quarta-feira, 13 de julho de 2022

Jaqueline Machado (A Luz de Tieta)

Era uma vez uma cidadezinha localizada no ventre da Bahia, chamada Santana do Agreste, e sua mais célebre filha. A bela e sensual pastora de ovelhas, Maria Antonieta – vulgo TIETA. Seu pai, o mesquinho Zé Esteves, ao descobrir através da invejosa Perpétua, sua filha mais velha, que Tieta, muito liberada e dona de si, não era mais virgem, expulsa a jovem pastora de casa e a espanca em praça pública.
 
Sentindo-se profundamente humilhada e sozinha, pois na praça ninguém parte em sua defesa, Tieta sai sem rumo, prometendo, a si mesma, um dia retornar rica e poderosa para calar a boca de todos aqueles hipócritas que a condenaram quando ela mais precisou de socorro.
 
E comprovando o poder de seus desejos, vinte e cinco anos depois, ela retorna se apresentando como viúva de um importante comendador.

Rica, ainda mais bonita e sensual. Volta em triunfo ao vilarejo. Com dinheiro e influência política, ajuda a família, que por interesses financeiros passa a tratá-la com deferência, Perpétua, a irmã traidora do passado é a que mais lhe presta bajulações.

Tieta também promove benefícios à comunidade que estava estagnada no tempo. Entre os benefícios estava a luz elétrica. Era a luz de Tieta a iluminar a pacata cidade.

A tal luz citada na composição de Caetano Veloso que assim diz:

“Toda a noite é a mesma noite
A vida é tão estreita
Nada de novo ao luar
Todo mundo quer saber
Com quem você se deita
Nada pode prosperar
É domingo, é fevereiro
É sete de setembro
Futebol e carnaval
Nada muda, é tudo escuro
E até onde eu me lembro
Uma dor que é sempre igual
Existe alguém em nós
Em muito dentre nós esse alguém
Que brilha mais do que milhões de sóis
E que a escuridão conhece também
Existe alguém aqui
Fundo no fundo de você de mim
Que grita para quem quiser ouvir
Quando canta assim
 Eta, Eta, Eta, Eta
É a Lua, é o Sol é a luz de Tieta
Eta, Eta“


Tieta do Agreste, livro publicado em 1977, pelo amadíssimo Jorge Amado, é uma obra que retrata o povo brasileiro, é um verdadeiro patrimônio cultural do nosso país que virou novela, filme e letra de música. O best - seller, também é, sem sombras de dúvidas, um retrato que revela de maneira nua e crua o rosto lavado da hipocrisia da sociedade de ontem e de hoje. Sociedade essa, infeliz e julgadora. Que foi capaz de torcer o nariz, zombar e apedrejar uma jovem pelo fato de não ser mais virgem, e depois, como se nada tivesse acontecido, aceitar  dinheiro das mãos da vítima, que por sua intolerância um dia foi expulsa da terra onde nasceu.

Fonte:
Texto enviado pela autora.

terça-feira, 12 de julho de 2022

Versejando 116

 

Leon Eliachar (O jantar)

Vejam que situação. Um jantar com lugares marcados, todos sentados, e foi logo nascer um furúnculo no Amadeu, justamente no lugar onde o impedia de sentar. Sujeito com furúnculo só deve aceitar convite pra jantar americano. Lugar marcado é fogo, nunca se sabe se daqui até lá vai nascer um furúnculo. É contra a etiqueta desmarcar em cima da hora um convite que já foi confirmado há quase uma semana.

Amadeu não teve outro jeito senão ir. Pegou a mulher pelo braço, entrou no táxi:

— Ui!

— Que foi, Amadeu?

— Nada, não.

— Ah.

Na porta, ela ajudou-o a descer, o que já foi chato. Os dois eram metidos a respeitar os pequenos detalhes que tornam mais insuportável o convívio social. A bíblia de ambos era o livro de Amy Vanderbilt, e só cometiam gafes quando nenhum dos presentes sabia qual o certo e qual o errado, muito embora eles sempre estivessem certos.

— Vai você na frente, Amadeu. – Ele ia.

— Desse lado, não, Amadeu. O cavalheiro deve ficar desse lado.

— Mas desse eu não posso, meu bem.

Lá em cima, emendaram os sorrisos num só. Tinham o apelido de “casal simpatia”, tal a força que faziam pra serem simpáticos. Muitas vezes, sua simpatia hostilizava aos menos íntimos. Dona Violeta os recebeu de braços abertos, dentro do seu imenso decote. Estava chiquérrima:

— Quero lhes apresentar o conde e a condessa,

— Prazer.

— Ui!

Amadeu não podia se curvar pra beijar a mão das senhoras.

— Ui!

Se evitasse, era pior, porque sua mulher lhe dava discretamente uma joelhada bem em cima do furúnculo.

— Aaaaaaaaaaaaaaai!

Pior foi depois, na hora do jantar. Estavam todos à mesa e o lugar do Amadeu vazio.

— Você não vem, Amadeu? — insistia dona Violeta.

— Vou já. Um minutinho só, que vou lavar as mãos.

Começaram a pilheriar com ele, surgiram as brincadeiras maliciosas, alguns chegaram a bater com os talheres no prato, como nos filmes de penitenciária. E o Amadeu, nada. O garçom já estava ficando impaciente, e quando um garçom de casa de família fica impaciente, imaginem a própria família. A mulher do Amadeu já não aguentava mais de vergonha, levantou-se furiosa e foi diretamente ao banheiro:

— Amadeu, você vai ou não sair daí de dentro?

Silêncio.

— Como é, Amadeu, está todo mundo esperando por você!

Silêncio.

— Amadeu! Ó Amadeu! Responda, pelo amor de Deus.

Sua mulher já estava em pânico, quando os convidados levantaram da mesa e foram ao seu encontro. Alguém sugeriu:

— Acho melhor arrombar a porta.

Foi o que fizeram. A torneira do lavatório estava aberta, havia um chumaço de algodão no chão. Só não encontraram o Amadeu, que havia escapulido pela janelinha. O vexame foi tão grande que ninguém entendeu nada, voltaram todos mudos para a mesa e dona Violeta mandou servir o jantar. Só que agora havia dois lugares vazios.

Fonte:
Leon Eliachar. A mulher em flagrante. (desenhos e paginação de Fortuna). Publicado em 1965.

Fernando Pessoa (Caravela da Poesia) XLIII

HOJE, NESTE ÓCIO INCERTO

 
Hoje, neste ócio incerto
Sem prazer nem razão ,
Como a um túmulo aberto
Fecho meu coração.

Na inútil consciência
De ser inútil tudo,
Fecho-o, contra a violência
Do mundo duro e rudo.

Mas que mal sofre um morto?
Contra que defendê-lo?
Fecho-o, em fechá-lo absorto,
E sem querer sabê-lo.
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HOJE 'STOU TRISTE, 'STOU TRISTE
 
Hoje 'stou triste, 'stou triste.
'Starei alegre amanhã...
O que se sente consiste
Sempre em qualquer coisa vã.

Ou chuva, ou sol, ou preguiça...
Tudo influi, tudo transforma...
A alma não tem justiça,
A sensação não tem forma.

Uma verdade por dia...
Um mundo por sensação...
'Stou triste. A tarde está fria.
Amanhã, sol e razão.
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INCIDENTE
 
Dói-me no coração  
Uma dor que me envergonha...
Quê! Esta alma que sonha
Âmbito todo do mundo
Sofre de amor e tortura
Por tão pequena coisa...
Uma mulher curiosa
E o meu tédio profundo?
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JÁ NÃO VIVI EM VÃO
 
Já não vivi em vão
Já escrevi bem
Uma canção.

A vida o que tem?
Estender a mão
A alguém?

Nem isso, não.
Só o escrever bem
Uma canção.
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JÁ OUVI DOZE VEZES DAR A HORA
 
Já ouvi doze vezes dar a hora
No relógio que diz que é meio dia
A toda a gente que aqui mora.
(O comentário é do Camões agora:)
«Tanto que espera! Tanto que confia!»
Como o nosso Camões, qualquer podia
Ter dito aquilo, até outrora.

E ainda é uma grande coisa a ironia.
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LADRAM UNS CÃES A DISTÂNCIA
 
Ladram uns cães a distância
Cai uma tarde qualquer,
Do campo vem a fragrância
De campo, e eu deixo de ver.

Um sonho meio sonhado,
Em que o campo transparece,
Está em mim, está a meu lado,
Ora me lembra ou me esquece,
 
E assim neste ócio profundo
Sem males vistos ou bens,
Sinto que todo este mundo
É um largo onde ladram cães.
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LÁ FORA ONDE ÁRVORES SÃO
 
Lá fora onde árvores são
O que se mexe a parar
Não vejo nada senão,
Depois das árvores, o mar.

É azul intensamente,
Salpicado de luzir,
E tem na onda indolente
Um suspirar de dormir.

Mas nem durmo eu nem o mar,
Ambos nós, no dia brando,
E ele sossega a avançar
E eu não penso e estou pensando.
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LÂMPADA DESERTA
 
Lâmpada deserta,
No átrio sossegado.
Há sombra desperta
Onde se ergue o estrado.

Na estrada está posto
Um caixão floral.
No átrio está exposto
O corpo fatal.

Não dizem quem era
No sonho que teve.
E a sombras que o espera
É a vida em que esteve.
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LEMBRO-ME OU NÃO? OU SONHEI?
 
Lembro-me ou não? Ou sonhei?
Flui como um rio o que sinto.
Sou já quem  nunca serei
Na certeza em que me minto.

O tédio de horas incertas
Pesa no meu coração,
Paro ante as portas abertas
Sem escolha nem decisão.

