quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

Adélia Prado/MG (Nuvens Poéticas II)


A SERENATA

Uma noite de lua pálida e gerânios
ele viria com boca e mão incríveis
tocar flauta no jardim.

Estou no começo do meu desespero
e só vejo dois caminhos:
ou viro doida ou santa.

Eu que rejeito e exprobo
o que não for natural como sangue e veias
descubro que estou chorando todo dia,
os cabelos entristecidos,
a pele assaltada de indecisão.

Quando ele vier, porque é certo que ele vem,
de que modo vou chegar ao balcão sem juventude?
A lua, os gerânios e ele serão os mesmos
- só a mulher entre as coisas envelhece.

De que modo vou abrir a janela, se não for doida?
Como a fecharei, se não for santa?

COM LICENÇA POÉTICA

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta,
anunciou: vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem, sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa me casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza
e ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos - dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria, sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

DONA DOIDA

Uma vez, quando eu era menina,
choveu grosso, com trovoada e clarões,
exatamente como chove agora.
Quando se pôde abrir as janelas,
as poças tremiam com os últimos pingos.
Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema,
decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos.
Fui buscar os chuchus e estou voltando agora,
trinta anos depois. Não encontrei minha mãe.
A mulher que me abriu a porta, riu de dona tão velha,
com sombrinha infantil e coxas à mostra.
Meus filhos me repudiaram envergonhados,
meu marido ficou triste até a morte,
eu fiquei doida no encalço.
Só melhoro quando chove.

CORRIDINHO

O amor quer abraçar e não pode.
A multidão em volta,
com seus olhos cediços,
põe caco de vidro no muro
para o amor desistir.
O amor usa o correio,
o correio trapaceia,
a carta não chega,
o amor fica sem saber se é ou não é.
O amor pega o cavalo,
desembarca do trem,
chega na porta cansado
de tanto caminhar a pé.
Fala a palavra açucena,
pede água, bebe café,
dorme na sua presença,
chupa bala de hortelã.
Tudo manha, truque, engenho:
é descuidar, o amor te pega,
te come, te molha todo.
Mas água o amor não é.

DOLORES

Hoje me deu tristeza,
sofri três tipos de medo
acrescido do fato irreversível:
não sou mais jovem.
Discuti política, feminismo,
a pertinência da reforma penal,
mas ao fim dos assuntos
tirava do bolso meu caquinho de espelho
e enchia os olhos de lágrimas:
não sou mais jovem.
As ciências não me deram socorro,
não tenho por definitivo consolo
o respeito dos moços.
Fui no Livro Sagrado
buscar perdão pra minha carne soberba
e lá estava escrito:

"Foi pela fé que também Sara, apesar da idade avançada,
se tornou capaz de ter uma descendência..."
Se alguém me fixasse, insisti ainda,
num quadro, numa poesia...
e fossem objetos de beleza os meus músculos frouxos...
Mas não quero. Exijo a sorte comum das mulheres nos tanques,
das que jamais verão seu nome impresso e no entanto
sustentam os pilares do mundo, porque mesmo viúvas dignas
não recusam casamento, antes acham sexo agradável,
condição para a normal alegria de amarrar uma tira no cabelo
e varrer a casa de manhã.
Uma tal esperança imploro a Deus.

Eduardo Campos (Três Peças Escolhidas)


O livro Três Peças Escolhidas, do cronista e romancista Eduardo Campos, reúne as peças Rosa do Lagamar, Morro do Ouro e A Donzela Desprezada. As duas primeiras foram dos maiores sucessos da Comédia Cearense, com prêmios em festivais pelo Brasil e temporadas em cartaz. Escritas em meados da década de 60, quando a cidade de Fortaleza começava a se expandir em bairros cada vez mais distantes e precários, elas continuam atuais, ao trazerem à cena dramática a questão da inclusão/exclusão social.

O estilo de Eduardo Campos é resultante de dois elementos formadores: de um lado, as aptidões artísticas nascidas do seu temperamento, de sua personalidade interior; de outro lado, as influências das idéias estéticas vigorantes na época e no meio em que ele manifestou e permaneceu.

Pelo seu regionalismo, podemos aproximá-lo de Graciliano Ramos e Raquel de Queiroz, e por ter utilizado o elemento chuva em sua obra À véspera do Dilúvio (1966), aproxima-se de Antonio Sales.

Eduardo Campos gosta de explorar o campo sensorial, no intuito de fixar bem as imagens descritivas.

Tem preferência pela descrição, pois, conscientemente, sabe que ela possui um apelo sensorial que permite ao observador delinear os elementos apresentados aos poucos, isto é, lentamente pela narrativa.

Essa preferência é importante porque a apresentação dos seus personagens é feita mostrando-os em ação. E, aos poucos, vai compondo o perfil dos caracteres psicossomáticos que os organizaram. Com exemplo, podemos citar, o tipo do agente ferroviário, o cangaceiro ou o delegado.

Eduardo Campos utiliza-se do discurso indireto livre que serve para expressar a fala ou o pensamento das personagens e que tem sido muito usado pelos autores contemporâneo através do narrador.

Quanto aos temas utilizados, que parecem sempre atuais, são frutos do homem contemporâneo que vive angustiado por descobrir o estado de abandono completo em que se encontra, mesmo em relação a seus semelhantes. Daí só lhe restar ironizar a própria sorte.

Em suas peças, procura denunciar, pela ficção, as injustiças sociais a que os personagens estão submetidos. A exposição delas é feita de tal modo que os expectadores não podem permanecer impassíveis. Antes ficam revoltados contra essas injustiças. Ao mesmo tempo são alertados para as táticas utilizadas pelos agentes do poder.

A solidariedade dá o tom aos protagonistas de Eduardo Campos, nestas três peças, onde há também uma denúncia de injustiça por parte do poder que nada faz para minimizar a situação de desamparo das populações desprivilegiadas, mas, ao contrário, procura alimentar-se desse estado de miséria para fortalecer-se.

O Morro do Ouro

Lá para os lados da Barra do Ceará fica o lugar conhecido desde os anos 50 como Morro do Ouro. Era uma comunidade pobre que surgiu em torno do aterro da cidade de Fortaleza, muito tempo antes do Jangurussu. Este é o cenário da peça que leva o mesmo nome, que tem como protagonista a prostituta Madalena e seu amante, o traficante do morro, Zé Valentão. É assim que ela é conhecida na zona. É uma mulher que veio do interior e, por não ter nenhuma qualificação, só encontrou um caminho para viver: prostituindo-se.

Os personagens que compõem a peça vão aparecendo, bem caracterizados. São eles: Ezequiel, cambista, vive do jogo do bicho, é bem humorado e tem sempre uma palavra para se sair das enroscadas, um jeito de rebater a quem lhe destrata; o Aleijado, que pede esmola e que se recusa a ir para um asilo do governo, porque, lá, não pode pedir esmolas, uma irônica, sarcástica e caricatural. É mais um personagem que compõe um conjunto de necessitados; o bodegueiro Patrício, as assistentes sociais, um candidato a vereador - dr. Gervásio, entre outros.

O drama retrata o conflito de Madalena com a chegada da mãe, beata, católica fervorosa e devota de Padre Cícero. Ela não quer que a mãe a identifique como prostituta da zona.

A história então começa com Madalena e Zé Valentão na cama, depois de uma noite de folia. O amante escapole antes que a polícia venha. É de manhã, e logo a favela fica animada com a chegada de uma máquina de costura, entregue ali por ordem do candidato.

Quem também chega são algumas assistentes sociais, e nestas cenas o autor põe à mostra o proselitismo oco, de um lado, e o tal espírito moleque do povão - picaresco e por isso tão escancaradamente verdadeiro, real. "Veja que estou aqui, saindo do meu conforto, para cuidar de vocês. (Olhando ao derredor). Que rua horrível! (Pausa). E esse mau cheiro? É sempre assim?", pergunta a assistente social. A lavadeira, trouxa na cabeça, responde: "Não, não sinto não... Será esta catinguinha? É do lixo! Todo o lixo da cidade é botado na rua". O tensão da peça começa com a chegada de dona Elvira, mãe de Madalena, que vem do interior e nem desconfia da vida que a filha leva. Com a ajuda dos amigos, ela disfarça suas "atividades".

Depois que sua mãe chega, tudo se modifica, porque, sendo devota, vai impor seu ritmo de vida aos demais moradores, e tais moradores modificam-se, realmente.

Logo, dona Elvira inventa uma novena em plena zona do cabaré, que consegue reunir todos os moradores. Mas ela não sabe que sua filha é prostituta, nem que o local onde mora é um cabaré. A sua inocência acaba contagiando os moradores.

A partir da preparação da novena, os moradores vão percebendo que a mudança é benéfica para eles. Assim, o bodegueiro, que só vendia cachaça, passa a vender refresco; o cambista (´Ezequiel´, cujo apelido é ´seu Fortuna´), em vez de fazer as pules do jogo, vende medalhas de santos, etc. Há, portanto, uma grande transformação no morro, e a personagem ´Elvira´, mãe de ´Madalena´, passa a ser a personagem mais importante, a protagonista, pelo menos durante os preparativos da novena.

A escolha do nome para a protagonista, Madalena, é uma referência bíblica, a amiga de Jesus, que se arrepende dos pecados e que passa a seguir os ensinamentos do Filho do Deus.

Os personagens estão juntos pela mesma condição de miserabilidade da favela, do lixão (como se diz hoje): a favela é chamada ´O Morro do Ouro´ por ironia, pois lá é despejado o lixo da cidade. Portanto, são personagens que vivem abaixo da linha da pobreza. É uma zona de risco, como se diz hoje.

Tais personagens, apesar da miserabilidade, estão unidos pela solidariedade. Mesmo com as brigas e com as desavenças que ocorrem, eles se ajudam, afinal estão todos num mesmo miserável espaço, daí o despertar da ajuda mútua ser quase instintivo.

As assistentes sociais, que para lá se deslocam, para ´estudar´ a vida dos miseráveis, são caricaturais, e o que elas fazem, anotando o cotidiano dos favelados em suas cadernetas de campo é motivo de riso.

Outro personagem caricatural é o político, ´Dr. Gervásio´, que é apresentado distribuindo máquinas de costurar, para trocar por votos. É malandro, desonesto, sem escrúpulos; há a sugestão de que ele só possui uma máquina, e que ele faz todo o jogo de enganação, dizendo que já distribuiu centenas delas, e que, quando for eleito, irá morar no Morro do Ouro, para ver como vive a pobreza: um discurso, portanto, demagógico, enganador e oportunista, que se vale da miserabilidade dos moradores da favela para deles tirar proveito.

Há um momento em que tudo muda, e em que se percebe um pequeno questionamento da protagonista.

