quarta-feira, 1 de maio de 2024

Lima Barreto (Esta minha letra...)

A minha letra é um bilhete de loteria. Às vezes ela me dá muito, outras vezes tira-me os últimos tostões da minha inteligência. Eu devia esta explicação aos meus leitores, porque sob a minha responsabilidade tem saído cada coisa de se tirar o chapéu. Não há folhetim em que não venham coisas extraordinárias. Se, às vezes, não me põe mal com a gramática, põe-me em hostilidade com o bom-senso e arrasta-me a dizer coisas descabidas. Ainda no último folhetim, além de um ou dois períodos completamente truncados e outras coisas, ela levou à compreensão dos meus raros leitores — grandeza — quando se tratava de pândega; num artigo que publiquei há dias na Estação Teatral, este então totalmente empastelado, havia coisas do arco-da-velha.

Aqui já saiu um folhetim meu, aquele que eu mais estimo, “Os galeões do México”, tão truncado, tão doido, que mais parecia delírio, do que coisa de homem são de espírito. Tive medo de ser recolhido ao hospício...

Que ela me levasse a incorrer na crítica gramatical da terra, vá, mas que me leve a dizer coisas contra a clara inteligência das coisas, contra o bom-senso e o pensar honesto e com plena consciência do que estou fazendo! E não sei a razão por que a minha letra me trai de maneira tão insólita e inesperada. Não digo que sejam os tipógrafos ou os revisores; eu não digo que sejam eles que me fazem escrever “a exposição de palavras sinistras” quando se tratava de “exposição de projetos sinistros”. Não, não são eles, absolutamente não são eles. Nem eu. É a minha letra.

Estou nesta posição absolutamente inqualificável, original e pouco classificável: um homem que pensa uma coisa, quer ser escritor, mas a letra escreve outra coisa e idiota. Que hei de fazer?

Eu quero ser escritor, porque quero e estou disposto a tomar na vida o lugar que colimei. Queimei os meus navios; deixei tudo, tudo, por essas coisas de letras.

Não quero aqui fazer a minha biografia; basta, penso eu, que lhes diga que abandonei todos os caminhos, por esse das letras; e o fiz conscientemente, superiormente, sem nada de mais forte que me desviasse de qualquer outra ambição, e agora vem essa coisa de letra, esse último obstáculo, esse premente pesadelo, e não sei que hei de fazer!

Abandonar o propósito; deixar a estrada desembaraçada a todos os gênios explosivos e econômicos de que esses Brasis e os políticos nos abarrotam?

É duro fazê-lo, depois de quase dez anos de trabalho, de esforço contínuo e — por que não dizer? — de estudo, sofrimento e humilhações. Mude de letra, disse-me alguém.

É curioso. Como se eu pudesse ficar bonito, só pelo fato de querer.

Ora, esse meu conselheiro é um dos homens mais simples que eu conheço. Mudar de letra! Onde é que ele viu isso? Com certeza ele não disse isso ao Sr. Alcindo Guanabara, cuja letra é famosa nos jornais. Que o fizesse, com certeza, ele não diria ao Sr. Machado de Assis também. O motivo é simples: o Sr. Alcindo é o chefe, é o príncipe do jornalismo, é deputado; e Machado de Assis era grande chanceler das letras, homem aclamado e considerado; ambos, portanto, não podiam mudar de letra; mas eu, pobre autor de um livreco, eu que não sou nem doutor em qualquer história — eu, decerto, tenho o dever e posso mudar de letra.

Outro conselheiro (são sempre pessoas a quem faço reclamações sobre os erros) disse-me: – Escreva em máquina. – Ponho de parte o custo de um desses desgraciosos aparelhos, e lembro aqui os senhores que aquilo é fatigante, cansa muito e obrigava-me ao trabalho nauseante de fazer um artigo duas vezes: escrever a pena e passar a limpo em máquina.

O mais interessante é que a minha letra, além de ter-me emprestado uma razoável estupidez, fez-me arranjar inimigos. Não tenho a indiferença que toda a gente tem pelos inimigos; se não tenho medo, não sou neutro diante deles; mas isso de ter inimigos só por causa da letra, é de espantar, é de mortificar.

Já não posso entrar na revisão e nas oficinas aqui da casa. Logo na entrada percebo a hostilidade muda contra mim e me apavoro. Se fosse no cenáculo do Garnier ou em outro qualquer, seria bom; se fosse mesmo no salão literário do Coelho Neto, eu ficaria contente; entre aqueles homens simples, porém, com os quais eu não compito em nada, é para a gente julgar-se um monstro, um peste, um flagelo. E tudo isso por quê? Por causa da minha letra. Desespero decididamente.

De manhã, quando recebo a Gazeta ou outra publicação em que haja minhas coisas, eu me encho de medo, e é com medo que começo a ler o artigo que firmo com a responsabilidade do meu humilde nome. A continuação da leitura é então um suplício. Tenho vontade de chorar, de matar, de suicidar-me; todos os desejos me passam pela alma e todas as tragédias vejo diante dos olhos. Salto da cadeira, atiro o jornal ao chão, rasgo-o; é um inferno.

Eu não sei se todos nos jornais têm boa caligrafia. Certamente, hão de ter e os seus originais devem chegar à tipografia quase impressos. Nas letras, porém, não é assim.

Eu não cito autores, porque citar autores só se pode fazer aos ilustres, e seria demasia eu me por em paralelo com eles, mesmo sendo em negócio de caligrafia. Deixo-os de lado e só quero lembrar os que escreveram grandes obras, belas, corretas, até ao ponto em que as coisas humanas podem ser perfeitas. Como conseguiram isso?

