domingo, 18 de fevereiro de 2024

Abbie Phillips Walker (A Estrela Perdida)

 
criação por JFeldman com IA Microsoft Bing

Era uma vez, uma pequena estrela que brilhava por centenas de anos se cansou de seu dever noturno e ansiava por descer à Terra e descobrir o que havia abaixo.

“Eu me pergunto o que está abaixo de nós, além de nossa visão”, a estrela confidenciou uma noite a uma estrela companheira que brilhava ao lado dela há séculos.

“Eu não sei, e não consigo entender por que você deveria estar interessada quando estamos contentes aqui em cima, brilhando todas as noites”, respondeu a outra estrela.

“Mas não estou contente”, suspirou a estrelinha. “Sinto-me infeliz porque desejo ver o que está abaixo de nós e não posso ver nada daqui. Eu me pergunto o que aconteceria se eu descesse? Eu continuaria caindo indefinidamente ou encontraria um lugar melhor do que este lá em cima? ”

“Nunca pensei em outro lugar senão este”, respondeu a outra estrela. “Se estivéssemos destinadas a habitar em outro lugar, teríamos sido colocadas lá. Aconselho você a parar com tais pensamentos e encontrar a felicidade em nossa morada atual, onde brilhamos ao lado de nossas irmãs todas as noites.”

A velha lua estava ouvindo atentamente a conversa delas. Quando ambas as estrelas terminaram de falar, ela entrou na conversa: “Você seria sábia em permanecer onde está e se abster de descer para a Terra. Embora seja uma moradia adequada para as pessoas, não é um ambiente favorável para pequenas estrelas como você. Se você pousasse lá, rapidamente se perderia e ninguém saberia a que lugar você pertence. Fique aqui com suas companheiras estrelas e continue brilhando. ”

No entanto, a pequena estrela não conseguiu abalar seu fascínio pelo vasto espaço abaixo. Numa noite tranquila, enquanto o vento dormia, a estrelinha notou uma nuvem fofinha flutuando em direção à velha lua.

“Agora é minha chance”, a estrela pensou consigo mesma. “Assim que aquela nuvem ocultar a face da lua, cairei do céu. Se eu achar a Terra desagradável, estou confiante de que posso voltar. ”

Assim, a tola estrelinha escapou de seu lugar designado no céu e pulou, descendo em direção à Terra como uma estrela cadente. “Uma estrela cadente! ” alguém exclamou enquanto ela caia. Eventualmente, a estrela se viu em um vasto campo de margaridas, descansando sobre a grama verde exuberante, incapaz de enxergar qualquer coisa. Um grande besouro rastejou e perguntou: “De onde você veio? ”

“Sou uma estrela, visitando sua Terra”, respondeu a estrelinha.

“Olha só! ” o besouro chamou outro besouro. “Olha, uma estrela desceu à Terra. ”

“Isso não é uma estrela”, argumentou o segundo besouro. “As estrelas são brilhantes e radiantes. Isto é apenas um pedaço de pedra. ”

“Mas eu sou uma estrela”, insistiu a estrelinha. “Eu tenho brilhado no céu por centenas de anos. Desci para explorar a Terra porque queria ver como era. ”

“Você terá que convencer alguém que sabe menos do que nós”, retrucaram os besouros com desdém, deixando a pobre estrelinha questionar o mérito de sua visita terrena.

Depois de um tempo, as margaridas ouviram soluços no meio da grama e inclinaram a cabeça para mais perto para ouvir.

“Parece vir de debaixo da grama”, comentou uma margarida. “Devemos investigar e encontrar a fonte dessa tristeza. ”

“Oh, por favor, digam-me como voltar para casa! ” a estrelinha chorou quando viu as margaridas procurando por ela.

“De onde você veio? ” elas perguntaram.

“Eu sou uma estrela e minha casa está bem acima desta Terra”, explicou a estrelinha. “Estou brilhando lá em cima há centenas de anos e desci para ver a Terra. Mas agora não consigo encontrar o caminho de volta.

“Você é uma estrela? ” as margaridas se perguntaram. “Você não se parece com uma, mas suponho que seja uma estrela cadente que perdeu seu brilho. ”

“Receio que não possamos ajudá-la a voltar para casa; nenhuma de nós conhece o caminho”, admitiram as margaridas.

“Oh céus! Oh céus! ” lamentou a estrelinha. “Tudo está escuro aqui e não consigo enxergar. Alguém me mostrará o caminho de volta para casa? ”

“Talvez a lua conheça o caminho de casa da estrela perdida”, sugeriu uma margarida.

“Onde ela está? Onde ela está? ” a estrelinha perguntou ansiosamente. “Certamente, a Sra. Lua pode me guiar para casa. ”

“Ela não está presente no momento”, informaram as margaridas. “Mas assim que a nuvem passar, nós a consultaremos em seu nome. ”

Depois de alguns minutos, a lua surgiu por trás das nuvens, lançando seus raios radiantes sobre o campo de margaridas. Chegou ao local onde a estrelinha se refugiou.

“Senhora Lua! ” todas as margaridas gritaram simultaneamente. “Uma estrela perdida reside aqui. Você pode direcioná-la para casa?

Antes que as margaridas pudessem terminar sua pergunta, a estrelinha avistou o raio da lua. Cheia de alegria, ergueu o rosto e exclamou: “Eu posso ver! Eu consigo ver! Este é o caminho que me levará para casa. ”

“Se as margaridas realmente desejam que eu a ajude a encontrar o caminho de casa, eu o farei, ” respondeu a lua. “Mas você merece estar perdida, pois abandonou suas irmãs e a casa onde residiu contente por tanto tempo, sem um único arrependimento. ”

“Oh, sim, Sra. Lua, por favor ajude a estrelinha a voltar para casa e brilhar mais uma vez, ” as margaridas imploraram. “Temos certeza de que nunca mais sairá de seu lugar. ”

“Eu prometo a você, Sra. Lua, que nunca deixarei meu lugar designado ao lado de minhas companheiras estrelas, não importa quantas centenas de anos eu tenha para brilhar, ” jurou a estrelinha.

“Muito bem, ” reconheceu a lua. “Vou guiá-la de volta para casa. No entanto, levará um tempo considerável para você recuperar seu brilho anterior. Além disso, você será colocada longe de suas irmãs, onde residiu por tanto tempo”.

Pelos raios luminosos da lua, a estrelinha ascendeu de volta ao céu. Ao passar por suas companheiras estrelas, baixou a cabeça de vergonha, pois elas choraram, lamentando sua partida e o fato de nunca mais brilhar ao lado delas.

A pequena estrela partiu sem pensar duas vezes, focada apenas no fascínio da Terra. Longe de suas irmãs, descobriu um lugar onde deve brilhar por cem anos para recuperar seu antigo brilho. Durante esse tempo, suas companheiras estrelas também cresceriam em brilho, distanciando-se para sempre da pequena estrela perdida. Oh, pobre estrelinha!

Fonte> Abbie Phillips Walker (EUA, 1867 - 1951). Contos para crianças. Disponível em Domínio Público.

Mitos Indígenas (Iamuricumas)

Em meio a uma grande festa, os índios haviam concluído a cerimônia de furar as orelhas de seus meninos, após a qual as crianças permanecem de resguardo. 

Segundo o costume, os homens da tribo foram à pesca para bem alimentá-las, enquanto as mulheres prosseguiram com o corte dos cabelos. 

Percebendo que os pais demoravam a chegar, o filho do pajé decidiu ir ao rio, onde pôde observá-los batendo o timbó e pegando muitos peixes. Repentinamente, como por encanto, os índios transformaram-se em animais selvagens. 

Assustado, o menino correu à tribo, relatando à sua mãe o que sucedera. Esta avisou as outras mulheres e, reunidas, preparavam-se para fugir dentro de poucos dias, pois os homens da pescaria agora representavam perigo! 

Pintaram-se e ornamentaram o corpo como se fossem homens. Em seguida a esposa do pajé, à frente do grupo, entoou um canto, conduzindo-o ate a floresta. Lá, untaram-se de veneno, transformando-se no espírito Mamaé. 

Após cantarem e dançarem dois dias sem cessar, pediram a um velho que pousando sobre as costas a casca de um tatu, seguisse à sua frente, abrindo-lhes passagem. 

O homem passou a agir como se fosse o próprio animal. As mulheres, indiferentes aos homens da pescaria, seguiram o seu caminho, a cantar e a dançar, levando consigo mulheres de mais duas aldeias. 

Suas crianças foram lançadas ao rio, tornando-se peixes. Ainda hoje, as Iamuricumás viajam dia e noite, armadas de arco e flecha. 

Não possuem o seio direito, para melhor manejá-los. E assim, cantando e dançando, continuam a abrir caminhos pela floresta, seguindo eternamente o homem tatu.

Fonte> Adaptação do Texto de Jayhr Gael in O Caminho de Wicca - http://www.caminhodewicca.com.br (desativado). acesso em 13/10/2023.

sábado, 17 de fevereiro de 2024

Versejando 132

 

Manuscrito na Garrafa = 106 =

Renato Benvindo Frata 
Paranavaí/PR

DIFÍCIL DEFINIR, MAS NEM TANTO

Longe de mim contrariar o dicionário quando diz que 'felicidade' é uma sensação real de satisfação plena; estado latente de contentamento.

Está certíssimo, mas um tanto seco e de certa rudeza ao descrever o melhor dos sentimentos. Felicidade, tenho para mim, é a plenitude que concebe e abarca os segundos da nossa vida. Se formos buscar definições pela história, encontraremos milhares de opiniões dos mais importantes filósofos, poetas, escritores, cientistas; homens e mulheres que se debruçaram sobre o tema para defini-la, e que lhe deram — e lhe dão —, com palavras especiais, as melhores definições.

Se as trouxermos aqui, o espaço não as comportará, porque a felicidade que tanto buscamos parece agir como uma menina travessa que, ao brincar, se esconde pelos cantos dificultando ser encontrada.

Essa menina que falo, a Felicidade - acompanhe o raciocínio tem preferências especiais: escolhe o mais dissimulado canto dos lábios, ou a mais íntima esquina dos olhos para se esconder e se aquieta; e, alheia a tudo o que possa acontecer, aguarda a melhor hora para se mostrar.

Ao abrirmos um sorriso, por exemplo, desses que fazem pulsar mais forte o coração, ela se mostra cândida e bela e nos dá aparência deslumbrantemente boba, infantil, meiga, pura, que exprime dois sentimentos: na pessoa que sorri, a aceitação; e a quem o sorriso foi ofertado, a gratidão pelo gesto recebido.

Aceitação e gratidão, pois, são elementos nascidos do sorriso. Também, e na mesma intensidade, ela pode escorrer em gotas, quando nossos olhos brilham sob a resplandecência sublime do amor e nos dá, nesse instante, água especial que purifica nossa existência.

Para dizer que a lágrima não nasce apenas no choro, mas também na alegria.

Nesses dois momentos ela conseguirá se perenizar se assim o desejarmos, permanecendo em definitivo em nossos sorrisos, ou no brilhar dos nossos olhos, ou ser apenas uma passageira fugaz de alegria momentânea, quando se tornará meia felicidade. Por ser meia, nunca será completa.

Na segunda hipótese, desprezada e humilde, voltará a se esconder nos cantos que guardam a vida, como os da boca e dos olhos, até que decidamos ativá-la em definitivo.

Desse raciocínio um tanto pueril e de base somente de observação, mesmo não tendo qualquer pingo de cientificidade, ouso dizer que a felicidade está onde queiramos que esteja, com pouca
ou muita intensidade: escondida no mais profundo recôndito, enrustida no âmago das aflições, presa no egoísmo ou maldade; ou no mais aparente e singelo lugar, como um simples canto de boca ou de olhos, por exemplo. 

Digamos, com a beleza do piscar de um vagalume em noite escura.

(Fonte: Renato Benvindo Frata. Fragmentos. SP: Scortecci, 2022. Enviado pelo autor)

Daniel Maurício (Poemininos) – 4


Nas
pétalas
da
rosa
As
cores
se
mesclam
aos
beijos.
= = = = = = = = = 

Deixa
Eu te amar
Do meu jeito
Pois por mais
Que não seja
Perfeito
Ainda assim
Será uma forma
De amar.
= = = = = = = = = 

Joaninhas...
São
Caíxinhas
De sonhos
Embrulhadas
Pra presente.
= = = = = = = = = 

Paraquedas...
Enquanto
A bicicleta
Ensaia um voo,
Na parede
A tulipa
Solitária
Filtra
O vento.
= = = = = = = = = 

No
Triste olhar
Da casa
Em ruínas
Escorrem
memórias
Amareladas.
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 "porque uma andorinha só não faz verão"

mãe andorinha...
Andou Dorinha
Ocupada
Com a missão
De garantir
mais um verão.
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No
Olhar
De
Mãe
Leio tantas histórias
Que vão
Além
De 
Mim.
= = = = = = = = = 

Por cima do muro,
As flores
Espiam a vida
Passando na rua.
E sobre
As asas
De brancas nuvens,
Voa ligeiro o azul
Na manhã
Ensolarada.
= = = = = = = = = 

Na janela
Mesmo
Exposta
Ao sol
E a chuva
A
Espada
De São Jorge
Não
Enferruja.
= = = = = = = = = 

Joaninhas...
Lindas,
Na flor
Na pedra
Na relva.
Não importa o lugar:
Quem é, é e (ponto).
Da mesma cor?
Sim.
Mias cada uma
Com sua pinta.
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Saudades
São
Rastos
Da
Memória
Pedindo
Pra
Gente
No tempo
Voltar.
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Gotas
Homeopáticas...
Na pérgola
De glicínias,
Vibram
Os raios violeta
nas asas
Do beija flor.
= = = = = = = = = 

Sob a regência
Do pássaro maestro,
Afinadas,
As flores
Enchem o jardim
Com suas
Notas perfumadas.
= = = = = = = = = 

À noite
Um sol no jardim…
Ou seria
Um cata-vento,
Girando
Meus
Pensamentos
Trazendo
Memórias
De guri?
= = = = = = = = = 

Confiante
E com
Um ego
Gigante,
A pequena
Formiga
Escolhe
O seu buquê
De nubente.
= = = = = = = = = 

Ana Luiza...
Emoldurando
Versos,
Sonho realiza.
É o tom que faltava
do arco-íris
da minha vida.
= = = = = = = = = 

Liberdade...
Na
Lousa
Azul,
As
Asas
Da
Gaivota
Escrevem.

Fonte: Daniel Maurício. Poemininos. Curitiba/PR: Ed. do Autor, 2021. Enviado pelo poeta.

Mitos Indígenas (Iamulumulu - a formação dos rios)

Savuru era um espírito que possuía duas esposas. A pedido dos irmãos Kuát (Sol) e Iaê (Lua), que as cobiçavam, as ariranhas o mataram, ficando sua esposa mais velha com o Sol e a outra com a Lua. 

Seguiram então os casais em direção à aldeia de Kanutsipei. Durante o caminho, os irmãos encontraram dificuldades e necessitaram da ajuda de outros espíritos: Iamulumulu lhes curou a impotência, Ierêp fez com que neles nascesse o ciúme das esposas e, uma vez cansados, pediram a Uiaó algo que os fizessem adormecer. 

No dia seguinte, dispostos, retomaram a caminhada. Chegando ao local pretendido, estavam sedentos e pediram água a Kanutsipei. A água, porém, estava suja. O irmão Lua, tomando a forma de um beija-flor, voou rapidamente à procura de boa água. Ao voltar contou-lhes que o espírito os enganara, mantendo escondidos muitos potes com a mais pura água. 

Contrariados, os casais retornaram à sua aldeia, contando a todos o que ocorrera. O Sol e a Lua uniram-se a vários espíritos, Vanivani, lananá, Kanaratê, os zunidores Hori-hori, invocando também os espíritos das águas que habitavam a copa do Jatobá. Chamaram ainda as máscaras Jakuikutu, Mearatsim, Ivat, Jakuiaép e Tauari. Reunidos, dançaram e resolveram voltar à aldeia de Kanutsipei para tomarem posse de sua água, quebrando todos os seus potes, conduzindo-a a outras regiões. 

Mearatsim, o primeiro a chegar, cantou para espantar o dono do local. Chegaram então os outros espíritos e, à medida que os potes foram quebrados, formou-se ali uma grande lagoa, de onde cada um dos espíritos criou um rio. 

Assim, o Sol criou o Rio Ronouro; Vani-vani formou o Rio Maritsauá; Kanaratê, o Paranajuva; Tracajá, o Kuluene e Iananá, um afluente do Ronouro. 

A formação dos rios não agradou ao Sol, pois todos corriam para Morená, a região sagrada dos espíritos. Iniciou-se ali uma grande confusão, em meio à qual a Lua foi engolida por um grande peixe. O Sol, desesperado, saiu à procura do irmão, no ventre dos peixes que encontrava. Chegou a capturar o Tucunaré, o Matrinxã, o Pirarara e a Piranha. Mas havia sido o Jacunaum que o engolira, informou o Acará. E ambos, unidos, partiram à caça dos peixe. 

Pediram a Taperá (andorinha do campo) que lhes conseguisse um grande anzol, ocultando-o num charuto. O Acará nadou à procura de Jacunaum, oferecendo-lhe fumo. Desta maneira, o Sol conseguiu fisgá-lo. Entretanto, dentro do peixe, restavam apenas os ossos de seu irmão. 

Desejando ardentemente que a Lua revivesse. o Sol arrumou no chão seu esqueleto, cobrindo-o com as folhas perfumadas do Enemeóp. Aos poucos, como por encanto, a carne foi surgindo, revestindo os ossos até formar um novo corpo. Faltava-lhe ainda a vida. O Sol então introduziu um mosquitinho em sua narina, provocando-lhe um espirro, que o fez finalmente despertar. Assim foram criados os rios e, a partir daí, iniciou-se a prática da pajelança, tendo sido o Sol o primeiro pajé.

Fonte> Adaptação do Texto de Jayhr Gael in O Caminho de Wicca - http://www.caminhodewicca.com.br (desativado). acesso em 13/10/2023.

Aparecido Raimundo de Souza (Não era a dança da alma perdida. E jamais seria...)

VIVIAN BARCELAR DANÇAVA. Bailava suave e de forma cadenciada, harmoniosa e coerente, como se não houvesse amanhã. E se por algum descuido existisse, ela não se importava. Não estava nem aí. Ela só queria dançar. Seus movimentos eram fluidos e graciosos, intensos e elegantes. Tudo numa cadenciação ímpar seguia em ritmo alucinante e indescritível. Ela girava, ora, saltava, ora rodopiava, ora parecia sair do chão, sem se incomodar com o mundo ao seu redor. Ela dançava não só para alimentar a si mesma. Desvairava para sua alma se ver engrandecida. Se açoitava para esconder o rosto macerado pela intensidade da dor que a deixava sem rumo, sem prumo, sem norte.

Vivian Barcelar, havia pouco tempo, perdera tudo o que amava. Seu marido Gabriel, arranjara uma amante. Seu filho Lucas se debandou para a casa do avô; seu apartamento na Barra da Tijuca ficou grande demais para abrigar somente a sua fragilidade; seu José e dona Rosa (seus sogros); se mudaram de mala e cuia para o interior. Ela tinha fugido recente de uma guerra que lhe enfraqueceu os sonhos que almejava. Um conflito medonho que não se fazia esperado, aflorou. Uma conflagração hostil lhe tirou tudo o que tinha conquistado e se fazia real como as linhas desalinhadas das palmas de suas mãos. 

Vivian Barcelar perdeu tudo e mais um pouco. Ela tinha chegado a um lugar estranho, estancado num ponto distante do seu estado normal, onde não conhecia ninguém, tampouco nenhuma alma falava a sua língua e o pior de tudo: onde não tinha sequer um pingo de esperança. A bela e ousada bailarina, na alvura dos vinte e nove, só tinha a dança. Sua válvula de escape. A tábua da salvação. O desvão para fugir das desgraças que lhe atormentavam. A dança que aprendeu com sua mãe; que herdou de sua avó; que fazia parte de sua cultura; de sua identidade. Os movimentos sequenciais que se transformaram na sua melhor forma de expressar, de sentir, de viver, de se acreditar respirando com o coração envolto em batidas descompassadas. 

A dança que era a sua utopia, o seu agora, o seu amanhã, enfim, a única alegria, o derradeiro prazer tudo se fez num buraco imenso. Em verdade, a sua trilha para alcançar a liberdade, para se ver livre de um perigo iminente veio à óbito: a solidão brutal no lugar dela, se materializou. Com isso, a dança da sua alma estraçalhada, alquebrada, quase às raias da neurastenia não lhe permitia parar. Por conta, a criatura carecia de seguir em frente. Droga, só dançando não sucumbiria. Para não se ver sem saída, perdida, mais esmagada que arroz de terceira, a dança voltou à cena. Se constituiu, sem sombra de dúvidas, na sua única maneira de voltar a ser o que antes alegrava o seu mundo, não permitindo chegar aquela situação infame e atarantadamente ensandecida.

Vivian Barcelar dançava, dançava e dançava... voava febril sobre os pés, dançava eletrizante como se não houvesse um agora ou um próximo amanhã. Se mexia freneticamente porque, talvez, se parasse para pensar, para tentar reconstruir o que se fazia (ou lhe parecia impossível), talvez sinalizasse não existir, de fato um novo dia seguinte à sua espera. Porque talvez Vivian Barcelar não quisesse que houvesse. Porque lado outro, só pretendesse se perder tresloucada na dança, na cadência da música, ou, no pior dos mundos: se fundir na arte. Talvez ela só quisesse se encontrar nos domínios da dança, na euforia da música, usque (ainda que) no melhor daquilo que sabia fazer com esmero e perfeição. Ela não se cansava. 

Seguia firme e dançava. Dançava e seguia adiante. Seguia lisonjeira, como uma alma perdida em busca de reza. Um ser que buscava um sentido; um propósito; um destino; um talvez; um minuto; um segundo que fosse para se sentir feliz e realizada. Vivian Barcelar se transformara numa alma oca que ansiava por tranquilidade e paz, que soluçava pelo amor se renovando, pela felicidade plena. Uma alma simplesmente solitária, que se entregava de peito e coração abertos, à dança, à música, e à arte. Nele seu futuro promissor, se fazia seu tudo. 

Vivian Barcelar, por assim, dançava. Dançava sem parar. Não se cansava. Acabava uma música, entrava outra e mais outra e mais outra —, tudo numa sequência interminável. Ela dançava como uma vida perdida. Uma coisa sem valor, um ser que não merecesse mais nada, a não ser deixar de existir. Não, não, por Deus, deixar de existir, jamais. Jamais! Vivian Barcelar sofria. Estava no fim. Contudo, acreditava piamente, sentia que através da dança, envolta corpo, alma e espírito, tudo sem tirar nem por condensado naquele ritmo entontecido, se achasse se descobrisse exatamente no lugar do caminho, onde sem saber por qual motivo, se perdeu de distanciou... —, se divorciou de si mesma. 

Fonte: Texto enviado pelo autor 

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Carolina Ramos (Trovando) “10”

 

Washington Daniel Gorosito Pérez (Escrevendo Poesias)

 
tradução do espanhol por José Feldman

Mensagem na Garrafa = 105 =

Vanice Zimerman
Curitiba/PR

SUSSURROS DO PAPEL DE SEDA...

A crônica de hoje deixou-se envolver, saudosamente, pelas imagens da abertura da novela “Éramos Seis”, uma linda telenovela brasileira produzida pelo SBT, e exibida, em 1994, (baseada em um romance brasileiro, de Maria José Dupré, 1943). Imagens da família em porta-retratos apareciam, em preto e branco e coloridos, indicando a passagem do tempo...

Retratos de família são pausas no tempo; os sorrisos permanecem e as lágrimas contidas, disfarçadas, também. Gosto de rever os antigos álbuns de fotografias e sentir, inebriada, os suaves sussurros do papel de seda que antecede cada página de textura em tons de azul-cinza. As fotos, de certa forma, mostram histórias de vidas; nascimentos, aniversários, amigos em confraternização, formaturas, mudanças de casas, viagens ... Cada centímetro da imagem lembra uma etérea ampulheta, que pode ser acariciada, emoção ao alcance das mãos...

Há amizades que permanecem além dos porta-retratos, sejam familiares, ou amigos e amigas que conhecemos em Redes Sociais ou por intermédio do trabalho e da poesia – Antologias, Oficinas de Arte... Têm laços de amizades que continuam a fazer parte de nosso dia a dia, mesmo que estejamos distantes da vida social, literária ou num leito de hospital. Assim, as boas vibrações chegam através de um abraço presença física, ou virtual: nas trocas de mensagens e emojis.

Wanda de Paula Mourthé (Canteiro de Trovas) = 8


A alvorada se atavia
quando a noite ergue seu véu,
e abre o sorriso do dia
na rósea face do céu.
= = = = = = = = = 

Amor de mãe, sem medida,
em toda a criação é aquele
capaz de ao filho dar vida
e dar a vida por ele!
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Ao passar por mim, não para.
Sou a sombra de ninguém!
Que espaço enorme separa
meu amor do seu desdém!
= = = = = = = = = 

Brilho de falso talento,
que se vislumbra demais,
pode ofuscar um momento,
mas muito tempo... jamais!
= = = = = = = = = 

Buscando quimeras vãs
e redentoras auroras,
fui vivendo de "amanhãs"
e não vivi meus "agoras"...
= = = = = = = = = 

Com fé no poder divino,
traço meus rumos assim:
jamais permito ao destino
fazer escolhas por mim.
= = = = = = = = = 

De um amor que é só miragem,
finjo agora ter o assédio,
para escapar da engrenagem
desta moenda que é o tédio.
= = = = = = = = = 

Em nossas conversas calmas,
tem o amor recursos sábios:
palavras brotam das almas
bem mais que dos nossos lábios.
= = = = = = = = = 

Juntando restos de sonho
à fugaz felicidade,
tua imagem recomponho
com mosaico de saudade.
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Linda, a tarde se atavia
com fios de ouro do sol
e adorna a face, em magia,
com o rouge do arrebol.
= = = = = = = = = 

Luto por meus ideais
com audácia, ante os abalos,
que não abalam, jamais,
a esperança de alcançá-los!
= = = = = = = = =

Meu abrigo é a solidão,
mesmo sob o nosso teto,
porque, aos laços da união,
falta o nó que prende o afeto.
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Meu amor, por ser incauto,
ocultá-lo não consigo,
pois meus olhos são arauto
das palavras que não digo.
= = = = = = = = = 

Não há censura que abale
nosso amor, que era segredo,
pois aliança de almas vale
bem mais que aliança no dedo.
= = = = = = = = = 

Não prometo, em nossa história,
meu amor por toda a vida,
porque a vida é transitória,
e meu amor, sem medida!...
= = = = = = = = =

Nem nosso amor em conflito
justifica esse teu "não":
proferiste um veredito
sem direito à apelação!
= = = = = = = = = 

No cansaço da viagem,
quando me sinto exaurida,
sopro a brasa da coragem
e atiço o lume da vida.
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Nossas almas, com fervor,
habitam corpo comum.
Pela alquimia do amor,
nos tornamos... dois em um!
= = = = = = = = = 

Nosso amor sempre crescente,
mas tão distante da aurora,
é barco que, no poente,
no cais da ternura ancora.
= = = = = = = = = 

Num tempo em que mal se tolhe
tanta violência homicida,
bendito é o ventre que acolhe
a promessa de uma vida!
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Passa, veloz, a paisagem
pela janela do trem...
Só não passa tua imagem,
que vai comigo também!
= = = = = = = = = 

Pazes feitas, afinal!
E ao brindarmos, de improviso,
mais que o toque do cristal,
soa o cristal do teu riso!
= = = = = = = = =

Retornas a casa... e, em cores,
ao pressentir os teus passos,
nosso jardim se abre em flores,
e abertos já estão meus braços!
= = = = = = = = = 

Se agora o ocaso me alcança,
ao desalento me oponho,
porque o lume da esperança
mantém aceso o meu sonho.
= = = = = = = = = 

Se de ousada passo a imagem,
vou confessar meu segredo:
às vezes, minha coragem
é só disfarce do medo...
= = = = = = = = = 

Se em conquistas eu fracasso,
ao desalento me oponho
e com fé em Deus eu traço
os rumos de um novo sonho.
= = = = = = = = = 

Tanto amor e afinidade
entre nós dois, já se vê,
que perdi a identidade:
ou sou eu... ou sou você?
= = = = = = = = = 

Terra, és planeta bonito,
que Deus, Supremo Escultor,
no ateliê do infinito,
modelou com esplendor!
= = = = = = = = = 

Você parte e nem me avisa!
Conto o tempo em ansiedade
pela areia que desliza
na ampulheta da saudade...
= = = = = = = = = 

"Volta, amor!" — Esse é o chamado
da saudade ao ver-te ausente —
"Em memória do passado,
eu te peço este presente!"
= = = = = = = = = 

Voltas! Com essa notícia,
atenta ao som dos teus passos,
eu antecipo a magia
de uma noite nos teus braços!
= = = = = = = = = 
Fonte> Wanda de Paula Mourthé. Com…passos de emoções. Belo Horizonte: Flux, 2013. Enviado pela Trovadora.

Humberto de Campos (Educação antiga)

As pessoas que desceram à cidade sexta-feira pela manhã, ouviram falar, com certeza, em uma vaia de que teria sido vítima, em plena Avenida, uma senhorita inconvenientemente vestida. Indignadas com a competência daquela atrevida, outras senhoras explodiram em exclamações admirativas, a que os homens, para agradar à maioria, deram seguimento, rompendo em assuada.

A mim, me custa a crer que isso tenha acontecido, por uma circunstância muito natural por não ser possível mais, na cidade, uma "toilette" capaz de motivar surpresa. As que se exibem na Avenida impunemente, todos os dias, são de tal ordem, que, para causar escândalo, pasmo, admiração, seria preciso, não, apenas, tirar o vestido de cima da pele, mas tirar a pele de cima do corpo.

Comentava eu esse incidente, ontem, à noite, em uma roda de damas e cavalheiros, quando uma das senhoras menos jovens, Dona Ernestina Vale, procurou uma explicação para esse descalabro:

- O motivo dessa falta de pudor de certas moças de hoje, - começou, perspicaz - deve ser atribuído, sr. conselheiro, aos próprios pais, ou, antes, às mães.

E expôs o seu pensamento:

- O senhor vê, hoje, como as mães vestem as crianças. Não há dia em que não encontremos na rua meninas de quatro, seis, oito e, até dez anos, com vestidinhos muito acima dos joelhos, com os bracinhos nus, o colozinho à mostra, numa exibição completa das suas carnezinhas tenras. Aos doze anos, já mocinhas, a "toilette" dessas criaturinhas apresenta pequena diferença. E como não tiveram, em criança, a noção do pudor físico, entram assim na mocidade, sem tentar esconder as partes do corpo que nunca lhes disseram que deviam ser escondidas.

- A senhora acha, então, que elas fazem isso sem maldade? - obtemperou o Dr. Austregésilo, tomando nota na carteira.

- Perfeitamente, doutor! Elas fazem isso com a maior inocência do mundo. Os índios não se apresentam inteiramente nus aos olhos dos civilizados? E não o fazem ingenuamente, inocentemente, por terem sido criados assim? Criemos as meninas com decoro, vestindo-as com discrição, e teremos moças discretas, pudicas, decorosas, ciosas do seu corpo e dos seus encantos.

E, dizendo-me isso, acrescentou, severa, calçando as luvas, deixando-me ver, pelo vestido decotado e sem mangas, dois sinaizinhos negros, quase imperceptíveis, que se lhe aninhavam um pouco abaixo das axilas:

- Assim é que eu fui criada!

Fonte> Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925. Disponível em Domínio Público.

Mitos Indígenas (Sinaá - inundação e fim do mundo)

Sinaá, o mais poderoso pajé da tribo Juruna, era filho de mãe índia e pai onça. Do felino herdara o poder de enxergar também pelas costas, o que lhe permitia observar tudo o que se passava ao seu redor. Caminhava com sua gente por toda a região, ensinando a seus companheiros serem bons e bravos. Seu povo alimentava-se de farinha de mandioca, raspa de madeira, jabutis e sucuris, cobras imensas que habitam na água. 

Certa vez, uma enorme sucuri foi capturada e queimada por haver devorado diversos índios. inesperadamente brotaram de suas cinzas diversas espécies de vegetais, como a mandioca, o milho, o cará, a abóbora, a pimenta, e algumas plantas frutíferas, até então desconhecidas para aquela tribo. 

Foi um pássaro surgido do céu que os ensinou a utilizar e preparar tais alimentos e também fazê-los multiplicar-se. A partir daquele dia, fartas roças se formaram. 

Para garantir o sustento de seu povo, Sinaá, face às fortes chuvas e à ameaça de grande inundação, construiu uma imensa canoa, onde plantou mudas de cada espécie. 

Em poucos dias o rio transbordou e a enchente cobriu toda a região, mas o grande pajé livrou seu povo da fome. 

Já mais velho, Sinaá casou-se com uma aranha, que lhe teceu novas vestes para melhor abrigá-lo. Chegando a atingir idade bastante avançada, já ostentava longas barbas brancas. Seus poderes, porém, permitiam-lhe remoçar a cada banho de cachoeira, para que pudesse viver até o fim de seu povo, como tanto queria. Quando isto ocorresse, Sinaá derrubaria a forquilha de uma enorme árvore que apontava para o céu, sustentando-o. O céu desabaria sobre todos os povos e o mundo teria o seu fim.

Fonte> Adaptação do Texto de Jayhr Gael in O Caminho de Wicca - http://www.caminhodewicca.com.br (desativado). acesso em 13/10/2023.

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

Isabel Furini (Poema 55): Aos que partiram II

Fonte: Isabel Furini. Flores e Quimeras. 2017. Ebook.


Newton Sampaio (Simples diálogo)

— Vai bater.

— Não bate.

— Vai, sim.

— Não vai.

— Aposto.

— Quanto quiser.

— Um cafezinho...

— É pouco.

— Dois chopps.

— Sofro do fígado.

— Cinema?

— Não gosto.

— Então proponha.

— Já propus quantas vezes!

— Isso que você quer é impossível.

— Não há nada impossível quando se está diante da mais linda mulher...

— Velhíssimo galanteio, meu caro...

— Mas muito exato. As palavras sinceras não envelhecem.

— Mas ficam fora de moda. Mais depressa que os vestidos...

— Nesse caso, desisto.

— Medo?

— Cansaço...

— Por Deus! Um Romeu desanimado é a criatura mais ridícula do mundo.

— Confesso então que é medo.

— De perder?

— Ou talvez de ganhar.

— !

— Vai bater.

— Não vai.

— Espere e verá.

Esperaram. Ela ganhou. O rastilho de luz acabou mesmo alcançando o velho parapeito sem história...

(Publicado originalmente na revista Fon-fon. Rio de Janeiro, 19/12/1935)

Fonte> Newton Sampaio. Ficções. Secretaria de Estado da Cultura: Biblioteca Pública do Paraná, 2014.

Auta de Souza (Poemas Escolhidos) – 14 -


PÁGINA TRISTE

Há muita dor por este mundo a fora
Muita lágrima à toa derramada;
Muito pranto de mãe angustiada
Que vem saudar o despontar da aurora!

Alma inocente só de amor cercada
A criancinha a soluçar descora,
Talvez no berço onde o menino chora
Também, oh dor, tu queiras, desolada.

Erguer um trono, procurar guarida...
Foge do berço! Não magoes a vida
Desta ave implume, lirial botão...

Queres um ninho, um carinhoso abrigo?
Pois bem! Procura-o neste seio amigo,
Dentro em minh’alma, aqui no coração!
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POBRE FLOR!

Deu-ma um dia antiga companheira
De tempinho feliz de adolescente;
E os meus lábios roçaram docemente
Pelas folhas da nívea feiticeira.

Como se apaga uma ilusão primeira,
Um sonho estremecido e resplendente,
Eu beijei-lhe a corola, rescendente
Inda mais que a da flor da laranjeira.

E como amava o seu formoso brilho!
Tinha-lhe quase essa afeição sagrada
Da jovem mãe ao seu primeiro filho.

Dei-lhe no seio uma pousada franca...
Mas, ai! Depressa ela murchou, coitada!
Doce e mísera flor, cheirosa e branca!
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POMBOS MENSAGEIROS

Transformados em pombos cor de neve,
Entraram-me a cantar pela janela,
A tua carta delicada e leve
E o beijo amigo que envolveste nela.

Ó que alegria para o coração
Onde a Saudade, sempre em flor, renasce!
A carta leve me pousou na mão
E o beijo amigo acarinhou-me a face.

E então, a rir, ó pomba idolatrada!
Eu transformei meu coração em ninho:
Nele repousa a tua carta amada
E canta o beijo a ária do carinho.
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RENASCIMENTO

Manhã de rosas. Lá no etéreo manto,
O sol derrama lúcidos fulgores,
E eu vou cantando pela estrada, enquanto
Riem crianças e desabrocham flores.

Quero viver! Há quanto tempo, quanto!
Não venho ouvir na selva os trovadores!
Quero sentir este consolo santo
De quem, voltando à vida, esquece as dores.

Ouves, minh’alma? Que prazer no ninhos!
Como é suave a voz dos passarinhos
Neste tranquilo e plácido deserto!

Ah! entre os risos da Natura em festa,
Entoa o hino da alegria honesta,
Canta o Te Deum, meu coração liberto.
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RECUERDO

Findava o mês de maio envolto e preces,
O doce mês da orações formosas...
Iam com ele as encantadas messes
Dos perfumes, dos sonhos e das rosas.

Era muito à tardinha; as aves mansas
Voavam todas, em formosos pares,
Como se fossem garrulas crianças
Que andassem, rindo, a percorrer os ares!

E eu murmurei ao ver assim voando
Aquelas aves para os brandos ninhos:
"Ah! Quem me dera só andar cantando,
Sempre crianças, como os passarinhos!”
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REGINA MARTYRUM

Lírio do céu, sagrada criatura,
Mãe das crianças e dos pecadores,
Alma divina como a luz e as flores
Das virgens castas a mais casta e pura;

Do azul imenso, dessa imensa altura
Para onde voam nossas grandes dores,
Desce os teus olhos cheios de fulgores
Sobre os meus olhos cheios de amargura!

Na dor sem termo pela negra estrada
Vou caminhando a sós, desatinada,
— Ai! pobre cega sem amparo ou guia!

Sê tu a mão que me conduza ao porto...
Ó doce mãe da luz e do conforto,
Ilumina o terror desta agonia!

Fonte: Auta de Souza. Poemas. Publicado postumamente em 1932. Disponível em Domínio Público.