Quando Zé Valentão sai da cadeia e procura Madalena, e vê que tudo está mudado, inclusive a própria Madalena, que, agora, usa vestidos de manga, comporta-se como uma senhora, ele não entende o que está ocorrendo e cobra de Madalena a antiga postura, o que ela revida dizendo que é outra, que vai mudar de vida, mas o namorado diz que ela é a ´quenga´ dele e que deve ir dizer isso para todo mundo.

É aqui o final e a parte mais tensa da peça. Madalena, por um instante, não sabe onde está a verdade dela: se é prostituta ou se é beata. O que decide o seu dilema é a grosseria de Zé Valentão, que rasga seu vestido, e Madalena, desamparada, corre para a rua e vai se abraçar com a mãe. É aqui que a peça termina.

Há, portanto, um final regenerador: é a Madalena arrependida da Bíblia.

A mensagem desta peça de Eduardo Campos está muito clara na transformação de todos os personagens.

É uma peça mais linear, de poucos questionamentos, mas extremamente realista, que representa muito bem todo o sofrimento da parcela excluída da sociedade.

Portanto, em Morro do Ouro, há a descrição da vida em uma favela de Fortaleza. Os personagens são representantes de um universo que reflete a conseqüências da miséria e do isolamento. A estes junta-se a ironia, que, por paradoxo, cria cenas de humor.

Essas cenas são percebidas por ocasião da visita das assistentes sociais, já citada, que vão ao morro fazer uma pesquisa e se escandalizam com a situação de pobreza e acham que está decore da falta de educação. Na realidade, o autor denuncia, através dessa peça, que os poderosos não têm a intenção de resolver os problemas, e muitos até se beneficiam com essa situação.

A Rosa do Lagamar

Em A Rosa do Lagamar, temos outra vez a presença de mulheres determinadas, fortes, que aprenderam a se virar sozinhas, e romperam os limites sexistas da moral e dos bons costumes sem discurso nem alarde. Como continuam a fazer, ainda agora. Rosa é uma batalhadora. Ela saiu do Lagamar e comprou um terreninho na Aldeota, onde montou uma birosca que serve café e refeições para os trabalhadores de uma obra em construção. O dono do casarão quer o terreno de Rosa, ela não vende. Mas acaba perdendo tudo, porque o documento que tem é falso. Na hora do despejo, Rosa pede para contar as telhas e caibros de sua casa, pela última vez. "São vinte e dois caibros e 72 telhas. Só depois que eu conto é que durmo. É um velho hábito de solidão".

A casa de Rosa estava situada, por um desses descuidos da administração municipal, em local onde, de futuro, se edificaria uma rua. Daquela, vê-se a sala da frente, que é a de uma tapera sem maiores pretensões, guarnecida de móveis rústicos, improvisados. À esquerda, além de parede divisória, avançava para a rua uma puxada a abrigar o recinto que servia de café e restaurante aos trabalhadores de construções do bairro que, embora o mais elegante da cidade, oferecia por vezes visível desigualdade de existência entre os seus habitantes. Adiante, na mesma linha de visão, uma pilha de tijolos e, de permeio a estes, material facilmente identificado como sendo de construção. À frente da casa e do lado direito nota-se, no desenrolar da ação, o trânsito de pessoas, como se de fato ali já se insinuasse uma rua. Na sala da frente da casa de Rosa, que é a dona da tapera e do café ao lado, tudo se assentando caprichosamente, demonstrando pulso forte, e também zelo, de mulher voluntariosa. Numa das paredes vê-se o retrato do marido, o capitão Crispim, que, saindo de Fortaleza como embarcadiço, nunca mais voltou ao lugar. Seu regresso, posto sempre em perspectiva, é um motivo de encanto e ao mesmo tempo de turbulência na vida de Rosa.

É madrugadinha quando se inicia a ação. Na semi-escuridão que ainda faz, destaca-se a figura de Rosa às voltas com os seus afazeres domésticos. Há um ir e vir no interior da casa, passando pela porta que dá acesso ao local do café, a conduzir xícaras, bandejas e confeitos que, é a impressão, prepara naquela ocasião.

A Donzela Desprezada

A Donzela Desprezada é a história de Amelinha, uma moça sonhadora, filha da viúva zeladora da igreja, que transa com o namorado, motorista do caminhão da entrega do gás. Ela é a candidata do partido azul, na quermesse da igreja. Quando a mãe descobre que a filha "se perdeu", fica maluca. Com a ajuda de um jornalista sensacionalista e um policial corrupto, ela convence a filha a dar parte do namorado ao delegado, para forçar o casamento. O motivo pode ter ficado, e ficou, anacrônico, mas a peça não: é arte. A capa do livro traz um óleo sobre tela do artista plástico Nogueira, Casamento no Arraial, bem de acordo com o colorido universo popular de Manelito Eduardo (como o dramaturgo também é conhecido).

O cenário amplo revela os diversos locais em que se desenrolam as cenas.

À esquerda, o quarto de Amelinha, personagem principal da história. Cômodo, modesto, com cama, da qual se verá apenas o essencial, afim de que haja espaço suficiente para as posteriores marcações solicitadas.

Defronte ao espectador, tomando boa porção do palco, o sítio propriamente dito da quermesse, com um bar de três mesas de ferro e cadeiras. Ao lado direito a barraca ou quarto da cartomante, onde Lolita faz a leitura do baralho. Há cerca improvisada partindo do canto esquerdo do bar, a se estender até o proscênio, e, nela, o portão de acesso para a quermesse. Quando corre o pano, Lolita está sentada a uma mesinha entretida com o baralho, deitando-lhe as cartas em cruz. O bar, soturno, não começou a operar mas transcorrem preparativos para a noitada. Soam as seis horas da tarde. O quarto de Amelinha segue no escuro, mas distinguida aí a sua presença. Está sentada na cama, de combinação, e metida em visível prostração. De momento a momento ergue as mãos à cabeça, como se quisesse segurá-la, enquanto os seus movimentos não disfarçam o desespero que a acode.

No outro lado do palco, após instante, Lolita levanta-se. A uma espécie de armário de vidro vai apanhar um vidro de remédio. Serve-se em colher de sopa. Nauseada, treme. Treme e tosse. E cessa de tossir quando bebe a segunda dose. Nessa hora desce até a mesinha, onde estava, e retoma o trato das cartas. De repente a luz do quarto de Amelinha... é estabelecida por Valdelice, que, do interior, veio verificar a razão do silêncio.

Fonte parcial:
Teatro Completo de Eduardo Campos, Vol. II, UFC. Disponível em Passeiweb

Hermoclydes S. Franco (Parque Itatiaia: A Natureza , O Poeta e o Insensato)

Fotos de Parque Nacional do Itatiaia
Essa foto de Parque Nacional do Itatiaia é cortesia do TripAdvisor

A NATUREZA

Itatiaia, parque dos meus sonhos,
Monumento vivo à natureza,
Desfrutar teu verde exuberante
É escutar os sons do teu silêncio!...
Itatiaia, mundo de emoções,
Dos regatos límpidos, travessos,
Dos sagüis brejeiros, assustados,
Dos ipês valentes, mais floridos!...
Nas manhãs de inverno, entre neblinas,
Nos teus bosques voam, peregrinas,
A ves livres, lindas borboletas,
Beija-flores gentis e sensuais...

O POETA

Quantos versos de amor inspiraste,
No esplendor de tua mata virgem,
No remanso de tuas colinas,
Nas tardes de rubro por-do-sol...
Quantas noites claras e formosas,
De luar prateando a serrania...
Sonha o poeta que sempre conserves
O mágico esplendor e a realeza!...
Na pureza dos teus mananciais,
Corre a seiva livre da poesia
Que alimenta a lira do poeta
Ao tanger dos lindos madrigais!...

O INSENSATO

Eis que existe o homem do machado.
O insensato da tocha incendiária,
O inimigo cruel, destruidor,
Que não tendo os olhos do pintor,
Nem a alma gêmea à do poeta
Ou, sutil, a argúcia da mulher,
Vai – com fúria vil, devastadora –
Queimando a floresta sem piedade,
Represando os rios de águas mansas.
Massacrando pássaros e plantas...
...Tal o algoz mortal da natureza,
Por si mesmo antítese da vida!


Poema vencedor do Concurso Nacional “O Homem e a Natureza” comemorativo do cinquentenário do Parque Nacional de itatiaia, Resende/RJ - 1987

Fonte:
Poema enviado pelo autor

Ademar Macedo (Mensagens Poética n. 474)

Uma Trova de Ademar

Uma Trova Nacional

Que importa ao dono da cova
laje limpa, vela e flor!
É na vida que se prova
em atenções, o amor!
–ELIANA PALMA/PR–

Uma Trova Potiguar


Divagando, sem guarida...
Sem destino, seminua...
A menina desvalida
vende o seu corpo na rua.
–DJALMA MOTA/RN–

...E Suas Trovas Ficaram


Fui alegre, e tive sonho,
dei todo o amor que era meu,
alegrei alguém tristonho:
– Hoje o tristonho sou eu!
– P. DE PETRUS/RJ -

Uma Trova Premiada


2011 - Niterói/RJ
Tema: MEMÓRIA - Venc.


Seu amor foi pesadelo,
mas, dos meus sonhos não sai...
Sempre que tento esquecê-lo,
minha memória... me trai!
–THEREZINHA DIEGUEZ BRISOLLA/SP–

Simplesmente Poesia

M O T E :
DIRCE DAVENIA GUAYATO/PR


No silêncio é que floresce,
com Deus, uma comunhão,
que é firmada pela prece,
nascida no coração.

GLOSA :
ANTONIO JURACI SIQUEIRA/PA


No silêncio é que floresce,
as mais lindas intenções,
o coração enternece
ao ver pura as emoções.

Firmamos, ao meditar,
com Deus, uma comunhão,
se o pensamento parar,
ouvimos o coração.

De paz a mente abastece,
libertando deste mundo,
que é firmada pela prece,
ao levitar num segundo.

A fé tem que ser real,
tem que gerar emoção
acima de qualquer mal,
nascida no coração.

Estrofe do Dia

O dinheiro na verdade
compra iate e avião,
casa de praia, mansão
e carros em quantidade;
não compra a felicidade
nem um amor verdadeiro,
nesse caso o financeiro
perde toda a serventia;
amor não se financia
nem se compra com dinheiro!
–IPONAX VILA NOVA/PE–

Soneto do Dia

Mil Luzes
–GABRIEL BICALHO/MG–


Odiar-te, ao menos uma vez, odiar-te!
Como se odiasse tudo quanto é feio:
do frio bisturi que te reparte
ao duro “silicone” do teu seio.

Odiar-te, ao menos uma vez, odiar-te!
Como se amasse e odiasse, meio a meio,
teu corpo transformado em obra de arte
e a torpe cirurgia em nosso enleio.

De ódio tão cego quase me rejeito,
ao ver-te retocada e sem defeito,
estátua que a vaidade perpetua!

