domingo, 30 de abril de 2023

Gonçalves Dias (Novos Cantos) 1


ESPERA!

Quem há no mundo que aflições não passe,
Que dores não suporte?
Mais ou menos d’angustias cabe a todos,
A todos cabe a morte.

A vida é um fio negro d’amarguras
E de longo sofrer;
Semelha a noite; mas fagueiros sonhos
Podem de noite haver.

Por que então maldiremos este mundo
E a vida que vivemos,
Se nos tornamos do Senhor mais dignos,
Quanto mais dor sofremos?

Quantos cabelos temos, ele o sabe;
Ele pode contar
As folhas que há no bosque, os grãos d’areia
Que sustentam o mar.

Como pois não será ele conosco
No dia da aflição?
Como não há de computar as dores
Do nosso coração?

Como há de ver-nos, sem piedade, o rosto
Coberto d’amargura;
Ele, senhor e pai, conforto e guia
Da humana criatura?

Se o vento sopra, se se move a terra,
Se iroso o mar flutua;
Se o sol rutila, se as estrelas brilham,
Se gira a branca lua;

Deus o quis, Deus que mede a intensidade
Da dor e da alegria,
Que cada ser comporta — n’um momento
D’arroubo ou d’agonia!

Embora pois a nossa vida corra
Alheia da ventura!
Além da terra há céus, e Deus protege
A toda criatura!

Viajor perdido na floresta à noite,
Assim vago na vida;
Mas sinto a voz que me dirige os passos
E a luz que me convida.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = 

NÃO ME DEIXES!

Debruçada nas águas d’um regato
A flor dizia em vão
A corrente, onde bela se mirava....
«Ai, não me deixes, não!»

«Comigo fica ou leva-me contigo
«Dos mares à amplidão,
«Límpido ou turvo, te amarei constante;
«Mas não me deixes, não!»

E a corrente passava; novas águas
Após as outras vão;
E a flor sempre a dizer curva na fonte;
«Ai, não me deixes, não!»

E das águas que fogem incessantes
À eterna sucessão
Dizia sempre a flor e sempre embalde:
«Ai, não me deixes, não!»

Por fim desfalecida e a cor murchada,
Quase a lamber o chão,
Buscava inda a corrente por dizer-lhe
Que a não deixasse, não.

A corrente impiedosa a flor enleia,
Leva-a do seu torrão;
A afundar-se dizia a pobrezinha:
«Não me deixaste, não!»
* * * * * * * * * * * * * * * * * * 

ZULMIRA

Sonhara-te eu na veiga de Granada,
Tapetada de flores e verdura,
Onde o Darro e Xenil no lento giro
Volvem a linfa pura.

Ali te vejo em leda comitiva
Dos gentis cavaleiros do oriente,
Quando, deposta a malha do combate,
Vestem da paz a seda reluzente.

Ali te vejo n’um balcão sentada,
Grande preço da maura arquitetura,
Pejando as asas das noturnas brisas
D’um canto de ternura.

Ali te vejo, sim; mas mais me agrada
O que se m’afigura n’outro instante,
Ver-te em vistosa tenda d’ouro e sedas,
Levantada no dorso do elefante.

E em roda, ao largo, o séquito pomposo
D’eunucos a teu gesto vacilantes
Em cujas frontes negras se destacam
Alvíssimos turbantes.

E pergunto quem és? — Então me dizem
Ciosos de guardar o seu tesouro,
Nome tão doce aos lábios, que parece
Escrever-se em cetim com letras d’ouro.

Fonte:
Disponível em Domínio Público 
Gonçalves Dias. Cantos. Publicada originalmente em 1857.

Marques de Carvalho (O preço das pazes)


A J. A. Pinto Barbosa

I

O meu amigo Ernesto acendera um charuto, consertara o pincenez sobre o espirituoso nariz arrebitado; acomodou-se melhor na vasta poltrona, muito fofa, em que estava sentado diante de mim e começou:

— Pois vou referir-te o grande caso a que há pouco aludi, à mesa, sem poder contar-te inteiro, pela importuna presença d’aquelas senhoras.

Afigura-te ao espírito, meu amigo, a mulher mais belamente divina e mais divinamente fascinante que possa existir: alta, esbelta, de corpo dotado de umas adoráveis redondezas triunfantes; cútis morena, aveludada; olhos negros e brilhantíssimos, — como duas caçoulas de misteriosos filtros embriagadores; — cabelos muito pretos e ondeados, rescendentes a bom aroma de selvática baunilha; um donaire, uma soberania inteira de majestoso porte e fidalga apresentação cativante, capaz de enleiar-nos em toda a série de crimes que ao humano pensamento é dado formular em dias de torvas reflexões e sinistras ebriedades pecaminosas: uma revelação pasmosa, um exemplar perfeitíssimo da mulher-única, da mulher-incomparável, o arquétipo da elevação dos dotes, a civilizada manifestação das nossas lendárias iaras amazônicas! E, a par de tudo isso, um espírito cultivado, uma ilustração perfeita de erudita, conversas sedutoras borbulhando entre uns dentes alvíssimos, pequeninos e iguais, feitos de puro marfim, d’uma alvura de leite, engastados em formoso coral, brilhante como os róseos lábios úmidos da microscópica boquinha sombreada d’um leve buço, — o complemento da sedução, o requinte da tentadora volúpia d’aquele delicioso ser. Imaginaste? Pois bem; assim era a Marocas, a esposa do altivo general Bandeira, velho quinquagenário de elevada riqueza materialista em apetitosas centenas de contos de réis, depositados nos principais bancos do Brasil.