Miriam Leitão (O poeta e as palavras órfãs)

Quando um poeta morre as palavras ficam órfãs. Cada poeta é único e sabe do seu labor. Desentendido de tantos, o ofício é delicado e misterioso. Por que os versos escolhem umas pessoas e não outras? E por que passam a ser de todos após lapidados? Sabe-se pouco da poesia. Apenas que dela nada se sabe.

Não tenho bens de acontecimentos.
O que não sei fazer desconto nas palavras.
Entesouro frases.
Manoel de Barros


Esta semana ele nos deixou. Fiquei numa tristeza! Viveu tanto. Quase um século, recluso no seu pantanal. Quando foi embora, versos dele aparecerem no Twitter em lamento e eu fiquei com aquela necessidade urgente da sua poesia.

Que a palavra parede não seja símbolo
de obstáculos à liberdade.


Estava em Brasília e meu livro Poesia completa — Manoel de Barros, no Rio de Janeiro. Foi presente de um amigo querido a quem nem sei se agradeci direito. Na cabeceira grande que fiz para colocar muitos livros, como sonhei na infância, está lá o poeta. Tem boa companhia. João Cabral, Drummond, Cecília.

São tantos e tão grande a cabeceira — rodeia a cama inteira — que eu perco os livros algumas vezes, mas sabia onde aquele estava e tinha precisão.

Foi uma semana dura de muito trabalho e pouco sono. Palestras, aulas, entrevistas, comentários, colunas e crises. A fiscal é crise velha, porém reaparece todo dia.

Os políticos: os que perderam mandato, os que querem ganhar, os que vão dar o troco, todos iam de um lado para outro como formigas confusas quando perdem o centro do formigueiro. Fui ao Planalto, de lá olhei Brasília. É bonita a vista.

Manoel de Barros fazia poesia sobre bichos, sobre pássaros, sobre água.

No chão da água
luava um pássaro
por sobre espumas
de haver estrelas.


A semana dura terminou num dia longo, cheio de acontecimentos. Todos presos. Os suspeitos de sempre, mas que nunca eram visitados pela lei. A polícia chegou e disse que era o dia do juízo final. A sujeira é muita, o povo desconfia. Daqui a pouco: todos soltos. Bons advogados. No entanto, o dia, véspera do aniversário da República, foi bem republicano. Os jornalistas tiveram muito o que fazer. A economia e a política foram parar na polícia. No fim da sexta, comecei a voltar para o Rio. O Brasil ainda estava confuso. Escrevi a coluna enquanto o avião atrasava.

Chove torto no vão das árvores.
Chove nos pássaros e nas pedras.

Tinha dito ao autor deste blog, ao ver a chuva cair forte sobre uma Brasília nervosa com a prisão dos empreiteiros, homens de posses e doações, uma frasezinha assim: "Que a chuva lave e não me leve."

Não devia ter dito, porque quase que o avião não sai. Espera longa no fim do dia, atraso demais dentro do avião, fila grande para pegar o táxi, e uma mulher ainda caiu em cima da minha mala. Pedi mil desculpas. Achei que tinha colocado a mala no caminho. Ela disse que caiu porque estava olhando "pra ontem" e que minha culpa era nenhuma. Era noite e o trânsito estava todo fechado no Rio. Demoro a chegar em casa. Estava exausta da semana e do dia, longos demais.

Na minha cabeça, a poesia única de Manoel de Barros: "O sentido normal das palavras não faz bem ao poema." Tentava me lembrar de cabeça, mas era difícil.

Ir recebendo um pouco de poesia no peito
Sem lembranças do mundo, sem começo...


Foi chegar em casa e me preparar para descansar de tanto trabalho. Apaguei a luz para dormir, quase dormia, quando a precisão ficou forte demais. Acendi a luz de novo, puxei lá debaixo numa das pilhas dos livros, sabia onde estava, derrubei os outros, eles hão de me desculpar, necessidade forte. Abri meu Manoel de Barros e li aos saltos o que está salteado neste texto doido.

Concluindo: 
há pessoas que se compõem de atos, ruídos, retratos.
Outras de palavras.
Poetas e tontos se compõem com palavras.

Dormi muito bem. Sonhei que escrevia um artigo que começava assim: "Quando um poeta morre, as palavras ficam órfãs."

Fonte:
Miriam Leitão. Refúgio no sábado. RJ: Intrínseca, 2018.

Julimar Andrade Vieira (Lançamento do livro “Terra Nua”)


Julimar lançará em breve o livro de poesias "Terra Nua", com 148 páginas, contendo 18 poemas, 45 sonetos e 70 trovas (sete delas, acompanhadas de ilustração).

Caso alguém se interesse, poderá adquiri-lo mediante contato com o poeta, por meio do e-mail julimar1@terra.com.br ou pelo watsapp (79) 98837-8243.

Nascido em Teixeira-PB, em 01/07/1949, Julimar Andrade Vieira é advogado e escritor, autor dos livros “Coisas da Vida”, “Foi Deus que me ajudou” e “Terra Nua”, este último prestes a ser lançado. Trabalhou na Rádio Rural de Caicó, Rádio Arapuan de João Pessoa, Banco do Nordeste do Brasil e Procuradoria-Geral do Estado de Sergipe. Faz parte do Clube dos Trovadores do Seridó, Academia Literária do Clube da Poesia Nordestina e União Brasileira de Trovadores, da qual é Delegado em Aracaju-SE.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

segunda-feira, 11 de julho de 2022

Adega de Versos 85: Cláudio de Cápua

 

Humberto de Campos (O Javali de Calydon)

Amigo íntimo do casal, o Dr. Fernando Magalhães tinha a vantagem, que o bairro inteiro invejava, de penetrar, a qualquer hora do dia, sob qualquer pretexto, ou sem pretexto algum, no gracioso palacete do engenheiro Alfredo Scholl, nos fins da Avenida Atlântica, ao lado da montanha e diante do mar. Pessoa de confiança, o Dr. Fernando conversava alguns momentos com a encantadora dona da casa, que lhe dava o prazer de, minutos depois, colocá-lo à sua frente, na pequenina mesa de chá, com serviço para dois. E, como o ilustre médico dispõe de uma cultura variada, bebida na ciência de toda ordem e na literatura de todo gênero, sucedeu-lhe, naquela dia, lembrar-se, a propósito de um incidente comum, da triste fábula do rei Anceo, que tomou parte, como se sabe, na famosa expedição dos argonautas.

- A senhora não conhece, então, essa história fabulosa, D. Alaíde? – indagou, gentil, o ilustre ginecologista.

A moça levou a xícara de porcelana chinesa aos lábios mais delicados e vermelhos que a porcelana da xícara, e, com a boquita cheia, e uma torradinha entre os dedos, pediu:

- Não! Conte-me.

E, sorrindo, com tentação:

- Conte-me, sim?

O ilustre médico fitou-a, com os olhos doces, e começou, com simplicidade, mas com graça:

- De regresso da Colchida, aonde havia ido com os outros príncipes gregos, governava Anceo o seu povo da Arcádia quando, certo dia, um escravo lhe disse, à mesa, que ele nunca mais beberia vinho da sua vinha. Soberbo e incrédulo, Anceo achou espírito na predição, zombando da palavra do servo. E, para demonstrar a sua incredulidade, ordenou, de pronto, ao escravo:

- Traze-me vinho da minha vinha! Queres ver como o bebo?

O escravo trouxe-lhe uma taça de ouro transbordante, e entregou-a ao senhor.

- E agora, que te disse eu? - observou o monarca.

- O que eu sei, meu senhor, - retrucou o servo, curvando-se, - é que entre o copo e a boca ainda medeia um espaço que pode ser, talvez, uma eternidade!

Anceo sorriu, na sua arrogância, e ia levantar a taça de vinho fervente, quando a guarda apareceu, de súbito, em tumulto, à porta do grande salão.

- O javali de Calydon, meu senhor! - gritavam todos, alarmados - o javali de Calydon acaba de entrar na vossa vinha!

Abandonando a taça, antes de levá-la aos lábios, o soberano atira-se, de um salto, sobre a sua lança, sobre o seu escudo, sobre a sua espada, ordenando, ao mesmo tempo, que as buzinas convoquem, sonoras, os guerreiros da vizinhança. E, precipitando-se para o vinhedo, enfrenta, alí, sozinho, a fera formidável, a qual se atira contra ele, ferindo-o, matando-o, estraçalhando-o, de modo que se cumpriu o que dissera o escravo, o qual assegurara que ele não chegaria aos lábios, apesar de tê-lo nas mãos, o vinho da sua vinha!

Com o queixo de mármore na curva da mão pequenina, debruçada sobre a toalha de linho bordado, D. Alaíde ouvia, embevecida, de olhos semicerrados, a palavra do narrador, que se debruçara, também, no seu rumo, para falar-lhe melhor. De rosto a rosto não havia mais, talvez, que a distância de um palmo, quando bateram, de leve, na porta que dava para o terraço, a qual se achava trancada à chave. Pé ante pé, D. Alaíde vai até à vidraça e espia, sem ser vista.

- Quem é? - indaga, em segredo, o Dr. Fernando.

E a moça, à meia voz, com a mãozinha junto da boca:

- É o javali!...

Fonte:
Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925.