E quando tu me expulsas do teu leito,
apaga-se esta chama no meu peito
e acendem-se mil luzes, lá, na rua!

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Guerra Junqueiro (Inconveniente da Riqueza)


Um dia Nosso Senhor Jesus Cristo, viajando na Alsácia, foi surpreendido pela noite à entrada de uma aldeia. Procurou de um lado para o outro uma casa, onde pudesse pedir pousada, mas as portas estavam todas fechadas, não se via nem um raio de luz através das janelas, tudo estava adormecido. Apenas no fim de um beco se ouvia o barulho de mangual com que se bate o trigo, e nesse sítio havia uma pequenina luz. Nosso Senhor dirigiu-se para lá, chegou rente do muro de uma quinta, e bateu à porta. Foi um camponês que lha veio abrir.

– Faz-me um favor, disse-lhe o bom Jesus, de me dar agasalho por esta noite? Não se há-de arrepender.

E acrescentou:

– Visto que já todos estão deitados, para que é que você está ainda a trabalhar?

– Ora, respondeu o camponês, soube ontem à noite que ia ser perseguido por um credor sem entranhas se lhe não pagasse amanhã o que lhe devo, portanto eu e meus filhos estamos a bater o pouco trigo que colhi, para o vender no mercado, e pagar a minha dívida. Depois não nos fica nada, e não sei como havemos de atravessar o Inverno. Seja o que Deus quiser!

Ao dizer isto o camponês limpava o suor da testa, e passava a mão pelos olhos arrasados de lágrimas. O Senhor teve dó dele, e disse-lhe:

– Não desanimes. Quando te pedi hospitalidade, disse-te que não te havias de arrepender de ma haver dado. Vou provar-te.

Pegou na candeia, que estava suspensa de uma das traves do celeiro, e aproximou-a do trigo.

– Que vai fazer? disseram assustados os trabalhadores, vai deitar fogo a tudo?

Mas no mesmo instante, da palha, que eles receavam ver inflamar-se, de cada espiga, desceu uma chuva de grãos prodigiosa. Á vista de um tal milagre os camponeses maravilhados caíram de joelhos.

– Visto que foste caritativo, disse Jesus, visto que recebeste na tua pobreza o forasteiro que veio ter contigo como um pobre mendigo, serás recompensado. Foi Deus que entrou na tua fazenda, é Deus que te enriquece.

Dito isto desapareceu.

E a chuva dos grãos não parou em toda a noite, e fez um monte tão alto como a igreja.

O camponês pagou as suas dívidas, comprou terras, e construiu uma bela casa. Era rico, e tornou-se altivo com os pobres. Ele e seus filhos adquiriram costumes perdulários, tanto e tanto fizeram, que se arruinaram e, como tinham sido maus nos tempos em que eram ricos, ninguém os ajudou na sua miséria. Uma noite o velho camponês, que bebera enormemente, entrou no celeiro, e, recordando-se do milagre que o enriquecera, imaginou que também ele o poderia fazer. Agarrou na candeia, aproximou-a de um feixe de palha, comunicou-lhe o fogo, ardeu a casa e tudo o que lhe restava, e passado tempo morreu na miséria mais absoluta.

Fonte:
Guerra Junqueiro. Contos para a infância.

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Pó de Pirlimpimpim - I - O burro falante


Dona Benta estava na cozinha conversando com tia Nastácia.

— Que terá havido? — dizia ela. — Os meninos ontem foram para a cama cedo demais. Percebi logo que era sinal de grossa travessura para hoje. De manhã, quando me levantei não vi nenhum. Tinham sumido sem ao menos tomarem café. Por onde andarão os diabretes?

A negra, que estava frigindo uns lambaris, apenas disse:

— Essas crianças fazem coisas da gente se benzer com as duas mãos, sinhá. Com certeza foram visitar algum rei lá na terra das fadas. Mas não se incomode, sinhá. Quando a fome der, largam todos os reis do mundo para virem correndo atrás destes lambarizinhos fritos.

— Inda é o que vale — concordou dona Benta. — A fome é a única coisa que faz Pedrinho e Narizinho não se separarem de nós...

Isso foi daquela vez em que partiram com o Peninha para a primeira viagem maravilhosa. Eles ainda não tinham voltado, mas já vinham vindo.

O relógio bateu seis horas.

— Tão tarde já, Nastácia! Estou com medo que lhes tenha acontecido qualquer coisa... — disse dona Benta apreensiva, indo postar-se na varanda, de olhos na estrada.

Minutos depois viu lá longe uma nuvem de poeira.

— Vem vindo um cavaleiro! Ande, Nastácia, você que tem melhor vista, venha ver se descobre quem é.

A negra veio da cozinha, com a colher de pau na mão, e olhou.

— São eles, sinhá. Vêm tudo encarapitado num burro. Credo! Até parece bruxaria...

O burro vinha na galopada e breve parou no terreiro com sua penca de gente no lombo. Peninha montava no meio, trazendo o Visconde na mão; Narizinho montava à garupa, com a Emília no bolso; Pedrinho ocupava a frente.

Pularam do animal e dirigiram-se para a varanda.

— Que coisa esquisita! — murmurou tia Nastácia — Repare, sinhá, que o Visconde vem pendurado no ar, com uma pena de papagaio voando em cima dele...

— Boa tarde, vovó! — gritou Narizinho ao pisar o primeiro degrau da escada. — Aqui estamos de novo, depois dum dia inteiro de aventuras espantosas...

— Estou vendo – respondeu dona Benta — e muito contente fico de nada de mau ter acontecido. Mas não posso compreender o que significa essa coisa do Visconde vir pendurado no ar, com aquela pena em cima...

Os meninos deram uma gargalhada.

-Nem que a senhora pense um século é capaz de adivinhar, vovó! Veja se consegue...

Dona Benta olhou, olhou, pensou, pensou e nada. Consultou a negra com os olhos. Depois disse:

— Impossível. Diga logo, que já estou ficando aflita.

— É o Peninha! — berrou Emília. A velha ficou na mesma. |

— É o Peninha que vem carregando o Visconde! — berrou a boneca inda mais alto.

A boa senhora olhou para a negra, fazendo beiço. Não entendia nada. Narizinho então teve dó dela e contou a história inteira do menino invisível que os levara ao País das Fábulas.

— Ele vem carregando o Visconde, mas como é invisível a gente só vê o Visconde...

As duas velhas não tiveram palavras para comentar o maravilhoso caso. Limitaram-se a abrir a boca, com os olhos fixos na peninha.

Nisto o burro relinchou no terreiro. Todos voltaram o rosto. Dona Benta perguntou de quem era o animal.

— De ninguém — respondeu o menino. — É nosso. Salvamo-lo das unhas do tigre e agora está tão amigo que vem morar conosco para sempre.

— É bom de marcha?

— Mais que isso, vovó. É um burro falante...

Os olhos da negra, já tão arregalados, arregalaram-se ainda mais e sua boca abriu, abriu, abriu de caber dentro uma laranja. Burro falante! Era demais...

— Será possível, sinhá? Mecê acredita?...

— Tudo é possível, Nastácia. Se papagaio fala, por que não há de falar um burro?

— Mas ele não fala como papagaio, vovó — explicou Pedrinho. — Papagaio só repete o que a gente diz. Este burro pensa para falar. Se a senhora ouvisse o discurso dele na assembléia dos animais pesteados, havia de ficar boba de espanto.

— Nesse caso, precisamos recebê-lo com toda a consideração.

Nastácia, leve-lhe umas espigas de milho bem bonitas e água bem fresca.

A negra obedeceu. Foi ao paiol escolher as melhores espigas e encheu uma vasilha com água da talha. Mas quando chegou ao terreiro parou, sem ânimo de aproximar-se do burro.

— Não tenho coragem, sinhá! — disse ela virando os olhos para dona Benta. — Se ele me diz uma graça, caio para trás, de susto...

— Não seja boba! Ele tem cara de pessoa muito séria.

A negra deu mais dois passos e parou de novo. Não tinha coragem!... O mais que fez foi botar o milho no chão, sobre uma toalha, com a vasilha d’água ao lado, murmurando:

— Ele se quiser que venha até aqui. Eu é que não chego perto — e recuou uns passos, para ver.

O burro compreendeu o medo muito natural da negra. Foi-se chegando devagarinho e comeu o milho e bebeu a água tão gostosa.

Mas como fosse de muita educação, lambeu discretamente os beiços.

— Muito obrigado, tia. Deus lhe pague — murmurou com toda a clareza.

— Acuda, sinhá! — berrou a pobre preta. — Fala Mesmo, o canhoto! — e botou-se para a cozinha, fazendo mais de vinte sinais-da-cruz.
––––––––––––––
Continua… O Pó de Pirlimpimpim – I - O burro falante

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

A. A. de Assis (A Província do Guairá: Um pouco da história do antes de Maringá) Parte 5


A DESTRUIÇÃO TOTAL

-A impunidade estimulou Raposo Tavares e seu bando a continuarem o massacre. Voltando meses após à região do Guairá, vasculharam as áreas habitadas, arrasando uma a uma as reduções e prendendo nativos. Em pouco tempo, das missões do Paraná, restaram apenas ruínas. Nas proximidades da atual Guaíra e nas margens do rio Paranapanema existem ainda hoje alguns vestígios. Quanto aos índios, há documentos segundo os quais, em três anos, de 1629 a 1632, só nos mercados do Rio de Janeiro e do Nordeste foram vendidos mais de 60 mil escravos levados do Guairá, sem falar dos que ficaram em São Paulo. Passaram-se muitos anos até que outros grupos indígenas voltassem a radicar-se nestas terras, estabelecendo-se principalmente nas margens do Tibagi. Tivemos aqui o longo tempo de silêncio, após a destruição das reduções.

-E o que aconteceu a Catu e Bartolomeu?

-Durante várias horas, no ataque à redução de Santo Antônio, o bravo Torales permaneceu ao lado do padre Mola, ajudando-o na inútil tentativa de acalmar a fúria dos paulistas. No final, por insistência do próprio jesuíta, Bartolomeu colocou nas costas o menino, abriu caminho entre os homens de RaposoTavares e conseguiu escapar, alcançando a mata e retornando a Ciudad Real. Foram muitos dias de caminhada, ao longo da qual, a cada índio que encontrava, ia recomendando que fugisse para bem longe. Já em casa, entregou à sua mulher Natividade o novo filho, o indiozinho Catu, e foi a Villa Rica na esperança de convencer os espanhóis a enfrentarem os bandeirantes. Porém tudo em vão. Os castelhanos, no fundo, estavam gostando daquela desgraça. Não apenas por ser uma forma de vingança contra os jesuítas, mas principalmente porque, sem a presença dos padres, estariam à vontade para também submeter os nativos. Chegaram a armar ciladas aos índios fugitivos, de modo que os que escapavam dos bandeirantes iam cair nas malhas dos espanhóis.