Compreende agora, depois do que tenho vindo a dizer-te, enquanto a azulada fumaça deste charuto caprichosamente descreve espirais no espaço, como poderia ama-la o esposo, vendo-a tão nova, a seu lado, toda entregue a seu amor, — desde os tímidos beijos assustadiços repentinamente dados, ás vezes, no vão de qualquer janela dos aposentos desertos de enfadonhas testemunhas, até ao completo desnudamento arrepiado e perfumoso, muito encolhido e cálido, que apresentava-lhe na misteriosa liberdade pacifica da recatada alcova, alta noite, com a sua elevada estatura de lírio a erguer-se, entre neves de rendas, difundindo aromas que sabia embriagadores, irresistíveis.

Uma fascinação, aquela dupla existência de acendrado (purificado) amor. Mútuos caprichos eram satisfeitos com afã, com orgulho, como quem dedica-se a todos os sacrifícios para conquistar uma estima á força de constantes provas de louvável desinteresse.

Confesso não ter ainda visto a repetição d’aquela invejável existência d’afetuoso enlevo, — ele no declinar da vida, ela em toda a maravilhosa florescência dos seus vinte e cinco anos. Passava horas inteiras a contempla-los, absorto na admiração dessa alheia felicidade que fazia-me venturoso, — tanto é certo que uma perfeita harmonia de suave existência rica de afetos possui o dom de espalhar ao redor de si um como jubiloso transbordamento do seu excesso.

Muitos anos haviam já passado, desde que o matrimônio os uniu, quando Marocas fizera o seu décimo quinto aniversário, — e nem um só instante o arrependimento lhes chegara de se terem para sempre ligado por um prematuro enlace sacramental: era a sua vida atual como a fiel reprodução do dia em que, pela vez primeira, acordando na penumbra da discreta alcôva, deram-se, entre dois beijos pouco ousados ainda, o amoroso tratamento de esposo.

Verdadeiramente admirável, não achas?

II

Mas houve um dia em que a primeira nuvem d’uma indisposição flutuou, soturna e lúgubre, no belo céu, puramente azul, da tranquila felicidade jubilosa de ambos.

Foi uma verdadeira desgraça suscitada por um capricho desarrazoado da formosa mulher do general. Ele tivera o arrojo de negar-se, — pela primeira vez, é certo, — a satisfaze-lo, e a Marocas sofrera em cheio no coração a dureza da áspera repulsa. Longos fios d’intermináveis lágrimas deslizaram-se-lhe dos grandes olhos tentadoramente lânguidos, pisando-os com força, circulando-os das roxas manchas tristonhas que têm os infelizes habituados ao pranto.

Mas esta manifestação de fraqueza apenas algumas horas durou, — enquanto o velho general, encerrado no seu quarto particular, trilhava a passos desmarcados o soalho, já meio arrependido da quase brutal violencia com que resistira ao serpentino ataque fascinador da idolatrada esposa.

Depois veio a reação, em seguida a crise histérica dos abundantes prantos silenciosos. Uns assomos de majestosa indignação, muito concentrada e muda, chegaram-lhe por fim, segredando-lhe mentalmente duros meios de infligir ao marido memoráveis ensinamentos de justas represálias.

E a Marocas prometeu elevar-se acima de si própria, ser tão rispida como brutal havia sido o incivil do general.

Ai, meu caro amigo! Foi severa a lição! O pobre general Bandeira mais d’uma vez sentiu-a espicaçando-o, quando o despeito da Marocas, ao fim da primeira semana, obrigava-o ainda a passar as noites sozinho em seu quarto, — n’uma triste solidão de viuvez frigidíssima...

Tentou o velho militar sofrer a dura necessidade, resistir-lhe com valentia, refrea-la dominada no fundo de seu ser. Seria possível que não tivesse a força de vencer-se, ele, o ilustre soldado de quem tanto temiam os paraguaios, anos antes, nas selváticas solidões onde o nosso exercito ferira tão sanguinolentos combates contra as guerrilhas do valente Lopez?

Mas, pouco depois, aquelas entusiastas resoluções enfraqueceram, como cai uma vela, enrugada e palpitante, ao longo do mastro, ao faltar-lhe subitamente o preciso bafejo galerno de murmurosa brisa.

O general desejou capitular, ne extremo das forças. Um arrependimento, cujo peso a necessidade tornava insuportável, chegou-lhe após essas momentâneas resoluções de superiores resistências... impossíveis n’aquele pobre e velho espirito de homem tolamente embeiçado pelas cativantes graças da mulher.

Com efeito, capitulou.

Uma noite, quando os corredores abandonados não repercutiam mais os passos das escravas e uma luz baça coava-se pelos foscos vidros de lâmpadas discretas, saiu cauteloso da sua alcova e, com o coração a pulsar violento, dirigiu-se ao quarto da mulher.

Á porta, parou, indeciso.

Um rumor d’água revolvida vinha pelo interstício das folhas de madeira entre-cerradas, em mescla a um suave aroma de japana e manjerona sensualmente esmagadas, diluídas na doce tepidez da agua.

Marocas tomava o costumado banho da noite, com a porta aberta, na simples ingenuidade descuidosa da sua tranquila innocência de mulher que em nada de mau pensa.

Quis o velho retroceder, porventura ruborizado do passo que estava dando. Sem o desejar, espreitara pela frincha da porta, e um belo corpo, feito d’ámbar e leite, emergia da banheira, no meio do quarto, vaporizando a tépida emanação sutil das suas frescas, rosadas carnes belamente sedutoras e deliciosamente juvenis.

