora, parabéns. A parentada toda despejou-se do interior, aqueles parentes tabaréus, as mulheres com o rosto todo caiado de pó de arroz, os homens com as cabeças engorduradas de brilhantina, todos atarantados junto dela, que vergonha, as tias e as primas enfiadas nos vestidos de tafetá chamalotado, cheios de franzidos, sem saberem se seguravam as bolsas ou os chapéus de palha enfeitados de flores as mais indefectíveis, ah que vergonha, os ternos desajeitados de casimira listrada dos tios e dos primos amarrados às gravatas de cores desgovernadas, sim senhora, parabéns, professora, a primeira aluna de toda a faculdade, vejam só, ela estudou na faculdade, pena que a mãe não esteja mais na terra pra ver, coitada.

Em todo o correr dos anos, tudo se transforma. Pitágoras, não, nem se perde nem se transforma, irredutível na sua exatidão geométrica, os alunos se transformam, os alunos esfregando os bancos, as calças cáqui de brim, os blue jeans, você é menino ou menina?

O pai paradíssimo na porta, entre um ano e outro ano. Quem é aquele veado que estava com você no ponto de ônibus? Ah! é uma amiga, este mundo está perdido e você ainda reclama porque eu me preocupo com você. Hoje nós vamos ao cinema juntos. Hoje nós vamos ao aniversário de sua tia. Por que você quer sair sozinha? Filha ingrata, eu faço tudo para lhe distrair e você fica aí toda emburrada. Domingo que vem nós vamos passar o dia em Itaparica na casa de seu padrinho (mas papai) você não quer ir por quê? Você tem que espairecer.

O pai parado na porta, entre um anúncio e um comprimido. Ainda bem que você chegou cedo, vamos ver a novela das oito na televisão. É boa esta novela, eu gosto muito de novela, você precisa ver novela, distrai muito. Sim papai, de agora em diante, eu vou ver todas as novelas, a das seis a das sete a das oito a das dez, tem das onze? Não, é bom que não tenha porque a gente dorme cedo, você tem que acordar cedo para ir à aula. Por que você quer fazer curso de pós-graduação? Pra quê? Bobagem, minha filha, você já estudou muito, trabalha muito, já não é criança, de noite precisa descansar. Sim, o cansaço, tanto cansaço, torpor guardando os membros e os pés no chão, não quero sair não, papai, vamos ver televisão.

O pai parado na porta, entre a bengala e o catarro. Quem é aquele velho sem-vergonha que saiu com você da escola? Será possível que você não sabe o que os outros vão pensar? Mas papai.

O pai parado na porta, atravessado entre a hora de sair e a hora de nunca mais. Papai?

Cansaço. Cansaço de existir. Ela parada na porta, entre ficar e não sair, o corpo colado numa gosma nem fria nem quente, um amarrado nos ossos, um grude se enfiando pelos poros, alguém tocou a campainha? Ninguém entra ninguém sai, o teorema de Pitágoras demonstrando para sempre até as mais densas profundezas do cansaço essencial. O quadrado do sim é igual à soma dos quadrados de todos os nãos incendiados na medula. Cansaço de viver e não viver. Nada se perde nada se ganha. O universo inteiro transformado num atoleiro bolorento de esquecimentos do que nunca aconteceu em nenhum dia, em nenhuma hora, atrás do muro da escola, onde houve um menino e uma menina.

Fonte:
CUNHA, Helena Parente. Os provisórios. RJ: Antares, 1990

Ditados Populares do Brasil (Letra R, S)

Recordar é Viver
R

Rapadura é doce, mas não é mole não
Recordando, sofro mais.
Rezei 1/3 para conseguir ½ para te levar a ¼.
Rico acompanha procissão, o pobre persegue o santo.
Rosa reza, Mercedes Benze.
Recordar é viver
Rei morto, rei posto
Soutien e caminhão velho, só usa quem tem peito.
Rei tem que ter coroa
Religião, Cor e Politica, não se discute
Relógio é que trabalha de graça.
Remar contra a maré.
Respeito é bom e eu gosto.
Ri melhor quem ri por último
Ri melhor quem ri por último.
Rico bebe pra comemorar, o pobre pra não chorar.
Rico ri à toa.
Rio só corre para o mar.
Rir é o melhor remédio
Roupa suja se lava em casa
Ruim com ele, pior sem ele.

S
Saber de cor e salteado.
Sabida de mais pro meu gosto.
Saco de gatos.
Saco vazio não para em pé
Sacrifique o presente em proveito do futuro.
Saudade é a memória do coração.
Saudade é a presença dos ausentes.
Saudade é companheira de quem não tem companhia.
Se alguém perguntar por mim, diga que sou feliz.
Se amar é pecado, não tenho perdão.
Se amar é crime me processe.
Se amor fosse água, meu peito era uma cascata.
Se casamento fosse bom, a polícia não obrigava.
Se casamento fosse estrada, eu andava no acostamento.
Se casamento fosse negócio, mulher vivia em prateleira.
Se casar for doença, morro de saúde.
Se chifre fosse flor, minha cabeça seria um jardim.
Se é coisa que eu não mais te veja, seja por morte tua.
Se é valente, bata pela frente.
Se eu fosse rico, comprava teu orgulho.
Se for mulher ainda cabe.
Se grito resolvesse, porco não morria.
Seja menos devota e mais religiosa.
Se me enganas uma vez, não tens vergonha; se me enganas duas vezes, o sem vergonha sou eu.
Se mulher fosse chuva, eu preferia uma goteira na minha cama.
Sem mulher toda casa fica vazia.
Se não houvesse distância, não havia saudade.
Se o mundo não tivesse suspiro, o povo morria afogado.
Se o orgulho dominar o mundo, serei teu escravo.
Se quer ser feliz por um minuto, vinga-te. Se quer ser feliz por toda a vida, perdoa.
Se pressa chama a morte, sei que não morro nunca.
Se você dormir dirigindo, os seus parentes serão acordados.
Se você não é o que parece, pareça o que é.
Se um dia a vida lhe der as costas, passe a mão na bunda dela.
Segredo em mulher é leite em boca de gato.
Segredo em mulher é pão em boca de pobre.
Segredo entre três, só matando dois.
Sei que tudo é nada.
Ser velho não é o caso; o que importa é ser gostoso.
Serviço fiado afrouxa o carro e aperta o dono.
Só não bebe é sino porque tem a boca pra baixo.
Só não bebe é sino, mas vive dizendo: não me dão… não me dão…
Só pena é que voa.
Sogra é como vento encanado: faz mal a todo mundo.
Sorrindo na reta, chorando na rampa.
Só vale no mundo quem tem muito fundo.
Sou bandoleiro, mas não temo a seta do teu coração.
Sou bem casado, não tenho sogra nem cunhada.
Sou casado com Ana, mas vivo com Mercedes.
Sou cativo do agrado.
Sou de casamento, mas agora é cedo.
Sou fan das louras, mas prefiro as morenas.
Sou louco pelas meninas… dos teus olhos.
Sou velho, mas não renuncio.
Sair da brasa e cair na labareda.
Saltar fogueira.
Salve-se quem puder.
Santo de casa não faz milagre
Santo de casa não faz milagres.
Sapo de fora não chia
Se a jabuticaba é pouca, a gente engole o caroço.
Se barba fosse respeito, bode não tinha chifre.
Se bem o disse, melhor o fez.
Se cochilar, o cachimbo cai.
Se conselho fosse bom mesmo, ninguem dava de graça
Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come.
Se este mundo fosse bom, o dono morava nele.
Se Maomé não vai até a montanha, a montanha vai até Maomé
Se os "ses" fossem feijões ninguem morria de fome
Se valesse gritaria, porco nunca morria.
Segredo de três, só matando dois.
Segurar a barra.
Segure o touro nos chifres e o homem na palavra.
Sem eira nem beira, nem folha de parreira.
Semear ao vento.
Sempre existe um chinelo velho para um pé torto
Sempre se espera pela pior figura
Sentir-se como peixe fora dágua
Ser mãe é padecer no paraiso
Ser marinheiro de primeira viagem.
Ser senhor de seu nariz.
Só se atira pedra em árvores que dão frutos.
Sol e chuva casamento de viuva
Subir pelas paredes.

quarta-feira, 3 de abril de 2013

Oliver Friggieri (Poesias Sem Fronteiras: Malta)

poesias traduzidas do maltês ao espanol por Alfredo Cauchi e traduzidas do espanhol para o português por José Feldman
SOMOS ÁGUA VIVA

Nossa história deve terminar algum dia
Como água do manancial que ao remanso chega
Ou pedra que rola até deter-se,
Como um pêndulo de relógio que ao fim se imobiliza.
Cada dia ao anoitecer, em nossas casas
Quando nossos filhos perguntam o que está passando
Trocamos de tema ao não ter resposta
E cantamos o estranho hino de nossa idade:

“Somos água viva e nada a bebe
Porque nas ondas se encontra o sal da destruição.
Somos pedras eliminadas dos altares
De Deuses enfermos que iam mortos desesperados
Em uma luta contra eles mesmos. Pêndulo somos
Que está a ponto de gastar o seu vigor.”

SERÁ CASUALIDADE ?

Seguro que te ocultas em alguma parte, Senhor.
Te busquei em minha velha rua, mas disseram
Que pouco antes retornaste a esquina.
Me despertei ao amanhecer e te persegui ao ar livre
E à luz do dia, até que me perdi
Em um beco sem saída, e se fez de noite.
Te esperei em cada cidade que me disseste
Na solidão de meu quarto, e me disseram
Que te vieram chamar à porta
Dos vizinhos rancorosos.

Será casualidade que até agora jamais
Nos encontramos, ou te esqueceste, Senhor, do número
de minha porta e do nome raro de minhas senhas?
Se vens, por favor, chega antes do anoitecer,
Porque de noite me fecho bem com chave na casa
E me assusta abrir.

* * * * *

TEU OLHAR PURPÚREO CANTA

E talvez teu olhar mirada tulipa desaparece
Das paredes desta habitação vazia,
E talvez se cobrem apenas com areia
Teus olhos, mar tranquilo, teus olhos a onda
Que de memória conhece minha poesia,
Sino no velho campanário, fala-me,
Cada sílaba que conhece este campo negro,
Estas rochas torcidas, e nesta hora,
Sim, se hão detido os ponteiros do relógio
E o coração não palpita, compreende este silencio
E caminha descalço comigo, a ferrovia
Nos antecede, é um trem solitário,
E nos recebe a cidade, muda a multidão,
Os rostos espantados e teu olhar purpúreo canta
As canções deste Canal, a melodia,
Desafinada melodia nesta hora,
E amanhã igualmente amanhecerá, segue a viagem
Porque teu olhar, tulipa, cedo se desperta,
E cedo dirige seu canto até este planeta
Testemunho de outro sol inútil que havia se levantado
E outro cigarro daqueles se havia desgastado
Porque doce é a tulipa, esta enfermidade.

* * * * *

A NOVA ESTAÇÃO AGORA ÉS TU

A nova estação agora és tu, pomba,
Que ontem comes-te de minha mão, solitária,
Como o sol que sobre mim desliza e geme sobre ti,
Furtivamente fala-me neste silêncio
de uma mente usada que se abriu em catacumbas
Diante tu e para que caminhes descalça - entra.
Agora és um piano calado e em ti há
A melodia purpúrea que escreverá
Com as notas que tu me prometeste.  Uma poesia,
Agora tu és minha grande poesia,
As palavras que se encontram em um dicionário
E os ritmos choram, as sílabas gaguejam
Porque tu, muda és, nova solidão.
Ó, andorinha que bebes dos charcos
E conta os anéis que me agrada desenhar
Todas as tardes com o arremesso de uma pedra,
Filha das almas caladas, tú só as folheias
E lês os tristes livros do poeta.

* * * * *

UMA ESTROFE SEM TITULO

Dá-me as palavras de teus olhos, a noite escreve
Uma estrofe purpúrea sobre teu bonito rosto,
Brilha o orvalho, tuas bochechas um branco universo
De onde nada dá um passo descalço sem dor,
Toca estas mãos e sente o despedaçado coração
E nota o sangue quente, o pranto solene.
Pomba, não voes distante  come de minhas mãos,
Este é o grão que não mata, água pura.
Monótono o sino que dá a hora
Para que te vás desta janela entreaberta
Por mim para ti, monótono o suspiro
Gravado como ilusão que vem e vai.
Não voes distante, e diga comigo esta oração:
“Há raios de luz de lanterna enfocados em mim,
Há uma humilde estrela que brilha só para mim,
Há uma flor selvagem que se abre em meu peito,
Há uma chama de vela vacilante só para mim.”

* * * * *
AGORA PISOTEIAS

Talvez eu seja o tapete que pisoteias
Cada vez que caminhas descalça, pisoteias agora
Minha brandura, mulher dos tanques,
Reconheço teus pés úmidos, e mantenho
Em mim a pegada pesada de cada dedo de teus pés
Talvez seja um novo calendário, o ano
Com horas e meses sem estações desordenadas
Um arco-íris sem cores em teus braços abertos
Sobre um universo que pela última vez obscurece,
Este universo jamais voltará a despertar-se
para ver um sol que caprichoso se levanta
sobre uma multidão adormecida, caminha descalça sobre mim
E teus pés sentem logo minha brandura,
As noites todas para ti e uma vela vacilante
No suporte de uma janela entreaberta da esquina
De onde segue vigiando o farol de ontem
Te vá a esperar, teus passos caem
Na argila deste coração, o nicho vazio
Que todavia espera a um santo que não chega
E todavia quer adiante um ramo de flores.
E talvez quando eu caia, uma uva seca
De uma velha parreira, chorará por mim
E com atraso escreverás esta obscura elegia
Cuja métrica e ritmos não são tal como desejava.

Esta não é uma tristeza nova, pisoteias
A cidade caída de onde morreram as sementes
E a última planta se enterrou na lava
deste vulcão que dormiu para despertar-se
Alguma vez no silêncio, talvez depois a pegada
De teu pé descalço viverá depois de mim,
O suicídio é só para adultos, basta
Para mim uma morte tranquila no meio de uma noite
Solene, porque solene é tua pegada
E assim morrem os jovens como eles sabem,
Desastres de uma estação que desaparece como veio
Porque talvez eu seja um tapete que pisoteias.

* * * * *
   
O AMOR

O amor: um par de olhos que em ti descansam,
uns lábios que bocejam esperando tua resposta,
umas bochechas que se coram ao pedir-te uma carícia,
uma boca calada que te urge abri-la completamente.
O amor: uma mulher, dela procede o universo
E quando morrer, será o fim do mundo.

                                    * * * * *                   
       
MANHÃ PARA TI
Manhã, vou e comigo levo
Um jarro de água para apagar tua sede.
Manhã, vou ao jardim e recolho
O mais bonito ramo de flores para ti.

Manhã, dou uma volta por minha parreira
E te corto todos os cachos.
Manhã, arranco o coração de meu peito
E te presenteio.  Manhã, eu me morro.
   
    * * * * *   
       
AH, TALVEZ!

Ah, talvez! Sou um romântico que nasceu
Para viver desejando um século que não me pertence.
Ah, talvez! Não sou mais que outra pessoa
Que debaixo da pele derrama sangue e agua.
Ah, talvez! Sou um aluno sempre suspendido,
O último passageiro em um avião já lotado,
Um número de mais no resultado de uma soma,
Talvez um erro, uma brincadeira, ou talvez
Uma luz que pisca em uma igreja deserta
onde Deus não escuta e ninguém reza.
Ah, talvez! Este não é meu mundo
Porque ninguém me conhece e eu a ninguém conheço,
Tenho perdido o caminho e devo voltar a começar.
* * * * *
Fonte:
Colaboração do Prof. Dr. Thomas Bonnici
(Maringá/PR)

Adelto Gonçalves (O Verso Livre de Joaquim Pessoa)

VOU-ME EMBORA DE MIM, de Joaquim Pessoa, edição russo-portuguesa, com posfácio de Vadim Kopyl, apresentação de Maria Lúcia Lepecki e tradução de Vadim Kopyl, Andrei Rodosski e Veronica Kapustina. São Petersburgo: Centro Lusófono Camões da Universidade Estatal Pedagógica Hertzen e Alexandria Publishing & Humanities Agency, 2007, 256 págs.I

Vou-me embora de mim é uma condensação dos principais livros do poeta português Joaquim Pessoa (1948) preparada pelo filólogo Vadim Kopyl, doutor em Filologia Românica e diretor do Centro Lusófono Camões da Universidade Estatal Pedagógica Hertzen, de São Petersburgo, e publicada em edição russo-portuguesa pela Alexandria Publishing &Humanities Agency daquela cidade que é a capital cultural da Rússia. A tradução dos poemas coube a não só a Vadim Kopyl como a Andrei Rodosski e Veronica Kapustina.

Ainda que Joaquim Pessoa seja cultor do verso livre, estilo pouco comum na terra de grandes poetas como Pushkin (1799-1837), Kopyl tem certeza de que a poesia que emana dos seus textos saberá tocar na alma do leitor russo. Até porque a poesia é a linguagem universal do sentimento. E, especialmente, a de Joaquim Pessoa está carregada da palavra lírica na sua mais pura natureza, como garante a professora brasileira Maria Lúcia Lepecki, há muitos anos radicada em Portugal, mais especificamente na Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa, responsável pela apresentação do livro.

II

Poeta, tradutor e artista plástico largamente premiado em seu país, Joaquim Pessoa traz nas veias o percurso da maioria dos intelectuais que começam agora a trilhar a faixa dos sessenta anos: saiu da rebeldia juvenil e dos sonhos da esquerda que idealizavam um mundo mais justo para a sóbria reflexão de que o mundo não depende de nossa vontade e dos nossos sonhos, à qual só se chega depois de levar bastante “porrada” na vida, como diria o outro Pessoa, o Fernando (1888-1935).

Depois de uma fase em que produziu versos ou poemas em prosa – linhas curtas e longas, reunidas em forma livre – extremamente politizados, que refletem os anos da viragem do fascismo salazarento para a festa do 25 de Abril – que, diga-se de passagem, logo se acomodou aos interesses dos mais endinheirados, como sempre –, Joaquim Pessoa passou a olhar a vida com menos expectativa de mudanças, passando a produzir uma poesia mais reflexiva e menos intempestiva. São daquela época de inflamação juvenil livros como Poemas de Perfil (1974-75) e Poemas da Resistência e Canções de Ex-cravo e Malviver (1978), cujo título bem explica a preferência do autor por palavras e sentidos dúbios e criativos que guardam significados implícitos dentro de sua intertextualidade.

Com o passar dos anos, obviamente, a ênfase revolucionária e o sarcasmo foram diminuindo, como observa Kopyl no posfácio que leva o título “Livro que veio para ficar”, mas a inventividade não se arrefeceu, como provam os poemas de Amor Combate (1985), que, por isso mesmo, não perderam o frescor da juventude que os colocou para fora. Pessoa tem uma especial predileção por criar palavras, neologismos.

III

Para a edição russo-portuguesa, Kopyl escolheu cinco coletâneas poéticas e “um livro-poema inteiro”: Nomes (2001), O Livro da Noite (1982), O Amor Infinito (1983), À Mesa do Amor (1994), Por Outras Palavras (1990) e Vou-me Embora de Mim (2000), o livro-poema de que fala Kopyl e que Maria Lúcia Lepecki definiu como um longo poema dividido em partes – nem tituladas nem numeradas – que constitui um encadeamento de recordações.

(...) Apanho um combóio e um barco, viajo para lá do acontecimento
que é sentir-me ser de ali. Vou-me embora de mim.
Este diálogo não acabou e não acabará nunca. Vou
com os camponeses da cidade, feliz como um animal doméstico,
por vezes como um cão vadio no inverno, cuja felicidade
é apenas atingir a primavera seguinte.
Vou com as gaivotas que procuram a vida
nas milhares de toneladas de lixo da civilização. Vou também
com a dor de todos os massacres e com os missionários confortáveis
que querem governar o mundo sem saber governar o próprio estômago.
E vou ainda com. E com. E com. E com.
E vou ainda.

IV

Do mesmo livro é o po
ema (sem título, como todos) que diz do desencanto da geração nascida nas décadas de 1940 e 1950 que acreditou na construção de um novo mundo e, “entre o sonho e a vontade”, viu se esboroar “os impérios dos que tiveram vontade de sonhar”:

(...) Construir o sonho é uma atitude honesta
mas edificar a realidade é trabalho para o escravo,
do qual o escriba não regista, nem fome, nem suor.

V

Joaquim Pessoa – que com Fernando Pessoa não tem nenhum parentesco, a não ser poético – nasceu no Barreiro, do outro lado do Tejo, e naquela cidade operária viveu até os 28 anos de idade. Pratica poesia desde os 12 anos, quando, entusiasmado por sua professora do liceu, passou a escrever composições que, depois, lia para os colegas em classe. Entre os seus autores preferidos àquela época, estavam Bocage (1765-1805), Nicolau Tolentino (1722-1804), Cesário Verde (1855-1886) e António Nobre (1867-1900). Quando chegou à idade adulta, suas leituras migraram para Pablo Neruda (1904-1973), Louis Aragón (1897-1982) e Paul Eluard (1895-1952).

_________________________

(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003).

Fonte:
http://www.storm-magazine.com/

Gilvan Lemos (Dias Idos e Não Vividos)

www.globomidia.com.br
A estrada de rodagem findava no silêncio. Estreita na terra pura, nua, ao chegar à curva parecia que o mato a havia engolido. Nas partes fofas, de areia, as marcas dos pneus do caminhão do leite; nas duras, onde sempre entremostrava-se um lombo cinzento de pedra, a solidão faiscante do sol, a presença firme do sol, a expectativa de uma coisa que indistintamente ia acontecer e que nunca acontecia.

O zumbido da desnatadeira manual, a força humana regrada pelo ritmo impositivo da máquina, a fadiga dum braço transmitida ao outro, a conformação refletida no olhar esmorecido, a contabilidade mental do volume de leite a ser desnatado ainda.

— Eu tinha uns quinze anos, mais ou menos.

Espaçadamente, os fornecedores diários. Modestos, pequenos produtores. E o leite. Em latas na cabeça, em alimárias, parte da carga contrapesada com mochilas de milho, feijão, pedra, mamona. Murmúrios de vozes mal acordadas, zurrar metódico de jumentos, passadas breves, ruído de uma folha de papel sendo rasgada. E a lamúria dos porcos grunhindo no chiqueiro.

— Era uma fábrica de laticínios, era?

— Entreposto. Desnatava-se parte do leite, era eu quem desnatava. À tarde o caminhão do leite vinha apanhar.

O homem. Agreste, robusto, a barba sempre por fazer. A camisa, por dentro das calças, entreabertas na prega do último botão, o umbigo rodeado de pêlos negros. No chão engordurado seus tamancos não retiniam, sim em casa, onde o piso de tijolos era varrido diariamente. A mulher recomendava: Calce os chinelos. Fumava grosso cigarro, de fumo por ele mesmo picado. Na extremidade, a que levava à boca, a mancha amarelada da saliva. À noite, na espreguiçadeira, de frente para a escuridão, falava sozinho. Se a mulher indagava, ele: Eu não disse nada. Daí então calava-se de fato, os lábios remexendo, sôfregos, como se ele blasfemasse interiormente.

Correria de ratos na sala da frente, a da recepção do leite, local da desnatadeira. Esta, a (minha) inimiga. Cães a latir de incompreensão e espanto. Seriam os espectros noturnos, o rangido dos galhos soprados pelo vento a causa dos seus desvelos. Na manga iridescente do candeeiro, mariposas cediam à tentação do holocausto. A aranha, em sombra refletida na parede, aumentada mil vezes, movia-se, dissimulando a concupiscência logo incitada. E os porcos não grunhiam no chiqueiro.

O homem deixava a cadeira, junto com a baba escura cuspia a ponta do cigarro. Boca escancarada, bocejos longos e repetidos. Dava dois passos. Cambaleando, espreguiçando-se furiosamente, encaminhava-se para o terreiro. O espaço desocupado adquiria-lhe a personalidade e, impositivo, recalcitrante, esperava-lhe o retorno, a resguardar-lhe a posição de mando. Lá fora os cães se acalmavam. O cavalo, olhos brilhantes como de labaredas, sacudia a cabeça, a tábua do pescoço retesada, as crinas empoeiradas de mistério. Eh-eh, fazia o homem, num acento inusitado de ternura. E, mãos nos quadris, a cabeça erguida para a negridão do céu, urinava no tronco do marmeleiro.

Portas batidas, janelas entrameladas. A espreguiçadeira, reposta no lugar de costume, resignava-se à própria imparcialidade. Os tamancos do homem conduziam-no à ausência. Sinais íntimos, últimos ruídos preparando-se para serem extintos pelo sono. Dele, porque para os outros (para mim) a noite se eternizava na insônia. Restavam na sala fulgores auditivos de um passado recente. Luzes e brilhos ouvidos mais do que vistos. Ouvidos pelo coração. Em transe o coração. A voz duma menina que lhe segura as (minhas) mãos: Não vá não, besta. Você vai se enterrar ali. E outra mulher, como esta agora remendando velhas camisas e calças desbotadas: É preciso, filho, será um ajuda para nós. Seu pai... Este a interrompia: Com onze anos saí de casa para ganhar a vida.

Vida, vida! A que estava vivendo, a que deixara para trás, a que se enfumava na lembrança, a que ingenuamente lhe aprazia e lhe faltava. Claros dessa outra vida, sonhos sonhados na vigília. E aquela estrela, mais do todas brilhante, a iludi-lo com o esplendor dum êxito indefinido.

Da camarinha, ressonos altos, roncos cavernosos. O homem penetrava-se em si mesmo, com o mesmo poderio pertencendo-se, com a mesma força mantendo o respeito intransferido. Na sala, a mulher, sem pressa de terminar os seus remendos, torcia a agulha escapa da agulha, tornava a enfiá-la no buraco: Não vai dormir? A ele (a mim) perguntava, e desfazia-lhe o procurado encanto. Porque, embora a semelhança física, sua voz diferençava da da outra e, sem ser áspera ou ofensiva, faltava a ela um toque inexplicável de meiguice, aquele que só se encontra na voz das mães que estão distantes.

Pelas frestas dos olhos umedecidos não mais a sombra da aranha na parede, não mais o recurso de acompanhar o vôo suicida das mariposas. E os ratos do depósito tinham sossegado.

— Quem eram eles? O homem do entreposto e a mulher, quem eram eles?

— Ela, irmã de minha mãe; ele, naturalmente, seu marido. E meu patrão.

As mãos tornadas insensíveis pelos calos, o enfado que não se acomodava ao remanso, o sono que não encontrava repouso. A voz da mulher, desta, a tia, ponteando-lhe as cordas da memória: Não teve mais notícia de sua mãe? O carinho, de que não tinha costume, empanado em promessas duvidosas: Sábado consigo que você vá à cidade. O olhar rápido, suspenso do alinhavo: Vai ver a feira, seus pais, seus irmãos. E num quase sorriso de cumplicidade: A namorada... Não tinha uma? E então?

Sábado ou domingo. Não havia parada. No peito da vaca o leite não podia esperar para ser tirado na segunda-feira; no entreposto não aguardaria sem mácula pela desnatação. Tampouco o caminhão deixaria de vir por um ou dois dias. Ele (eu) sabia disso, ela também. Os roncos inadvertidamente interrompiam-se na camarinha. E a voz do homem chegava suspicaz à mulher emaranhada em suas linhas: Não vem dormir hoje não? Era o sinal. O final. Do serão.

À tarde, o motorista do caminhão do leite trouxera-lhe um recado: Seu pai mandou dizer que é pra você ir sem falta, sua mãe está muito mal. O olhar enviesado do patrão, falanges cabeludas rasgando o papel da nota de remessa. A tia, em sombra furtiva transmudada, passando ligeiramente da porta dos fundos à varanda. No espaço, o tempo parado. Tudo parado. O motorista, com a última sílaba da última palavra do recado suspensa na boca aberta; o patrão segurando a nota que não se despregara de todo e que não se largava do bloco porque ele não acabava de puxá-la; a tia, de perfil, um pé erguido, sem dar a passada final que a conduziria à varanda. E os porcos grunhindo no chiqueiro.

Posso esperar no máximo dez minutos, completara o motorista. Não mais os porcos, só o zumbido da desnatadeira. Deixada de lado, ainda lhe transmitia o parco movimento. Dos músculos dele (de mim) inda exigia a força da vibração. E nos ouvidos fixava-se, monótona-eterna-calculadamente: a rígida marcação, o compasso opressivo da incerteza.

Eis a roupa especial colocada sobre a cama. Junto, os sapatos de irem à cidade e para esse fim jamais utilizados, e mais a pressa de revestir o corpo sujo de suor, calças os pés tanto tempo desacostumados de semelhante ostentação. Súbito, o patrão encostado no portal: Só depois de lavar o vasilhame. Por trás dele a mulher, a tia: Assim não vai dar tempo de pegar o caminhão. Silêncio intencional, o homem: Vai depois, a pé, o cavalo está doente. A outra voz, perdendo suavidades: Mas é tão longe! É a mãe dele, não compreende? E a ordem definitiva: Tanto faz.

Da janela, a mulher em vigilância. Era o marido que ela acompanhava com a vista. Ele, que tratava do cavalo e que, após, o conduziria ao pasto. Foi nessa ocasião que ela procurou o sobrinho. Levara-lhe a muda da roupa e os sapatos havia pouco abandonados: Troque-se aí mesmo, apresse-se que talvez ainda possa pegar o caminhão. Cortando em direção ao rio você o alcançará quando ele vier de volta. E o vasilhame? Ela mesma lavava. Ao partir, cabisbaixo, apenas ouviu — não precisava voltar-se para saber que a tia estava com os olhos pisados: Vá com Deus, meu filho. Só volte aqui quando quiser. E se quiser.

No ponto indicado, as marcas dos pneus na areia solta não pareciam recentes. Tão cansado se mostrava, não tempo de regozijar-se. A estrada triste era igual à que se avistava do entreposto nas tardes de longa aflição sem recompensa. O sol já não queimava, os pássaros escondiam-se no silêncio, o vento embalava a solidão presente fora e dentro dele (de mim).

Mesa posta, a família toda reunida. Os irmãos casados sem as esposas, as irmãs sem os maridos. Na cabeceira o pai, a calva esbranquiçada, a espera contrita. A luz fraca pendente do fio encaroçado de moscas, o relógio da parede batendo as horas, inatendido e solitário em sua marcha laboriosa, de roteiro jamais-em-tempo-algum alterado. Ninguém demonstrava dar por ele, por ele ou pelo relógio, o que não era de estranhar: seus lugares, respectivos, viviam sem novidades ocupados. Os cheiros, os ruídos de costume vindos da cozinha; os vários olhares de olhos injetados, as bocas salivantes. E um coro de avidez rumorejando nos lábios tensos, retorcidos. Foi quando a mãe surgiu da porta estreita, só ela alegre, só ela notando sua presença: Chegou enfim! Bem na hora. Vamos comer, meu filho. Mas em vez disso ela o abraçava chorando.

— Como? Então tinha ficado boa?

— Sonhei. Enquanto aguardava o caminhão, adormeci sentado numa pedra, a cabeça encostada no tronco duma árvore. Me lembro que quando acordei estava com o rosto lavado das lágrimas do sonho. O fato é que, ao chegar à cidade, ela já havia morrido.

Olhara-a rapidamente, apenas para certificar-se de que não era a mesma. Nos traços da do entreposto havia deixado a fisionomia, os gestos, a ternura calma, conforme vinha há tempo recompondo e comparando. A semelhança era tanta! Não no timbre da voz. Mas a daqui já não falava. As condolências, os reconfortos. Não queria que a ninguém pertencesse a dor de tê-la perdido, sua dor, íntima-úmida-dor. Por outro lado, a ninguém queria mais pertencer. E não se pertencia. De fora, ausentando-se, não se julgava de casa. Desta. A casa onde morre uma pessoa querida não é mais a nossa casa. Petrificava-se, pretendia ser único, ímpar no mundo. Mas quando o pai lhe disse: Ela ontem chamou tanto por você... — sucumbiu, entregou-se, o filho, também do pai, retornado. E quando o parente idoso, homem de prestígio, tentou acalmá-lo (Conforme-se, menino, foi um descanso pra ela.), agrediu-o, batendo-lhe no rosto, forte, desatinado.

— Foi o maior escândalo.

— Voltou, depois, pra trabalhar no entreposto?

— Não. Acalmados os ânimos, esse parente idoso, através do seu prestígio, conseguiu um emprego pra mim na prefeitura. Era um homem bom, me compreendeu.

Fonte:
LEMOS, Gilvan. "A Inocente Farsa Da Vingança", Ed. Estação Liberdade — São Paulo — Maio, 1991.

Gilvan Lemos (Gilvan por Gilvan)

Gilvan (de Souza) Lemos nasceu na cidade de São Bento do Una – PE, no dia 1º de julho de 1928, onde fez os primeiros estudos e residiu até 1949, quando se transferiu para o Recife.

Curso de Francês na Aliança Francesa e de Inglês no Curso Maia.

Escreve desde os 15 anos de idade.

Publicou seu primeiro trabalho literário (um conto escrito em 1945) na revista Alterosa, de Belo Horizonte, em março de 1948.
––––––––––––––––
Desde criança a leitura tem sido o que existe de mais importante na minha vida. Primeiro me apaixonei pelos gibis. Me interessava também pelos livros infantis de Monteiro Lobato, que os mais velhos indicavam para que eu me instruísse, embora eu não os lesse com esse intuito, e sim por me divertir principalmente com as presepadas da Emília. Depois passei a ler romances. O primeiro que li, O Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas, me conquistou definitivamente. A ficção continua a ser minha leitura predileta. Não sei como uma pessoa passa pela vida sem ler, sem se interessar pela literatura.

Daí nasceu o escritor, modéstia à parte, eu. Como dizia Osman Lins, quem convive com mágicos termina tirando coelhos do bolso. Foi o que aconteceu comigo. Aliás, se não fossem as influências, a arte em geral não teria prosseguido. É nos emocionando por alguém que nos propomos a imitá-lo.

O ato de escrever passou a ser a minha finalidade na vida. Quando estou escrevendo, não me interesso mais por coisa alguma. Me entristeço, me alegro, me emociono... Não sei como há escritores que "sofrem" para escrever. Rachel de Queiróz chegou a dizer que escrever, para ela, era o maior sacrifício. Se era assim, por que escrevia?

Me iniciei na época em que predominavam autores brasileiros como Erico Verissimo, José Lins do Rego, Jorge Amado, Lúcio Cardoso... Amei-os e imitei-os desordenadamente. Claro que hoje faço minhas restrições. De José Lins do Rego, salvo dois ou três romances, de Erico Verissimo, idem. De Lúcio Cardoso, nenhum; de Jorge Amado... restou a saudade. Foi quando "conheci" Graciliano Ramos. Ah, este ainda me agrada. Me identifico com todos os seus livros.

Comecei a escrever de teimoso que era. Em minha cidade – São Bento do Una, agreste meridional de Pernambuco –, não havia a menor possibilidade de prosseguir. Cidade atrasada, sem colégios, sem biblioteca, sem pessoas ligadas à literatura. Contava apenas com minha irmã mais velha, que, sem o curso secundário, como eu, era duma inteligência superior, lia muito e me orientava. Foi com sua ajuda que escrevi meu primeiro conto publicado na revista Alterosa, editada em Belo Horizonte. Quando publiquei o segundo, em 1948, já me considerava um escritor.

Mudei-me para o Recife em 1949. Com 21 anos incompletos, me julgando velho para iniciar o curso ginasial, passei a ler com o interesse de me ilustrar. Em 1951, obtive um prêmio instituído pelo Estado para romances inéditos com meu livro de estréia, Noturno sem música, publicado cinco anos depois em edição particular. Que passou completamente despercebido pela crítica local. Isso me decepcionou sobremaneira. O fato é que eu desejava apenas publicar um romance. Achava que, o publicando, estaria realizado. Mas o diabo é que passei a desejar ser famoso. Apesar de estar convicto de que fracassara, não deixei de escrever. Só para mim. Doze anos mais tarde arrisquei-me a remeter um novo romance à Editora Civilização Brasileira, principal editora de literatura na época. O livro – Emissários do diabo – foi aceito e publicado em 1968. A partir daí, as portas do paraíso se abriram para mim, e meus primeiros romances foram publicados no Rio, em São Paulo e Porto Alegre (no tempo da famosa Editora Globo). O povo da minha terra passou então a me conhecer.

Hoje tenho 21 livros publicados: 11 romances, 3 de novelas e 7 de contos, alguns premiados nacionalmente, outros já na 3ª edição. No momento, estou com dois livros em compasso de espera. Ambos em São Paulo. O primeiro, A era dos besouros, está programado para o fim do ano. Constitui-se de três novelas curtas: Ritual de danação, uma paráfrase de Jó, atual, com final surpreendente; Alugam-se quartos, dramas íntimos de vários moradores dum pardieiro desses "cai-mas-não-cai"; e, finalmente, a que dá título ao livro, história duma família, mulher e filho, que vive os momentos duvidosos da era da ditadura. O segundo, Na rua Padre Silva, é composto de contos "entrelaçados", quase um romance, sobre pessoas humildes duma rua de pobres.

Os livros, só romances, que eu indico para os leitores do Cultura News, são aqueles de que mais gosto, como, por exemplo, os de Graciliano Ramos; Menino de engenho e Bangüe, de José Lins do Rego; Grande sertão: Veredas e Corpo de baile, de Guimarães Rosa, só para ficar nos do século passado, brasileiros. Não tenho lido autores novos. Estrangeiros, indicaria Cem anos de solidão, de Gabriel Garcia Márquez; A casa verde, de Vargas Llosa; O ajudante, de Bernard Malamud; todos os do Coelho, de John Updike e outros que não me ocorrem no momento.

O "pessoal do Sul" acha que sou "regionalista". Regionalista parelho aos escritores que se tornaram conhecidos a partir de 1930, sei que não sou. Ocorre que escrevo sobre o meio em que vivo. Retrato as pessoas com que convivo, recordo momentos da minha vida no interior... Em suma, escrevo sobre o que conheço, o que sei, o que me emociona. Para mim, o bom romance é o que nos provoca emoções. Detesto romances experimentais, enredos misteriosos, incompreensíveis, jogos de palavras... Acho que isso é coisa de quem não tem o que dizer. Para mim, romance é romance. Não se restringe a escolas, tempo, época. Quando o romance é bom, não tem idade.

______________________________

São mais de 20 livros de ficção publicados, além dos textos em coletâneas e periódicos.

I – Romances:

01. Noturno sem música. Recife: Ed. Nordeste, 1956. Prêmio Vânia Souto Carvalho, da Secretaria de Educação – PE. 2ª ed. Recife: Bagaço, 1996

02. Jutaí menino. Rio de Janeiro: O Cruzeiro, 1968. Prêmios: Orlando Dantas, do Diário de Notícias (Rio); Olívio Montenegro, da UBE – PE. 2ª ed. Recife: Bagaço, 1995

03. Emissários do diabo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. Prêmio da APL. 2ª ed. São Paulo: Editora Três, 1974 (Coleção Literatura Brasileira Contemporânea); 3ª ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987

04. Os olhos da treva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. Menção Honrosa (Prêmio José Conde/Recife). 2ª ed. S. Paulo: Círculo do Livro,1983

05. O anjo do quarto dia. P. Alegre: Globo, 1981, Prêmio Érico Veríssimo, da mesma editora. 2ª ed. São Paulo: Globo, 1988. 3ª ed. Recife: Bagaço, 2002

06. Os  pardais estão voltando. Recife: Guararapes, 1983

07. Espaço terrestre. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 1993

08. Cecília entre os leões. Recife: Bagaço, 1994.  2ª ed. Recife: Bagaço: 2007

09.  A lenda dos cem. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995. 2ª ed. Recife, Ed. Bagaço, 2005

10.  Morcego cego. Rio de Janeiro: Record, 1998

11.  Vingança de desvalidos. Recife: Nossa Livraria, 2001

II – Contos:
          
01. O defunto aventureiro. Recife: EDUFPE, 1974. Menção Honrosa do Prêmio José Lins do Rego, da Ed. José Olympio (Rio). 2ª ed. Recife: Bagaço, 2001

02. Os que se foram lutando. Rio de Janeiro: Artenova, 1981

03. Morte ao invasor. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1984

04. A inocente farsa da vingança. São Paulo: Estação Liberdade, 1991

05. Onde dormem os sonhos. Recife: Nossa Livraria, 2003

06. Largo da alegria. Recife: Bagaço, 2003

III – Novelas:

01. A noite dos abraçados. Porto Alegre: Globo, 1975

02. O mar existe. In: A inocente farsa da vingança. São Paulo: Estação Liberdade, 1991

03. Enquanto o rio dorme. Recife: Bagaço, 1993 (uma das novelas de A noite dos abraçados)

04. Neblinas e serenos. Recife: Bagaço, 1994 (duas das novelas de A noite dos abraçados). 2ª ed. Recife: Bagaço, 1995

05. A Era dos Besouros – Editora A Girafa – São Paulo – Maio de 2006

06. Na Rua Padre Silva – Editora Nossa Livraria – Recife – Outubro de 2007

IV. Contos nas coletâneas:

01. O urbanismo na literatura. Rio de Janeiro: Livros do Mundo Inteiro, 1975

02. O novo conto brasileiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985

03. Seleta de autores brasileiros. Rio de Janeiro: Jornal de Letras, 1987

04. Memórias de Hollywood. São Paulo: Nobel, 1988

05. Contos de Pernambuco. Recife: Massangana, 1988

06. Erkundunger 38 Brasilianische Erzahler. Berlim: Verlag Volk und Welt Berlin, 1989

07. Le serpent a plume. Paris, 1994

08. Caravanes. Paris, 1998

09. Antologia do conto nordestino. Recife: Micro, 1998

10. Panorama do Conto em Pernambuco – Fundação Maximiano Campos  - Recife – Outubro de 2007

Fontes:
http://www.livrariacultura.com.br/
http://www.releituras.com

Aparecido Raimundo de Souza (Liungua Preusa)

O advogado indica uma cadeira para o rapaz que acaba de entrar em sua sala. Antes de sentar, o moço tira da cabeça um chapéu ensebado e o coloca sobre a mesa cheia de papéis e processos.

— Aceita água gelada?

— Nãu, oubriugaudo.

— Um café?

— Tenhu qui paugar?

— Claro que não. É por conta do escritório.

— Entãu eu aceitu um caufé.
-
Chama a secretária pelo interfone e solicita que traga a bebida para dois.

— Vamos ao seu caso, senhor... Como é mesmo seu nome?

— Adeugeusto Fumouso.

— Pois não. O que está acontecendo?

— Meu aumiugo se meuteu nuuma encreunca e a pouliucia leuvou eule paura a deleugaucia.

— Sabe o motivo?

— Seugundo o pouliciaul de plauntão, roubo de uma mouto. Mas já fuoi tuudo deuviudamente esclaureucido.

— Mas seu amigo continua detido?

— Nãu. Acaubou de ser liubeurado. Souto, aufiunau, está em causa, grauças a Deuus. Soulto.

A secretária chega com a bandeja e serve os dois homens em silêncio:

— Senhor, açúcar ou adoçante?

— Auçuucar, pour fauvour.

— Não entendi, cavalheiro!

— Aucho meulhor toumar aumaurgo, meusmo.

Terminada essa tarefa, a jovem retorna à recepção.

— Bem, seu Adegesto...

— Adeugeusto...

— Seu amigo não está mais na delegacia?

— Grauças a Deus, nãu.

— Confesso ao senhor que não entendi uma coisa. Como se chama, afinal, esse seu amigo: Souto ou Solto?

— Orlaundo...

— Mas o senhor disse à minha colega, ainda há pouco, que seu amigo Souto foi...

— Nãu, nãu diusse. Fui bem clauro com eula. Faulei o seuguinte: Que o meu aumiugo Orlaundo... De ounde eussa criatutura tirou eusse taul de Souto?

— O que o senhor falou, afinal, para minha sócia?

— Que meu aumiugo Orlaundo esteuve, mas agoura nãu estáu mais.

— Mais o quê?

— Na deleugaucia, com o doutour deuleugaudo.

— Então ele foi realmente solto?

— Fuoi. Diaunte diusso eu vim auté auqui agraudecer, pois nãu vuou mais preucisar de seus serviuços. Taumbém sauber se deuvo alguma coisa coum reulaução a hounourários.

— Tudo bem, o prezado não me deve nada. Apenas gostaria de um pequeno esclarecimento. Estou pra lá de confuso. Desculpe a insistência. Seu amigo é o Souto?

— Nãu, doutor. Pour tuudo quaunto é mais saugraudo.

— Realmente acho que não estamos conseguindo nos entender. O Souto foi preso e agora está solto?

— Souto e Soulto nuunca estiveuram preusos, doutor. Preuso estauva o Orlaundo...

Risos.

— Por acaso isso é algum tipo de brincadeira?

— Nãu senhour. Clauro que nãu.

— Então?

—O Orlaundo, como diusse, está souto, Enteunde o que diugo? Eule, augoura, eustá soulto.

O advogado, impensadamente, resolve brincar com o cidadão. Fala, ou melhor, arremeda, de forma grotesca.

— “Iustu nus leuva a councluir que eule reualmente nãu está maius preuso?”.

O sujeito se enfurece. Dá um tapa na mesa. Por pouco não derruba o restante do café:

— O senhour pour aucauso reusoulveu tiurar saurro da miunha caura e me gouzar?

— De forma alguma.

O cidadão se levanta, muito nervoso, passa a mão no chapéu ensebado, vira as costas e sai da sala.

Fontes:
Aparecido Raimundo de Souza. Refúgio para Cornos Avariados. SP: Ed. Sucesso, 2011
Imagem = www,folhauniversal.com.br

Roberto Saturnino Braga (O Mistério da Literatura)

Libreria Fogola Pisa (facebook)
O mistério está na origem, nas primeiras formas e manifestações; é preciso levar a sonda até lá, naqueles tempos tão distantes que ainda não eram tempos: como apareceu? É uma cogitação que há muito me persegue e me interessa. As ninfas do “Trata-se de Ficção” reacenderam-na dentro de mim.

O primeiro espanto do homem foi o do cosmos; o meu, entretanto, sempre foi mais o da Terra com os seus seres, o mistério da vida, a Criação, o desdobrar das tentativas da matéria em se acasalar e se fazer vida, por bilhões de ano, atrações e acoplamentos entre os corpúsculos primitivos, foi seguindo e seguindo o procersso persistentemente, milagrosamente, obedecendo às leis do amor primordial, falhando aqui e recomeçando acolá, de filogênese em filogênese, até produzir grandes seres, animais comunitários, necessariamente providos do instinto da comunicação e, por fim, chegar ao ômega, o ser especial que levou este instinto às últimas conseqüências, e falou, conseguiu, aprendeu, e desde então precisa falar, tem necessidade, para dizer aos outros sobre o fazer, sobre o alertar, sobre o amar, e para dizer até pelo dizer, para ligar, pelo instinto da ligação comunal. O mesmo instinto fez os desenhos e as maravilhosas pinturas das cavernas, fez a dança e os cantos tribais, fez as primeiras flautas doces, as primeiras expressões artísticas da comunhão humana. Mas ainda não a literatura, que veio depois, muito depois.

Uns vinte mil anos depois, ou mais, veio a escrita e, com ela, o escriba, o que fazia os registros, para o controle e para a história, não era um escritor, era um computador, embora humano. No museu do Cairo há uma escultura maravilhosa, representando um escriba sentado, com sua tabuinha e seu estilete na mão, que interrompe a escrita e olha para você com olhos vivos e inteligentes. Profundamente humano.

Os escribas registraram fatos históricos, epopéias, preceitos religiosos, fizeram a primeira literatura, mas não eram ainda escritores. Ainda hoje há escribas, cada vez mais, redigem notícias, relatórios, ensinamentos, há os que procuram até fazê-lo com arte. Os primeiros escribas eram mais toscos, as palavras de que dispunham ainda eram poucas, não havia amplitude na escolha, não podia haver a busca cuidadosa, a arte da palavra. Talvez os aedos, pouco depois, os da poesia oral, que buscavam e criavam palavras para a rima, para facultar a memória, talvez os aedos, que não escreviam, tivessem sido os primeiros escritores.

Quem foram os primeiros escritores? Os poetas gregos? Os criadores do Teatro? Ou, antes deles, os salmistas judeus? Não sei. Mas foi por aí que se iniciou a arte da literatura, a escrita literária. Os salmos continham mais filosofia, os poemas e o teatro mais arte, eram mais o belo por si mesmo. Em ambos, entretanto, já estava presente o ofício da literatura, o empenho da procura da melhor palavra e da composição mais bela.

Curiosa, neste processo de investigação, é a grande polêmica da Grécia Clássica entre os filósofos, que buscavam a verdade, e os sofistas, que ensinavam a melhor palavra para o orador nas assembléias. Platão e Aristóteles, que legaram monumentos escritos de sabedoria, também escolhiam palavras; era uma escolha, entretanto, dirigida à razão, ao reforço do argumento, enquanto Górgias e Protágoras, sofistas, que não escreviam, escolhiam as palavras com o intento da emoção, do sentimento. Acho que fizeram mais literatura.

Então a literatura tem mais esta dimensão: ir ao encontro da emoção humana, do sentimento, não apenas do saber e da razão. Este foi o mister de todos os poetas em todos os tempos. E os poetas foram os primeiros e os únicos artistas da literatura por séculos e séculos, dos gregos aos romanos, dos trovadores aos cancioneiros da idade média, até o renascimento; o teatro era também poesia, a palavra trabalhada com talento e arte para inflamar a emoção e os sentimentos entre os membros da comunidade humana. Até a chegada do romance, num tempo já bem recente, quando o escritor descobriu um mundo novo: a invenção da vida, pura, na palavra e no papel, sem atores.

Teve esta descoberta algo a ver com a invenção de Gutemberg? Claro que sim: o livro levou a arte do escritor a um oceano de emoções e de leitores, abriu a porta da profissionalização, da dedicação exclusiva capaz de apurar a arte. A tecnologia é decisiva na civilização. O teatro, antes, já inventava a vida e ativava paixões, mas o alcance era limitado. O romance, de verdade, abriu um novo e vasto mundo, sem limites, que podia ser criado em cima de uma escrivaninha.

Depois de uns duzentos anos de belas e artísticas narrativas de vidas inventadas, os romancistas começaram a sentir um certo esgotamento tedioso dos relatos ficcionistas, explorados já os estilos mais diversos, contando de trás para na frente, de frente para trás, alternando os sentidos do tempo, saltando de gerações a gerações, falando de regionalismos, criando linguagens próprias, ingressando na expressão do fluxo de pensamentos dos personagens, cuja ligação com a realidade não fica explícita para o leitor, construindo assim romances de difícil compreensão, sentindo, enfim, a saturação comum a todas as formas de arte que acabaram adotando o lema da afirmação da heresia pela heresia para fugir ao tédio.

Mas não quero resvalar para considerações de teoria literária, que não domino nem precariamente. Quero insistir na busca dos fatores que, no meu sentimento, levam o escritor a escrever. No fundo, bem no fundo, o ancestral instinto da comunicação, a necessidade de se comunicar com o semelhante, pela voz, primordialmente, a velha comunicação oral. Há pessoas, entretanto, que têm um psiquismo especial e experimentam certa dificuldade de falar com os outros; essas pessoas preferem dizer as coisas escrevendo, dizendo de dentro para dentro. Ao que parece, a maioria dos escritores é de pessoas recolhidas, que criam suas invenções no silêncio e na reclusão. Por isso se aceita que o ofício de escrever requer este retraimento. Mas dá também para perguntar: o escritor precisa do recolhimento para escrever ou o escritor escreve porque é uma pessoa recolhida?

De qualquer forma, sim, o primeiro impulso vem do instinto de comunicação próprio do ser comunitário, a necessidade do outro, da presença do outro, do reconhecimento do outro. Mas comunicar o quê? O artista da literatura não comunica notícias nem relatórios, mas fundamentalmente comunica o próprio ser, o que ele foi, o que é, o que poderia ter sido, o que gostaria de ter sido, coloca tudo isso em vidas inventadas, na forma trabalhada das letras. Quem não tem facilidade no falar corrente, e não sente o empuxo interior da escrita, a capacidade e a precisão de escrever, acaba por procurar um psicanalista. E por isso mesmo o sentido da literatura é o sentido do ser, tão procurado na filosofia, o próprio sentido da vida que o homem busca incessantemente, do nascer ao morrer, às vezes pensa que o encontra e logo adiante torna a perdê-lo.

O segundo movimento vem da chamada veia artística. Cada um finda por perceber dentro de si um certo talento, uma certa habilidade natural para o fazer determinadas coisas, desempenhar com facilidade maior algum tipo de atividade, e o escritor, como o pintor e o músico, descobre a sua arte no correr do tempo. Acaba sabendo que sabe escrever. E cada um gosta mais de fazer aquilo que faz melhor, é uma preferência natural. O escritor gosta de escrever, ainda que o trabalho da escrita lhe seja penoso na busca do melhor jeito de dizer, da melhor construção do texto e das frases, na escolha da melhor palavra. É penoso e deleitoso, é assim. E é necessário para ele.

Há um outro mistério particular aqui. Até hoje, o escritor foi um autodidata; não teve mestres como o pintor e o músico; leu muito e encontrou inspirações em alguns autores, nunca teve aulas com eles. Por quê? Hoje começam a surgir escolas de criação literária, acho um fato muito auspicioso e me pergunto por que só hoje?

Mas penso que há ainda um terceiro vetor na constituição deste escritor de que estamos falando. O articulista, o político, o sociólogo, o filósofo, o pensador, o professor também, possuem uma veia de talento para escrever, e capricham na composição dos seus textos com a arte que desenvolvem. Há uma diferença, entretanto, fundamental, no ofício do escritor que estamos querendo aqui caracterizar: é que todos aqueles trabalham com o entendimento, com a clareza e a lógica dos seus textos, enquanto o nosso escritor busca essencialmente o sentimento, a emoção do ser humano leitor, e dele mesmo, escritor. Já me referi a isso anteriormente; insisto aqui porque vejo neste enfoque uma das características essenciais da literatura.

Enfim, sei que a figura do escritor tem muitas outras dimensões; por mais que se queira precisar e ressaltar nele qualidades essenciais, há muitas outras, saltam à vista muitas outras nesta realidade que é humana e ao mesmo tempo transcendental. Sabendo disso, paro por aqui, fecho este texto que não é literário como o do Ramiro, é investigativo, especulativo, sei lá, isto é, paro hoje, e continuo especulando sobre o tema pela vida a fora, pelo resto que me resta.

Fonte:
http://www.saturninobraga.com.br/artigo_2_12.html

Marilda Confortin (Notas & Letras, em Curitiba)


segunda-feira, 1 de abril de 2013

Trova 258 - Roberto Pinheiro Acruche (São Francisco de Itabapoana/RJ)


Fred Goés (Literatura e Vida na Cidade)

Libreria Fogola Pisa (facebook)
[...]
 Quando ensinamos aos nossos alunos as estratégias de análise de um texto, um dos principais aspectos salientados por nós é o espaço onde se dão os acontecimentos na narrativa. Esse espaço, passamos a nomear como ambiente, sempre que ele ganha carga significativa, ou seja, é importante no desenvolvimento do enredo e de fundamental expressividade para sua compreensão. A partir dos finais do século XVIII e, de forma superlativa, no século XIX, com o fortalecimento da burguesia e o aumento populacional urbano, a cidade passa a ser a grande moldura do enredo literário e, mais que isso, torna-se o mais fiel retrato de um certo tipo de vida que se estabelece em diferentes momentos da história das cidades e consequentemente de suas populações.

 Lembro-me com emocionada saudade das aulas do Prof. José Carlos Lisboa em um dos últimos cursos por ele ministrado sobre Federico Garcia Lorca. O Prof. Lisboa, do alto dos seus oitenta e muitos anos, um dos maiores especialistas em estudos hispânicos, descrevia com tal precisão a Andaluzia lorquiana que, quando lá estive, anos depois, me sentia guiado por ele ao visitar Granada. As sensações, o clima, as percepções expressas pelo dramaturgo e poeta espanhol e transmitidas pelo mineiro Lisboa se davam com tanta intensidade que éramos física e espiritualmente transportados para o universo gitano de Lorca. Para nossa grande surpresa, ficamos perplexos quando, no final do curso, com a simplicidade que caracteriza os seres superiores, os sábios, os verdadeiros mestres, ele confessou jamais ter visitado a Andaluzia. Ele a conhecia, na palma da mão, pelos olhos de Garcia Lorca.

 Uma das formas literárias que melhor revela a cidade e os diferentes grupos sociais que nela vivem é, sem dúvida, a crônica.

 A crônica é, ao mesmo tempo, a mais polêmica e, de acordo com parte da crítica, a mais brasileira das expressões literárias. A maioria esmagadora dos nossos escritores (poetas e prosadores) se exercitou, nas folhas cotidianas, como cronista. Meio jornalismo, meio história, meio ficção, meio poesia, ela é um profícuo espaço de experimentação criativa. Talvez por seu caráter camaleônico, se adaptando às diferentes mídias (jornal, rádio, televisão, novas tecnologias), não tenha passado desapercebida de nossos compositores populares. É mesmo possível, por meio das canções com este viés, como ocorre no texto narrativo, se reconstruir diferentes aspectos da vida brasileira (costumes sociais, momentos econômicos, acontecimentos históricos, fatos relevantes, etc).


 Sabemos que a musa maior desta forma literária é a cidade. Urbana pela própria natureza, a crônica nasce e se alimenta dos acontecimentos citadinos. No Brasil, por circunstâncias históricas de um lado (antiga capital da metrópole colonial, do império e da república), e do outro, por sua singular beleza, fonte inesgotável de inspiração poética, o Rio de Janeiro ocupa lugar central da nossa cronicidade. E não podemos nos furtar da observação de que este substantivo (cronicidade) incorpora e justapõe em sua formação os dois elementos próprios da crônica, o tempo (cronos , em grego, ??????) e a cidade.

 Quando sublinhamos o fato de ser o Rio de Janeiro a musa maior do gênero, não queremos dizer que outras cidades não tenham também sido merecedoras do olhar do cronista. São Luis, por exemplo, além da crônica literária de jornal, objeto da pesquisa de alguns mestres,[...] está tão presente nos versos dos sambas enredo, quanto a Bahia, a cidade da Bahia, espécie de Pasárgada do nosso cancioneiro. Mas também São Paulo tem, na figura de Adoniran Barbosa, na década de 1950, seu grande cronista musical. Ele transcreve para os versos da canção a fala estropiada, ítalo-caipira (o tal português macarrônico) do proletariado paulistano descendente de italianos. O compositor amplia, populariza o que Alcântara Machado propusera, ao retratar este segmento da sociedade em Brás, Bexiga e Barra Funda (1927). Adoniran, na música popular, tal qual Alcântara Machado e Alexandre Ribeiro Marcondes Machado (Juó Bananére,1892-1933), na literatura, reinventa situações tão poéticas, quanto patéticas vividas pelos “paulistalianos” do povo. O lirismo tragicômico ímpar se apresenta pleno em Saudosa Maloca, Tiro ao Álvaro, Trem das Onze, entre tantas outras canções.

 Mas nada e ninguém mereceram maior atenção que a capital fluminense quando o tema é crônica. Tomemos como ponto de partida da sistematização e da fixação deste gesto a presença de nossos escritores nos jornais de grande circulação. Desde meados do século XIX, militaram na crônica, dando-lhe feição e sotaque brasileiros, José de Alencar e, na sequência, Machado de Assis, Olavo Bilac, Lima Barreto, João do Rio e, posteriormente, os escritores brasileiros em peso (narradores, dramaturgos e poetas). Contemporaneamente, merece destaque a singular figura de Rubem Braga, o mestre dos mestres de gênero, que se notabilizou nas letras como o cronista por excelência.

 Nossos cronistas, os da imprensa ou os da canção, põem em foco o dia-a-dia, os fatos circunstanciais, as bugigangas poéticas da cidade, dando voz a ela. E antes que nos esqueçamos de mencionar, não só no cancioneiro tradicional se observa a narrativa da cidade pela lente da crônica. O que a rapaziada do rap, funk e hip-hop faz nada mais é que crônica, sendo que agora, nos é apresentada a vivência, o cotidiano das comunidades carentes, marginalizadas, periféricas que, até pouco tempo, não tinham a oportunidade de serem ouvidas. “Eu só quero ser feliz / Andar tranquilamente na favela onde eu nasci”, era, há poucos anos, o recado pacífico cantado por Claudinho e Bochecha. Da mesma forma, sem muitas vezes a pretensão de “cronicar”, participantes das redes sociais exercem esta atividade literária.

 Em verso ou em prosa, a cidade segue atraindo os olhares ora atentos, ora perplexos, ora aterrorizados, mas sempre apaixonados de quem faz a crônica.

 Quem melhor que Noel Rosa retratou o Rio de Janeiro da década de trinta do século passado? Se Olavo Bilac, Lima Barreto e João do Rio são os que registram a cidade nas duas primeiras décadas do século XX, é Noel quem vai comentar a verticalização, o surgimento dos arranha-céus, o nascedouro da industrialização. É quem ouve o apito da fábrica de tecidos que ecoa entre as chaminés do progresso em Três Apitos.

 Foi por meio dessa percepção que a cidade é senhora plena da crônica e que nela, como em nenhum outro lugar, a língua apresenta a potência das suas variantes e dos seus falares que construímos, em equipe, o livro Vozes da Cidade: língua portuguesa em textos e conversas.

 [...]

 Notícias e reportagens também revelam o cotidiano urbano, suas múltiplas faces e, claro, suas variedades de vozes. Mas de forma mais direta, objetiva, com foco nos fatos e nos dados, sem a dimensão ficcional da crônica. E assim, em mais um exemplo das muitas possibilidades de uma língua, crônicas e textos jornalísticos fazem ecoar as vozes da cidade e do mundo do trabalho. A escolha dessa diversidade de textos baseou-se na certeza de que o estudo da língua portuguesa deve incluir o conhecimento de todas as variantes e também de que todas as pessoas, independentemente da classe social ou situação cultural, são igualmente competentes para falar a sua língua materna.

 A partir desses pressupostos, é possível afirmar que o aprendizado do português se dá na compreensão da experiência viva e dinâmica dessa língua e que o desempenho linguístico melhora na medida em que o usuário da língua ganha intimidade com os recursos que ela oferece e confiança na capacidade de usá-los de forma adequada.

 Nossa pátria é nossa língua, disse o poeta, e a morada de sua diversidade está especialmente no espaço urbano, na cidade. [...]

 (Fragmento da palestra Literatura e Vida na Cidade, proferida pelo professor e escritor Fred Góes, na UEMA, em 02/04/2012)

Fonte:
http://www.guesaerrante.com.br/2012/9/27/literatura-e-vida-na-cidade-4359.htm

Fred Góes (1948)

Frederico Góes, mais conhecido como Fred Góes, nasceu no Rio de Janeiro, em 1948, num domingo de carnaval.

Iniciou sua trajetória profissional como repórter na Editora Bloch. Foi assessor de relações internacionais da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT). Chefiou o Departamento de Expansão da Embrafilme. Foi roteirista da TVE, redator e apresentador do programa “Tirando de Letra” da Rádio MEC.

Formado em Letras, é mestre em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da UFRJ e Doutor em Teoria da Literatura, pela Faculdade de Letras da UFRJ, onde ensina no Departamento de Ciência da Literatura. Fez pós-doutoramento na Universidade de Tulane, em Nova Orleans, nos EUA.

Paralelamente à atividade acadêmica, Fred Góes é compositor/letrista e pesquisador de música popular. É também ensaísta crítico e tem doze livros publicados nas áreas de literatura e música popular. Foi membro do Conselho de Cultura do Estado do Rio de Janeiro por dez anos. Hoje, além de professor, coordena o Dicionário Cravo Albin de Música Popular e é pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e (CNPq).

É professor da Faculdade de Letras/UFRJ, onde lidera, com apoio do CNPq, o Grupo Interdisciplinar de Estudos Carnavalescos. Realizou a pesquisa de pós-doutoramento na universidade de Tulane, em Nova Orleans, Estados Unidos da América, com bolsa da Fundação Rockefeller. É compositor, letrista, contista e ensaísta. Tem músicas gravadas por inúmeros artistas. Entre os dez livros de sua autoria, destacam-se O país do carnaval elétrico (1982), 50 anos de trio (2000) e Antes do furacão: o MardiGras de um folião brasileiro em Nova Orleans (2008). Organizou a antologia Brasil, mostra a sua máscara (2007), que reúne contos, crônicas, letras de música e poemas sobre o carnaval brasileiro. O poço de Campaná é seu primeiro livro de ficção.

Fonte:
http://www.guesaerrante.com.br/2012/9/27/literatura-e-vida-na-cidade-4359.htm

Daisy Melo (Uma Amizade Tão Delicada...)

Seus dias eram sempre os mesmos. Acordava na mesma hora quando o sol ainda não nascera e tampouco a lua caíra do horizonte. Tomava o café, saía de casa às sete e até pegava a tal condução que era dirigida pelo mesmo motorista. Trabalhava sempre igual, mecanicamente, todos os dias, até que chegava a hora de ir embora. Para fazer o quê? Comer o jantar congelado, assistir aquela novela de sempre que de nova só tinha o título, o programa de entrevista que usava a mesma fórmula tarimbada de sucesso e, finalmente, dormir na sua cama, a mesma, há tanto tempo.

Mas ela tinha que sair do trabalho e voltar para casa, então, descia a rua, olhando as casas, considerando se naqueles jardins teria nascido alguma flor que, então, faria sua vida ter um quê de diferença.

Naquele dia, enquanto contava as rosas do jardim da casa amarela, aquela com o pé direito alto e as janelas cremes sempre cerradas, a mulher o encontrou parado na esquina em frente à meia água mirrada onde plantada há uma romãzeira em flor.

Ele observava a mulher com nítido interesse, com uma certa curiosidade nos olhos castanhos. Ela tentou não demonstrar, mas sobressaltou-se. Não podia revelar que estava com medo. Sempre soube que eles percebem quando estamos com medo e aí atacam. Mas o coração batia descompassado e, apesar de mudo dentro do peito, ouvia-o nas têmporas. Respirou fundo, passou com ar de quem não estava nem aí, enquanto ele permaneceu sentado. Apenas os olhos a seguiam — será que percebeu um ar irônico?— e, quando a mulher sentiu-se segura, deu uma olhadela de soslaio e ele continuava lá, parado. Um Vira-latas com focinho e pernas amarelas, dorso e cauda negra, peluda, parecendo um ponto de interrogação. Tinha um porte médio e um certo jeitão de cachorro que sabe o que quer da vida.

A mulher esqueceu-se do acontecido durante toda a noite e durante o dia seguinte, até que ao sair novamente do trabalho, topou com ele, de novo, na mesma esquina. Olhava-a curioso, com a cauda movimentando-se lentamente de um lado para o outro. Fingindo não sentir medo, e tentando não correr, passou por ele tesa e, dessa vez o cachorro moveu-se e pôs-se a segui-la. “Ai, droga! O que será que ele quer de mim? Não tenho comida e nem ao menos gosto de cachorros!” Parecendo ler seus pensamentos, ele estancou com um ar decepcionado. E ficou ali até que, a mulher, um pouco surpresa, virou a esquina com pressa. Mas, no dia seguinte...

Lá estava ele parado no mesmo lugar! Ora, ela começou a ficar intrigada quando o cachorro a seguiu novamente, porém guardando uma distância respeitosa, tentando com certeza, não assustá-la. “Acho que estou ficando louca, pensou a mulher, como ele pode estar tentando não me assustar?”

E assim foi no dia seguinte e no outro e nos outros que se seguiram. O cachorro esperava a mulher na esquina. Ela não afagava sua cabeça e ele não abanava a cauda. Apenas a seguia, até que, ao chegar no ponto do ônibus, ele a esperava subir na condução que a levaria para casa.

Era um cachorro diferente, concluiu a mulher. Nada pedia. Nem comida, nem afagos. Queria somente a sua companhia naquele breve trajeto. Ia satisfeito, caminhando ao seu lado e só retornava quando tinha certeza que ela havia entrado no ônibus. Uma vez a mulher saltou um ponto adiante e voltou correndo para descobrir aonde o cachorro ia. E encontrou-o parado no mesmo lugar. Não se mexera. Como se soubesse de antemão as suas intenções. Muito estranho... sentia-se como em um episódio do além da imaginação. Ou será que é pegadinha? É pegadinha, só pode ser, concordou olhando discretamente para os lados para ver se encontrava a câmera. Ela nunca achou a câmera escondida...mas o cachorro, esse estava lá, sempre, todos os dias, na esquina, em frente a romãzeira que perdeu as flores e ganhou frutos. E seus olhos brilhavam quando via a mulher. Era como uma espécie de dever: esperar e proteger. Porque é assim que ela se sentia: protegida. Mas por quê? Construía mil fantasias: era um extraterrestre. Estava numa missão importante: estudar os terráqueos, e entender como podiam sobreviver com suas vidas solitárias, com suas mesmices e desilusões. Só podia ser...

O importante é que a mulher passou a colorir seus dias com um tom outro que não o cinza. E quando pensava no cachorro, com seu jeito manso e nobre de cachorro velho e sábio, com aquele sorriso discreto no focinho repleto de pêlos brancos, a mulher iluminava-se, seu coração pulsava de um jeito diferente e ela arriscava-se a trautear uma melodia há muito esquecida que a fazia lembrar de pique, de roda, amarelinha e cama de gatos.

E a romãzeira perdeu os frutos. Suas sementes serviram para fazer amuletos de boa sorte no dia de Reis e o cachorro estava sempre lá. E esperava.

Fontes:
Projeto releituras
Imagem = http://mundodosgatinhosgatos.blogspot.com

Jorge de Andrade (A Moratória)

O texto teatral A Moratória, de Jorge Andrade, aborda a ruína de uma família proprietária de cafezais no interior do estado de São Paulo, em decorrência da crise financeira e da produção cafeeira, por volta dos anos de trânsito da década de 1920 para a 1930. Escrita em 1954, encenada pela primeira vez no ano seguinte, a peça emerge como um dos “fantasmas” da infância do autor.

A obra constitui um ato de reflexão sobre a realidade paulista em seus aspectos sociais, morais e psicológicos. O tema da decadência dos latifúndios cafeeiro representa o fim de toda uma classe patriarcal e semifeudal de aristocratas sucumbidos à crise econômica de 1929 e a nova ordem social imposta por Vargas em 1930. Ao mesmo tempo, focaliza em seu interior o conflito de gerações, o conflito de valores tradicionais em uma sociedade que vive a rápida mudança provocada pelo êxodo rural, pelo dilatamento das cidades e pelas mudanças das elites.

Centralizando o conflito está o velho Quim, um coronel à antiga, que vê os filhos e a mulher minguarem, saudosos dos velhos tempos e sem perspectivas de futuro. Ambientada em dois momentos - os anos de 1929 e 1932, antes e depois do desastre econômico, a estrutura dramatúrgica intercala cenas na casa da fazenda e cenas na pequena casa da cidade, onde a família passa a viver dos modestos ganhos dos filhos, especialmente de Lucília, que se torna costureira. Esse recurso permite ao autor apresentar o verso e o reverso das situações, justificando comportamentos e projetando expectativas. A alternância entre os dois momentos, mostrados simultaneamente, constitui-se no trunfo maior da arquitetura cênica de A Moratória.

Os diálogos são curtos, diretos, ora carregados de tensão, revolta, ora de ternura. Há poucos monólogos um pouco mais longos. A linguagem simples, coloquial justifica-se pelas cenas familiares reproduzidas.

ESPAÇO

A peça ocorre em dois planos: em um, uma sala espaçosa de uma antiga e tradicional fazenda de café; em outro, uma sala modesta mobiliada onde se vê, em primeiro plano, uma máquina de costura. É através desses dois cenários que o autor consegue fazer o presente e o passado próximo. O espectador, em um mesmo instante, através da mudança de planos, entra em contato com duas realidades distintas, ligada somente pelas personagens. Para efeito do resultado, a estória será narrada linearmente.

O espaço está associado a um passado heróico, aos antepassados, às famílias fundadoras. Joaquim rememora:

[...] Era um lugar virgem! Era um sertão virgem! A única maneira de se ganhar dinheiro era fazer queijos. Imagine, Lucília, enchiam de queijos um carro de bois e iam vender na cidade mais próxima, a quase duzentos quilômetros! Na volta traziam sal, ferramentas, tudo que era preciso na fazenda. Foram eles que, mais tarde, cederam as terras para fundar esta cidade. (1º Ato, p. 124).

Mas é a fazenda que alimenta os sonhos do cafeicultor: Nós vamos voltar para lá... (1º Ato, p. 130). E, às vezes, de sua filha Lucília: Replantaremos o nosso jardim! (1º Ato, p. 146). Morando na cidade, o ex-fazendeiro compra sementes de dálias (aliás, falido, troca um prendedor de gravata pelas sementes), cultiva um pé de jabuticabeira, a árvore tão presente na obra de Jorge Andrade, em um forte simbolismo das raízes.

A cidade é o lugar em que fica o banco para o qual Joaquim deve. É o lugar, também, onde trabalha Marcelo, seu filho, no frigorífico dos ingleses. Matamos mil e quinhentos bois por dia, dona Helena! (1º Ato, p 133), se exibe o filho para a mãe, Helena. Mas a mãe estranha esta atividade: [...] já imaginou a convivência que ele [Marcelo] tem lá no frigorífico? (1º Ato, p. 133). O filho, no entanto, ama a cidade, que “nunca esteve tão divertida!”

Ante a crise, aflora o temor da perda do lugar pelo que ele significa. Meu marido, meus filhos nasceram aqui..., se desespera Helena (1ºAto, p. 146). E aduz:
Sem a fazenda ele [o marido] não será ninguém. Vai se sentir inútil. (2º Ato, p. 151).

Helena tenta achar uma solução, explicando à filha o que a terra representa:

Se seu tio arrematar a fazenda, o Quim poderá continuar, trabalhar, morrer em suas terras. Há homens que não sabem, não podem viverfora de seu meio. Seu pai sempre morou na fazenda. Para nós, o mundo se resume nisto. Toda a nossa vida está aqui. (2º Ato, p. 151).

Mas Joaquim não aceita esta posição humilhante. A propriedade da terra, ser o dono dela fala tão mais forte que não entende como o seu endividamento poderia levá-lo à perda:

Meus direitos sobre essas terras não dependem de dívidas. Nasci e fui criado aqui. Aqui nasceram meus filhos. Aqui viveram meus pais. Isto é muito mais do que uma simples propriedade. É meu sangue! Não podem me fazer isto! (2º Ato, p. 166).

Várias leituras podem ser feitas deste trecho. Da manutenção de um status, a uma percepção de quem se considera com direito adquirido intocável e imutável até a incapacidade do ex-cafeicultor de compreender como a posição da sua classe havia sofrido um forte deslocamento, perdendo a posição na pirâmide social para outros segmentos que estão emergindo no mundo urbano. Como não compreende, Joaquim desdenha, desqualifica: [...] Uma gentinha, que não sei de onde veio, tomou conta de tudo! [...] Vivíamos muito bem sem elas. Gentinha! (2º Ato, p. 177).

TEMPO

Muitas marcas, ao longo do texto, apontam o confronto de tempos. Assim, no 1° Ato, Lucília, a filha do dono das terras de café, costura com pressa porque “meu serviço está atrasado”, enquanto o pai – Joaquim – responde: “Cada coisa em sua hora”, logo replicado pela filha: “Para quem tem muito tempo”. Ritmos de tempo diferenciados, entre a pressa e um tempo mais lento, encarnado em duas gerações diferentes.

O pai reafirma o seu tempo, quer prolongá-lo: “Pensa que sou igual a esses mocinhos de hoje?” “O médico disse que ainda tenho cem anos de vida”. Distingue-o
do tempo presente, por uma qualidade em detrimento deste: “Quando meus antepassados vieram de Pedreira das Almas para aqui, ainda não existia nada. Nem
gente desta espécie”. Mas as mudanças estão acontecendo. E para pior, como neste trecho representacional, em que os personagens se posicionam de forma diferente:

HELENA (mulher de Joaquim): Não suporto mais essa incerteza (1º Ato, p. 127), expressando a dificuldade de entender o que se passa;

ELVIRA (a irmã de Joaquim): Você não pode imaginar a situação em que estamos; [dirigindo-se a Helena (sua cunhada)]: A situação não é boa [...] São muito graves os acontecimentos. Vamos atravessar uma grande crise (1º Ato, p. 144), anunciando/enunciando o torvelinho que virá;

LUCÍLIA: Acontece que precisamos encarar a situação de frente, não há outra saída. [...] Aos poucos a situação melhora (1º Ato, p. 140), expressa o enfrentamento da crise e a esperança que as coisas mudem;

JOAQUIM: Ainda somos o que fomos (1º Ato, p. 141), manifesta a permanência, ou a vontade de, não acreditando que as coisas mudem.

As marcas textuais sinalizam, sob a forma de diálogos, um tempo de crise. Na parte final do 1º Ato, no diálogo entre as quatro personagens acima referidas, se
explicita a historicidade da crise: a queda dos preços do café, a não continuidade da política de defesa do produto pelo Governo “do Ditador”, o endividamento dos cafeicultores junto ao “Banco” (assim mesmo, grafado com Maiúscula, significativamente).

Presentes diversos tempos e diversos espaços na narrativa, a sua inter-relação é construída de forma original, não linear, com a predominância de uma temporalidade ou de outra em cada cena, ora o presente ora o passado, porém, com o “atravessamento” de um pelo outro. Em quase todas elas, há um contraponto com a outra temporalidade, não predominante. Em quase todas as cenas, há um fio que junge os dois tempos e os entrelaça.

O movimento entre os tempos, quando parte do presente como predominante, recua para um passado bem próximo e vai deslizando para um passado cada vez mais distante [do mais presente ao mais passado]. Quando o passado é o predominante, o tempo caminha cada vez mais para o futuro [do mais passado ao mais presente]. Assim, o binômio presente-passado foi estruturado de forma vertical e horizontal. A vertical consiste na leitura de um só tempo (presente ou passado) de cena para cena, apontando esse recuo ou esse avanço, conforme se enfoque o presente ou o passado. A horizontal consiste na leitura entre presente-passado e vice-versa no âmbito da mesma cena, apontando como o intervalo entre os tempos vai se estreitando.

SÍNTESE DO MOVIMENTO DOS TEMPOS

1º ATO - No 1º Ato, Jorge Andrade coloca todos os personagens do drama: Joaquim, Helena, Lucília, Marcelo, Elvira, e dois ausentes, mas referenciados – Augusto e Arlindo – que, não casualmente, serão as duas figuras que, de modos diferenciados, se relacionam com a ruína de Joaquim. Este parte da trama articula o tempo e o espaço com as seguintes marcas: 1ª cena: o processo de Joaquim no presente – Helena rezando na fazenda; 2ª cena: a religiosidade de Helena – a crise e a dívida; 3ª cena: Marcelo e seu trabalho, o trabalho de Lucília – o recado de Helena a Elvira; 4ª cena: A preguiça de Marcelo e o recado para Elvira, a indagação por Olímpio; 5ª cena: o casamento irrealizado de Lucila – a conversa do pai com Marcelo; 6ª cena: a conversa de Joaquim com Marcelo sobre o trabalho e a notícia do namoro de Lucília – Joaquim lendo jornais; 7ª cena: crítica à política, ao “Ditador” e ao PRP - Elvira chega à fazenda; 8ª cena: a crise relatada por Elvira – a moratória.

2º ATO
- o 2º Ato, tempo e espaço são marcados por alguns acontecimentos preponderantes: 1ª cena: a alegria de Joaquim, esperançoso – o desânimo de Helena, desesperançada; 2ª cena: continua a situação da cena anterior; 3ª cena: a crise e a situação de Joaquim se perder a fazenda – a situação de Joaquim diante da irmã; 4ª cena: notícia da perda da fazenda e a relação com o casamento de Lucília – a expectativa da comemoração e o conflito com Marcelo; 5ª cena: o duro conflito entre Joaquim e Marcelo, com a ordem para sair de casa – simultaneamente, a ordem para Olímpio sair da casa de Joaquim; 6ª cena: a fuga de Arlindo, a briga com Augusto e a esperança de Joaquim – a desesperança de Lucília; 7ª cena: a sentença do Tribunal indeferindo o pedido de nulidade – o começo do trabalho de Lucília como costureira.

3º ATO - No 3º Ato, as marcações entre passado e presente deram relevo a: 1ª cena: a consumação da perda da fazenda e as evocações do lugar – a possibilidade de Lucília parar de trabalhar; 2ª cena: a perda do processo por Joaquim e o conflito com Elvira – Joaquim com o galho da jabuticabeira; 3ª cena: preparativos para a saída da fazenda – a expectativa de dar a notícia sobre o processo a Joaquim; 4ª cena: o desfecho da narrativa, deixando a dúvida se Joaquim sabe – a evocação da fazenda.

PERSONAGENS

Joaquim - Protagonista da peça. Aparentemente autoritário, estúpido, prepotente, é, na verdadem um personagem lírico, que só mantém suas atitudes em função do papel que representa - coronel e pai. É capaz de gestos ternos, como arrumar os figurinos da filha, catar alfinetes e falar com carinho da terra. Tudo gira em torno dele; os outros são secundários.

Helena
- Esposa de Joaquim. Mulher prática, acostumada à materialidade e à ceitação ou submissão, encara as mudanças da fortuna de forma mais natural. Compartilha o saudosismo do marido em relação ao passado, mas também têm consciência de que viveram afastados e não evoluíram.

Marcelo - Nunca se interessara pela fazenda. Não permanece em nenhum emprego e ainda gasta o dinheiro suado na boemia, explorando a mãe. É o filho desesperançado, inadaptado, aquele que vive uma outra realidade que não a do pai, aquele que é capaz de proferir palavras rudes e no entanto, verdadeiras, apontando a terrível realidade: 'O senhor finge não perceber que não fazemos mais parte de nada, que nosso mundo está irremediavelmente destruído... As regras para viver são outras, regras que não compreendemos nem aceitamos... tudo agora é diferente, tudo mudou. Só nós é que não. Estamos aqui morrendo lentamente...'

Lucília - Realista diante dos reveses da sorte, trabalha para sustentar a família. A esta devotada, adia o casamento e ataca a tia por não ter ajudado o pai.

Elvira
- Tia de Lucília e Marcelo, irmã de Joaquim. Pouco aparece, mas representa a aristocracia que faz pequenas caridades humilhantes e se nega a ajudar o irmão na necessidade.

Olímpio
- Noivo de Lucília, é bacharel. Conseguiu cortar o cordão umbilicar da terra, saiu, viajou, e vê a situação com objetividade e senso crítico.

RESUMO

Quim [Joaquim] é fazendeiro de café, afeiçoado a terra, mas acaba sendo levado à ruína, por maus negócios. Tem setenta anos e representa o orgulho de um nome, já sem encontrar respaldo entre os cidadãos de uma cidade que está transformada com a presença de elementos estranhos à casta tradicional. Diz Joaquim: 'Não sei como, minha filha, mas de repente, senti como se estivesse só naquela cidade. Parecia que todas as portas estavam fechadas para mim. Eu não conhecia mais ninguém. Percebia que atrás das janelas todos me olhavam e... ninguém... ninguém...' Mergulhado em sua solidão, nutrido pela esperança de recuperação, só encontra amparo na família. A mulher Helena é a mais corajosa, soube enfrentar melhor a situação, e a filha Lucília tornou-se o arrimo da família, agora vivendo dos proventos de sua costura, uma vez que o irmão, Marcelo, não se adapta a nenhum emprego.

Fora da família estão Olímpio, advogado, filho do rival político de Quim, mas apaixonado Poe Lucília. Elvira, irmã de Quim, mulher rica e 'caridosa' que entrega café e outras coisas que vêm da fazenda em troca das costuras 'grátis' da sobrinha. Não tem filhos e vive envolvida com a assistência dada a um asilo. Nesse pequeno universo, as personagens vão sendo colocadas à mercê de um destino cruel. Quim, em torno do qual a história gira, alimenta uma esperança de retornar à fazenda, que foi à praça, para saldar as dívidas. A crise do café não permitiu a venda, a florada não foi boa; a chuva tardou, o governo não fixou um teto mínimo para o café, não há dinheiro. Só resta a esperança de poder recuperar a fazenda, a esperança de uma moratória que todos sabem não vir.

Lucília é filha solteirona que vê seu casamento com Olímpio frustrado pelo autoritarismo paterno. Não se entrega aos sonhos e às esperanças do pai, que acha poder reaver a fazenda. É ela que, com força e convicção, recupera a dignidade da família, costurando furiosamente. É ela que procura lutar pela realidade bruta, protegendo o pai contra as intempéries:

Se a senhora [Elvira] merecesse respeito, teria tido um pouco de amor por seu irmão, piedade ao menos. Gostaria que tivesse assistido à chegada deles, quando vieram da fazenda. Só aí poderia compreender até que ponto sofreram! Com o relógio, os quadros e esse... esse galho de jabuticabeira nas mãos... pareciam duas crianças assustadas, com medo de serem repreendidas. Através de cada gesto, de cada olhar, havia um pedido de perdão, como se eu... eu pudesse censurá-los em alguma coisa. Egoísta! A senhora é uma mulher má. Papai é mesmo de boa-fé, tem bom coração, caso contrário teria posto à senhora daqui para fora. O que eles sofreram, você e tio Augusto hão de pagar.

Com simplicidade, Jorge Andrade vai chegando ao clímax da peça, a hora da revelação e, conseqüentemente, a hora em que Joaquim se depara com a verdade / realidade, que nós, espectadores, conhecemos desde o primeiro momento. É pujante a dor de homem e a ela estamos irmanados pela indescritível capacidade da arte de fazer o tempo / espaço identificar-se com outro espaço / tempo do espectador.

Fonte:
Rosa Maria Godoy Silveira, Mestrado, Doutorado e Pós-Doutorado em História do Brasil - Universidade Federal da Paraíba (UFPB)
Profª Célia A. N. Passoni, Editora Núcleo | Itaú Cultural
Disponível em Passeiweb