Professor Garcia (Reflexões em Trovas) 9

A cinza morta revela,
na tapera abandonada...
Que um fantasma dentro dela,
mantém a cinza apagada!
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A jovem mãe, no abandono,
consola a filha do amor;
a mãe, uma flor sem dono
amamentando outra flor!
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A saudade só se explica,
neste Natal, sem meus pais,
na dor da ausência que fica
das noites de outros Natais!
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Às vezes, ao pé do monte,
contemplo sozinho ao léu,
os olhos tristes da fonte
pedindo justiça ao céu!
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A trova muito me importa;
pequenina, se agiganta
quando, em tudo que transporta,
carrega a voz de quem canta!
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Comparo as luzes do outono,
aos antigos castiçais,
mantendo as luzes sem sono
em seus velhos rituais!
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Converso com as reticências;
e, entre esperas e demoras...
Sinto ritos de existências
que há no silêncio das horas!
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Daquele instante risonho,
que moldou nosso roteiro...
Guardo o derradeiro sonho
como se fosse o primeiro!
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Depois de feita a moldura
da aquarela do arrebol,
Deus pôs gotas de ternura
na rosa rubra do Sol.
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Eis que espera tão divina:
Mesmo aos pontapés, e aos trancos,
sinto que a paz dobra a esquina,
nestes meus cabelos brancos!
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Em todo canto, ele cabe,
sem ele, o amor, não resiste;
quem ama, sente e não sabe,
porque é que o ciúme existe!
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Esta fé que compartilho,
que me arrasta e me seduz,
é a fé de um velho andarilho
que vence o peso da cruz!
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Eu busquei com tanto ardor
esse amor que Deus me deu...
Que encontrei cegos de amor,
bem mais cegos do que eu!
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Eu peço nas horas calmas
aos meus versinhos sem teto,
que levem meus pães às almas,
dos mais famintos de afeto!
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Larga esse orgulho senhor
e vê que exemplo feliz,
há na humildade do amor
de São Francisco de Assis!
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Na miséria da favela,
surge um velhinho indefeso,
mantendo acesa uma vela,
ao lado de um sonho aceso!
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O amor quando pinta e borda,
domina e faz o que quer,
faz vibrar corda por corda
do coração da mulher!
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Olha o céu, sem poder vê-la,
mas pela fé, que o conduz...
Será que a luz de uma estrela,
não é do cego uma luz?!
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Ó, velho mar, eu presumo
que és grande e, eu tão pequenino;
sou grão de areia sem rumo
no imenso mar do destino!
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Para enfrentar a velhice
e o pó da aridez do outono,
eu trouxe da meninice,
halos da paz do meu sono!
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Rondando o circo do sonho,
num suspiro derradeiro,
velho, o palhaço tristonho,
diz adeus ao picadeiro!
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Sem mais te ver, sem teus laços,
passei a ouvir sons em vão,
da saudade de teus passos,
nos espaços do meu chão!
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Se o ódio, turva a razão,
o tédio, vira um temor;
purgam-se pelo perdão,
queixas e mágoas de amor!
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Só depois que tu me olhaste,
e olhei esses olhos teus,
senti que tu não pecaste
e, eu pequei diante de Deus!
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Tentei, mas não tive escolha;
dois mil e vinte chegou,..
Já rasguei folha por folha
do ano velho que passou!
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Teus velhos chinelos são
guardados hoje, ao meu lado,
partes dos pés do teu chão,
sobre o chão do meu passado!

Fonte:
Professor Garcia. Versos para refletir. Natal/RN: Trairy, 2021.
Livro enviado pelo trovador.

Hans Christian Andersen (Cada coisa no seu lugar)


Isto aconteceu há mais de um século.

Na margem do grande lago, junto ao bosque, assentava uma velha mansão cercada de profundos fossos, todos cheios de juncos, junto à ponte um frondoso salgueiro curvava os galhos sobre os caniços.

Ouviu-se de repente, subindo a vereda que ali ia dar, um som de trompas de caça, e a pastorinha que cuidava dos patos apressou-se a apartá-los da ponte, antes que os espezinhasse o bando de caçadores, que se aproximavam a galope. Contudo, vindo à rédea solta, chegaram antes que ela tivesse escapado, e a pastorinha teve de escalar precipitadamente um pilar da ponte, para não ser atropelada.

Era quase uma menina, e de frágil compleição, o olhar, suave, traía-lhe a inteligência e a bondade. Mas o barão, esse não atentou em nada disso ao passar, a toda disparada, empurrou-a com o cabo do chicote, atirando-a de costas no fosso. E gritou:

- Cada coisa no seu lugar! O teu é no fosso!

Soltou então uma gargalhada, como se tivesse dito coisa muito espirituosa. Imitaram-no os companheiros, e às risadas estrepitosas de todo o bando, juntaram-se também os latidos dos perdigueiros.

A sorte foi que a pastorinha, ao cair, tivesse podido agarrar-se a um galho do salgueiro, ficando assim suspensa sobre a água e, quando o barão e sua comitiva desapareceram com a matilha, tratou ela de içar-se, conforme podia. mas o galho quebrou-se, e ela teria caído entre os juncais, se um pulso forte, vindo de cima da ponte, não a tivesse segurado. era um mascate que, tendo visto de alguma distancia o que acontecera, corria em seu auxílio.

- Cada coisa no seu lugar! - disse ele, arremedando o nobre barão, quando depunha a menina em terra enxuta.

Tentou então endireitar o galho quebrado, que não se separara totalmente do tronco, mas como não o conseguiu, convencido de que nem sempre se pode por cada coisa no seu lugar, fincou-o na terra fofa.

- Cresce aí, se puderes - disse ele - e produz boas flautas para aquela gente lá de cima...

É que, a seu ver, o barão e toda a sua malta mereciam boas varadas.

Contudo, atravessou a ponte e foi direito à casa nobre. Não se dirigiu, porém, à sala do banquete - era muito humilde para isso, é claro. Entrou pelos fundo, onde se encontrava a criadagem. Todos eles, homens e mulheres, remexeram nas bagatelas que carregava, regateando. E enquanto isso, vinham lá de cima a gritaria e os bramidos dos hóspedes, pois que aquelas vozes dissonantes não mereciam o nome de canções. Pelas janelas abertas ouviam-se as risadas estridentes e os latidos dos cães, nos copos e canecas espumavam o vinho e a cerveja. Os cães de estimação comiam com os donos, e não era raro ver um daqueles fidalgos segurar a longa orelha do seu favorito, limpar-lhe com ela o focinho e depois dar-lhe um beijo.

Querendo divertir-se à custa do mascate, ordenaram-lhe que subisse com a sua mercadoria. O vinho velava-lhes a razão, e a luz do entendimento, já de si escassa, extinguira-se por completo naqueles cérebros. Deitaram vinho em um pé de meia, e queriam que o mascate o bebesse a toda pressa. Achavam extraordinária graça na brincadeira, e riam a bom rir. Depois, já cansados, passaram a jogar - e campos, granjas e outros bens foram ganhos e perdidos no baralho.

- Cada coisa no seu lugar! - disse o mascate, afastando-se daquela casa de perdição. - O meu é na estrada livre. Não me sentia bem ali.

E a menina dos patos, vendo-o atravessar o pátio, enviou-lhe um adeus, sorridente.

Passaram-se os dias, passaram-se as semanas, e o galho de salgueiro, plantado pelo mascate à beira do fosso conservava-se fresco, e ia brotando. Compreendeu a menina que o ramo criara raízes, e ficou muito contente, porque  aquela nova arvorezinha era a sua árvore, segundo dizia. E, à medida que crescia a planta, ia a casa solarenga desmoronando, entre as libações, e a jogatina–  dois passatempos admiráveis, que levam depressa à ruína. E seis anos depois, o barão, de cajado e sacola, atravessava pela última vez a porta do castelo, adquirido havia pouco por um rico negociante.

Ora, o rico negociante outro não era senão aquele mascate, a quem ele pretendera obrigar a tomar vinho em um pé de meia, para divertimento seu e dos amigos. E como a honestidade e o trabalho levam à prosperidade, era agora o mascate o dono e senhor do baronato. E desde então foi terminantemente proibido o jogo de cartas em todo o feudo.

– É um péssimo divertimento. - dizia ele - Quando o demônio viu a Bíblia pela primeira vez, procurou uma arma para guerreá-la e inventou o baralho.

Um dia casou o novo proprietário. E com quem? Ora, com quem havia de ser? Com aquela pastorinha que cuidava dos patos, e que conservou sempre a mesma meiguice e bondade de coração. E era tão bela agora nos seus ativios elegantes como se tivesse nascido em um berço nobre. Como se processou tanta  mudança é uma história muito longa para contar agora, nestes tempos em que tudo corre com tanta precipitação, mas isso aconteceu - e é que importa ao caso.

Corria a vida agora tranquila e feliz na velha mansão: a mãe cuidava do governo da casa, enquanto o pai atendia os negócios, de dia em dia mais prósperos, como se a bênção do céu os protegesse. É que a prosperidade atrai a prosperidade.

O castelo foi restaurado e todo pintado de novo, limparam-se os fossos, plantaram-se árvores frutíferas. Naquela casa tudo tinha aspecto acolhedor e amigo. O assoalho brilhava como um espelho. Nas longas noites de inverno a dona da casa e suas aias trabalhavam, fiando na roca, instaladas na sala principal. Todos os domingos o conselheiro - porque o mascate, na idade madura, chegou a ser o representante da lei - lia a Bíblia em voz alta. Aos filhos, que foram nascendo, deu o casal a melhor educação, ainda que nem todos mostrassem a mesma inteligência, o que não é caso raro. Entretanto o salgueiro da estrada convertera-se em uma bela árvore: crescera sempre em liberdade, sem que nunca ninguém a podasse.

- É a árvore genealógica. - dizia o casal.

Era preciso, pois, honrá-la e tratá-la com respeito. E isso mesmo advertiam aos filhos, até aos que não tinham lá muito boa cabeça.

Transcorreu um século. Vemo-nos transportados à época. O lago transformou-se em um charco, e o velho solar quase desapareceu. Do fosso profundo só resta hoje uma vala de água estagnada, ao pé de uns restos de muros em ruínas, sobre as quais se eleva, magnífico, um belo salgueiro, a árvore genealógica, sobrevivendo a tudo, e demonstrando a que ponto pode chegar a beleza de um salgueiro, quando ninguém o mutila. É certo que o tronco está fendido da raíz à copa - é a honrosa cicatriz a recordar os combates que sustentou contra  as tempestades. Mas ainda se ergue altaneiro,  e em cada fenda, que o vento e as chuvas encherem de terra, crescem plantas e flores - condecorações da sua galhardia. Na copa, onde os ramos se entrelaçam, floresce todo um jardim de framboesas, que lhe dão um aspecto pitoresco, até uma pequena sorveira ali enraizou, elevando-se , esbelta e delicada, no meio da folhagem do salgueiro, que se mira na água pardacenta da vala, quando o vento impele o limo para um lado.