Um desejo brutal incendiou-lhe o sangue, ao tempo que as narinas, aflando precípites, aspiravam com vigor o aroma das excitantes plantas. Empurrou a porta, correu para junto da mulher e lançou-se-lhe aos pés, choroso, suplicante, todo caricias e doces palavras bondosas, impetrando o perdão, solicitando um armistício, pedindo pazes seladas com a ardência d’uma deliciosa e suprema compensação!

Ela, porém, a Marocas, impassível e impertubável — ao tempo que envolvia-se toda em fino lençol de transparente cambraia, n’um gracioso rubor de impecável donzela, — estendeu o braço para a porta e, mostrando-lhe, disse ao general estarrecido:

— Retire-se, cavalheiro! Seja digno de mim, conquiste-me, se quiser aparecer n’este quarto no caráter de esposo idolatrado.

E ele teve que sair, — ao reconhecer a impossibilidade de persistir n’uma resistência, que só poderia ser-lhe prejudicial.

III

O velho Bandeira, nos dias subsequentes, dava-se a perros para descobrir um meio bastante forte, pelo qual pudesse enfim reabilitar-se perante a mulher, sem, todavia, encontrar um expediente, que triunfantemente o salvasse da terribilíssima colisão.

Presentes, fez-lhe, e muitos e valiosíssimos: sedas, joias e finas pedrarias em todo o Pará não houve, que logo as não comprasse profusamente, para amimar a caprichosa Marocas, reclusa em forte baluarte de duras reservas embaraçadoras. Nada conseguia, senão augmentar o proprio desespero, em que tambem dissolvia-se uma pontinha de enrubecida vergonha, pela capitulação a que estava a sujeitar-se, com toda a mesquinhez das pequeninas baixezas.

Um caso fortuito, porém, veio livra-lo de apuros, quando o sofrimento pesava-lhe já como a brutalidade esmagadora de um bloco de granito atado aos ombros desformados de mísero anão corroído por toda a série das enfermidades secretas.

Aconteceu que, naquele mesmo tempo, fora o general Bandeira convidado para examinador de matemáticas, durante os exames da comissão especial da delegacia geral da instrução secundária do município da corte, — essa criação absorvente e desconchavada, que tira toda a força autônoma dos nossos liceus provincianos, reduzindo-os às simples e modestas proporções de insignificantes escolas de primórdios científicos e literários, destituídos do mínimo valor perante as academias superiores do Império...

Mas dispensemos esta tirada pedagógica, meu excellente amigo, e continuemos na exposição dos acontecimentos que prometti referir-te.

O general aceitara o convite com extraordinário gáudio do delegado especial, a quem eram familiares os inflexíveis rasgos de rude catonismo do Bandeira. Disposto a conservar as suas tradições de severo examinador, preparava-se para dirigir-se ao Liceu, no dia marcado, quando — oh! admiração! — apareceu-lhe no quarto a mulher, a Marocas, arrastando um longo penteador de batista, ornado de finas rendas sobre o colo, por cima das mais apeteciveis redondezas túrgidas que é possível imaginar.

Trêmulo, o velho, que nesse mesmo instante havia acendido um charuto, esqueceu-se do lado em que lhe transmitira a luz do fósforo e enterrou-o desajeitadamente na boca, em sentido oposto àquele de que deveria servir-se para fumar satisfatoriamente.

O contato do fogo na língua obrigou-o a dar enorme pulo, que estabeleceu entre ele e a Marocas uma distância considerável.

A Bandeirinha sorriu do ridículo do acontecimento; mas, cravando logo os dentes nos diminutos lábios vermelhos como papoulas, conservou a necessária seriedade e acercou-se mais do marido, reconquistando o espaço que aproximava-a dele.

Depois, disse, estendendo-lhe um cartão de visita:

— Vai hoje examinar matemáticas, general?

— Vou... sim...

— Pois então, este moço irá fazer exame por mim...

— ?...

— Ouviu...?

— Sim.

— Veja lá como se porta. As matemáticas não são o meu forte. Eu não estou muito habilitada.

E, sem atender ao general, que tentava protestar por aquele assédio, por semelhante reclamação de um escândalo impossível á sua severidade, a bela Marocas fugiu a correr nos bicos dos pés, arrastando a cauda do penteador, difundindo no quarto um cheiro inominado de roupas brancas, essências boas e rijas carnes feminís e jovens.

IV

Chegando ao Liceu, o general consultou furtivamente o cartão que lhe entregara a mulher:

Antonio da Silva Laranjeira

Encaminhou-se ao grupo de examinandos e perguntou pelo sr. Laranjeira. Apresentou-se-lhe um rapazelho espigado e pálido, de cabelos à quirirú, olhos arregalados e unhas sujas, orladas de escoriações na derme. Que era ele próprio, sim senhor. E uma voz fanhosa, cheia de bajulações servilíssimas, resmoneou a pequena frase afirmativa, solicitando ali, em sua exagerada afabilidade, a complacência do examinador.

O general voltou-lhe costas, com a garganta apertada pela comoção, mal resistindo ao desejo de esbofetear sem clemência aquele vadio que tivera o arrojo de ir apadrinhar-se com a sua Marocas, para induzi-lo ao crime de uma indignidade — arrasta-lo a quebrar os seus votos de severa justiça de indomável rispidez com os estudantes.

Daí a pouco, foi chamado ao exame oral o sr. Laranjeira, cuja prova escrita não poderia ser pior. Escusado é dizer-te que o pequeno espezinhou a ciência com toda a coragem de um iniciante ignorante. Como, porém, desempenhava ali as altas funções de representar a bela Marocas, à falta de Minerva, o general deu-lhe boa nota e muito empenhou-se para que a indulgência dos demais examinadores salvasse da guilhotina o infeliz.