Não sei; mas há de haver quem o saiba e espero encontrar esse alguém para explicar-me. 

De tal modo essa questão de letra está implicando com o meu futuro que eu já penso em casar-me. Hão de surpreender-se em ver estas duas coisas misturadas: boa letra e casamento. O motivo é muito simples e vou explicar a gênese da associação com toda a clareza de detalhes.

Foi um dia destes. Eu vinha de trem muito aborrecido porque saíra o meu folhetim todo errado. O aspecto desordenado dos nossos subúrbios ia se desenrolando a meus olhos; o trem se enchia da mais fina flor da aristocracia dos subúrbios. Os senhores com certeza não sabiam que os subúrbios têm uma aristocracia.

Pois têm. É uma aristocracia curiosa, em cuja composição entrou uma grande parte dos elementos médios da cidade inteira: funcionários de pequena categoria, chefes de oficinas, pequenos militares, médicos de fracos rendimentos, advogados sem causa etc.

Iam entrando com a “morgue” que caracteriza uma aristocracia de tal antiguidade e tão fortes rendimentos, quando uma moça, carregada de lápis, penas, réguas, cadernos, livros, entrou também e veio sentar-se a meu lado.

Não era feia, mas não era bela. Tinha umas feições miúdas, um triste olhar pardo de fraco brilho, uns cabelos pouco abundantes, um colo deprimido e pouco cheio. Tudo nela era pequenino, modesto; mas era, afinal, bonitinha, como lá dizem os namorados.

Olhei-a com o temor com que sempre olho as damas e continuei a mastigar as minhas mágoas.

Num dado momento, ela puxou um dos muitos cadernos que trazia, abriu-o, dobrou-o e pôs-se a ler. Que não me levem a mal o Binóculo e a Nota Chic e não deitem por isso excomunhão sobre mim! Sei bem que não é de boa educação ler o que os outros estão lendo ao nosso lado; mas não me contive e deitei uma olhadela, tanto mais (notem bem os senhores do Binóculo e da Nota Chic) que me pareceu, a moça o fazia para ralar-me de inveja ou encher-me de admiração por ela.

Tratava-se de álgebra, e as mulheres têm pela matemática uma fascinação de ídolo inacessível. Foi, portanto, para mostrar-me que ela o ia atingindo que desdobrou o caderno; ou então para dizer-me sem palavras: Veja, você, seu homem! Você anda de calças, mas não sabe isso... Ela se enganava um pouco.

Mas... como dizia: olhei o caderno e o que vi, meu Deus! Uma letra, um cursivo irrepreensível, com todos os tracinhos, com todas as filigranas. Os “tt” muito bem traçados — uma maravilha!

Ah! pensei eu. Se essa moça se quisesse casar comigo, como eu não seria feliz? Como diminuiriam os meus inimigos e as tolices que são escritas por minha conta? Copiava-me os artigos e...

Quis namorá-la, mas não sei namorar, não só porque não sei, como também porque tenho consciência da minha fealdade. Fui, pois, tão canhestro, tão tolo, tão inábil, que ela nem percebeu. Um namoro de... caboclo.

Seria, casar-me com ela, uma solução para esse meu problema da letra, mas nem este mesmo eu posso encontrar e tenho que aguentar esse meu inimigo, essa traição que está nas minhas mãos, esse abutre que me devora diariamente a fraca reputação e pouca inteligência.

Fonte> Publicada originalmente na Gazeta da Tarde, de 28.06.1911, posteriormente no livro Feiras e Mafuás, em 1953, em obra póstuma.

Hinos de Cidades Brasileiras (Monteiro Lobato/SP)


Letra e Música: Adauto Felisário Munhoz

A Senhora do Bonsucesso,
É a tua leal padroeira,
Oh! Joia preciosa!
Da Serra da Mantiqueira.
Na trilha dos bandeirantes,
Reluzente igual safira,
Nasceste fulgurante,
Com o nome de Buquira.

Tens a honra de ser a mãe,
Da mais famosa filha,
No teu seio de magia,
Nasceu a boneca “Emília”.
És uma terra privilegiada,
Um paraíso tão belo,
De um “Sitio Encantado,
Do Pica Pau Amarelo”.

Meu torrão amado,
De encanto e rara beleza,
Por Deus és abençoada,
Oh! Cidade Natureza.
Por Deus és abençoada,
“Cidade Natureza”.

No ponteado da viola,
E na culinária saborosa,
Faz de ti, Monteiro Lobato,
A Cidade mais formosa.
Teu povo é tão contente,
Neste solo de Buquira,
Preserva as tradições,
Da tua raiz caipira.

Repleta de encantamento,
És lindo cartão postal,
Da literatura infantil,
Sois majestosa capital.
Lobato te engrandeceu,
Com reluzentes fanais,
No brilho forte e perene,
De suas obras imortais.

Meu torrão amado…

Coelho Neto (O pescador)

Todas as tardes, quando o sol sanguíneo, descendo no horizonte afogueado, parecia apagar-se nas águas lisas do rio; quando as jandaias, em grandes nuvens verdes, passavam chilreando na direção das ilhas, a piroga do moço pescador deslizava ligeira, rio acima, serena, ao som dos remos.

Era um lindo e guapo mancebo: moreno e forte, de olhos e cabelos negros. Mais de uma donzela corria à barranca quando lhe ouvia a voz afinada e seguia-o enamoradamente com o olhar apaixonado até que ele se perdia num dos igapós, entre ramas.