No topo do cerro próximo, cercado de bosques, onde se descortina esplêndida vista, ergue-se a nova casa solarenga. É vasta e magnifica, os vidros das janelas são tão transparente, que elas parecem sempre abertas. A ampla escadaria que conduz à entrada sobe à sombra de um verdadeiro caramanchão de flores e folhagens trepadeiras. A grama do prado é tão verde, que dá impressão de que alguém a lava todos os dias. E dentro, nos salões suntuosos, pendem das paredes quadros de grande valor. Sofás e poltronas, estofados de veludo e de seda, podem ser transportados facilmente de um lado para outro, sobre os rodízios. Mesas artisticamente esculpidas, cobertas de mármore polido, ostentem livros encadernados em marroquim, com os cantos dourados. Não há dúvida de que é uma residência de gente de gosto: é a morada do barão e de sua família.

Tudo ali se harmoniza: móveis e cores não destoam dos ornatos e alfaias. E o lema da família continua sendo: "Cada coisa no seu lugar!" E em obediência a esse princípio é que os quadros, que em outro tempo tinham sido a glória e a honra da casa, foram relegados para o corredor dos quartos da criadagem. Estavam já alterados pela pátina e carcomidos, principalmente os retratos, um dos quais representava um homem de peruca e casaca escarlate e outro, uma dama de cabeleira empoada, e segurava na mão uma rosa. Esses dois quadros tinham uma cercadura de ramos de salgueiro e estavam ambos crivados de orifícios, porque os filhos do barão se serviam deles para alvo de seus tiros - a despeito de serem os retratos do conselheiro e de sua esposa, dos quais descendia toda a família.

- Em rigor - dizia um dos barõezinhos - não pertencem à nossa estirpe: ele era mascate, e ela, pastora. Não se pareciam nem de longe  com o papai e a mamãe!

E como os retratos estavam muito estragados, cheios de manchas, trastes velhos, enfim, foram estragados, foram os bisavós confinados nos aposentos da criadagem: "Cada coisa no seu lugar!"

Era professor da família o filho do pastor. Passeava um dia com os discípulos, entre os quais se achava a irmã mais velha, e seguiam pelo caminho estreito que ia dar ao salgueiro. A mocinha ia colhendo flores silvestres. "Cada coisa no seu lugar!" E, de fato, o ramalhete nas suas mãos formava um belo conjunto, e não a impedia de ir escutando o que se dizia. Gostava muito de ouvir o professor falar sobre a natureza, ou sobre os personagens que desempenham nobilíssimos, e de uma alma que transbordava de amor por toda a obra do Criador.

Detiveram-se à sombra do salgueiro e, para satisfazer o menor dos irmãos, que queria uma flauta de salgueiro, o filho do pastor quebrou um ramo da árvore.

- Oh! Que fez o senhor! - exclamou a jovem - Enfim... Agora já não há remédio! Essa é  a nossa árvore lendária. Meus irmãos riem de mim, porque lhe tenho amor, mas isso pouco me importa. Ela possui a sua história, não sabe?

Contou-lhe então o que já sabemos a respeito do salgueiro, do velho solar, do mascate e da menina que cuidava dos patos; contou que se viram pela primeira vez à sombra daquela árvore; que vieram a ser os fundadores da família; e que essa, com andar do tempo, tinha sido empossada também no antigo baronato. E explicou afinal:

- Esses nossos antepassados não quiseram incorporar-se à nobreza, porque, aferrados ao seu lema - "Cada coisa no seu lugar!" não achavam acertado adquirir um título nobiliárquico à custa de dinheiro. Foi meu avô, que era filho daquele casal, o primeiro barão da família. Era justamente reputado homem erudito, e gozava do favor dos príncipes,  que o convidavam para as festas da Corte. Em casa, todos o membros da família lhe tributam muito respeito e carinho; contudo, não sei dizer por que sempre me vai o coração em busca do velho casal, filho do povo, e que me atrai... Que espírito de família, tão singelo e tão íntimo, devia presidir à vida do antigo solar patriarcal, onde a dona fiava na roca com as suas aias, enquanto o marido lia a Bíblia em voz alta!

- Era certamente gente boa e sensata. – disse o filho do pastor.

E passaram a conversar sobre nobre nobres e burgueses; e dir-se-ia que o moço não procedia da burguesia, quando falava do significado na nobreza.

- É grande felicidade pertencer a uma família distinta, possui uma espécie de acicate do sangue, que nos impele a praticar boas ações, e ter um nome de família que vale por um cartão, que nos abre as portas dos círculos mais elevados. A nobreza do sangue, unida à nobreza da alma, é a moeda de ouro que tem o cunho do valor próprio. E é um erro do nosso tempo afirmar, como fazem muitos escritores, que toda a nobreza é má e estúpida, e que quanto mais se desce na escala social, mais brilhantes são as virtudes. Não partilho dessa opinião. Encontra-se também nas classes elevadas muita bondade e rasgos de grande e comovente beleza. Ouvi de minha mãe alguns episódios e eu mesmo poderia apontar muitos caso semelhantes. Contou-me ela que estava um dia de visita em uma casa nobre, na cidade. Se bem me recordo, minha avó fora ama da senhora. Conversava ela na sala com o dono da casa, cavalheiro distintíssimo, quando viu ele que uma velhinha de muletas entrava no jardim. Ia receber a esmola de todos os domingos, mas andava com grande dificuldade, apoiada nas muletas. Ao avistá-la, exclamou o fidalgo:

"- Coitada da velinha... como lhe custa caminhar!"

E antes que minha mãe compreendesse o que se passava, já ele tinha saído da sala e descido a escada, a fim de poupar à pobre velha o penoso trabalho de subir, para receber o auxílio que lhe dava. É claro que o caso em si não passa de um pequeno exemplo, mas como o óbulo  da viúva pobre, de que fala a Escritura, vai ecoar no íntimo do coração, nas profundezas da natureza humana. Esses fatos é que os escritores deviam buscar e mostrar: porque são coisas que consolam, comovem e trazem reconciliação - principalmente nos dias de hoje. Mas quando um homem, só porque é de sangue azul, se empina em plena rua, como um cavalo árabe, para gritar  a nobreza de sua linhagem, e, ao  entrar em uma sala onde tenha estado uma pessoa humilde diz que ali andou gente da plebe, porque o ar cheira a povo - então é senão a máscara daquele tipo criado por Téspis, o pai da tragédia; e não passa de objeto de escárnio, que a sátira se encarrega de ridicularizar.

Fora talvez um tanto  estirado e sermão do filho do pastor. Mas a flauta estava pronta.

Na mansão senhorial celebrava-se uma grande festa, a que assistiam muitos convidados, dos arredores e da capital. Era grande o número de senhoras, trajadas com ou sem elegância, conforme o  gosto de cada uma. Os representantes do clero ficaram discretamente de lado, como se estivessem em  um velório, contudo, era bem uma festa, e festa alegre, apenas a alegria ainda não tinha começado.

Consistia uma das atrações em um grande concerto, e por isso o menino tinha pedido ao professor que lhe fizesse uma flauta. Mas, por mais que tentasse, não pode tirar dela som algum, nem tampouco seu pai o conseguiu, de modo que o instrumento de nada servia.

Não faltaram as músicas e canções, daquele gênero que deleita antes ao executante do que a quem o ouve. A não ser esse senão, tudo era encantador. Um dos presentes, um jovem fidalgo, virou-se para o professor e perguntou:

- O senhor também é artista, não? Toca flauta e fabrica-a por suas mãos... Que coisa genial! Merece ser exibido.

E, dizendo isto, ofereceu-lhe a flauta, aquela flauta feita da vara do salgueiro do fosso. E, em voz bem alta, proclamou que o professor ia regalá-los com um solo.

Compreendendo - o que era evidente - que queriam divertir-se à sua custa, negou-se o moço a tocar, embora pudesse desempenhar-se admiravelmente dessa incumbência. Tanto, porém, instaram e porfiaram com ele, que acabou por pegar na flauta.

Mas era uma flauta singular, aquela! Lançou primeiro um som estridente e confuso, como o silvo de uma locomotiva; depois soou ainda com mais força que a máquina, pois aquele silvo foi ecoar no jardim, no parque, nos bosques, e foi ouvindo a muitas milhas de distância. A nota ferida produziu um vendaval, que bramia incessantemente:

- Cada coisa no seu lugar!

E o dono da casa, o barão saiu voando, arrebatado pela ventania, e lá se foi, até parar na choça dos porcos; esse também voou, não para a sala de festas do castelo, onde não era o seu lugar, mas para a sala da criadagem, onde os fâmulos se pavoneavam, de meias de seda. Ficaram todos mudos de assombro, ao verem aquele intruso, que ousava assim sentar-se à sua mesa.

Na sala do banquete a filha do barão voou para o lugar de honra, à cabeceira da mesa, onde merecia sentar-se;  e a seu lado veio parar o filho do pastor: assim juntos pareciam um casal de noivos. Um conde velho, membro de uma das famílias de mais alta linhagem do país, permaneceu no seu lugar, imóvel: a flauta distribuía justiça. O jovem inconsequente que provocara todo aquele estrondo, e que era um fidalgo, fez , de cabeça para baixo, um voo até o curral, onde outro o acompanharam.

O som da flauta troou em toda a região, produzindo fenômenos estranhos. Os filhos de um rico banqueiro, que viajava em um carro puxado por duas parelhas, viram-se lançados fora da carruagem e não acharam lugar sequer na boleia. Dois granjeiros, ricos demais para a terra que possuíam, e que os tempos modernos tinham alcançado acima dos seus trigais, foram arrojados ao açude. Era uma flauta perigosa, aquela! Por sorte partiu-se ao dar a primeira nota. e ainda bem que assim foi ! O professor mete-a no bolso, dizendo:

- Cada coisa no seu lugar!

No dia seguinte ninguém mais falou no caso, e foi então que nasceu a expressão: " meter a flauta no bolso", que noutros países significa: " meter a viola no saco."

Quanto ao mais, tudo voltou ao antigo estado, isto é, continuou como dantes. A única modificação foi a dos retratos do casal de velhos: o mascate e a pastora estavam na parede do salão de festas, no lugar onde os colocara a ventania.

E como um perito de arte declarou que eram obra de mão de mestre, foram devidamente restaurados, e ali ficaram : "Cada coisa no seu lugar!"

Longa é a eternidade - e o mundo dá muita volta!

Daniel Maurício (Convite para Lançamento de Livros , em Curitiba)

 


domingo, 10 de julho de 2022

Silmar Böhrer (Gamela de Versos) 23

 

Rubem Braga (História triste de tuim)

João-de-barro é um bicho bobo que ninguém pega, embora goste de ficar perto da gente; mas de dentro daquela casa de joão-de-barro vinha uma espécie de choro, um chorinho fazendo tuim, tuim, tuim...

A casa estava num galho alto, mas um menino subiu até perto, depois com uma vara de bambu conseguiu tirar a casa sem quebrar e veio baixando até o outro menino apanhar.

Dentro, naquele quartinho que fica bem escondido depois do corredor de entrada para o vento não incomodar, havia três filhotes, não de joão-de-barro, mas de tuim.

Você conhece, não? De todos esses periquitinhos que tem no Brasil, tuim é capaz de ser o menor. Tem bico redondo e rabo curto e é todo verde, mas o macho tem umas penas azuis  para enfeitar. Três filhotes, um mais feio que o outro, ainda sem penas, os três chorando. O menino levou-os para casa, inventou comidinhas para eles; um morreu, outro morreu, ficou um.

Geralmente se cria em casa é casal de tuim, especialmente para se apreciar o namorinho deles. Mas aquele tuim macho foi criado  sozinho e, como se diz na roça, criado no dedo. Passava o dia solto,  esvoaçando em volta da casa da fazenda, comendo sementinhas de imbaúba. Se aparecia uma visita fazia-se aquela demonstração: era o menino chegar na varanda e gritar para o arvoredo:  tuim,  tuim,  tuim! Às vezes demorava, então a visita achava que aquilo era brincadeira do menino, de repente surgia a ave, vinha certinho pousar no dedo do garoto.

Mas o pai disse: "Menino, você está criando muito amor a esse bicho, quero avisar: tuim é acostumado a viver em bando. Esse bichinho se acostuma assim, toda tarde vem procurar sua gaiola para  dormir,  mas no dia que passar pela fazenda um bando de tuins, adeus. Ou você  prende o tuim ou ele vai-se embora com os outros; mesmo ele estando preso e ouvindo o bando passar, você está arriscado a ele morrer de tristeza".

E o menino vivia de ouvido no ar, com medo de ouvir bando de tuim.

Foi de manhã, ele estava catando minhoca para pescar quando  viu o bando chegar; não tinha engano: era tuim, tuim, tuim... Todos desceram ali mesmo em mangueiras, mamonas e num bambuzal, divididos em pares. E o seu? Já tinha sumido, estava no meio deles, logo depois todos sumiram para uma roça de arroz; o menino gritava com o dedinho esticado para o tuim voltar; nada.

Só parou de chorar quando o pai chegou a cavalo, soube da coisa, disse: "Venha cá". E disse: "O senhor é um homem, estava avisado do que ia acontecer, portanto, não chore mais".

O menino parou de chorar, porque tinha brio, mas como doía seu coração! De repente, olhe o tuim na varanda! Foi uma alegria na casa que foi uma beleza, até o  pai  confessou  que  ele  também estivera muito infeliz com o sumiço do tuim.

Houve quase um conselho de família, quando acabaram as férias: deixar o tuim, levar o tuim para São Paulo? Voltaram para a cidade com o tuim, o menino toda hora dando comidinha a ele na viagem. O pai  avisou: "Aqui na cidade ele não pode andar solto; é um bicho da roça e se perde, o senhor está avisado".

Aquilo encheu de medo o coração do menino. Fechava as janelas para soltar o tuim dentro de casa, andava com ele no dedo, ele voava pela sala; a mãe e a irmã não aprovavam, o tuim sujava dentro de casa.

Soltar um pouquinho no quintal não devia ser perigo, desde que ficasse perto; se ele quisesse voar para longe era só chamar, que voltava; mas uma vez não voltou.

De casa em casa, o menino foi indagando pelo tuim: "Que é tuim?" perguntavam pessoas ignorantes. "Tuim?" Que raiva! Pedia licença para olhar no quintal de cada casa, perdeu a hora de almoçar e ir para a escola, foi para outra rua, para outra.

Teve uma ideia, foi ao armazém de "seu" Perrota: "Tem gaiola para vender?" Disseram que tinha. "Venderam alguma gaiola hoje?" Tinham vendido uma para uma casa ali perto.

Foi lá, chorando, disse ao dono da casa: "Se não prenderam o meu tuim então por que o senhor comprou gaiola hoje?"

O homem acabou confessando que tinha aparecido um periquitinho verde sim, de rabo curto, não sabia que chamava tuim. Ofereceu comprar, o filho dele gostara tanto, ia ficar  desapontado quando voltasse da escola e não achasse mais o bichinho. "Não senhor, o tuim é meu, foi criado por mim". Voltou para casa com o tuim no dedo.

Pegou uma  tesoura: era triste, era uma judiação, mas era preciso; cortou as  asinhas; assim o  bicho poderia andar solto no quintal, e nunca mais fugiria.

Depois foi lá dentro fazer uma coisa que estava precisando fazer, e quando voltou para dar comida a seu tuim, viu só algumas penas verdes e as manchas de sangue no cimento. Subiu num caixote para olhar por cima do muro, e ainda viu o vulto de um gato ruivo que sumia.

Acabou-se a história do tuim.

Fonte:
Rubem Braga. Ai de ti, Copacabana. Publicado em 1960.

Fabiano Wanderley (Versos Di Versos) 3

AO MEU PAI NOS SEUS 90 ANOS

Que bom te ver, meu Pai, trilhando o tempo,
aquele, que o teu verso, já dizia;
feliz, vivenciando este momento,
pedindo ao tempo um pouco, a cada dia.

Que bom te ver em plena sintonia,
embora já possuas passo lento;
pois bem sei que com tua filosofia,
procurarás impor-te ao advento.

E assim te vejo, Pai, ante o presente,
versando, nos mostrando de repente,
que o tempo não consome tudo enfim.

Se a tua mocidade foi embora,
com gestos, com saber, fazes tua hora,
teus versos nos dirão que não tens fim.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

APÓS, A HORA DERRADEIRA!

Quando eu estiver inerte, já sem vida,
sem o canto e sem versejar, jamais,
para compensar todos esses ais,
respeitem meu adeus, minha partida.

E assim, meu bem estar se consolida,
com todos que comigo fez história,
da música a poesia, quanta glória,
e do amor da família, tão querida.

E para consumar o meu desejo,
exponho aqui a minha petição,
com todo meu fervor, minha vontade.

Ter enfim o final que tanto almejo:
Que depois de uma breve cremação,
me sinta mais feliz, na eternidade!
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O MESTRE, O ESCRITOR DA MADRUGADA!

Quem foi que da cultura fez sua arte,
quem disse só verdades da história,
quem foi para o folclore um baluarte,
usando todo o elã de uma oratória.

Quem foi que preservou nossa memória,
quem tantos livros fez, com seus enleios;
a sua sapiência foi notória,
pois soube nos dizer sem entremeios.

Foi ele o gênio, o amigo, o brado forte,
um filho deste Rio Grande do Norte,
que ao mundo do folclore disse tudo.

Garboso, difundiu a terra amada,
o mestre, o escritor da madrugada,
Doutor Luiz da Câmara Cascudo!
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

O RASCUNHO

Divina, angelical, meiga, singela,
encanto de mulher que me fascina,
tão terna, jovial, linda donzela,
que, até bem pouco tempo, era menina.

Querê-la se tornou a minha sina,
sonhando poder ser correspondido,
pois, quanto mais sentia, o amor ferido,
mais viva a tua imagem na retina.

Não sei se por recato, ou talvez medo,
tentou enclausurar o seu segredo,
guardo-o num esboço, em um livrete,

Mas, eis que um certo dia, o livro empunho
e com surpresa, vejo o tal rascunho,
falava em nosso amor, o seu bilhete.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

QUEM DERA

Quem dera, que eu tivesse o teu abraço,
pois tenho para ti todos desvelos;
quem dera, pelo menos, ser o laço
da fita que ornamenta os teus cabelos.

Quem dera, que escutasse os meus apelos,
sarando essa ferida incontinente,
ceifando de uma vez meus pesadelos,
na chama desse amor tão inocente.

Quem dera, eu inda guardo esta esperança,
de um dia acariciar a tua trança,
te amando, desfazendo os laços teus.

E, enfim, poder chamar-te de querida,
de tê-la como o amor da minha vida,
tão meiga, a sussurrar nos braços meus.

Fonte:
Fabiano de Cristo Magalhães Wanderley. Versos Di Versos. Natal/RN, 2014.

Raul Pompéia (História cândida)


Vou contar-lhes hoje uma história cândida, a história da Rachadinha. Cândida pela heroína, não tanto pelo assunto.