-As povoações espanholas foram poupadas?...

-Há um ditado segundo o qual “castigo vem a cavalo”... Foi oque aconteceu: não havendo mais índios para capturar, os paulistas invadiram Ciudad Real e Villa Rica, saquearam as casas e destruíram tudo, expulsando os colonizadores castelhanos. Isso se deu no ano de 1632, e foi assim que a florescente Província do Guairá deixou de ser uma extensão do Paraguai e passou a integrar o território brasileiro, incorporando-se a São Paulo.

-Nesse aspecto os bandeirantes foram úteis...

-Pois é: credita-se a eles o mérito de haverem conquistado para o Brasil as ricas terras do Paraná. Pena que, nessa façanha, tenham praticado tanta crueldade contra os indígenas, os primeiros e verdadeiros donos destas terras.

-Os índios que conseguiram escapar, para onde foram?

-Guiados pelo padre Montoya, cerca de 12 mil nativos puderam salvar-se, num doloroso êxodo talvez somente comparável ao liderado por Moisés na fuga dos hebreus do Egito. Reunidos na foz do Paranapanema, alguns migraram para o Mato Grosso, outros para o Paraguai e Argentina e a maioria para o oeste do Rio Grande do Sul, estabelecendo-se ao longo do rio Uruguai. Formou-se ali o novo Território das Missões, mas tarde também arrasado.

-Pelos mesmos paulistas?

-Sempre empenhados na caça aos índios, e satisfazendo aos interesses de Portugal em expandir seus domínios, os paulistas continuaram nas pegadas dos jesuítas. Nessa altura, desde 1640, Portugal já havia restaurado a independência, acentuando-se ainda mais a rivalidade com os castelhanos.

-O oeste gaúcho era espanhol ou português?

-Pertencia à Espanha, mas a conquista da área era de decisiva importância para os portugueses, que por isso insistiam em tomá-la. Aquelas novas reduções ofereciam, entretanto, melhores condições de defesa: as casas eram de pedra e os índios haviam aprendido a utilizar armas de fogo. Em diversas tentativas de assalto, os paulistas encontraram resistência e tiveram de recuar. E foi assim que as missões puderam seguir prosperando, com os índios alcançando alto nível de tecnologia, tanto na agropecuária como também na arquitetura, no artesanato, na medicina, na fundição de metais, na operação de moinhos e engenhos.

-Até quando?

-Até 1750, quando os paulistas voltaram à carga com força total. Naquele ano foi assinado o Tratado de Madri, pelo qual os portugueses entregavam aos espanhóis a Colônia do Livramento (hoje pertencente ao Uruguai) e recebiam em troca a área gaúcha onde estavam as missões jesuíticas. O marquês de Pombal era na época o homem forte do governo de Lisboa e foi dele que partiu a ordem no sentido de que os nativos deixassem imediatamente aquelas terras. Trinta mil índios impiedosamente condenados a abandonar casas, igrejas, escolas, oficinas, rebanhos, campos cultivados, tudo o que construíram com tanto sacrifício durante anos e anos. A fim de evitar violência, os padres chegaram a insistir com os índios para que obedecessem à ordem de despejo. Eles, porém, revoltados, decidiram lutar até o fim. Foram covardemente esmagados, numa das mais perversas carnificinas que a nossa história registra.

-E o sonho acabou!

-Inimigo mortal dos jesuítas, Pombal lançou contra eles toda espécie de injúria, terminando por expulsá-los do Brasil. Das missões do rio Uruguai ficaram para a posteridade umas poucas ruínas, entre as quais se destacam as de São Miguel, perto de Santo Ângelo. No lado argentino, onde os jesuítas e os índios foram igualmente perseguidos, são bastante conhecidas as ruínas de San Inazio Mini, a poucos quilômetros de Posadas, na província de Misiones. Há também sinais daquelas antigas aldeias em território paraguaio.

-Viraram atração turística?...

-Mas constituem, sobretudo, um precioso campo de estudo para todos os que se interessam pela história da América do Sul. Vale a pena visitar o Território das Missões. Dá um nó na garganta, porém o que se preservou é um verdadeiro tesouro histórico, hoje em grande parte sob proteção da Unesco.

-Foi o que sobrou de toda aquela comovente experiência de promoção do índio...

-Lamentavelmente, foi o que sobrou do choque entre os bons propósitos dos jesuítas e as ambições de portugueses e espanhóis. Uma epopeia que somente no Juízo Final será devidamente avaliada em toda a sua dimensão.

A GRANDE VIAGEM

-Com isso perdemos outra vez o fio da meada. Que destino tomaram afinal os Torales?

-Voltemos a 1632. Arrasadas pelos bandeirantes as reduções jesuíticas e as povoações espanholas do Guairá, Bartolomeu Torales reuniu mulher e filhos, entre os quais Francisco (o nosso Catu), mais alguns índios agregados à família, e refugiou-se na ilha Grande, no rio Paraná.

-O velho Paranazão. Fale-me um pouco dele...

-Em guarani, “para” é “rio” e “nã” significa “largo”. O rio Paraná (ou rio largo) forma-se na confluência de dois outros rios: o Grande e o Paranaíba. O rio Grande nasce em Minas Gerais, na serra da Mantiqueira, a 14 quilômetros das Agulhas Negras, mil metros acima do nível do mar. Após percorrer 1.450 quilômetros, dividindo os estados de Minas Gerais e São Paulo, recebe o Paranaíba, que nasce também em Minas, no município de Carmo do Paranaíba, e separa o estado de Minas dos estados de Goiás e Mato Grosso. A confluência do Grande e do Paranaíba ocorre no vértice do Triângulo Mineiro, onde se forma o rio Paraná, que por sua vez serve de limite entre os estados do Mato Grosso e São Paulo, até receber o Paranapanema, e do Mato Grosso do Sul e Paraná, logo abaixo. Separa ainda o Brasil do Paraguai, e depois o Paraguai da Argentina, até receber o rio Paraguai; mais abaixo recebe o rio Uruguai e desce até aponta de Maldonado, onde passa a chamar-se rio da Prata, banhando Montevidéu e Buenos Aires. Sua extensão total é de 4.290 quilômetros, e é o quinto rio do mundo.

-Não era preciso dar tantos detalhes... O senhor dizia que os Torales se refugiaram na ilha Grande...

-A intenção de Bartolomeu era atravessar para o Mato Grosso e alcançar Assunção. Todavia, durante a permanência na ilha, mudou de planos. Concluiu que se o Guairá passara agora a ser parte do Brasil, e se ali ele nascera, então brasileiro era. O mais lógico, portanto, seria permanecer do lado de cá.

-Parabéns para o Brasil, que ganhou um valente cidadão!

-O pequeno grupo subiu de canoa o rio Paraná até a foz do Ivaí, onde Bartolomeu teve notícia de que ainda havia paulistas patrulhando as margens do Paranapanema. Seu projeto inicial era alcançar o rio Tietê e prosseguir na direção de São Paulo. Querendo, porém, evitar encontros com os furiosos bandeirantes, mudou de rota, subindo com sua gente o Ivaí.

-Percorreram então a futura Hidrovia do Ivaí...

-Isso aí. E quem sabe algum dia apareça mesmo um governante peitudo capaz de tornar realidade essa obra tão sonhada... Mas vamos lá: enfrentando a correnteza, navegaram até o salto Bananeira, nas imediações da atual Ivatuba, bem próximo de onde está o meu sitiozinho comprado em 1942.

-Coincidência, ou o senhor escolheu o local em homenagem aos seus antepassados?

-Escolhi a propósito. Fui ao escritório da Companhia Melhoramentos, pedi o mapa e pus o dedo no ponto onde os Torales acamparam. Pois bem: sendo difícil continuar rio acima, devido às cachoeiras, o grupo ergueu ranchos e permaneceu ali cerca de duas semanas. Segundo seus cálculos, Bartolomeu concluiu que estava bem ao lado da linha do Trópico de Capricórnio. Assim, indo por terra em linha reta, chegaria ao destino pretendido: o planalto de São Paulo de Piratininga.

-Nesse caso, passaram por aqui...

-Estou convencido de que sim, uma vez que Maringá se ergueu exatamente em cima da linha do Trópico de Capricórnio.

-Talvez tenham acampado também neste lugar onde agora estamos...

-Quem sabe? Com auxílio da bússola, seguindo sempre na direção leste, os Torales continuaram a grande caminhada aproveitando trilhas de índio se abrindo picadas a golpes de facão. Passaram certamente por onde está Arapongas, lá na frente Nova Fátima, Ribeirão do Pinhal, Carlópolis, atravessaram a área onde se encontra hoje a represa de Xavantes. Chegando a Sorocaba, povoação já bastante movimentada, gostaram do lugar, fizeram amigos, decidiram ficar ali.

-Quanto tempo durou a viagem?

-Uns seis meses, no mínimo. Segundo histórias que meu avô João Afonso contava, e que ele por sua vez ouviu de parentes mais antigos, os Torales chegaram a Sorocaba em 1633, integrando-se às famílias pioneiras da vila. Vinte e um anos depois, em 1654, Catu já homem feito, casado com uma portuguesa chamada Ana Manuela, a família deixou Sorocaba. O inquieto Bartolomeu ouvira falar das minas de ouro de Paranaguá e, embora já estivesse com 57 anos deidade, mas ainda com saúde de ferro, juntou outra vez mulher, filhos e agregados, vendeu tudo o que tinha e partiu para novas aventuras.
–––––––––––-
continua…

O e-book pode ser feito o download no blog do Assis http://aadeassis.blogspot.com

Fonte:
A. A. de Assis (A Província do Guairá: Um pouco da história do antes de Maringá). e-book. 2011.

Mia Couto (Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra)


Na obra Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, Mia Couto transporta-nos para um universo onde sentimos de tal forma o pulsar da África, que chegamos a sentir saudades desse continente, mesmo sem nunca ter estado lá. Este livro mostra a preocupação do autor em preservar algumas tradições moçambicanas, sem referir-se diretamente a questões políticas, mas aflorando os confrontos e conflitos de uma realidade comum a um dos países mais pobres do mundo. Tudo com uma linguagem lúdica, criativa, que não se envergonha nem mesmo de trocadilhos, capaz de fazer lembrar o falar das veredas do sertão de Guimarães Rosa.

Na obra somos levados a visitar os últimos 50 anos da história de Moçambique pela pena de um poeta que escreve em prosa. "Nenhum país é tão pequeno como o nosso. Nele só existem dois lugares: a cidade e a Ilha. A separá-los, apenas um rio. Aquelas águas, porém, afastam mais que a sua própria distância. Entre um e outro lado reside um infinito. São duas nações, mais longínquas que planetas. Somos um povo, sim, mas de duas gentes, duas almas." (pág. 18).