Não havia pescador tão ousado nem tão feliz como ele. Quando os outros, no tempo das cheias, receavam as águas temerosas, ele saia sozinho, cantando, ia lançar a rede longe e voltava com o barco cheio de pescado, não porque precisasse, senão por vaidade — para que vissem que não se abrigara em remanso, mas afrontara as águas revoltadas tirando os grandes peixes que não chegam às margens e só vivem nos lugares profundos.

A mãe, numa tarde borrascosa, disse, querendo prendê-lo:

— “Não te afoites, filho. A prudência é companheira segura e não é valentia provocar a Morte nos abismos. Se a tempestade cair acolhe-te a algum porto e deixa que os ventos amainem e que as ondas se abonancem. Não te arrisques inutilmente. A intrepidez é do bravo; a temeridade é do louco. Ouve-me, porque eu falo-te com o coração. Ai! de mim se te perderes nas águas traidoras. Os outros gabam-te a coragem e são tais louvores que te estão encaminhando à perdição. Julgas, talvez, que é só pela tua audácia que vais afrontar a morte? É a tua vaidade que te arrasta, filho. E a vaidade é pérfida como a iara que vive no fundo dos rios atraindo, com o seu canto, os imprudentes como tu.

“Muitos dos que te gabam rejubilarão no dia em que sucumbires, porque a inveja de tudo tira partido e, elevando-te, ela quer  que subas bem alto para que a queda seja mortal. Não te fies.

“Quando o tempo estiver firme sai com o teu barco; em noites tormentosas faça como os demais que se deixam ficar seguros e agasalhados, gozando o calor do fogo, ouvindo o vento gemer nos ramos das árvores e a água do rio escachoar nas pedras.

“Sais, és o único que a tanto se aventura em frágil piroga e, quando passas ao largo e vês em terra uma luzinha de choça, murmuras, com a vaidade a encher-te o coração:

«Há ali alguém a pensar em mim.» E acendes a tua lanterna para que a vejam de terra e digam :

«Lá vai Amadeu. Não há outro de tanta coragem.»

“Sabes que assim exaltam a tua audácia e é para que murmurem à tua passagem: «Lá vai o mais valente pescador das ilhas», que andas imprudentemente a desafiar a morte.

“Quando a glória acena à audácia, compreende-se que um homem arrisque a sua vida; mas que proveito tiras tu de tais atos de louco? Deixas meu coração em sofrimento e, se pereceres, nem mesmo, talvez, o lodo do rio me restitua o teu cadáver para que eu o sepulte carinhosamente, marcando o túmulo com uma cruz e regando-o com as minhas lágrimas.

“Não te deixes levar pelas palavras, enganadoras. És bravo, espera ocasião oportuna para mostrares teu ânimo. Ninguém tem maior interesse na tua glória do que eu.”

O moço, que caminhava para o portinho, não deu atenção às palavras da velha e, desatracando a piroga, que balançava na onda, remou fazendo-se ao largo.

A tarde conturbava-se a mais e mais: relâmpagos inflamavam as nuvens pesadas e coriscos raiavam a densidão do horizonte. A folhagem das árvores parecia de bronze — dura e imóvel na calmaria morna. Aves passavam apressadas, em voo largo, recolhendo aos ninhos ou às tocas e as águas do rio desciam, rolavam grossas, escuras, refulgindo sinistramente quando o céu flamejava.

A piroga subia. De outras, que proejavam ligeiras à terra, pescadores perguntavam ao moço ousado:

— Vais sair com tal tempo?

— Porque não?

— Cuidado! O rio cresce e o temporal não tarda.

— Não é só com o luar que se avista o rumo; o relâmpago tambem alumia.

— Olha lá! As iaras fazem maldades nas noites sem estrelas.

— Dizem que são formosas e eu ainda as não vi. Queira Deus que hoje as encontre em meu caminho.

E lá ia. Ao passar perto das ilhas levantava a voz cantando para anunciar-se às donzelas e gozava, ufano, imaginando que todas pediam por ele, ajoelhadas diante das imagens milagrosas, acendendo lâmpadas e fazendo promessas.

Adensavam-se as trevas. O moço pescador tentou, por vezes, acender a lanterna, mas o vento logo a apagava. Ao lívido clarão do relâmpago via a água negra, o céu negro, a massa escura do arvoredo das ilhas e as montanhas longínquas.

Às rijas lufadas levantava-se marulho formidável, galhos estalavam e caiam na água, descendo na correnteza. Raios estrondavam, e a piroga, à mercê das ondas enfurecidas, mal obedecia a pá do pescador.

Sem ver na escuridão, Amadeu ouvia o rio rugir furioso e tiritava encharcado sob o aguaceiro torrencial. 

Àquela hora a pobre mãe chorava aflita, pedindo o favor de Deus, e nas cabanas das ilhas quantos pequeninos corações batendo por ele, quantos lábios vermelhos balbuciando rezas!

Ah ! Se ele conseguisse escapar, tirar-se daquele perigo, como o haviam de admirar e, nas feiras, quando ele passasse airoso, afluiria gente para vê-lo e diriam com boca pequena :

« É o pescador que não teme as tempestades e ri das iaras que sobem à tona das águas quando não há estrelas no céu.»

Ao luzir dum relâmpago ele viu que estava a pouca distância de terra. Animou-se e, remando esforçadamente, conseguiu atracar. Prendeu a piroga e saltou na ilhota que a Providência lhe deparara. Estava salvo.