Ao regressar à casa, encerrava-se o general em seu quarto, quando apareceu-lhe a esposa, sempre sedutora e rescendente a gratos perfumes finíssimos, Couro da Rússia, e jasmim do Cabo.

— Então? — perguntou ela meio-rindo.

— Aprovado, afirmou o general deixando pender a cabeça, desfalecido, — talvez envergonhado da sua fraqueza, corando porventura de não haver oposto resistência á tentação.

— Oh! belo! belo! — gritou a Marocas, lançando-se-lhe ao pescoço, beijando-o com frenesi, apresentando-lhe á flor do rosto — á ponta do nariz — os lindos pomos entumecidos, alvejando sob o fino tecido das rendas que ornavam o penteador sobre o peito.

Ele abriu os braços, recebeu-a como dentro de si próprio, num grande amplexo nervoso — a manifestação penúltima do seu intensíssimo desejo de reconciliar-se com a mulher.

Ela impelia-o, devagarinho porém incessantemente, para o sofá perfilado junto á secretária do general, acarinhando-o com o olhar, com a voz, com os lábios estendidos em titubeante murmúrio voluptuoso.

Mas o velho deteve-se de repente, como transformado em estátua. Imóvel, silencioso! Sá as pálpebras tremiam-lhe precipitadamente. Afinal, duas grossas lágrimas escorreram-lhe dos olhos, muito grandes, muito lentas.

— Que tens? inquiriu ela, assustada, beijando-o sobre uma orelha, amimada e tentadora, infantilizando a voz, que logo tomou dulcíssima harmonia.

— Penso que muito caras custaram-me estas pazes, meu amor. Um escândalo, aquela aprovação!

— Ah! volveu ela, abraçando-o com força, reconquistando-o, reconduzindo-o para o sofá, espiritualizada de prazer, sorrindo estranhamente.

E após um instante empregado em oscular a fronte encanecida do esposo, — caíndo ambos para o sofá hospitaleiro — murmurou-lhe ao ouvido, entre um rugeruge de roupas:

— O que é bom custa caro!

Fonte:
Disponível em Domínio Público
João Marques de Carvalho. Contos Paraenses. PA: Pinto Barbosa e C., 1889.
Atualização do português por J. Feldman

sábado, 29 de abril de 2023

Tertúlia da Saudade 04: Héron Patrício

 

Samuel da Costa (Ana Paula Caetano)

Estava ela pensando na figura da mulher vestida toda de branco e seu olhar sem vida, que complacentemente chamava as pacientes para o que parecia ser mais uma consulta, a voz da atendente era de um tom monocórdio e quase sem vida. Como se fosse um ato mecânico, que se repetia dia após dia. 

Ela também pensava no que deixará para trás, quando passou pela porta envidraçada. Aquele local que parecia ser uma clínica hospitalar, mas na verdade o lugar cheirava a morte, pairava no ar o olor putrefato de cadáveres.

 Pensara na decisão repentina que ela tomou: — Porque não fiz o aborto meu Deus? Ana Paula Caetano pensava em tudo, na família, na vergonha e nos que os outros iriam falar e os dedos em riste. Ela pensou em todos e todas, menos no filho que teria para cuidar sozinha daqui alguns meses.  

Fonte:
Texto enviado por Samuel da Costa

Fabiane Braga Lima (Abrace a vida....)

O silêncio muitas vezes é assustador, mas também é instigante, pois nos evolui, conecta-nos com a alma. Certos barulhos tortura-nos, e são extremamente invasivos.   

De repente, somos nós, reféns de uma alma vazia, sem amor próprio. Toda mulher deve se respeitar, exigindo respeito. Não, não é preciso deixar de amar ou sonhar, mas para tudo existe um certo limite na vida. Domine a técnica do silêncio para se conhecer melhor, evitando assim, desrespeito e muita humilhação.

Muitos que se dizem amigos, mas perdoem, e se perdoam, não guardem mágoas ou rancores. Mágoas e rancores geralmente acumulam doenças psicossomáticas. Leia um livro, tenha a ousadia de sonhar e amar, esse é o melhor remédio. Bem-vindo ao século XXI. Ei, Abrace a vida! Ame-se…

Fonte:
Texto enviado por Samuel da Costa

Afrânio Peixoto (Trovas Populares Brasileiras) – 12

Atenção: Na época da publicação deste livro (1919), ainda não havia a normalização da trova para rimar o 1. com o 3. Verso, sendo obrigatório apenas o 2. Com o 4. São trovas populares coletadas por Afrânio Peixoto.


A bonina é disfarçada,
quem me dera ser assim!
É bem asneira morrer
por quem não morre per mim.
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A bonina é flor da noite,
não abre senão de tarde:
Não há mal que sempre dure,
nem bem que não se acabe.
= = = = = = = = = 

A folha da bananeira
de comprida amarelou;
A boca de meu benzinho
de tão doce açucarou.
= = = = = = = = = 

A folhinha do alecrim
cheira mais, quando pisada:
Há muita gente que é assim,
mais ama se desprezada.
= = = = = = = = = 

Alecrim verde cheiroso,
tem o cheiro diferente.
Este nosso doido amor
dá combate a muita gente.
= = = = = = = = = 

As florzinhas do coqueiro,
vem o vento, vão ao chão:
Fazem assim os meus olhos
se passa o meu coração.
= = = = = = = = = 

Cajueiro, cajueiro,
quem te botará no chão?...
Debaixo das tuas ramas
foi a minha perdição...
= = = = = = = = = 