É uma história que se situa num período de paz, depois de 16 anos de guerra. O autor viveu, praticamente, quase metade de sua vida sob o fogo cruzado da guerra. Primeiro, de 1972 a 1975, ainda adolescente, como membro da Frelimo, a frente de libertação liderada por Samora Machel. Depois, a guerra com a Rodésia e, em seguida, a guerra civil que destruiu o sonho de uma geração que pensava ser possível criar uma nação próspera, capaz de enfrentar o futuro com dignidade.

Fruto de um tempo de sonhada paz, Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra não traz a amargura que se sente em outras obras, de épocas mais duras. Enfim, sem esse viés, não se compreende este livro: Luar-do-Chão encontra-se num estado de abandono, miséria e decadência que deixa claro que o sonho de Samora Machel e seus seguidores ficou longe de se concretizar. A realidade pós-colonial é ainda pior.

No livro, o estudante universitário Mariano volta a sua terra natal para o funeral do avô. Enquanto aguarda pela cerimônia ele é testemunha de estranhas visitações na forma de pessoas e de cartas que lhe chegam do outro lado do mundo. São revelações de um universo dominado por uma espiritualidade que ele vai reaprendendo. À medida que se apercebe desse universo frágil e ameaçado, ele redescobre uma outra história para a sua própria vida e para a da sua terra.

Em Luar-do-Chão, uma misteriosa ilha de acontecimentos fantásticos, ele precisa solucionar um conflito íntimo, semelhante ao dilema da África pós-colonial. Esta Ilha vai representar para o protagonista um reencontro consigo próprio.

Manhã cedo me ergo e vou à deriva. (...) Pretendo apenas visitar o passado. Dirijo-me às encostas onde, em menino, eu pastoreava os rebanhos da família. As cabras ainda ali estão, transmalhadas. Parecem as mesmas esquecidas de morrer. Se afastam, sem pressa, dando passagem. Para elas, todo o homem deve ser pastor. Alguma razão têm. Em Luar-do-Chão não conheço quem não tenha pastoreado cabra. Ao pastoreio devo a habilidade de sonhar. Foi um pastor quem inventou o primeiro sonho. Ali, face ao nada, esperando apenas o tempo, todo o pastor entreteceu fantasias com o fio da solidão. As cabras me atiram para lembranças antigas. (pág. 190)

A pretexto do relato das extraordinárias peripécias que rodeiam o funeral do avô de Mariano, este romance traduz, de uma forma ao mesmo tempo irônica e profundamente poética, a situação de conflito vivida por uma elite ambiciosa e culturalmente distanciada da maioria rural.

Certamente, nos familiarizamos com as personagens de Mia Couto, que poderiam habitar muitas de nossas regiões, com suas rezas e segredos. No entanto, o assalto aos valores desse povoado muito diz, como já citado, sobre a própria história de Moçambique, e mais além, sobre a situação atual do homem moderno em qualquer parte do mundo, exilado de sua coletividade e de suas crenças, errante num universo onde sua existência individual carece de importância. O autor aborda o confronto entre dois universos diferentes: o capitalista e urbano construído em torno das idéias de progresso e modernidade, e o religioso e mítico dominado pelos valores ancestrais da comunidade, cuja independência se apresenta recente.

Esse encontro se expressa nas surpresas e angústias de Mariano (personagem-protagonista), que ao redescobrir a sua comunidade, conhecerá também a sua própria história. Nascido na ilha, mas habitante da cidade, o jovem é obrigado pelas circunstâncias a um novo olhar para as tradições regionais que se impõem soberanas.

Ele irá transitar nos domínios natural e sobrenatural de Luar-do-Chão, onde o sagrado impera no mais banal e cotidiano, e as histórias individuais estão profundamente ligadas aos destinos da coletividade e da ilha. As tradições, descritas com seus ritos e princípios éticos, são construídas de forma a nos dar a dimensão da estreita ligação dos homens à Nyumba-Kaya, a casa, a legítima morada, bela lembrança de uma África originária.

Mariano recebe do avô "pseudomorto" a missão de restaurar a normalidade da vida, por meio da compreensão dos dramas interiores de cada um de seus familiares e do desvendar de segredos antigos. Insere-se o espaço da profundidade psicológica precisa na caracterização dos personagens, símbolos de diversas formas de existência e luta humanas.

As simples mulheres do povoado se mostram pivôs de antigos romances, de tragédias submersas no rio, muitas destinadas a representações míticas e fantásticas, como a bela Nyembeti, que simboliza a própria ilha (ou seria o próprio país, Moçambique). Incapaz de falar e dona de hábitos estranhos à maioria, a jovem é predestinada à exclusão e ao ofício de enterrar os mortos, dada sua familiaridade com o mundo subterrâneo.

Já os homens mostram-se sensíveis diante das transformações e ameaças iminentes da ilha. Por meio deles o autor trabalha o desencanto diante da independência conquistada, da tradição que se imaginara assegurada, misturado ao temor da perda de Nyumba-Kaya, morada absoluta dos vivos e dos antepassados.

Não é à toa que o falecido avô, também Mariano, resiste em morrer. O retorno às origens, trilhado pelo neto, torna-se a verdadeira possibilidade da partida derradeira do avô, rumo a uma nova existência. A morte, nesse exemplo, requer o retorno à vida, a extração da verdade, sob conseqüência de perturbar todos os demais, pois algo deve ser dito. Algo tão importante, capaz de fazer com que a terra envergonhada se feche. Capaz de permitir que a ilha ressentida se mostre exausta e busque a verdade que oculta em seu solo.

Seu retorno é uma imposição da tradição, incumbido que fora para dirigir as cerimônias fúnebres de seu avô Dito Mariano, de quem recebera o mesmo nome e a incumbência. Neto favorito do patriarca de uma família moçambicana da terra, o estudante, ao chegar à ilha, vê-se envolvido então numa teia de intrigas e segredos familiares que imaginava já não existirem.

São intrigas que envolvem seu pai, Fulano Malta, a avó Dulcineusa, os tios Abstinêncio, Ultímio e Admiranga e sua mãe, Mariavilhosa, morta em circunstâncias nebulosas, todos nomes que fazem o leitor brasileiro lembrar de figuras do Nordeste. Marianinho logo descobre que a morte do avô – que teima em não morrer de vez – permanece envolvida por um mistério que escapa à luz da razão – como tudo nessa enigmática Luar-do-Chão, onde os mortos continuam a governar os vivos.

Portanto, o eixo temático deste romance gira em torno desta viagem empreendida pelo protagonista, e resgata, por sua vez, outros itinerários que se dão no curso de rios reais e ficcionais.

Nas águas do rio Madzimi, Mariano parte em busca das suas origens e do seu passado, empreendendo, para tanto, um denso mergulho em suas memórias de menino, evocando com elas as brincadeiras de outrora com o amigo Juca Sabão, às margens desse mesmo rio. A chegada a Luar do Chão, sua terra-natal, se dá em sincronia com a partida do avô, passageiro do "barquito desabandonado" que o conduzirá pelas "águas do tempo" à "outra margem", onde ele se juntará aos seus antepassados, cumprindo, pois, o ciclo de vida acreditado em África.

A viagem de retorno à infância de Mariano e a do avô rumo ao futuro, indicam uma sincronia, visto que este movimento para trás e para frente aponta a chegada a um lugar onde idoso e criança tornam-se pontos limítrofes do mundo visível africano e que, por sua vez, convive harmoniosamente com mundo invisível dos antepassados. A morte, primeiro substantivo nomeado no romance em questão, torna-se, portanto, "o umbigo do mundo", onde estes espaços se entrecruzam e estabelecem um ciclo vital entre si. A ilha é o último espaço de convivência entre avô, neto e família neste lado da margem e a derradeira possibilidade de restauração de uma série de elementos estruturais de que o avô depende para poder, enfim, assumir seu lugar no mundo invisível. Esta premissa nos é inicialmente apresentada na epígrafe do primeiro dos vinte e dois capítulos da obra: "Encheram a terra de fronteiras, carregaram o céu de bandeiras. Mas só há duas nações — a dos vivos e a dos mortos". A delimitação de um espaço primordial africano e a importância da consciência do homem da posição que nele ocupa revelam a preocupação constante de Mia Couto: como artesão da palavra, cabe ao poeta a função de pensar o mundo, o homem e a sociedade em sua totalidade e, com isso, fazer com que sua escritura provoque atitudes líricas mas também políticas que perpassem a beleza estética e resultem em ações que os integrem ao seu espaço e cultura.

A desagregação encontrada por Mariano em sua ilha-natal exacerba a fragmentação cultural que Mia Couto se preocupa em denunciar. Esta é claramente evidenciada através dos nomes das personagens, já que a descontrução lingüística empregada por ele denota um processo de revitalização da linguagem através da sua reinvenção, ainda que no romance em questão o autor lance mão de menos neologismos.

Pela modificação das construções e da estrutura das palavras da língua portuguesa, Mia Couto mescla elementos que resgatam a poeticidade em seu sentido lingüístico mais amplo, ressalta imaginário de seu país, preservando constantemente suas marcas culturais.

Por esta razão, o tio mais velho de Mariano, Abstinêncio abstém-se do mundo e da vida, minimizando todo o contato com o mundo externo, tomado por um mutismo que o afasta até mesmo de sua família. O terno negro e a gravata por eles envergados metaforizam um "escuro envergando escuridão" e a gravata cinza "semelha uma corda ao despendurão num poço que é seu peito escavado" por uma dor que ele não deseja claramente reconhecer, o que lhe acarreta a melancolia característica dos que se mantêm descontextualizados.

Fulano da Malta, o pretenso pai de Mariano, tem no nome toda a evidencia de indefinição e da insegurança como progenitor. O nome revela, sobretudo, sua melancolia em não reconhecer, como ex-guerrilheiro, os resultados da guerra por que lutou, o que o faz sentir-se excluído da nação e do mundo e, conseqüentemente, de sua família. O regresso de Mariano implicará, por isso, uma reaprendizagem mútua: a do pai que aprende a ser pai e a do filho que reconhece a pertinência de atos que Fulano outrora cometera e que apenas após este resgate do passado foram por ele compreendidos.

O tio Ultímio, terceiro dos três filhos, é, por sua vez, o que menos percebe a relevância da terra, da família e das tradições como elementos constituintes do homem, uma vez que, como burocrata, "se dá a exibir, alteado e sonoro, pelas ruas da capital, ocupado entre os poderes e seus corredores". A crítica à personagem se exacerba na comicidade da cena de seu automóvel importado atolado nas areias de Luar do Céu, até ali levado para impressionar futuros investidores estrangeiros ávidos por transformar a ilha em rentável investimento turístico, assim como para ressaltar as diferenças que Ultímio crê existir entre ele, sua família e os demais habitantes da localidade.