Ali podia esperar que a tormenta serenasse e, com a luz da manhã, regressaria à cabana tranquilizando a pobre velha e maravilhando a gente que, com certeza, já o julgava perdido, soçobrado naquelas águas que roncavam com tamanho fragor, arrancando violentamente grandes árvores das ribanceiras.

Encolheu-se, traspassado e com medo, ouvindo, através da zoada do vento e do estrondo das águas, o frêmito das onças apavoradas.

Já se sentia perto, ouvia o estralejar dos ramos sob as pesadas patas e, olhando, via reluzirem na treva as pupilas fosforejantes dos terríveis felinos. Mas era tudo ilusão do pavor: só tempestade reinava assoberbando o rio.

E, de novo, pôs-se Amadeu a pensar na volta triunfante e nas palavras que diriam os que o vissem aparecer cantando, a remar a piroga carregada de peixe.

Peixe ... Sim, era necessário que levasse algum para que os invejosos não dissessem, menoscabando-o : «Que ele, em vez de andar sobre as águas, acolhera-se covardemente a alguma ponta de terra. »

A prova era indispensável e, se a atroada da tormenta aconselhava prudência, o desejo de ser admirado, a ambição dos louvores impelia-o ao perigo e, como fora feliz salvando-se naquela ilhota, a mesma fortuna havia de segui-lo na aventura arriscada a que se ia meter.

Pensando nos companheiros e nas donzelas e já ouvindo, na imaginação, os elogios à sua coragem, saltou na piroga e fez-se ao largo.

O rio esbravejava. Grandes troncos boiavam levados na correnteza; remoinhos ferviam ameaçadoramente e, ao clarear dos relâmpagos, ele entrevia o abismo no qual a piroga valia tanto como uma leve folha.

Um tronco abalroou-a impelindo-a com violência e um grande jorro de água, assaltando-a pela proa, advertiu o imprudente moço do perigo.

Ai! dele, era tarde. Pôs-se a remar com desespero, mas a piroga não resistia ao ímpeto das águas e, girando, descia vertiginosamente aos encontrões nas árvores, emaranhando-se em camalotes (ervaçal à beira dos rios), sem que o esforço do pescador a pudesse salvar.

A pesca! Um peixe, ao menos, que servisse de prova aos que duvidassem da sua afoiteza. E o temporal rugia.

Passando, levado na correnteza, via na treva, a um e a outro lado, luzes que assinalavam cabanas. Onde estaria a dele, pouco além do portinho, entre coqueiros?

Em todas, por certo, pediam a Deus por ele.

Gritou. Pobre voz que o vento levou como levava as folhas das árvores! E as águas cresciam medonhas. 

Um ramo roçou-lhe o rosto. Estremeceu lembrando-se das iaras traidoras que arrastam os pescadores imprudentes para o fundo das águas. Deviam ser elas que cercavam a sua pequenina piroga. Ai! Dele ... Nunca mais folgaria nos serões ouvindo os cantos alegres, dançando o sapateado á luz do luar.

E porque se precipitara? Não o guiara a mão benigna da Providência àquela ilhota? Não achara ele refúgio seguro naquele ancoradouro? Porque o deixara? Por vaidade e era a vaidade que o ia levando para a morte. E nunca mais falariam nele, outros teriam os amores das lindas moças enquanto que ele, rolando, desapareceria para o sempre no lodo do rio, como dissera a mãe por entre lágrimas pressagas.

Um relâmpago fulgurou e, súbito, sem que lhe desse tempo de desviar a piroga, um grande tronco virou-a. Amadeu nadou enfraquecidamente, lutando com as águas e com a treva e, no delírio, parecia que, de todos os lados, vozes o aclamavam vitoriando-o.

Exausto de forças desceu ao fundo das águas; ainda num derradeiro, supremo esforço emergiu à tona e pareceu-lhe ouvir uma voz, a voz da sua velha mãe, chamando-o : «Amadeu!» 

Tentou gritar: a água abafou-lhe o grito e o rio rolou soberbo, tocado pela tempestade.

Hoje, quem se lembra do moço pescador? Só a pobre mãe que o chama com a voz da saudade. Os mais, sempre que aludem á sua morte, dizem: «O que o matou foi a vaidade.» E as velhas acrescentam: «Foi castigo do céu.»

Fonte> Coelho Neto. Apólogos: contos para crianças. Porto/Portugal: Livraria Chardron, de Lélo & Irmão Ltda, 1924. Disponível no Portal de Domínio Público. Convertido para o português atual por Jfeldman.

segunda-feira, 29 de abril de 2024

José Feldman (Analecto de Trivões) 27

 



Mensagem na Garrafa = 115 =

Fabiane Braga Lima
Rio Claro/SP

Compreende…!?

Não deixe o mal vencer o amor! O amor é sincero, não nos destrói, completa. Devemos ser nossa melhor metade, sorriso, esperança, e o resto, o tempo nos encaminha. Hoje, vejo-me lúcida, distinta de tudo que me fez sofrer e rastejar, sem saber o porquê.

Palavras já não me machucam. Não existem mais argumentos e nem fragmentos de um coração destruído. Amor próprio, sempre! Não queira ser apenas uma fração, amor não se divide, completa um ao outro. É tudo ou nada. Ame- se ...! Há caminhos sem volta. Cair no abismo!? Jamais! 

Fonte: Enviado por Samuel C. da Costa

Recordando Velhas Canções (A Banda)


Compositor: Chico Buarque

Estava à toa na vida
O meu amor me chamou
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor

A minha gente sofrida
Despediu-se da dor
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor

O homem sério que contava dinheiro parou
O faroleiro que contava vantagem parou
A namorada que contava as estrelas
Parou para ver, ouvir e dar passagem

A moça triste que vivia calada sorriu
A rosa triste que vivia fechada se abriu
E a meninada toda se assanhou
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor

Estava à toa na vida
O meu amor me chamou
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor

A minha gente sofrida
Despediu-se da dor
Pra ver a banda passar
Cantando coisas de amor

O velho fraco se esqueceu do cansaço e pensou
Que ainda era moço pra sair no terraço e dançou
A moça feia debruçou na janela
Pensando que a banda tocava pra ela

A marcha alegre se espalhou na avenida e insistiu
A Lua cheia que vivia escondida surgiu
Minha cidade toda se enfeitou
Pra ver a banda passar cantando coisas de amor

Mas para meu desencanto
O que era doce acabou
Tudo tomou seu lugar
Depois que a banda passou

E cada qual no seu canto
Em cada canto uma dor
Depois da banda passar
Cantando coisas de amor
Depois da banda passar
Cantando coisas de amor
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A Alegria Contagiante de 'A Banda' de Chico Buarque
A música 'A Banda', composta por Chico Buarque em 1966, é uma das obras mais emblemáticas da música popular brasileira. Com uma melodia alegre e um ritmo que remete às marchinhas de carnaval, a canção narra a passagem de uma banda pela cidade e o efeito que essa passagem tem sobre as pessoas que a observam. A letra é uma celebração da vida e do amor, capaz de transformar a rotina e o estado de espírito das pessoas.

A letra de 'A Banda' descreve como diferentes personagens da cidade interrompem suas atividades cotidianas para apreciar o desfile da banda. O homem sério, a namorada sonhadora, a moça triste, o velho cansado e até a Lua são tocados pela música. A banda, cantando 'coisas de amor', simboliza um momento de fuga da realidade, um instante em que as preocupações e tristezas são deixadas de lado em favor da alegria e da esperança. A música tem o poder de unir as pessoas, trazendo um sentimento de comunidade e compartilhamento de uma experiência coletiva.

No entanto, a canção também reflete sobre a efemeridade desses momentos de felicidade. Após a banda passar, tudo volta ao seu lugar, e a dor e a rotina reassumem seu espaço. Esse contraste entre a alegria temporária e o retorno à realidade pode ser interpretado como uma metáfora da vida, onde momentos felizes são preciosos, mas passageiros. Chico Buarque, conhecido por suas letras que frequentemente contêm críticas sociais e políticas, aqui oferece uma visão mais lúdica e otimista, ainda que não deixe de tocar na melancolia que segue a efusão de alegria.

O. Henry (O romance de um corretor atarefado)

 

Pitcher, empregado de confiança no escritório do corretor Harvey Maxwell, deixou que uma expressão de moderado interesse e surpresa se lhe estampasse na face habitualmente inexpressiva, quando o patrão ali entrou bruscamente, às nove e meia, acompanhado de sua jovem estenógrafa. Com um vigoroso "Bom dia, Pitcher", Maxwell precipitou-se para a sua escrivaninha como se fosse saltá-la, e mergulhou de pronto na enorme pilha de cartas e telegramas que o esperava.

A moça era estenógrafa de Maxwell havia um ano. Era bonita, de maneira decididamente antiestenográfica. Adiantara-se à pompa do atraente penteado à Pompadour. Não usava colares, pulseiras ou broches, nem tinha a aparência de quem aceitasse prontamente convites para o almoço. Seu vestido simples era de cor cinza, mas ressaltava-lhe a figura com fidelidade e discrição. No elegante chapeuzinho preto, via-se uma asa auriverde de arara. Naquela manhã, ela estava suave e timidamente radiante. Os olhos brilhavam-lhe sonhadoramente; suas faces tinham o genuíno aveludado do pêssego; e sua expressão era de felicidade, com laivos de reminiscências.

Pitcher, ainda moderadamente curioso, deu-se conta de uma diferença nas maneiras da moça. Em vez de ir diretamente para a sala ao lado, onde ficava sua mesa, ela permaneceu, meio indecisa, no escritório geral. A certo momento, aproximou-se da mesa de Maxwell, perto o bastante para ele se aperceber de sua presença.

Mas a máquina sentada à mesa nada mais tinha de humano; era um atarefado corretor nova-iorquino, movimentado por rodas zumbidoras e molas tensas.

— Bem, o que há? Quer alguma coisa? — perguntou Maxwell rispídamente. A correspondência recém-aberta jazia, como um monte de neve artificial, sobre a escrivaninha atulhada. Seus olhos cinzentos e perscrutadores dardejaram um olhar impessoal e brusco sobre a moça.

— Nada — respondeu a estenógrafa, afastando-se com um sorrisinho da face.

— Mr. Pitcher — disse ela ao empregado de confiança —,  Mr. Maxwell não lhe disse nada, ontem, acerca de contratar outra estenógrafa?

— Disse — respondeu Pitcher. — Ordenou-me que lhe arranjasse outra. Notifiquei a agência ontem de tarde para que mandasse algumas candidatas hoje de manhã. São 9 e 45 e por enquanto não apareceu nenhum chapéu estapafúrdio, nenhuma mascadora de chiclete por aqui.

— Vou então fazer o trabalho de costume — disse a jovem — até que venha alguém preencher a vaga.

Dirigiu-se em seguida para a sua escrivaninha e dependurou o chapeuzinho preto com a asa auriverde de arara no lugar habitual. Quem nunca contemplou o espetáculo de um atarefado corretor de Manhattan atendendo a um acúmulo de negócios não pode exercer a profissão de antropólogo. Canta o poeta "a hora de azáfama da vida gloriosa". A hora do corretor não é apenas de azáfama, mas seus minutos e segundos se apinham, agarrados às alças, tanto na plataforma dianteira como na traseira.

Assim era o dia laborioso de Harvey Maxwell. O teletipo pôs-se a desenrolar espasmodicamente seus rolos de fita; o telefone de mesa teve um ataque crônico e não parou de tilintar. Gente começou a apinhar-se no escritório e a chamá-lo por sobre a grade divisória, jovial, ríspida, rancorosa, excitadamente. Mensageiros entravam e saiam com mensagens e telegramas. Os empregados do escritório pulavam de cá para lá como marujos durante uma tempestade. Mesmo o rosto de Pitcher exibia algo que lembrava vagamente animação.

Na Bolsa haviam furacões, avalanchas, nevascas, glaciares e vulcões, e essas perturbações dos elementos eram reproduzidas miniaturamente nos escritórios dos corretores. Maxwell empurrara a cadeira contra a parede e fazia negócios no estilo de um dançarino acrobático. Pulava do telefone para o teletipo, da mesa para a porta, com a agilidade adestrada de um arlequim.

Em meio a essa crescente e importante lufa-lufa, o corretor deu-se subitamente conta da presença de uma franja de cabelo dourado sob uma canópia oscilante de veludo e plumas de avestruz, de um casaco imitação de lontra, e de um colar de contas tão graúdas quanto nozes, que terminava perto do chão por um coração de prata. Havia uma senhorinha muito senhora de si ligada a esses acessórios, e Pitcher ali estava para explicá-la.

— Moça da Agência de Estenógrafas que veio saber do emprego — disse ele. 

Maxwell voltou-se com as mãos cheias de papéis e de fitas do teletipo.

– Que emprego? — perguntou, franzindo as sobrancelhas.

— Emprego de estenógrafa — respondeu Pitcher. — O senhor me disse ontem para telefonar à Agência e pedir que nos mandassem uma hoje de manhã. 

— Você está ficando doido, Pitcher — disse Maxwell. — Por que cargas d'água lhe daria eu tais instruções? Miss Leslie tem sido perfeitamente satisfatória durante o ano que está conosco, O emprego é dela enquanto ela quiser permanecer nele. Não há vagas aqui, minha senhora. Suspenda a ordem que deu à Agência, Pitcher, e não me traga mais nenhuma candidata aqui. 

O coração de prata deixou o escritório, balançando-se e colidindo, por conta própria, contra os móveis, à medida que dali se retirava. Pitcher aproveitou a oportunidade para observar ao guarda-livros que "o velho'' parecia tornar-se cada vez mais distraído e desmemoriado. O corre-corre e o ritmo dos negócios se tornava mais apressado e violento. Na Bolsa, estavam leiloando alguns lotes de ações das quais os clientes de Maxwell eram grandes investidores. Ordens de compra e venda iam e vinham tão celeremente quanto o voo de andorinhas. Alguns dos títulos do próprio Maxwell perigavam e ele trabalhava como uma máquina possante, delicada, de alta velocidade, retesada ao máximo, a todo vapor, precisa, sem hesitações, sempre com a palavra e a decisão adequadas, sempre pronta a agir com a exatidão de um relógio. Títulos e ações, empréstimos e hipotecas, margens e valores — era todo o mundo das finanças, e nele não havia lugar nem para o mundo humano nem para o mundo da natureza. 

Quando se aproximou a hora do almoço, houve uma leve estiagem na azáfama.

Maxwell ficou sentado à mesa, com as mãos cheias de telegramas e memorandos, uma caneta-tinteiro presa à orelha direita, o cabelo caindo-lhe em fios desordenados sobre a fronte. Sua janela estava aberta, pois a bem-amada zeladora, a Primavera, insuflara um pouco de calor nos registros despertos da Terra. E pela janela veio um odor vadio — talvez extraviado —, um odor delicado e doce de lilases, que imobilizou o corretor durante um momento. Pois esse odor pertencia a Miss Leslie: era dela, só dela. 

O odor a pôs vividamente, quase tangivelmente em presença de Maxwell. O mundo das finanças amesquinhou-se subitamente às proporções de um grão de poeira. E ela estava na sala ao lado, a vinte passos de distância,

— Por Deus, vou fazê-lo agora! — disse Maxwell, em voz audível. 

— Vou pedi-la agora mesmo. Por que será que não o fiz antes? 

Irrompeu no escritório interno com a pressa de um vendedor a descoberto em busca de cobertura. Investiu para a mesa da estenógrafa.

Ela olhou-o com um sorriso. Um rubor delicado coloriu-lhe as faces; seus olhos eram francos e doces. Maxwell apoiou um dos cotovelos à mesa. Tinha ainda ambas as mãos ocupadas com papéis, e a caneta continuava empoleirada sobre a sua orelha.

— Miss Leslie — começou, apressadamente. — Tenho apenas um instante disponível. Quero dizer-lhe algo nesse instante. Quer ser minha esposa? Não pude fazer-lhe a corte como se costuma fazer, mas eu a amo de verdade. Responda depressa, por favor. Aqueles sujeitos estão arrancando o tutano da Union Pacific.

– Oh! Que é que está dizendo? – exclamou a jovem. Pôs-se de pé e ficou a olhá-lo de olhos arregalados.

— Mas você não entende? — disse Maxwell, teimosamente. — Quero que se case comigo. Amo-a, Miss Leslie. Queria dizer-lhe isso e aproveitei este minuto que as coisas acalmaram um pouco. Estão-me chamando ao telefone agora. Diga-lhes que esperem um instante, Pitcher. Você não aceita, Miss Leslie?

A estenógrafa agiu de modo muito estranho. A princípio, pareceu atônita de surpresa; depois lágrimas começaram a correr-lhe de seus lindos olhos; por fim, sorriu entre elas, radiosamente, e passou o braço com ternura, pelo pescoço do corretor,

— Agora compreendo — disse, com voz carinhosa. — Foi esse velho negócio que durante algum tempo lhe varreu tudo o mais da cabeça. Fiquei com medo, no começo. Não se lembra, Harvey? Casamo-nos ontem à noite às 8 horas, na igrejinha da esquina.

Fonte> O. Henry. Caminhos do Destino. Contos. Publicado originalmente em 1909. 
Disponível em Domínio Público.

José Ouverney (Oceano de Trovas)


1
A "cara" do meu destino
vai na carteira, onde eu vou,
num retrato pequenino
que a saudade autografou!
2
A fé, rompendo caminhos
em passadas vigorosas,
põe perfume nos espinhos
e favos de mel nas rosas! 
3
Brigamos... e a solidão
desperta a minha revolta:
de que vale eu ter razão,
se ela não tem... mas não volta?
4
Cuidado, esposa e marido,
nessas brigas conjugais,
porque o casal sai ferido
e as crianças... muito mais!
5
De um homem não se questionam
os seus valores morais:
as paredes desmoronam
mas, a estrutura, jamais!
6
Duas culpas, um pecado
e um remorso a nos doer:
você – que escolheu errado;
eu – que nem pude escolher... 
7
Enquanto a Paz se cultua
dentro dos lares, com grade,
a violência, na rua,
dita leis à liberdade.

8
Era um ninho tão modesto
que, ao entrarmos, eu e ela,
a felicidade... e o resto...
saíram pela janela.
9
Expulsando a maquiagem,
a lágrima veio, pura,
e pousou sobre a mensagem,
no lugar da assinatura!...
10
Fugir, poeta, não queiras,
do que a vida preceitua:
teu destino é abrir fronteiras
e deixar que o sonho flua!
11
Há mentiras proferidas,
bem piores que punhais,
porque provocam feridas
que não se fecham jamais...
12
Havia tanto respeito
naquele beijo na testa,
que a paixão ficou sem jeito
e retirou-se da festa!
13
Já bêbado na balada,
viu uma saia xadrez,
e, ao persistir na “cantada”,
quase apanhou do escocês”!
14
"Mãe-Natureza"! – Eis o nome
de quem, em nome do amor,
gera o fruto e estanca a fome
do seu próprio predador!...
15
- Me empresta cem?  - Nem por alto!
- Vinte!  - Eu já disse: não tem!
- Passe a grana: isto é um assalto!
- OK, eu te empresto os cem!
16
“Nada de truque, safado,
que eu vi a vizinha à espreita!”
E ele, agora, interessado:
“a da esquerda...ou da direita?”
17
Não sei o que é mais chocante
numa explosão entre dois:
se são os gritos, durante,
ou é o silêncio depois...
18
Na varanda, ao rés do chão,
que simbiose perfeita:
a lua estende o colchão
e a fantasia se deita!
19
Na vida há instantes brutais,
gerados com tal crueza,
que eu não sei o que dói mais:
se é a dúvida... ou a certeza...
20
Nos teatros das calçadas,
"artistas" – que a dor consome –
exibem cenas ousadas
do frio abraçando a fome... 
21
No teatro da ilusão
minha tristeza, em cartaz,
vive o drama da paixão
que em três atos se desfaz...
22
No velório, que lambança:
o clima era tão festivo
que até o morto entrou na dança,
pensando que estava vivo!
23
Num desfile sensual
de muitas rosas vermelhas,
põe-se em festa o roseiral,
saudando o enxame de abelhas!
24
Num encontro inesperado
tudo voltou, de repente,
e os fantasmas do passado
invadiram meu presente...
25
Num rodeio o que me encanta
é a humildade do peão,
que nunca ao pódio se adianta
sem antes "beijar" o chão!
26
O tempo passa depressa
mas, quem diz que eu envelheço?
- cada olhar é uma promessa!
- cada espera... um recomeço!
27
Pendendo no quarto a rama
a roseira parecia
deslumbrada ao ver, na cama,
outra rosa... que dormia!
28
Poeta é um iluminado:
cantando as mágoas que tem,
torna o seu mundo encantado
e encanta o nosso também!
29
Quando se tem por escopo
o trabalho e a persistência,
marcar presença no topo
deixa de ser coincidência!
30
Quem de utopias precisa
para algum sonho alcançar?
Basta dar rédeas à brisa
e aprender a galopar!
31
Que mico: o cara, simplório,
até por falta de assunto,
pôs a contar, no velório,
anedotas de... defunto!
32
Renúncia nem sempre vem
nos causar medo ou vergonha;
só perde tudo que tem
quem renuncia ao que sonha!
33
Se brigamos, certamente
todos temos a perder;
quando a discórdia é a semente,
o que se pode colher???
34
Se já não sou, no salão,
teu par de todos os dias,
que eu seja ao menos o chão
onde a valsar rodopias!
35
Se o teu noivado vai mal,
é claro que isso me importa:
goteira no teu quintal
é "chuva na minha horta"!
36
Se somos vidas sozinhas,
não culpemos mais ninguém:
tu, prometeste e não tinhas;
eu... dei tudo e fiquei sem...
37
Uma porteira é o bastante
para eu lembrar de um menino
correndo atrás do berrante,
nas estradas de Ouro Fino!
38
Um buquê de romantismo
redesenhou o horizonte:
se a distância foi o abismo,
a saudade foi a ponte!
39
Um carro de bois chorão
 que eu vi passar, à distância,
 trouxe de volta o sertão
 que povoou minha infância!  
40
Velhice é um soturno porto
no qual eu passo meus dias
acenando, em desconforto,
para embarcações vazias...