Cravo roxo no meu peito
logo me cai a semente.
É melhor morrer de um tiro
que de ti viver ausente.
= = = = = = = = = 

Do pinheiro nasce a pinha,
da pinha nasce o pinhão,
da mulher nasce a firmeza,
do homem a ingratidão.
= = = = = = = = = 

Eu passei por um craveiro,
tirei um cravo com a unha.
Quem toma o amor dos outros
não tem vergonha nenhuma.
= = = = = = = = = 

Eu sou como a flor da murta
daquela que cai no chão.
Quanto mais carinhos faço,
mais desenganos me dão...
= = = = = = = = = 

Lá detrás daquela serra
tem um pé de pimenteira,
para se botar na boca
de quem for mexeriqueira.
= = = = = = = = = 

Limoeiro é pau de espinho
donde nasce a penitência.
Acharás neste meu peito
dobrada condescendência.
= = = = = = = = = 

Logo mando quatro cravos
todos quatro por abrir...
Meus braços estão abertos,
sempre que tu queiras vir.
= = = = = = = = = 

Meu coração é um jardim.
todo enfeitado de grades,
Com suspiros, não-me-deixes,
mal-me-queres e saudades.
= = = = = = = = =

Nasce a lima da limeira
de uma semente que tem.
Não pode haver desavença
de dois que se querem bem.
= = = = = = = = = 

Não há quem tire do pasto
tiririca e carrapicho.
Minha cegueira por ti
é mais que amor, é rabicho.
= = = = = = = = = 

No jardim da formosura
eu fui colher um jasmim,
mas a morte traiçoeira
colheu-o antes de mim.
= = = = = = = = = 

0 amor que vai ser meu
anda na flor do poejo,
pulando de galho em galho,
eu fazendo que não vejo.
= = = = = = = = = 

0 coqueiro de sabido
foi-se por naquela altura,
pensando que eu não sabia
quando tem fruta madura.
= = = = = = = = = 

0 cravo também se muda
do jardim para o deserto.
De longe também se ama,
quem não pode amar de perto.
= = = = = = = = = 

Plantei o milho num mês
e no outro embonecou:
Mandei-te um beijo outro dia,
lá se foi e não voltou.
= = = = = = = = = 

Quatro flores no meu peito
fizeram sociedade:
Sempre-viva, amor perfeito,
martírio roxo e saudade.
= = = = = = = = = 

Se a perpétua cheirasse,
era a rainha das flores.
Como a perpétua não cheira,
Perpétua não tem amores.
= = = = = = = = = 

Sou como a hera que sobe,
se acha muro de feição,
mas quando o muro se acaba,
pendem os ramos pelo chão.
= = = = = = = = =

Vinde cá, meu limão doce,
saboroso de comer.
Não descubras meu segredo
que a ti só dei a saber.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = 

Vinde ó, meu cravo d'ouro,
minha semente de prata,
a tua vista me alegra
o teu retiro me mata.
= = = = = = = = = 
Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Afrânio Peixoto (seleção). Trovas populares brasileiras. RJ: Francisco Alves, 1919.

Maria Amália Vaz de Carvalho (O anel do diplomata)

— Parecia que vendia saúde... Tão forte que era!...

— É verdade! Quem o havia de dizer!

— Era uma criança ainda, tinha pouco mais de setenta anos, volveu outro que, pela figura e pelo andar trôpego e vacilante, denotava ter os seus oitenta, bem puxados.

— E olhe que era um bom homem! Você não viu como a filha chorava quando o pusemos em cima da cama? Cortava o coração, coitadinha!

— E honradinho! Eu sei cá! Poucos se topam por aí com tão bons sentimentos e com cara tão limpa...

— Lá isso é!...

— Não, que quem sabe aos seus não degenera!

— Era muito amigo da pobreza! – tartamudeou uma velha.

— Ó Cristo! Era o pai da pobreza, é o que vosmecê deve dizer, tia Joaquina.

— E depois olhe que era o melhor letrado destas oito léguas em redondo.

— Aquilo era um selvagem...

Assim falavam alguns indivíduos pertencentes a diversas categorias da pequena sociedade da vila de X***, descendo as escadas da casa do advogado Vasconcellos que caíra mortalmente fulminado por uma congestão cerebral, no momento em que defendia calorosamente um indivíduo que numa alucinação brutal de ciúme assassinara a mulher e dois filhinhos.

O advogado Vasconcellos morrera pobre, sorte de todos os causídicos de província, que logram vencer, quando muito, por mês, o que qualquer dos colegas de Lisboa e Porto dá aos seus agaloados trintanários.

Segundo filho de uma casa de bom nome na província do Minho, cursava cânones e leis na Universidade, no ano de 1828, emigrando nesse mesmo ano, e vindo terminar o curso mais tarde, depois de ter defendido a causa da liberdade, em parceria com outros codiscípulos, que tão assinaladamente se distinguiram depois na politica, nas armas e nas letras.

Depois de formado, recolheu-se á sua vila natal, e não podendo contar com a mesada que seu irmão lhe arbitrara, visto que os rendimentos da casa mal chegavam para a alimentação e sustento do primogênito, abriu banca de advogado, dependurando de um dos lados da estante de pinho, encimada pela pasta verde e encarnada de quintanista, a lata com os seus pergaminhos de bacharel in utroque (num e noutro), e de outro lado a farda impregnada da pólvora de vinte combates e varada pelas balas dos servidores de Del-Rei nosso senhor, no cerco do Porto.

A formosa irlandesa que o acompanhara no exilio, e que lhe foi denodada companheira nas ásperas provações da vida, morreu-lhe pouco tempo depois, deixando-lhe dois filhos, um rapaz e uma menina.

Tanto um como outro eram educados com solicitude e esmero, que para a educação dos dois não se forrava aquele pai amabilíssimo, nem a despesas, nem a trabalhos.

O rapaz foi para Coimbra, e a menina para o convento das Salesias em Lisboa, de onde recolheu quando o irmão entrava para o primeiro ano jurídico.

— É preciso estudar, Antonio, olha que se eu não tivesse aquelas cartas, tinha de andar a cavar nas hortas de meu irmão, ou de esmolar nas escadas ignóbeis das secretarias um lugar de porteiro ou de amanuense, e isto ainda assim, apresentando como documento dos meus serviços aquela farda...

Não eram necessários estes conselhos. Antonio de Vasconcellos foi sempre um sisudo moço, estudioso, o que não quer dizer que aquela mocidade fosse bisonha e avessa às ridentes alegrias dos vinte anos.

Pobre da árvore que ao sorrir da primavera não se cobre de flores, e em cujos ramos folhados e a cuja seiva não cantam as toutinegras e não assobiam os melros!

Recolhia-se á sua casa, em Coimbra, o moço estudante, alegre e contente de si por ter correspondido bizarramente, numa sabatina, ao alto conceito em que o curso o tinha, quando lhe entregaram uma parte telegráfica.

Rasgou alvoroçadamente o sobrescrito, leu e empalideceu horrivelmente.

— Meu querido pai! – murmurou, e curvado sobre a sua mesa de estudo deixou cair a cabeça nos punhos fechados. – Pobre pai! Pobre pai! Que me não chegou a ver bacharel!

Na manhã do dia seguinte entrava por casa dentro, ao passo que descia as escadas o caixão em que vinha metido o pai.

Quiseram-no afastar, esconder-lhe aquele espetáculo lutuoso, mas ele resistiu, e abraçado ao cadáver do pai chorava como choram os que de repente sentem que o braço amável que os guiava nesta vida enfraquece e esfria para sempre, deixando-os na mais desconsolada e álgida das solidões.

Amparado nos braços de um amigo da infância, entrou no aposento em que a irmã pálida e desfeita expedia gritos clamorosos e histéricos.

— Sozinha, repetia a mísera, sozinha!

— E eu, minha querida Francisca? Não te lembraste do teu irmão? – disse o moço engolindo as lágrimas, e fazendo-se forte para dar coragem à desgraçada menina.

Assim no alto mar quando o temporal arrepia e enovela as ondas, e o velame bate nos mastros com o ruído molhado das asas de uma ave que se afoga, e a marinhagem assustada grita e pragueja ante a morte próxima e inevitável, o capitão que tem filhos e esposa, longe numa pequena aldeia à beira-mar, dá ordens com voz tranquila, e comanda a manobra com a serenidade de quem vê perto as águas quietas e espelhadas do ancoradouro.

Passados alguns dias, desceu o estudante ao escritório. Examinou as gavetas e os móveis, a ver se o pai havia feito as suas últimas disposições. Não encontrou senão minutas, autos, libelos em princípio, considerações jurídicas.

— Parece-me que o estou vendo! A última vez que o vi, estava aqui sentado e perguntou-me a rir se eu sabia o que era um libelo! — disse o moço para a irmã, que o acompanhava. — Respondi-lhe, e ele tornou:

— Caspita! Pois olha, que quando deixei Coimbra não o sabia. A minha universidade foi esta banca. Aqui é que se aprende, deixa lá! E depois tu verás!

Mal sabia ele que eu nunca havia de ver isso...

— E porque, Antonio?

— Porque? Porque estamos paupérrimos. O pai morreu honrado, mas sem recursos. O que nos resta, filha, são umas cinquenta moedas, que a nossa velha Joanna ajuntou com as soldadas ganhas no serviço da casa de nossos avós, e nesta... casa que é hoje dela, porque é ela que nos tem sustentado desde que nos faltou o nosso querido amigo...

Bateram neste momento à porta do escritório, Antonio de Vasconcellos foi abrir. Apareceu no limiar da porta um lavrador que disse, desbarretando-se:

— Queria dar uma palavra ao sr. doutor...

— Meu pai faleceu esta semana...

— O quê? E eu que o vi ainda há dias tão forte e rijo! Em nome do Padre e do Filho... É o que nós somos neste mundo... Que Deus o tenha na sua glória, que era um homem às direitas... Então queira perdoar.

E saiu enquanto os dois com os olhares atados um no outro, perguntavam naquela muda linguagem, o que seria deles desamparados e sós naquele temporal, que tão subitamente lhes escurecera o azul sereno da vida.

Alguns amigos do advogado e um pároco daquelas circunvizinhanças, reunidos num sagrado pensamento, ajustaram entre si dar uma mensalidade a Antonio de Vasconcellos, que a rogos da irmã aceitou aqueles adiantamentos como uma divida que satisfaria mais tarde.

Temos o nosso estudante formado e pronto. Logo que se viu senhor dos títulos alcançados pelo seu estudo e aplicação, foi á vila natal agradecer aos que o haviam tão evangelicamente amparado e, por conselhos de um codiscípulo, dirigiu-se a Lisboa, onde fixou residência, e entrou a frequentar o escritório de um dos advogados de mais renome no foro da capital.

Ir para a província trabalhar como um mouro, estudar como um beneditino; Para quê? O resultado conhecera-o ele, que o exemplo lhe fora mais que manifesto na própria família. Em Lisboa encontraria campo mais dilatado onde desafogar as suas altas aspirações.

O pior seria o primeiro ano e ainda o segundo, mas depois acudiriam os clientes, e o seu nome adquiriria a gloriosa reputação com que outros de menos talento se ufanavam.

— A princípio, Francisca, dizia o moço doutor, não correrá tudo conforme nossos desejos, mas tu hás de ter muita coragem, não é assim? Quando eu entrar em casa, e vir um sorriso na tua boca, verás como me lanço ao trabalho com vontade e com intrepidez...

Pobre criança!
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Naquela época chegara a Lisboa um individuo que fora o mais perdulário dos leões da Lisboa de há trinta anos, e que presentemente ocupava um elevado lugar diplomático em uma corte estrangeira.

Contavam-se deste homem excentricidades que fariam morrer de inveja o mais fastiante e esplênico dos lordes. Batera-se vinte vezes e por motivos diversos, por questões de jogo, por questões de mulheres, e por questões de política.

Espirituoso, valente e rico, passou pelo mais bem acabado produto do seu tempo e do seu meio.

Agora velho mas sempre original e taful, era estimado por todos, querido nas salas, temido ainda na imprensa e respeitado pelos políticos a quem asseteava com o acre azedume de quem já mourejou nos bastidores da política, e lhes conhece de sobejo os obscuros mistérios.

Estava Antonio de Vasconcellos no Chiado, conversando com um codiscípulo, quando o diplomata apeou de um trem, e se deteve a conversar alguns instantes com umas senhoras que iam passando.

— Sabes quem é aquele sujeito? – perguntou-lhe o codiscípulo.

— Não.

— É Jorge de Alvim. O velho mais moço que passeia nesta cidade sorumbática e preguiçosa...

— Esse nome não me é estranho. Foi codiscípulo de meu pai que o estimava e tinha em grande conta, e até se me não engano, queimei uma grande correspondência travada entre aquele homem e meu pai. A ele pessoalmente não conhecia, mas é simpático.

— E homem de grande influência política.

Neste momento o cavalheiro F. e o ministro L. que passavam, acercaram-se do diplomata e demoraram-se com ele em palestra em que pareciam enlevados.

— Repara tu como eles o tratam! – concluiu o codiscipulo de Vasconcellos ao dar-lhe o aperto de mão de despedida.
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— Sempre me decido, Francisca.

— Pois vai, Antonio, vai que não desonra pedir trabalho e proteção...

— Receber-me-á ele bem?

— Quem te não há de receber bem, tolo? Vai que eu fico a pedir a Deus por ti!

Antonio de Vasconcellos foi e falou com o velho amigo de seu pai, Jorge Alvim. Contou-lhe toda a sua vida árdua, as lutas obscuras, as misérias que afrontara, descreveu-lhe a nua e triste água-furtada em que viviam, ele e a irmã, as longas e plúmbeas noites mal dormidas, a costura mal remunerada, a dureza dos senhorios.

E no gabinete cheio de conforto e de luxo aquelas palavras tristes, desesperadas e expirantes soavam lugubremente como um grito de agonia nas alegrias de um noivado...

— V. exa. não sabia de uma coisa que lhe vou agora dizer. Seu pai salvou-me da morte uma vez no cerco do Porto, eu salva-lo-ei custe o que custar das... garras da...

— Miséria! - disse o moço com o rosto ligeiramente carminado.

— Pois seja assim! Começaremos a combater o monstro hoje mesmo. Para isso é preciso que V. Exa. envergue as armas próprias para combates desta ordem. Em vez do arnez, do broquel, das caneleiras e do elmo, aconselho-lhe que se vista com elegância igual á sua gentileza, porque vai combater a fera no salão da mais elegante senhora de Lisboa, e ante a presença das nossas mais acentuadas celebridades políticas e literárias. Até logo, não é assim? disse o velho estendendo com uma graça adorável a mão a Antonio de Vasconcellos que desceu as escadas enceradas com o coração cheio de sol e de alegria.
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— Não estejas triste, a casaca fica-te bem, não está muito nova, mas ninguém repara. Põe este botão de rosa na casa. É bonito. Vais mesmo um taful — dizia a irmã de Antonio de Vasconcellos recuando e examinando amavelmente o moço.

Depois, com um gesto impregnado de um misto singular de proteção e de doce autoridade, continuou:

— Proibo-te que estejas com essa cara desconsolada. Digo-te eu que és o mais bonito que lá aparece. Depois me contarás.

E conversando e rindo num abandono divino e infantil, aqueles dois camaradas na adversidade, edificavam castelos de ventura, esquecidos de que o padeiro naquele dia recusara fiar-lhes mais pão. Oh mocidade!
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Jorge de Alvim naquele dia parecia exceder-se a si próprio, tão brilhantes eram as suas respostas, tão finas as suas ironias, tão cheias de sal as anedotas com que encantava os conselheiros, ministros e jornalistas que estavam à mesa da elegante condessa de X***.

Falou-se em diamantes. Jorge de Alvim desde logo entrou a historiar casos e anedotas a tal respeito. Narrou as aventuras de diamantes que se tornaram célebres pelas peregrinações em que andaram, e assim precisou com uma erudição graciosa a história do Sancy, diamante que foi de Carlos, o Temerário, e que das mãos deste passou para as de um Duque de Florença e depois para o poder do Prior do Crato, que o empenhou ao intendente das finanças em França, Harley de Sancy, de onde lhe proveio o nome.

— Ainda aqui não para, minhas senhoras, a odisseia desta pedra. Harley de Sancy quando Henrique IV de França antes de ser reconhecido se achou em grandes apuros de dinheiro, mandou vender esse diamante aos judeus de Metz. O homem encarregado de tão preciosa missão, caindo nas mãos de uma quadrilha de bandidos, e receando que lhe roubassem o tesouro que levava, engolira a pedra...