É, no entanto, outra personagem, a velha Miserinha, quem melhor descreve o quadro inicial da viagem e do cenário sombrio que permeia a ilha e seus moradores, todos metonimizados pela alegoria e vítimas, como o restante do país, da perda de identidade: "Já não vejo brancos nem pretos, tudo para mim são mulatos". O único resquício de cor associada à personagem e à ilha está no lenço de seda multicolorido usado por ela e que representa a última memória das diferentes colorações do mundo, que contrastam, no entanto, com a roupa surrada da personagem, com seu rosto vincado e, sobretudo, com suas retinas fatigadas pelo tempo, as quais vêem os homens acinzentados e marcados por um traço comum: a perda do desejo e da identidade.

Ao longo da narrativa, Mariano se depara, pois, com o insólito causado pela quase morte do avô. Em estado de latência e possível catalepsia, Dito Mariano aguarda o regresso do neto a casa para que se ajustem detalhes cruciais à sua partida. Como espaço catalisador da ação das personagens "Nyumba-Kaya" é a casa que tem seu nome composto pelas palavras que designam este vocábulo em línguas de pontos extremos do país, "para satisfazer familiares do norte e do sul". Destelhada, segundo as tradições fúnebres, para que o luto que ordena o céu se adentre por seus compartimentos, a casa é regada diariamente como uma planta para que as águas não apenas a limpem, mas também a fertilizem e preserve em suas colunas e paredes o saber primordial africano.

Quem a faz molhar é a avó Dulcineusa, doce no nome para compensar a amargura da perda de parte da mão e dos dedos corroídos pela acidez do caju colhido nos tempos coloniais. Em momentos que alternam delírio e lucidez, Dulcineusa revela conflitos do homem diante da confluência de valores sociais, culturais e religiosos que lhe foram impostos ao longo dos anos.

O percurso de Mariano é igualmente permeado por conflitos, dúvidas, descobertas e surpresas ligadas originariamente ao funeral, mas que acabam por revelar novas histórias para o protagonista e para sua terra. Lançando mão de elementos fantásticos, o "avô" comunica-se com o neto por meio de cartas que sua mão moribunda não pode escrever, as quais, por sua vez, surgem misteriosamente ao pé do neto para lhe servir de diretriz sobre cada passo a ser dado na condução das exéquias e na sua posterior liderança da família.

O retorno de Marianinho à ilha para encontrar uma nova forma de salvar a terra, que também é a sua casa, e reconstruir um mundo novo, sem abandonar as tradições, é, de certa maneira, uma parábola da África pós-colonial que precisa juntar seus destroços para seguir adiante e não ficar irremediavelmente para trás na história das nações.

O centro deste retorno é a casa de seus ancestrais na Ilha de Luar-do-Chão, o ponto de partida de sua identificação consigo mesmo dentro daquele universo aparentemente tão distante e tão diferente da cidade, lugar de sua formação, rico em recursos da modernidade, porém infértil para o sustento das tradições.

A relação estabelecida entre a casa e o tempo, declarada pelo próprio título do romance, permeia todas as vertentes da obra, todos os seus personagens e seus espaços.

Uma sucessão temporal de eventos, abrigados pela memória dos rituais da tradição africana, dentro das visões que Marianinho estabelece em suas visitas, se dá pelo contato do que lhe é natural e sobrenatural, um processo, muitas vezes, afastado dos conceitos de lógica e linearidade da verossimilhança.

Esta ruptura com a linearidade do texto, no uso sensível da prosa poética, é um grande marco da escrita de Mia Couto, apropriando-se da construção do fantástico dentro da realidade de seus personagens e da realidade do próprio leitor. O trabalho “artesanal” de seu léxico é um registro de compromisso com a representação estética do mundo. O uso explícito de criações neológicas ultrapassa o registro do que seria uma linguagem regional e oral, representando, nas mãos do escritor, a exposição de um universo contraditório presente nos países colonizados em África que buscam até hoje, após e até pela Independência, sua identidade.

O tempo e a casa selam uma união conjugal dentro do romance. O tempo, em seu caráter masculino, representa os homens da história. Sofre um processo de desmoronamento (particular à casa) para refletir toda a desconstrução dos homens desta família: suas dependências emocionais, suas ambições sempre volúveis, os desenganos vestidos pela guerra do país e desnudos por uma fome de paz interna e externa insaciável em seus corpos e espíritos.

A casa, o feminino, é habitada pelas mulheres. Precisa de defesa, mas mantém-se altiva pela junção dos vivos e dos mortos no ventre de seus corredores. As revelações que direcionam o desenvolvimento do romance são cozidas, conduzidas e muitas vezes protagonizadas pelas mulheres da família.

A morte de Dito Mariano, patriarca dos Malilanes é a morte da “casa pai” e o nascimento da “casa mãe”, responsável pelo abrigo das peças que compõem a identidade de Marianinho mediada pela tradição e pela modernidade de seus valores.

Um dos pontos fulcrais do romance é a recusa da terra em receber o corpo do semidefunto (ou semivivo?) antes do tempo oportuno. A tentativa de antecipar o enterro, liderada por Últímio, não encontra a maior resistência na família, mas sim no solo adubado pela insensatez humana que se cerra completamente na recusa de receber o corpo de Mariano. O chão arenoso em que o automóvel importado atolara resiste, agora, rígido, à pá do coveiro e faz com que seu metal se vergue ensimesmado no terreno desprovido da maciez que a umidade da água outrora lhe concedera.

Fontes:
Escola Secundária Manuel Teixeira Gomes, Portugal | AdeltoGonçalves, doutor em Letras (Literatura Portuguesa), Universidade de São Paulo(USP) | Prof. M. A . Robson Lacerda Dutra, Mestre em Literatura Portuguesa -Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Disponivel em Passeiweb

Adélia Prado/MG (Nuvens Poéticas)


IMPRESSIONISTA

Uma ocasião,
meu pai pintou acasa toda
de alaranjado brilhante.
Por muito tempo moramos numa casa,
como ele mesmo dizia,
constantemente amanhecendo.

CASAMENTO

Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe ospeixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar,abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como "este foi difícil"
"prateou no ar dando rabanadas"
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

ENSINAMENTO

Minha mãe achava estudo
a coisa mais fina do mundo.
Não é.
A coisa mais fina do mundo é o sentimento.
Aquele dia de noite, o pai fazendo serão,
ela falou comigo:
"Coitado,até essa hora no serviço pesado".
Arrumou pão e café , deixou tacho no fogo com água quente.
Não me falou em amor.
Essa palavra de luxo.

DIA

As galinhas com susto abrem o bico
e param daquele jeito imóvel
- ia dizer imoral-
as barbelas e as cristas envermelhadas,
só as artérias palpitando no pescoço.
Uma mulher espantada com sexo:
mas gostando muito.

PRANTO PARA COMOVER JONATHAN

Os diamantes são indestrutíveis?
Mais é meu amor.
O mar é imenso?
Meu amor é maior,
mais belo sem ornamentos
do que um campo de flores.
Mais triste do que a morte,
mais desesperançado
do que a onda batendo no rochedo,
mais tenaz que o rochedo.
Ama e nem sabe mais o que ama.

PARÂMETRO

Deus é mais belo que eu.
E não é jovem.
Isto sim, é consolo.

POEMA COMEÇADO NO FIM

Um corpo quero utro corpo.
Uma alma quer outra alma e seu corpo.
Este excesso de realidade me confunde.

Jonathan falando:
parece que estou num filme.
Se eu lhe dissesse você é estúpido
ele diria sou mesmo.
Se ele dissesse vamos comigo ao inferno passear
eu iria.
As casas baixas, as pessoas pobres,
e o sol da tarde,
imaginai o que era o sol da tarde
sobre a nossa fragilidade.
Vinha com Jonathan
pela rua mais torta da cidade.
O Caminho do Céu.

EXAUSTO

Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.
Quero o que antes da vida
foi o sono profundo das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes.

EXPLICAÇÃO DE POESIA SEM NINGUÉM PEDIR

Um trem-de-ferro é uma coisa mecânica,
mas atravessa a noite, a madrugada, o dia,
atravessou minha vida,
virou só sentimento.

(in Bagagem)

Ademar Macedo (Mensagens Poética n. 473)

Uma Trova de Ademar

Uma Trova Nacional

No imenso palco, o amor
destaca nos jardins meus
um carvalho com fulgor
na ponte entre mim e Deus…
–JOSÉ FELDMAN/PR–

Uma Trova Potiguar

Duvido dessa paixão,
embora razões não tenha.
As cordas do coração
não servem p’ra amarrar lenha!
–WALTER CANUTO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram


Quando a noite sobrevém,
a solidão, por maldade,
só traz lembrança de alguém
quando esse alguém é saudade...
-VASQUES FILHO/PI-

Uma Trova Premiada


2010 - RibeirãoPreto/SP
Tema: VIAGEM - 2º Lugar


Já reservei a passagem
e aguardo sem reclamar...
que a data desta Viagem
é Deus quem vai carimbar!
–Carolina Ramos/SP–

Simplesmente Poesia

Mata
–SELMO VASCONCELLOS/RJ–


Hoje me matas
violentamente com este machado.
Mas, amanhã das minhas flores
te farão uma coroa,
do meu caule
tua urna mortuária.
Aí sim,
irás ao encontro da minha raiz.

Estrofe do Dia

Cada vez mais eu consigo,
separar trigo do joio...
Pra quem precisa de apoio,
meu coração é um abrigo.
Desconhecido ou amigo,
seja lá quem ele for
no seu momento de dor
eu ponho a disposição
meu sofrido coração
para os carentes de amor.
–FRANCISCO MACEDO/RN–

Soneto do Dia

Sublime Amor
–HAROLDO LYRA/CE–


Numa clínica, um velho procurava
Rápido curativo à mão doente.
Dizia-se apressado, que era urgente,
Pois tinha um compromisso e se atrasava.

O médico, atendendo ao paciente,
Perguntou por que tanto se apressava!
É que, num certo Asilo, costumava
Tomar café co’a esposa, já demente.

O médico ressalta: “Por descaso,
Não reclamara ela desse atraso?”
E ele: “Nem mais me reconhece, até”.

“Então! É apenas um capricho seu?”
“Oh, não! Ela não sabe quem sou eu,
Mas eu sei muito bem quem ela é”.

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Pedro Malasartes (Malasartes e as Botijas de Azeite)


Um dia, Pedro Malasartes foi ter com o rei e lhe pediu três botijas de azeite, prometendo-lhe levar em troca três mulatas moças e bonitas. O rei aceitou o negócio. Pedro saiu e foi ter à casa de uma velha, ali pela noitinha; pediu-lhe um rancho, e que lhe botasse as botijas no poleiro das galinhas. A velha concordou com tudo. Alta noite, Pedro Malasartes levantou-se, foi de pontinha de pé ao poleiro, quebrou as botijas, derramou o azeite, lambuzando as galinhas. De manhã muito cedo Malasartes acordou a velha, e pediu-lhe as botijas de azeite. A velha foi buscá-las, e, achando-as quebradas, disse: "Pedro, as galinhas quebraram as botijas e derramaram o azeite".