Fontes:
Desenho do Trovador, por José Feldman

Contos Tradicionais Portugueses (A Princesa Carlota)

Havia um rei que era solteiro, e os conselheiros aconselhavam-no a que se casasse, para deixar sucessores ao trono. O rei era amigo de caçar, e sempre que saía passava defronte de uma cabana, onde morava um velho pastor e sua formosa filha, chamada Carlota. Um dia disse o rei ao pastor:

— Os meus vassalos querem que eu case, e tu és a única mulher de quem gosto. Queres casar comigo?

— Isso não pode ser, senhor, porque eu apenas sou uma pobre pastora.

— Mesmo assim, caso contigo; mas com uma condição, de nunca me contrariares nos meus desejos, por menos razoáveis que sejam.

— Estou por tudo que Vossa Majestade me ordenar.

Realizou-se o casamento. O rei mandou para a cabana do pobre velho fatos de rainha, que ela vestiu, largando os seus trapinhos. Então, disse-lhe o velho pai:

— Guarda esses trapinhos para quando te sejam precisos.

A filha guardou os trapos em uma caixa, que deixou em poder do pai, e partiu para o palácio.

Ao fim de nove meses deu à luz uma menina, tão formosa como sua mãe. Passados três dias entrou o rei no quarto da esposa e disse-lhe:

— Trago-te uma triste notícia: os meus vassalos querem que eu mande matar a nossa filha, porque não se conformam ser um dia governados pela filha de uma pastora.

— Vossa Majestade manda, e cumpre-me obedecer, respondeu a rainha, quase a saltarem-lhe as lágrimas dos olhos. O rei recebeu a menina e entregou-a a um conselheiro. 

Tempos depois teve a rainha um filho, que o rei mandou igualmente matar sob o mesmo pretexto.

Alguns anos depois entrou o rei muito apoquentado no quarto da esposa e disse-lhe:

— Vou dar-te uma notícia, de todas a mais triste, os meus vassalos estão indignados comigo; não querem que estejas em lugar de rainha, e dizem-me que te expulse do palácio. Por isso, querida Carlota, prepara-te, que tens de voltar para a cabana de teu pai.

— Não se apoquente, Real Senhor, estou pronta a obedecer. Parto já.

— Tens que despir os fatos de rainha.

— É o que já vou fazer.

E a rainha despiu todo o fato ficando em camisa.

— Não dispo a camisa, porque encobre o ventre onde estiveram guardados os nossos filhos. - Disse a rainha.

O rei nada teve que objetar. Estava o velho pastor à porta, quando viu aproximar-se a filha. Recolheu-lhe logo para dentro, tirou da caixa os antigos trapinhos e levou-os à filha para que os vestisse. Ela vestiu-os sem proferir um queixume. 

Continuou na antiga vida de pastora. Para ela a sua vida de rainha fora apenas um sonho; lembrava-se muito dos seus filhos e para estes eram todas as suas saudades. 

Passados anos voltou o rei à casa de Carlota, e disse-lhe que os vassalos instavam com ele, que casasse, e por isso tinha resolvido casar com uma formosa princesa de quinze anos.

— Efetivamente, respondeu a pastora, um rei bom como Vossa Majestade merece ter uma descendência que lhe perpetue o nome.

— Venho pedir-te o favor de voltares ao palácio para dirigires as criadas de cozinha. Bem sabes que a princesa há de ser acompanhada por fidalgos, e vem igualmente com seu irmão mais novo; quero, portanto, servi-los com lauta mesa.

— Estou pronta, logo que Vossa Majestade ordenar.

— Chegam amanhã. Deves ir hoje para o palácio.

Carlota foi, vestindo um pobre vestido de chita com que costumava ir à igreja. 

No dia seguinte, chegou a noiva e o irmão, com outros fidalgos, e houve à sua chegada grandes festejos. 

Carlota estava governando na cozinha e aí a foi o rei encontrar.

— Não vens ver a minha noiva?

— Estou esperando quem me substitua aqui, enquanto vou e volto.

Chegou então uma cozinheira, e Carlota foi cumprimentar a noiva.

— É muito linda! disse Carlota, beijando a mão da noiva: Deus conserve muitos anos a sua preciosa saúde. É digna do rei que vai receber por seu marido.

A menina ficou perplexa. Então o rei ajoelhou-se em frente de Carlota, e disse:

— Olha que são os nosso filhos. Quis experimentar o teu coração: és uma pastora que vale mil rainhas.

Houve então mil abraços e beijos, de parte a parte. O rei mandara os filhos para casa de uma tia, que os educava como príncipes que eram, em vez de os mandar matar como tinha firmado à rainha.