Rachadinha chamava-se assim por ser filha de João Vasco Rachado, correeiro, que por sua vez possuía esse extravagante apelido por causa de um traço de família que de pais a filhos distinguia a sua gente do resto da humanidade. A natureza, humorística que se diverte a rachar beiços, ranarizes, rachar queixos, como é tão comum, rachava-lhes a orelha ao nascer com um pequenino talho.

Vou contar-lhes a história de Rachadinha, uma pobre menina que perdeu, quer dizer, que perderam.

Era cândida, disse eu, antes ingênua.

Nada conheço mais arriscado, e logo arriscado para dois, nada mais arriscado do que uma menina ingênua. Rachadinha (não lhe sei outro nome) era ingênua. De sorte que se aplicava a fazer ingenuidades, enquanto o pai, correeiro, fazia correias.

Namorava, por exemplo, ingenuamente, quer dizer, deixava-se namorar. Passava horas e horas, numa tripeça de pinho à porta da loja, vadiando infinitamente, de saias curtas e tamanquinhos, sem meias, prendendo os calcanhares dos tamancos ao travessão da tripeça.

Lia então jornais. Ela sabia ler: um luxo de escola pública que o zelo paterno cuidara em proporcionar-lhe muito cedo. Lia muito jornais, sem escolha: do dia ou da véspera, da véspera ou do ano passado, conforme vinham, embrulhando encomendas de remendo à indústria da oficina. Lia romances de rodapé, da melhor maneira de serem lidos, baralhadamente, ora de um jornal, ora de outro, encartando as aventuras da Gazeta nas do País, interessando-se muito por uma situação dramática que começava pela Gazeta da Tarde em Boisgobey e ia desprender-se pela Cidade do Rio, em Montepin.

Com uma tal facilidade de critério, não custa compreender como a donzelinha levava a existência, lendo também as horas e os dias sem atenção nem coerência, como se fosse a vida um longo rodapé de jornal, abstruso e confundido. Um meio sono de preguiça e ininteligência, que lhe era suave, por isso que o pai, que não tinha recursos para dar-lhe gozos, caprichava esforços para poupar-lhe a mínima contrariedade.

Passava assim o melhor do tempo, ali, na tripeça, como um mostrador de porta, escandalizando, perturbando o trânsito com a presença de sua beleza, enchendo a rua, o arrabalde, com a irradiação perene da sua reputação de formosíssima.

E era bonita a valer, o diabo da pequena! Vasco Rachado, seu pai, era brasileiro e mestiço. A mãe era uma italiana, já morta, que alguns tinham conhecido na loja e que afirmavam ter sido bela. A Itália dera-lhe os olhos negros, onde morava a febre da campanha de Roma, onde vivia a lenta insônia do vulcão de Nápoles, onde nadava a onda tarda dos canais venezianos e a gôndola sonolenta; o Brasil fizera o resto: a pele de pêssego que lhe forrava as formas, mil frutos tenros despidos para vesti-la, e o sabor acre, de aguar a boca, que lhe transudava a beleza, como a impressão reflexa da pitanga, do tamarindo, do cajá dourado... Façam lá por sua conta um juízo como possam, daquela soberba moreninha a ponto de quinze anos, que um banho róseo de sangue e saúde fazia arder, sobre a tripeça, como um braseiro de corações.

O pai venerava-a, pobre operário sórdido, com acanhamento, como confundido de ser pai daquele milagre.

Ela, entretanto, ingênua, nada sabia disso. Sempre a mesma. Bela! Era a voz dos outros; pouco se lhe dava. Também, havia na loja um aprendiz levado, que, quando o mestre estava fora, vinha devagarinho, por trás dela na tripeça e repuxava-lhe o paletó para beijá-la na espinha, no meio das costas. E ela nem percebia a cócega. Que tinha ela com isso? O beijo era dos outros.

Havia tempo em que o pintor Juvenal, vizinho da frente, não lhe tirava de cima os olhos. Ela não percebera ainda. Mesmo por isso, não se dava ao trabalho de rebater a barra da saiazinha impúbere que ainda usava, quando a posição na tripeça descobria-lhe mais algumas linhas de canela.

Sucedeu que um dia, o pintor Juvenal, passou pela tripeça e entrou na loja de João Vasco. Vinha trazer encomendas.

Preparava-se para uma excursão artística no campo, donde pretendia tirar paisagens d'après nature. Queria que João Vasco lhe fizesse umas pastas ou bolsas especiais para o transporte de objetos de sua arte e, além disso, que lhe fixasse uma correia à caixa das tintas, de modo que fosse possível levá-la a tiracolo.

— Pregue-me aqui assim, assim... Olhe assim, deste jeito...

João Vasco observou que era melhor o contrário, parecia mais natural com as dobradiças da caixa para baixo.

— Ora, tem razão! Estava eu pedindo uma asneira...

E estava besta, efetivamente, o nosso Juvenal, sentindo Rachadinha a dois passos dele, respirando-a como um aroma bêbado, no cheiro das graxas da oficina, no fedor das grandes pelancas de couro curtido, que caíam tesas pelas paredes ao redor. Rachadinha, entretanto, nem sequer o vira entrar, preocupada com um rodapé muito interessante do Diário de Notícias, que tinha outro embaixo, do Novidades, que ia servir, daí a pouco, de continuação.

Depois desta entrada, houve outras visitas do pintor Juvenal.

Depois das duas bolsas da primeira encomenda, seguiram-se outras bolsas, uma série inacabável de bolsas...

E ele vinha saber do trabalho e tomava uma banca para admirar a perícia do correeiro...

As paisagens d'après nature, já se sabe, adiadinhas para o largo futuro. Na ocasião, muito mais o preocupava, d'après nature, um desenho de figura.

— Tento contigo! diziam as murmurações da rua inteira. Não dê cuidado, replicava ele, nós cá, pintores, é só plástica...

Quando o correeiro percebeu o sentido exato da encomenda de Juvenal, abriu-se-lhe um grande claro de alegria n'alma.

Desde muito lhe ocorrera a ideia de um noivo para a filha. E ele o desejava intimamente como um guarda para aquele tesouro que lhe não cabia nas mãos, alguém que o libertasse daquela esplêndida pessoazinha, cuja presença ali o envergonhava de ser humilde, daquele adorável trambolho que lhe vexava a liberdade de ser pobre.

Aceitou então o pintor, exultando. Passou a recebê-lo no interior da loja, na saleta de jantar, onde havia, perto de umas vidraças de área, uma mesa preta, de abas pendentes como orelhas de cão, que se erguiam para o serviço. Bebiam. Palestravam em boa companhia, Rachadinha presente sempre, em cândido silêncio ou cortando a palestra com disparates ingênuos.

Passou depressa a facilitar a qualquer hora solidões de noivados aos supostos noivos. Junto da mesa, ficaram os dois calados da primeira vez. A menina, abstrata, enrolando no dedo uma ponta de cordel, Juvenal, incendiado, na contemplação ardente da menina. Fora, na oficina, ouvia-se o correeiro batendo a sola.

Depois familiarizaram-se. Rachadinha mostrava a Juvenal bonecas antigas, malfeitas e sujas, trazia-lhe álbuns infantis para mostrar as pinturas, metia-lhe nas mãos agulhas de crochê e novelos para ver o que saía. Tudo a sério, com um sorriso quando muito, na sua maneira inocente de criança grave; sem reparar que o pintor beijava-lhe as mãos, os pulsos, pegava-lhe a cintura sem reparar que ela mesma tocava-lhe ao outro joelho com joelho, quando ensinava o chochê e pousava-lhe os seios nos ombros para mostrar estampas.

Juvenal bebia em êxtase toda aquela simplicidade deliciosa.

Uma noite que ela estava mais calada e mais distraída que de costume, Juvenal ouviu-lhe bruscamente:

— Não acha esquisito?... nós aqui sozinhos!...

Fora, na oficina, ouvia-se João Vasco, batendo a sola do serão.

Essa pergunta a Juvenal alvoroçou-lhe um fogo novo em toda a natureza.

— Não acho, não, disse em tom de grande calma... Demais, sabe... eu sou pintor...

— Ah, então és pintor?...

Juvenal foi deixando gradualmente a calma.

— Sim, sim... tudo!... Sou pintor, queridinha. Não sabes?... A pintura é inocente. Nós, pintores, temos para as mulheres uma admiração pura. Inteiramente pura, meu bem! Os outros buscam amor: nós queremos modelos. Uma menina... que fortuna para nós! Despimo-la, meu anjo! acomodamos num cavalete, num estrado, numa posição qualquer, e ficamos adiante, adorando a forma. Depois, temos a tela, tomamos um carvão, os pincéis... Vamos passando para a tela o feitio do corpo. Com a tinta fazemos caros cabelos, os bonitos olhos. Dai a pouco, em vez de uma bela menina há duas: a que fica no quadro para sempre, como uma coisa de se adorar, e a outra, que se veste e parte, com um beijo do artista na fronte... Estás aqui comigo... É como se não estivesses. Ah! um beijo do artista! Não sabes, anjo! anjo! o que é um beijo de artista? É sempre casto: nós beijamos estátuas! Tens medo de mim, agora? da minha adoração platônica?!... Tens? tens medo?...

Rachadinha não entendia muito aquilo. Viu bem, contudo, que a cadeira de Juvenal caminhava para ela aos saltos, enquanto o pintor falava.

— Que é isto. – exclamou surpresa, sentindo um braço brusco pegar-lhe a cintura com muita força.

— Nada de mal!... Eu sou pintor, minha queridinha. – murmurou Juvenal, prendendo-a e enchendo-lhe o ouvido de fios de bigode e repetidos beijos.

— Mas espere!... espere um pouco. - pediu ela, relutando.

Mas o braço fechava-se cada vez mais rijo ao redor da cintura, e os bigodes ásperos arranhavam-lhe a face toda, colando cáusticos de beijos.

— Eu sou pintor!... Eu sou pintor!...

Era tão sincera a veemência daquela desculpa, que Rachadinha começou a achar razão no rapaz. Desde que ele era assim pintor, ela foi cedendo...

Juvenal estava fora de si. Um lampião de gasolina no meio da mesa, de luz baixa, oferecia urna meia obscuridade cúmplice. Percebendo que a resistência decrescia da parte da moça, Juvenal, assaltou-a como uma fera. Dilacerou-lhe a roupa, para morder-lhe o seio.

— Eu sou pintor... Eu sou pintor... – balbuciava sem mais ligar sentido às palavras.

Do corpo da moça desprendia-se aquele cheiro de couros que o entontecera um dia; das roupas impregnadas do ambiente da oficina, crescia uma emanação grosseira, bestial de vernizes e curtume que o encarniçava.

O movimento da luta, o pudor do assalto, o calor da noite na saleta, a chama da gasolina purpureavam divinamente a carne morena da vítima. Juvenal estava perdido.

— Eu sou pintor, gaguejava em ofego. Queremos modelo... modelo... modelo...

A moça não lutava mais. Juvenal caiu com ela para o escuro embaixo da mesa, como para um abismo.

Soube ser pintor o platônico!

Na oficina, o correeiro continuava a martelar o serão.

Conclusão, a esperada. Ventre, fuga do pintor, desespero paterno, um pouco de polícia no meio, e a vida como dantes.

Rachadinha sempre a mesma... na sua tripeça. Quando alguma conhecida petulante pergunta rindo o que foi aquilo, ela apresenta uma trombinha de Santa Ingenuidade:

— Como ele era pintor...

Somente para o correeiro, ela perdeu um pouco aquela auréola de superioridade que o acabrunhava.

Fonte:
Raul Pompéia. Contos. Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Linguística da UFSC.

sábado, 9 de julho de 2022

Daniel Maurício (Poética) 34

 

André Kondo (Tapetes)


O tuk tuk é um colorido triciclo adaptado com cobertura e banco para dois passageiros. Muito utilizado como táxi na Índia, suas três rodas simplesmente voam como um tapete mágico, pelo caótico trânsito das cidades indianas. Disputando espaço com vacas e pedestres, seu condutor sempre toma cuidado para não atropelar as vacas sagradas, não se importando tanto assim em relação aos mundanos humanos. Contratei um desses veículos para conhecer a cidade de Varanasi, que é considerada uma das cidades mais antigas e sagradas do mundo.

Pedi ao piloto dessa exótica máquina me levar a Sarnath, onde o Buda pregou pela primeira vez. E lá fomos nós, enfrentando um trânsito de vacas, elefantes e até carros!

Paramos.

– Aqui é Sarnath? – perguntei desconfiado.

– Não, senhor. Aqui é o mercado de tapetes. O senhor não quer aproveitar para comprar um tapete?

– Não, obrigado! – respondi, imaginando como seria carregar um tapete pelo mundo, uma vez que ainda viajaria por alguns meses até voltar para casa.

– Tem certeza? Conheço alguém que faz um preço muito bom para os meus amigos.

Fiquei imaginando se eu já era amigo do condutor de tuk tuk.

– Não, obrigado. Prefiro ir direto para Sarnath.

O piloto balançou a cabeça para os lados. E lá fomos nós.

– Aqui é Sarnath? – perguntei, com a certeza de que não era.

– Não, senhor. Aqui é uma lojinha de outro amigo meu. Tinha me esquecido dele! Ele vende tapetes mais baratos do que o preço de mercado. Não quer comprar um?

– Não, obrigado.

– É baratinho.

Em todo lugar do mundo, o baratinho sempre tem uma comissão. Se o guia de uma excursão visita uma loja, geralmente ele leva uma pequena porcentagem do dinheiro que o turista deixou lá. Mas esse nem era o problema, o problema era que eu não queria comprar tapete algum.

– Não, obrigado.

O piloto balançou o turbante para os lados. E lá fomos nós.

Buda já havia pregado em Sarnath, há dois mil e quinhentos anos, que tudo neste mundo é sofrimento. Comecei a acreditar nisso.

Nem perguntei se era Sarnath.

– Olha, o senhor ainda tem uma chance de comprar um tapete. Aqui…

– Meu amigo, por favor, já disse que não quero comprar tapetes. Tudo o que desejo é apenas ir para Sarnath! E se o senhor me levar para mais uma loja de tapetes, nem sei o que farei, mas sei que não será algo bom.

– Tudo bem, desculpe. Juro que não levo o senhor para outra loja de tapetes…

Era Sarnath.

Visitei os templos. Meditei. Senti uma paz profunda. E também me senti envergonhado por ter perdido a paciência com o condutor de tuk tuk. Pedi desculpas a ele e fomos embora.

Antes de chegarmos ao nosso próximo ponto de peregrinação…

Paramos.

Fiquei com medo de ver outra loja de tapetes.

– Senhor, não se preocupe. Prometi que não o levaria a outra loja de tapetes. Aqui é um museu e acho que o senhor vai gostar…

Senti um pouco de culpa por ter duvidado do condutor de tuk tuk. Caminhei até a entrada do museu. Sim, era um museu, pois na fachada estava escrito: “Museu do Tapete”.

Um sorridente bigodudo saiu para nos receber.

– Bem-vindo ao Museu do Tapete! O senhor tem muita sorte! Somente hoje, e só hoje, todo o nosso acervo está à venda!

Fonte:
André Kondo. Palavras de areia. Ed. In House, 2013.

Luiz Otávio (Jardim de Trovas) III

A dor que mais nos abala,
que fere profundamente,
não é a dor de que se fala,
mas a que apenas se sente.
= = = = = = = = = = = = = = = = =  

A trova recende a rosas
e sabe a favos de mel,
e é tão pequena que cabe
num cantinho de papel...
= = = = = = = = = = = = = = = = =

A trova tudo nos conta.
De coisas belas nos fala.
Basta alma para fazê-la…
E ouvidos para escutá-la...
= = = = = = = = = = = = = = = = =

Benditas sois, Caravelas,
que, enfrentando riscos mil,
trouxestes, entre procelas,
a semente do Brasil!
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Da vida, quando eu partir,
findando sonhos e dores,
serei levado, a sorrir,
por quatro anjos trovadores...
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Deixou a Felicidade
Saudade em meu Coração...
Depois a própria Saudade
cansou-se da Solidão...
= = = = = = = = = = = = = = = = =

Há olhos para a Gramática!
Há olhos para a Razão!
Mas, lendo a trova, é preciso
ter olhos no coração...
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Nasce a trova facilmente
e correndo o mundo vai...
É como a água nascente,
ou como o orvalho que cai...
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Nas desgraças ou venturas,
há sempre, em todas as vidas,
angústias, medos, torturas,
de origens desconhecidas ...
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"Ninguém faz falta no Mundo"
— O povo não tem razão...
Perca um bem grande e profundo,
veja se faz falta ou não!...
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Numa simples despedida,
nunca sabemos, meu Deus,
se ao darmos um "até breve",
estamos dando um "adeus"...
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Oh! quanto nos atormenta,
na vida, que se dilui,
sentir que a saudade aumenta
e a esperança diminui!...
= = = = = = = = = = = = = = = = =

Ó nuvens — minha alma implora! –
Segredai àquela ingrata
que, se ela não volta agora,
esta Saudade me mata!
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O que fala que é feliz,
está, por certo, enganado.
— Não creia no que ele diz...
vive apenas conformado...
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Os seus olhos sonhadores
me falam de seus desejos:
que os seus lábios tentadores
nasceram para os meus beijos...
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Parte ao encontro do amor
com um sorriso na face,
como se ele fosse um bem
que nunca nos enganasse...
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Pensa bem no que eu te digo:
um conselho sem ressábios
é dado num tom amigo,
com um sorriso nos lábios.
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Pra compensar a maldade
de ser o bem tão fugaz,
Deus inventou a saudade
— a melhor das coisas más...
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"Qualquer um faz uma trova..."
falaram-me com desdém…
Fazer... fazer... todos fazem...
A questão é fazer bem!...
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Que dolorosa ironia!
— Esta paixão derradeira
deu-me Ventura um só dia
e Saudade a vida inteira!...
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Rouba-se tanto, tão alto,
com tal malícia e sussurro,
que a gente, quando é honesto,
ganha diploma de burro...
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Saudade... luz do poente,
que se esconde atrás do mar,
voltando após, docemente,
na ternura do luar…
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Será feliz, com certeza,
o que, entre mágoas, prejuízos,
só vê, do mundo, a beleza,
da humanidade, os sorrisos...
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Tenho tudo nesta vida..,
Às vezes, penso: contudo,
se tu me faltas, querida,
de repente perco tudo!...
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Teus olhos, tua voz quente,
teu sorriso endiabrado,
dão logo impressão, à gente,
de ver o próprio pecado...
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Veio um dia a tempestade,
jogou-me a um canto da vida!
Tinha vinte anos de idade
e a mocidade perdida...
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Vida — mistério profundo!
Quem dirá da nossa Sorte?!
Que haverá depois do mundo?
Que haverá depois, da morte?!

Fonte:
Luiz Otávio. Cantigas dos sonhos perdidos. Coleção Trovas e Trovadores, organizada por Aparício Fernandes e Zalkind Piatigorky. RJ: Livraria Freitas Bastos, 1964.

Aparecido Raimundo de Souza (Imprevistos de bastidores)

O ABIXONDRE, cobrador e vendedor, acompanhado de duas malas pretas cheias de bugigangas entra no beco de Santa Madalena logo que termina de subir a favela do morro do Bode Barbudo. Bate palmas na porta do barraco vinte e um, espelunca que encabeça a ruela estreita de terra batida e poças de lama por todos os lados. Vem atender uma moça nova, ai pela faixa dos trinta. Embora o rosto seja aprazível, a sua figura, como um todo, se torna feia, em face dos cabelos em desalinho e a ausência de todos os dentes na boca. Abixondre cumprimenta a mulher e manda brasa expondo o motivo que o levou até ali:

— Bom dia, dona. Desculpe o incômodo. Como é seu nome?

— Quem quer saber? — devolve a pergunta a infeliz banguela.

— Eu, em carne e osso.

— Estou vendo. Quero que me diga o seu nome e do que se trata?

Abixondre, em poucas palavras, explica:

— Meu nome é Abixondre. Sou vendedor e cobrador. Trabalho para as Lojas “Temos de Tudo”. Meu parceiro, o Elias, coisa de um mês atrás, veio aqui e vendeu umas roupas de cama para seu José Carlos Lindo. Estou à procura dele, para receber a primeira prestação. Vence hoje.

A criatura balança a cabeça sinalizando que não conhece nenhum José Carlos Lindo:

— Não me disse — insiste Abixondre — qual é a sua graça?

— Sanfonina Beliscão. Acho que não terei como lhe ajudar. Moro aqui mais de cinco anos e nunca ouvi falar nesse tal de José Carlos Lindo. Tem certeza que é este o nome?

Abixondre mostra a ficha do tal sujeito:

— Aqui, dona Sanfonina. Veja a senhora mesma. José Carlos Lindo, Favela do Morro do Bode Chifrudo, beco Capivara, casa vinte e um.

Dona Sanfonina se abre num sorriso esquisito e logo em seguida volta à seriedade:

— Nunca ouvi falar em tal nome por aqui. O senhor é o primeiro que aparece à cata dele. E olha que conheço todo mundo. Não me esqueceria, em face do l-i-n-d-o...

Abixondre sorri e insiste:

— Puxe pela mente, dona Sanfonina. É muito importante...

— Sei como é. Meu marido também vive de cobranças e chega em casa estressado e reclamando. O que posso fazer pelo senhor, no momento, é o seguinte: esclarecer que esta viela não é a Capivara. O número da casa bate, mas o beco...

— Este não é o beco Capivara?

— Não, senhor...

— Aqui não é a favela do Morro do Bode Chifrudo?

— Não, senhor... aqui é a favela do morro do Bode Barbudo. O senhor deve ter se enganado de bode.

— Mais essa agora. E por acaso existe aqui pelas redondezas alguma outra favela que leve esse nome?

— Qual deles, senhor? Favela do Morro do Bode Barbudo, ou Favela do Morro do Bode Chifrudo? O único por aqui é o que o prezado está pisando nele. Realmente, seu Abixandro, aqui é a casa vinte e um. O beco é que não confere. O morro, como acabei de dizer, e repito, é o da Favela do Morro do Bode Barbudo e o beco, o de Santa Madalena.

Abixondre se abre num gesto de poucos amigos. Fala:

— Dona Sanfonina, meu nome é Abixondre e não Abixandro.

— Desculpe, moço. Entendi errado.

— Sem problemas.

— Se o senhor tiver com vontade e disposição nas canelas para subir mais um pouco, lá para cima, com essas duas malas pesadas, encontrará uma pracinha. O beco procurado, este Capivara é um dos últimos. Fica duas quadras depois da pracinha. Continue subindo... é uma boa caminhada... a vista da cidade, lá do cume, se torna eletrizante... surreal... compensa o sacrifício...

Abixondre agradece, se despede de dona Sanfonina passa as mãos nas duas malas e segue escalando barranco acima. Anda bem quase um quilômetro, vez que o caminho às vezes segue para o lado direito, outras pende para o esquerdo. A se ver na mencionada pracinha, tira do bolso um lenço e enxuga o suor. A camisa está empapada. Espia em derredor. Crianças acompanhadas de suas respectivas mamães, se divertem num parquinho com brinquedos caindo aos pedaços, enquanto um bando de moleques joga bola. Abixondre se aproxima de um estabelecimento comercial onde uma tabuleta com letras em garranchos vermelhos anunciam o “Empório do Zé Lagarto”. Ao ingressar, topa com um senhor em idade avançada recostado no balcão:

— Bom dia, cavalheiro. Pois não?

— Bom dia, meu amigo. O senhor deve ser o seu Zé Lagarto?

— Sim, sou o Zé Lagarto, às suas ordens...

— Poderia me dizer, por favor, onde fica o Beco da Capivara?

O velhote sai de seu posto, pega o estrangeiro pelo braço. Se achega com ele até a porta e aponta, dedo em riste, para um determinado local:

— Está vendo a quitanda?

— Sim.

— Ao lado, tem uma barbearia. Encostado à ela, está o Beco da Capivara. Por mera curiosidade. Quem o senhor caça por estas bandas?

Abixondre pede um café enquanto exibe a ficha:

— Procuro pelo seu José Carlos Lindo.

— José Carlos Lindo?

— Sim! Conhece?

— Nunca ouvi falar...

— Saberia informar qual o número dele na Capivara?

— Nenhum. No Vinte e um mora um homem, mas não é esse o nome do estrangeiro.

O vendeiro coça a cabeça:

— No vinte e um  deste beco, repito com todas as letras, não tem nenhum José Carlos Lindo.

Abixondre insiste:

— O senhor tem certeza?

— Absoluta. Todo mundo por aqui conhece todo mundo. Sabe o nome da esposa dele?

— Não.

Adentra, nesse momento, um rapazola com um carrinho de mão. É o garoto que faz a entrega das compras nos casebres dos radicados nas proximidades:

— Deixa eu perguntar por um morador aqui do pedaço. É o  Catatau, meu funcionário. Catatau, ali no buraco do seu beco, tem algum Lindo, digo, um José Carlos Lindo?

O tal do Catatau se vira e, antes de responder, cumprimenta os dois homens a sua frente:

— Bons dias. José Carlos Lindo? Não conheço. Sabe o número do barraco dele?

— Vinte e um.

— Seu Luiz, o beco é pequeno. Vai do um ao trinta, mas os números não seguem uma ordem cronológica. Tem o um, o cinco, o dezenove, o trinta... depois cai para o doze, desce para o sete... logo adiante, volta à regredir para o dois, e, em seguida, o dez. Cada morador prega no seu “quadrado” o número que lhe dá na telha...

— E o José Carlos Lindo?

— O que tem ele?

— Nunca ouvi falar. A única pessoa nova no pedaço é o seu Marreta. Se esconde no vinte e um, ou mais precisamente nos fundos da dona Mercedes.

Engalanando o pedaço surge, do nada, a espevitada e gostosa Mercedes Caninana. Mulher de belas pernas, corpo de princesa. De fato, aos vinte e cinco, tudo nos conformes, linda de morrer. Chega, pede um refrigerante e um pastel de carne. Todos se voltam quando ela se acomoda numa das mesas. A pérola anda nos trinques. Se veste como se fosse dama da alta sociedade.

O vendeiro assim que serve o pedido, indaga pelo José Carlos Lindo:

— Senhorita Mercedes, desculpe a indiscrição. Conhece o seu José Carlos Lindo?

— Nunca ouvi falar...

— Aquele senhor que sempre passa por aqui com a senhora. Sabe onde ele mora?

— Sei, claro. O senhor se refere ao Marreta? É meu inquilino! Mora num puxadinho que aluguei para ele, contíguo ao meu cafofo. Um bom sujeito. Não tem Lindo. Posso saber o que o senhor quer com ele?

— Na verdade, senhorita Mercedes, eu nada. O senhor é que está aos calcanhares dele. No que fala, aponta o Abixondre.

Mercedes se levanta da mesa e caminha até onde Abixondre,  em pé, se assemelha a uma estátua:

— E o que o senhor quer com o velho Marreta?

— Senhora, meu parceiro Elias, vendeu para o senhor José Carlos Lindo, umas peças de roupas e eu vim receber. Um vende, o outro recebe... entretanto, acho que o seu Marreta não é quem realmente procuro...

Mercedes se faz de sonsa. Indaga:

— Pelas suas malas, por acaso o senhor vende alguma coisa?

— Acertou na mosca, senhorita.

— Que sorte, a minha. Pretendia descer para comprar uns panos novos. Olhe, tenho interesse em adquirir novidades. Se puder fazer a gentileza de me acompanhar....

— Será um enorme prazer.

Mercedes Caninana, após o rápido lanche, sai acompanhada de Abixondre ajudando, inclusive, o mascate a carregar uma das malas:

— Senhorita, por gentileza, sejamos francos e honestos. Por que me pediu para vir até sua residência?

— Serei bem clara e sucinta. Ninguém aqui no morro da Favela do Bode Barbudo sabe que o Marreta é algo mais que meu locatário...

Põe em prática uma pausa ensaiada. E segue com seu relato:

— Lá no asfalto, onde mora, Marreta ostenta o seu Lindo. É um empresário renomado. Tem mulher, uma penca de filhos e blá-blá-blá... a gente se conheceu... ele me fez um favor e, desde então, passamos a ter um chamego... o senhor sabe como é. Para que pessoas enxeridas não venham lá dos quintos nos perturbar... como o senhor pode ver... a minha Marretada no Lindo do velho senhor Marreta, deu certo. Posso contar com a sua total discrição, no sentido de não revelar para ninguém que o Marreta, é, na verdade, o seu procurado José Carlos Lindo?

— Pelo amor de Deus, senhorita. Vamos mudar o rumo da prosa. Tem a minha palavra. Já esqueci do seu Lindo. Marreta é o nome do cidadão que vim cobrar a prestação vencida...

A beldade mete a chave e empurra a porta de entrada. Os dois somem, aos risos, para dentro da humilde residência.

Fonte:
Texto enviado pelo autor.