– Não quero saber disso, -disse Pedro; -quero para aqui meu azeite, senão quero três galinhas.

A velha ficou com medo, deu-lhe as três galinhas. Malasartes partiu e foi à noite à casa de outra velha; pediu rancho e que agasalhasse aquelas três galinhas entre os perus. A velha, como tola, consentiu. Alta noite, Pedro se levantou, foi ao quintal, matou as três galinhas, besuntando de sangue os perus. No dia seguinte, bem cedo, acordou a velha, pedindo as suas galinhas, porque queria seguir viagem. A velha foi buscá-las e encontrou o destroço. Voltou aflita, contando a Malasartes.

Ele fez um grande barulho até levar seis perus em troca das galinhas. Na noite seguinte, foi ter à casa de um homem que tinha um chiqueiro de ovelhas, e pediu-lhe para passar a noite em sua casa e que lhe agasalhasse aqueles perus lá no chiqueiro das ovelhas, porque bicho com bicho se acomodavam bem. O homem assim fez.

Tarde da noite, Pedro foi ao lugar onde estavam os perus, e matou-os a todos, labreando de sangue as ovelhas.

O homem, indo-os buscar, achou-os mortos, e voltou muito aflito, dizendo: "Pedro, não sabe, as ovelhas mataram os seus perus". Ouvindo isto, Malasartes fez um grande espalhafato, gritando que o homem tinha morto os perus do rei e recebeu seis ovelhas pelos perus. Largou-se, indo dormir na casa de um homem que tinha um curral de bois. Aí ele fez as mesmas artimanhas, até pegar seis bois pelas seis ovelhas.

Mais adiante, ele encontrou uns vendilhões de ouro e trocou os bois por ouro. Mais adiante encontrou uns homens que iam carregando uma rede com um defunto. Pedro perguntou quem era, disseram-lhe que era uma moça. Ele pediu para ir enterrá-la e eles deram.

Logo que os homens se ausentaram, ele tirou a moça da rede, encheu-a de bastante ouro e de enfeites, e foi ter com ela nas costas à casa de um homem rico que havia ali perto. Pediu rancho, disse às filhas do tal homem que aquela era a filha do rei que estava doente, e ele andava passeando com ela, e pediu que a fossem deitar.

Foram levar a moça para uma camarinha, indo Malasartes com ela, dizendo que só com ele ela se acomodava. Deitou a moça defunta na cama e retirou-se, dizendo às donas da casa: "Ela custa muito a dormir, ainda chora como se fosse uma criança; quando chorar, metam-lhe a correia."

Alta noite, Pedro foi e se escondeu debaixo da cama onde estava a moça e pôs-se a chorar como menino. As moças da casa, supondo ser a filha do rei, deram-lhe muito até ela se calar, que foi quando Pedro se calou.

Depois ele escapuliu e foi para o seu quarto.

De manhã ele pediu a moça, que queria ir-se embora. Foram ver a filha do rei, e nada de a poderem acordar. Afinal conheceram que ela estava morta, e vieram dar parte a Malasartes. Ele pôs as mãos na cabeça dizendo:

"Estou perdido; vou para a forca; me mataram a filha do rei!…"

Os donos da casa ficaram muito aflitos, e começaram a oferecer coisas pela moça, e Pedro sem querer aceitar nada, até que ele mesmo exigiu três mulatas das mais moças e bonitas. O homem rico as deu, e Pedro disse que dava uma desculpa ao rei sobre a morte de sua filha, e lhe dava de presente as três mulatas, para o rei não se agastar muito.

Malasartes largou-se e foi logo para o palácio, onde entregou orei as três mulatas com este dito: "Eu não disse a vossa majestade que lhe dava três mulatas pelas três botijas de azeite? Aí estão elas".

O rei ficou muito admirado.

Lola Prata/SP (Terragua)


Na dança galáctica, eis o planeta,
em parte prateado sob lua-cheia
ou dourado ao sol... O fogo o recheia,
grafitado em névoa, pura naveta.

Revelou Betânia numa retreta:
todo azul ao longeda astral aldeia
vem da santa Virgem que a galanteia
sob o manto anilado da paleta...

Há sonho branco de anseio de paz,
de verde vivo... ou de sangue vermelho
da insensatez carrasca que se alastra...

Tal lar esférico sera capaz
de reversão... ou de se por de joelho
contra a teimosia que a vida castra?

Fonte:
Jacqueline Aisenman. Revista Varal do Brasil: Literário, sem frescuras. Edição Especial:Nosso Planeta Terra. Genebra: abril de 2011

J. G. de Araújo Jorge (Caminhos Para a Solidão)


A verdade é que à proporção que vivemos, vamo-nos sentindo mais sós, como uma ilha cercada de gente por todos os lados. Não a solidão dos cosmonautas, povoada de silêncios e de estrelas. Mas a solidão de um carnavalesco, cantando para não chorar, para se esquecer que está sozinho.

"Por certo a pior solidão
é aquela que a gente sente
sem ninguém no coração,
no meio de muita gente."


Gente tão perto de nós, com quem se esbarra na rua, que se atropela na corrida para apanhar a condução, que se acotovela nos ônibus, nos trens; gente tão próxima, mas na realidade, cada vez mais distante.

Gente que não existe. Ou por outra, que existe como multidão, anônima, fora de nossas realidades, apenas vago e fantástico cenário.

Sociólogos, psicólogos, têm procurado estudar o grau de desumanização do homem e da vida nas grandes cidades. Urbanistas e arquitetos projetam concepções salvadoras para esse pobre homem criado num caos. Que restará do homem que havia dentro de nós? Veja-se a indiferença com que encontramos pedintes miseráveis, crianças abandonadas, criaturas doentes, e seguimos tranquilos para a nossa sessão de cinema. Sua dor não nos toca; seus problemas não nos preocupam; fazem parte de todo um complexo mundo, em que vamos vivendo, despercebidos de nossa desumanidade. E a nos dizermos cristãos.

O remorso ficou no poema:

"Às vezes me envergonho
de alguma ajuda recebida,
quando sei que há tantos homens mais necessitados
sem um gesto de apoio ou de acolhida.

Me envergonho de gozar meu reduzido conforto,
quando sei que há tantos homens inteiramente
desabrigados, sem destino nem porto.

Me envergonho de meu egoísmo a se chamar de
altruísmo, quando dou uma esmola
e contínuo para a minha seção de cinema."


Bem diz a amarga letra da canção: "Ninguém é de ninguém"

Não temos tempo para os contatos cordiais, para cultivar a amizade, para trocar idéias em torno da mesa de um bar, ou de um café. Inventaram uma profissão "relações públicas", mas para se ganhar mais dinheiro. É diferente.

Os cafés que tinham mesas, os antigos cafés que eram como salas-de-espera de populares academias literárias, há muito desapareceram. Os próprios bares já se transformaram. E não só o cafezinho, ou a laranjada, tudo é tomado às carreiras, de pé, sem oportunidade para uma pausa amistosa, sem esse calor humano que faz do homem um ser integrado em sua coletividade.

Vivemos nas grandes cidades a pior de todas as províncias, cada um com a sua pequena "linha-circular". Passamos, diariamente, a carbono, a nossa vidinha.

Acordamos à mesma hora, apanhamos a mesma condução, encontramos as mesmas pessoas, trabalhamos com os mesmos colegas e companheiros.

Conhecemos as caras dos cabineiros, motoristas garçons, jornaleiros. São os habitantes da nossa "província cotidiana", mas, no fundo, nada ou pouco representam. São apenas acidentes do nosso itinerário, e a eles não nos prendem laços mais profundos que cumprimentos convencionais ou comentários supérfluos.

O "cafezinho" - essa expressão que encerra, no fundo, uma indisfarçável ternura do brasileiro por alguns efêmeros minutos de convívio humano, - é o último refúgio de sua inevitável desumanização. Saturado de trabalho, de tédio, ou da vida, da repartição ou do escritório ele tenta a escapada:

"Vamos tomar um cafezinho?"

Mesmo em pé, comprando ficha, sem poder sentar-se, ele se refaz um pouco. Tenta lembrar-se de si mesmo, dos outros. É o seu segundo de higiene mental, seu resto de sociabilidade. A oportunidade para um "papo" com o amigo eventual, ou com o conhecido. Para olhar as belezas que passam tão perto dos olhos, e tão longe... Para rir-se um pouco. Ouvir, ou contar a última anedota. Para sentir-se, durante uns poucos momentos, uma pessoa humana.

As grandes cidades vão asfixiando o homem, como um imenso polvo em seus tentáculos de concreto e de asfalto. Homem de infância no interior, o Rio (de Janeiro) às vezes me angustia, me oprime. Quase diria: me amedronta. Sinto necessidade de fuga. Mas, para onde? Fuga, não só ao ar cinzento, aos ruídos, letreiros luminosos, mas, principalmente à multidão indiferente que escachoa ao redor, atordoante e estranha. Que não sabe que existimos, não se interessa por nosso destino, não participa de nossas emoções; tão ao nosso lado, mas da qual nos mantemos capilarmente isolados.

Li, não me lembro quando, que um arquiteto suíço, Honeger, tendo construido um bairro, numa cidade africana, para tribos pouco civilizadas, projetou-o com todas as comodidades modernas inclusive água encanada. Para sua surpresa, quando expôs seu plano, as mulheres não gostaram. Preferiam suas antigas choças, mesmo sem tanto conforto, e sem água encanada. Preferiam continuar indo à fonte de águas limpídas, onde enchiam seus vasilhames de barro, ou suas latas. Era justamente nesses momentos que elas esqueciam um pouco o trabalho de casa, perdiam tempo conversando, tagarelando, e se sentiam humanas, deixando de lado problemas e preocupações. Era, digamos assim, para aquelas humildes criaturas, a sua vida social.

A civilização atual vai tirando ao homem todas as oportunidades de poder perder tempo. O homem vai se esquecendo de que, o que ele perde em tempo, ganha em vida.

Esses que não têm tempo a perder, são justamente aqueles que perderão a vida num passo adiante. Os homens se esqueceram de que não são máquinas, de que o coração não é um dínamo, de que os nervos e o espírito não possuem a estrutura ou a resistência do aço.

Já que somos uma ilha cercada de gente por todos os lados, vamos lançar, ao menos, vez por outra, uma ponte para o grande continente da convivência e da solidariedade humanas. A solidão dos homens normais é aquela que não prescinde das alegrias da amizade, da companhia do amor.

Oh, a inveja que sinto, hoje, dos moradores das pequenas cidades. Os que ainda têm tempo para se sentar nos bancos das praças, nas mesas dos cafés, olhar as belezas que passam, discutir política, "salvar" o mundo dos outros, porque o seu está seguro. Os que se visitam e são visitados. Os que ainda podem ter uma província verdadeira, mesmo violentada pela televisão, mas sem a subversão do tempo.