— Ora essa! – disse a dona da casa.

— Verdade pura, minha senhora. O cadáver foi descoberto passados tempos no bosque de Dôls, e aberto o ventre, acharam o diamante que foi vendido a Jacques II de Inglaterra, de cujo poder passou para o de Luiz XIV.

— E depois? – disse uma das senhoras. Não pode parar aí esse longo peregrinar de que V. Exa.  está sendo um Fernão Mendes...

— Minto?... pois seja assim. O que posso afiançar a V. Exa. é que esta pedra, depois de várias e encontradas vicissitudes acabou por onde acabou a esposa de Menelau... Foi roubada, e hoje para nas mãos dos Russos.

— Justamente o que mais dia menos dia sucederá ao seu magnifico anel, Sr. Jorge de Alvim, tornou a mesma interruptora, dardejando um olhar guloso e felino á pedra do anel — Não está ali por menos de duzentas libras, afirmou um banqueiro.

— Ora, pelo amor de Deus, meus senhores, volveu o velho casquilho. O meu anel que julgo não tem ainda por ora aventuras, ouvindo as minhas narrativas de há pouco encheu-se de brios, e quis provar aos incrédulos que também lhe estão reservados altos destinos... Vou propor a V. Exas. uma coisa que lhes parecerá excêntrica, mas que me relevarão, já que em Lisboa passo por um ente singular e extraordinário. Aí vai a singular excentricidade que me passou pela cabeça: ao sair desta sala hão de todos deixar-se revistar pelos donos da casa. Rejeitam ou aprovam?

Ouvindo aquela proposta esquisita e quase que ofensiva, alguns sorriram, indignaram-se outros, franzindo os sobrolhos, e um pesado silencio constrangedor caiu naquela sala há pouco tão sonora de vozes, de risos e do fino tilintar da prata e dos cristais.

— Peço perdão, mas oponho-me e rejeito essa proposta!

Quem assim falava era Antonio de Vasconcellos. Estava pálido como a morte, tentava sorrir, mas os dentes cerravam-se-lhe nervosamente, e os cabelos empastavam-se-lhe na testa gotejando suor.

— Seria ele? – disse a dona da casa baixo, e fitando-o tristemente.

E toda a gente que o ouvira como que por instinto afastou-se do pobre moço.

Podia ser, que fosse ele. Era pobre, pois não viam isso claramente?

Os olhos de todas as mulheres que ali estavam começaram então desapiedadamente a analisa-lo minuciosamente, e passavam-lhe em revista a casaca coseada, a pouca finura da camisa, a gravata branca ligeiramente encardida, as joelheiras luzidias das calças pretas.

— E não é feio rapaz!

— Pois sim, mas Lacenaire também não era feio, volveu outra menos caridosa e mais letrada.

Antonio de Vasconcellos aproximou-se de Jorge de Alvim, e baixo com voz concentrada disse-lhe:

— Uma palavra, Sr. Alvim, desejo dar-lhe uma palavra...

— É melhor mais tarde... depois..., replicou desdenhosamente Jorge de Alvim.

Repararam todos na insistência de Antonio de Vasconcellos, e as suspeitas mais e mais se enraizaram no espirito dos convivas.

O pobre rapaz, que conhecia a falsa posição em que se colocara com a sua frase, sentia-se humilhado e como que vendido naquele meio.

Os próprios criados olhavam-no com manifesto desprezo.

Vasconcellos disse ainda ao diplomata:

— Sr. Jorge de Alvim, pela ultima vez, quer ouvir-me?

— Homem, já sei; é pobre, teve uma fascinação, já li isso não sei aonde... Ah! já sei... num conto de Balzac...

E voltou-lhe as costas.

Nesse instante uma voz entaramelada e rouca ecoou na sala:

— Peço que me escutem! Como sou o único pobre que aqui está, e como todas as circunstâncias são em meu desfavor, podem julgar que fui eu que roubei esse anel. Se não consenti na proposta feita pelo Sr. Jorge de Alvim, — e na palidez do seu rosto destacavam-se duas rosas de pejo, — foi porque, se me revistassem, encontravam-me no bolso isto que eu furtei para levar á minha irmã que não come desde ontem... disse o mancebo tirando da algibeira um pão.

Houve um grande e profundo silencio angustioso. A condessa foi a primeira a rompe-lo adiantando-se para Vasconcellos.

— Pobre rapaz!...

E com o movimento que fez, um objeto brilhante faiscou nas franjas do seu vestido.

— Permita-me V. Exa., condessa, disse o banqueiro abaixando-se e desprendendo das franjas o objeto que reluzia e chispava: aqui está o anel.
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Antonio de Vasconcellos ocupa hoje com aplauso geral e com grandes créditos o lugar de secretário, na embaixada de que é ministro seu amigo e cunhado Jorge de Alvim.
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Maria Amália Vaz de Carvalho foi uma escritora polígrafa, ativista feminina, e autora de contos, poesia, ensaios e biografias. Colaborou em diversos jornais e revistas publicando crónicas de crítica literária e opiniões sobre ética e educação, para além de ter analisado, com notável clarividência, a condição e o papel da mulher na sociedade do seu tempo. Foi a primeira mulher a ingressar na Academia das Ciências de Lisboa, eleita em 1912. Foi casada com o poeta António Cândido Gonçalves Crespo, dele organizando suas obras completas postumamente.

Fonte:
Disponível em Domínio Público.
Maria Amália Vaz de Carvalho. Contos e Phantasias. Publicado originalmente em Porto, 1880.
Convertido para o português atual por J. Feldman