Os que ainda tem tempo para ler livros, ouvir música, olhar o céu, admirar a paisagem. Os que ainda têm tempo para amar a paisagem e os seres e - Oh!, suprema ironia! -até para se lastimarem da vida monótona de sua cidadezinha, o seu Paraíso impercebido.

Fonte:
JG de Araujo Jorge. "No Mundo da Poesia " Edição do Autor -1969

Ademar Macedo (Mensagens Poética n. 472)

Uma Trova de Ademar

Uma Trova Nacional

No aceno a paixão reparte
a dor que se multiplica
na tristeza de quem parte,
na saudade de quem fica!
–ANTÔNIO JURACI SIQUEIRA/PA–

Uma Trova Potiguar


Meu pai era um homem pobre
quanto ao sentido do ter,
mas foi sempre muito nobre
quanto às virtudes do ser.
–TARCÍSIO FERNANDES/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Ia um casal caminhando,
velhinho, trôpego o passo.
- Era a Saudade levando
o Passado, pelo braço...
–ELTON CARVALHO/RJ–

Uma Trova Premiada

2011- Niterói/RJ
Tema:RANCHO - Venc.


Meu rancho ficou deserto
após sua despedida,
porque sem você por perto
nem minha vida tem vida.
–MARIA NASCIMENTO/RJ–

Simplesmente Poesia


Fuga ?
–J.G. DE ARAÚJO JORGE/AC–


Escrevo. Tento evadir-me.
Para onde? Se não há saídas,
se já experimentei todas as vidas
e em vão...

Tento evadir-me, e as palavras
são como túneis
sem fim, em minha solidão…

Estrofe do Dia

Não queria chorar na despedida
mas a saudade é mal que não tem cura,
a tua ausência é algo que perfura,
me retorce, e abre em mim uma ferida;
um abismo que habita a minha vida
uma angústia cruel chega e invade,
não suporto tamanha crueldade
e até hoje meu peito ainda chora;
se eu ainda estou vivo até agora
é porque ninguém morre de saudade!
–HÉLIO CRISANTO/RN–

Soneto do Dia

Se Voltares
–ROGACIANO LEITE/PE–


Como o sândalo humilde que perfuma
o ferro do machado que lhe corta,
hei de ter a minha alma sempre morta,
mas não me vingarei de coisa alguma.

Se algum dia, perdida pela bruma,
resolveres bater à minha porta,
em vez de humilhação que desconforta,
terás um leito sobre um chão de pluma,

e em troca dos desgostos que me deste,
mais carinhos terás do que tiveste
e meus beijos serão multiplicados.

Para os que voltam pelo amor vencidos,
a vingança maior dos ofendidos
é saber abraçar os humilhados!

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Guerra Junqueiro (Carlos Magno e o Abade de S. Gall)


Carlos Magno numa das suas frequentes viagens viu o abade de S. Gall, preguiçosamente reclinado sobre almofadas à porta da abadia, fresco, rosado, e bem disposto. Carlos Magno adorava os homens enérgicos e ativos, e o abade era indolente. Além disso, o imperador tinha mais de um motivo de queixa contra ele.

– Bons dias, senhor abade. Ainda bem que o encontro. Tenho a submeter à sua esclarecida razão três perguntas, às quais terá a bondade de me responder daquia três meses, contados dia a dia, em sessão solene do nosso conselho imperial. Primeiro que tudo, desejo saber o meu valor em dinheiro; em segundo lugar, quanto tempo levaria a dar a volta ao mundo; em terceiro lugar, que estarei eu pensando no momento em que V. Rev.ma vier à minha presença, pensamento que deve ser um erro. Trate de arranjar resposta satisfatória a tudo, aliás deixa de ser abade de S. Gall, e tem de abandonar a abadia, montado num burro com a cara voltada para o rabo.

O abade não sabia a que santo apegar-se. Mandou a todas as escolas, mas os doutores mais famosos pela sua ciência, não lhe souberam dar resposta. No entanto os dias iam correndo, e a época fatal aproximava-se; já não faltava senão um mês, já não faltavam senão semanas, e afinal só dias. O abade, que noutro tempo era gordo e anafado, estava magro como um esqueleto. Perdera o sono e o apetite. Andava errante nos bosques lamentando a sua desgraça, quando se encontrou com o seu pastor.

– Bons dias senhor abade. Parece que está mais magro! Anda doente?

– Ando, meu caro Félix, ando muito doente.

– Oh! meu rico amigo, eu lhe darei alguma erva que o possa curar.

– Infelizmente não são ervas que eu preciso, mas resposta às minhas três perguntas.

– É então latim?

– Não, não é latim, senão os doutores tinham-me arranjado tudo.

– Visto que não é latim, queira V. Rev.ma dizer-me o que é: minha mãe era uma pobre de Cristo, mas tinha resposta para tudo.

Quando o abade lhe formulou as três perguntas, o pastor atirou com o barrete ao ar, e disse-lhe:

– Se é apenas isso, eu me encarrego de responder por si, e V. Rev.ma pode continuar a engordar; mas para isso é necessário que eu vista o seu hábito.

Quando chegou o dia, o pastor, disfarçado com o hábito do abade de S.Gall, foi introduzido na sala onde o imperador presidia ao conselho do império.

–– Então, senhor abade, parece que está mais magro; deu-lhe muito que pensar a chave do enigma? Vamos lá ver a primeira pergunta: Quanto valho eu em dinheiro?

– Senhor, o filho de Deus Nosso Senhor Jesus Cristo foi vendido por trinta dinheiros, sua majestade vale à justa vinte e nove, só um dinheiro menos.

– Bravo, senhor abade, a resposta é hábil, e na realidade não posso deixar de me mostrar satisfeito. Mas vamos à segunda pergunta, não há-de ser tão fácil encontrar a resposta. Vamos lá a ver: Quanto tempo levaria eu a dar a volta ao mundo?

– Senhor, se vossa majestade se levantar ao romper do dia e puder seguir constantemente passo a passo o Sol no seu giro, bastam-lhe vinte e quatro horas.

– Decididamente V. Rev.ma e um grande finório, e desta vez, confesso-me vencido; mas a terceira, não é dessas a que se responda com suposições. Quem lhe há-de dizer o que eu estou pensando, e como me há-de provar que este pensamento é um erro? Tem a palavra, senhor abade.

– Senhor: Vossa majestade imagina que eu sou o abade de S. Gall; está enganado porque sou o seu pastor.

– Mas então tu é que deves ser o abade de S. Gall; e desde já o ficas sendo.

– Não sei latim, mas, se vossa majestade quer fazer-me um favor, peço-lhe outra coisa.

– Não tens mais que falar.

– Peço a vossa majestade que perdoe ao meu amigo.

Carlos Magno não era um homem que faltasse à sua palavra.

Fonte:
Guerra Junqueiro. Contos para a infância.

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) - Pena de Papagaio - X - Peninha não falha


Narizinho fora levada para o alto da árvore onde tinha de morar toda a vida com o seu esposo macaco. Pedrinho fora amarrado ao tronco onde ia ser comido pelas formigas. O Visconde fora dormido num galho de pau..

Era o único feliz. Teve lindos sonhos. Sonhou com um país sossegado, onde não havia nem Emílias nem canastras.

Veio a noite. A macacada começou a cair num tal sono que dentro em pouco só se ouviam roncos naquele trecho da floresta. Da árvore onde estava, Narizinho pôde ver Pedrinho amarrado ao tronco.

— Tepenhapa papacipienpenciapia quepe Pepenipi-nhapa nãopão tarpardapa — gritou-lhe ela.

Nem bem acabara e já ouviu um galo cantar longe — Cócóricócó!

— Épé epelepe — gritou de novo a menina, batendo palmas.

E era mesmo. A pena de papagaio vinha flutuando em cima do burro em disparada. Peninha saltou em terra e correu a descer Narizinho da árvore. Os macacos, que lá estavam de sentinelas, não perceberam nada, tamanho era o sono.

— Estou estranhando o sono desta bicharia — disse a menina.

— Por mais barulho que se faça, nenhum acorda.

— Pudera! — exclamou Peninha. — Pus tal dose duma planta dormideira no poço onde eles bebem, que só amanhã lá pelo meio-dia poderão despertar. Que é de Pedrinho?

— Ali naquele tronco!

Peninha correu a desamarrá-lo. Depois foi acordar o Visconde, que danou de ter de cortar a gostosa soneca para novamente pôr às costas a canastrinha.

— Agora é montar no burro e tocar no galope!

— Não ainda! — disse Pedrinho. — Tenho contas a ajustar com o macacão rei.

Foi em procura de Simão XIV, que encontrou a roncar no meio de toda a corte, igualmente adormecida.

“Que fazer para vingar-me? Ah, já sei!”

Tomou uma tesoura que andava por ali e cortou-lhe as barbas, a ponta da cauda e meia orelha, dizendo:

— Quando a macacada despertar amanhã, nenhum poderá reconhecer o grande rei Simão Banana, e todos correrão daqui, a pau, este mono duma figa!...

Em seguida reuniu-se aos outros e pronto!

— Vamos! — gritou Peninha para o burro.

O animal saiu no galope e em menos de meia hora os levou para onde estavam os fabulistas. De longe já os meninos os viram, sentados na mesma pedra, ferrados na mesma discussão.

— Vivam! — exclamou o senhor de La Fontaine. — Por onde andaram os meus meninos?

Cansada das aventuras do dia e ansiosa por voltar para casa, Narizinho desfiou atropeladamente, sem apear-se do burro, as principais peripécias do passeio.

— Quando estivermos juntos outra vez, contarei tudo mais direitinho. Agora não posso. Adeus, senhor de La Fontaine! Adeus, senhor Esopo! Até um dia!

— Para onde vão com tanta pressa?

— Jantar! — gritou Pedrinho.

— Senhor de La Fontaine — disse Emília — fique sabendo que gostamos muito da sua pessoa. Apareça lá no sítio para tomar um cafezinho coado na hora. O senhor também, seu Esopo. Mas vá de paletó e calça, se não tia Nastácia se assusta. Não façam cerimônias. Dona Benta não se importa. Ela é muito boa...

Os fabulistas prometeram aparecer.

— Au revoir! — gritou de longe a menina.

— Au revoir! — repetiu o senhor de La Fontaine com um aceno de mão — e ficou por um tempo a segui-los com os olhos.

Quando o burro desapareceu numa nuvem de pó, lá bem ao longe, o fabulista suspirou:

— Felicidade, teu nome é juventude!... Em seguida voltou a sentar-se na pedra, à beira do ribeirão, e retomou a conversa com Esopo no ponto em que os meninos a haviam interrompido.
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Continua… O Pó de Pirlimpimpim – I - O burro falante

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa