sexta-feira, 14 de agosto de 2020

Cecy Barbosa Campos (Versos Perplexos) I


VERSOS PERPLEXOS

Crianças carregam armas
e jovens, com semblante fechado
se esgueiram atrás de muros
espreitando casas.
Mulheres engendram planos
enquanto homens decepam vidas,
filhos matam mães
e pais matam filhos.
O ar não rescende ao cheiro de flores
mas é possível sentir
o cheiro de sangue fresco
que jorra todos os dias.
Já não encontro as estrelas
que, lá do alto,
vigiavam os passos de minha infância
e iluminavam os caminhos.
Só encontro as câmeras de vídeos
observando os passantes
e denunciando maldades.
Já não vejo a lua que chega,
faceira,
para pratear meus versos.
Olho,    sem entender,
o mundo que me cerca
e só consigo mergulhar
em minha perplexidade.
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ANSIEDADE

Fujo da escuridão!
Quero a luz do saber,
o conhecimento da verdade,
o esclarecimento das mentiras,
o vislumbrar do sol.
Não entendo os morcegos
na escuridão das cavernas
nem a busca de ilusões
que encobrem a realidade.
Abomino
a falsidade dos améns
e o disfarce dos demônios
que confundem caminhos.
Quero enxergar borboletas
e ver estrelas que existem
apesar dos edifícios
que arranham céus
e limitam horizontes.
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ASAS

Preciso de asas
para poder partir
e, subitamente,
poder voltar.
Mergulhando no espaço
inundada de silêncios
atravesso auroras
e vou me perder
em tardes luminosas.
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FIAT LUX

O dia abriu os olhos
e enxergou, com tristeza,
as misérias do mundo.
Vendo homens e mulheres
maltrapilhos,
aconchegados em vãos de portas
que para eles
nunca se abririam,
chorou.
Não conseguiu acender as luzes
do sol,
nem conseguiu fazer
a luminosidade da alegria
baixar sobre aquelas cabeças
sem teto.
A escuridão permanece.
Falta luz às cavernas
da desumanidade
e da ignorância.
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INCOMPREENSÃO

Não quero falar
nem explicar.
Busco ocultar
esta opressão
que me esmaga o peito
e quase faz jorrar
lágrimas dos meus olhos.
Contenho-as.
Mesmo sozinha
preciso escondê-las
de mim mesma.
Não adianta falar
o que ninguém vai escutar
ou entender.
Engulo a angústia.
O pedido de socorro
que teima em saltar,
tem que silenciar
dentro de mim.
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LEMBRANÇAS

As lembranças me atingem
filtradas por censuras
e pela vontade
do que não foi.
Aos poucos
ficam dispersas
e apagam-se
como o clarão de velas
bruxuleantes.
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MENTIRAS

Mentindo
descaradamente,
segue o Homem,
segue o Mundo
sem distinguir a verdade
de tão assumidamente,
viver na mentira,
cotidianamente.
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PARTES

Sinto que sou fragmento
em busca do todo.
Vou me perdendo
pouco a pouco
e os sons, ao meu redor,
lentamente se esvaem.
Onde estará
o meu ser total?
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PROCURA

A noite se alonga
formando círculos viciosos
de enigmas.
Meus olhos buscam
deslindar fios
que se avolumam.
No seu emaranhado
a minha visão
se esvai.
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SUFOCO

Um grito
entalado na garganta
sufoca a dor,
devora ânsias
e silencia gemidos
que ficam perdidos
ao sabor do vento.
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TRAVESSIAS

Transformei-me em barco
e atravessei oceanos
perdendo os rastros
das maldades humanas.
Encerrei-me em versos
e habitei passarinhos
que cantaram em mim
momentos crepusculares.

Fonte:
Cecy Barbosa Campos. Versos perplexos. Juiz de Fora/MG: Editar Editora Associada, 2019.
Livro gentilmente enviado pela poetisa.

Malba Tahan (A Esposa dos Dois Maridos)

 

 Tenho tua imagem nos meus olhos; o teu nome nos meus lábios; a tua lembrança no meu coração. Como julgas, então, que podes estar ausente de mim?
Ben Al Nasir (1163-1223)


Em nome de Alá, Clemente e Misericordioso…

Foi em Saida, (1) a pitoresca cidade da Argélia, que ouvi, pela primeira vez, o nome do justo cádi(2) Rafik ben-Najm (3) Fares Hadjdjat.

Um beduíno(4) chamado Abib, guia de caçadores, homem vivo, falador, confidenciou-me, certa manhã, na mesquita, junto à fonte das abluções:

— O cádi Rafik ben-Najm é um notável ulemá, um sábio. Sábio e justo. Justo e profundamente humano. Não existe, nas terras argelinas, homem mais digno da nossa admiração e do nosso respeito.

E Abib, sempre exuberante, narrou-me espantosa aventura, ocorrida em Mascara, na qual o cádi Rafik brilhava como autêntico herói das Mil e uma noites. Outros casos, mais estranhos, ouvi (uma semana depois) de dois rumis, compradores de fumo.

Mais tarde, em Argel, conversando com um guitarrista, chamado Saliba ou Taliba (não me lembro bem), recebi novos informes sobre o famoso juiz Rafik, o sábio.

— É extraordinário — confirmou com veemência o guitarrista. — Não é possível encontrar, entre os muçulmanos, homem tão surpreendente. Conhece até as letras misteriosas do Livro de Alá. (5)

Aqueles elogios (ditados pela sinceridade popular) despertaram em mim vivo desejo de conhecer o prestigioso e justo cádi Rafik ben-Najm Fares Hadjdjat.

Quando estive, pela terceira vez, em Khalfallah, (6) vendendo louças, relógios, tecidos e comprando pistache (serviço exclusivo do xeque Abd el Rahmã), tive a excelsa ventura de conhecer pessoalmente o justo cádi Rafik ben-Najm.

Será interessante, ó irmão dos árabes, (7) contar o caso como ocorreu.

Na faina diária, em busca de bons negócios, eu havia saído com dois criadores de ovelhas, de Maalif, (8) a fim de levá-los à presença do xeque Abd el-Rahmã, o homem mais violento e impulsivo que conheci até hoje. Ao atravessar pequena povoação nativa, avistei inquieta multidão que se amontoava na porta de uma tenda. Achavam-se ali mercadores árabes, berberes do deserto, nômades esfarrapados e até mulheres. Indaguei do que se tratava.

— É o sábio e justo cádi que está julgando — disse-me um berbere, maneta, de turbante sujo, remordendo dois galhinhos de raque. (9)

— O justo cádi Rafik ben-Najm?

— Sim, esse mesmo — corroborou com voz meio cantada o meu informante. — Já está no terceiro caso.

Voltei-me para os homens de Maalif e disse-lhes numa decisão inapelável:

— Esperem por mim. Um instante.

E meti-me no meio dos curiosos. Depois de alguns empurrões e muitas pragas (três pragas e meia para cada empurrão), consegui chegar ao interior da Kaimat al-hadl (Tenda da Justiça), que era, aliás, ampla e confortável, com sete panos listrados. Reconheci logo o honrado e prestigioso cádi. Estava sentado, pernas cruzadas, em grande almofada, e tinha à sua direita, sobre pequena banqueta, soberbo exemplar do Alcorão. Abria-se, na frente do juiz, largo círculo vazio. Para aquele círculo eram conduzidos os réus, as testemunhas, os acusadores e os litigantes. Atrás do justo cádi, também sentados à moda árabe, achavam-se seus dois auxiliares e cinco guardas armados com espadas recurvas de aço indianizado. Os secretários anotavam, em grandes livros de capa escura, os nomes que interessavam, os fatos que ocorriam e as decisões do cádi. No alto, no centro de belo escudo prateado, lia-se esta sentença:

Fihilm alauiát ua adlihem iajed addoafa amaluon (Na bondade e na justiça dos fortes reside toda a esperança dos fracos).

Observei o justo cádi. Era homem de meia-idade; discreto e impecável nos trajes; rosto largo, barba preta e bem-cuidada. Fisionomia simpática; olhar expressivo. Os seus gestos eram serenos. Deixava, ao mais rápido exame, a impressão de ser pessoa culta e finamente educada.

Um árabe agigantado, de roupa escura, turbante amarelo e semblante carrancudo, perfil adunco de coruja, que se achava de pé na primeira fila dos assistentes, depois de consultar uma folha de papel, anunciou em voz alta:

— Vai ser julgado agora, pelo nobre e honrado cádi Rafik ben-Najm Fares Hadjdjat, representante de nosso governador, o caso da jovem Najat (10) bint-Djelfa, (11) que é reclamada por dois maridos. (Ele proferira o nome feminino — Na-já — separando bem as sílabas.)

Tudo parecia seguir, para mim, um rumo bem curioso. O argeliano do semblante carrancudo bateu palmas. Aqui e ali brotavam, entre os presentes, gestos de impaciência e curiosidade. Uma rapariga, seguida de dois homens, atravessou, aos arrancos, o grupo compacto dos curiosos e foi colocar-se no centro do círculo livre, em frente ao cádi.

Era aquela a jovem de Djelfa que os azares da vida levaram, com dois maridos, ao tribunal. Devia ter, no máximo, vinte ou 22 anos. Seus olhos eram negros bem rasgados e vivos; os cabelos castanhos pareciam brilhar sob o lenço de seda azul que lhe cobria a cabeça. Ostentava um fustam (12) discreto e benfeito. Em seu braço esquerdo, moreno e roliço, rebrilhavam três largas pulseiras de ouro.

À direita da graciosa Najat postou-se, logo, o primeiro marido. Era um tipo forte, muito moço, de aparência sadia, rosto avermelhado. Trazia sobre a cabeça, retorcido para a esquerda, um gorro sujo de pele de coelho. Os seus trajes descuidados davam a impressão desagradável de pessoa grosseira e desleixada.

O outro, o “segundo marido”, ficou, um pouco enleado, à esquerda da esposa. Era bem mais velho e bem diferente do primeiro. Teria, talvez, cinquenta ou 55 anos (sanat). Sentia-se a distinção inconfundível de sua figura, desde o turbante de seda (elegante e discreto) até os sapatos escuros, de bico fino, que reluziam em seus pés. Fazia-se acompanhar de soberbo cão vermelho de fina raça (como era belo o animal!). Logo que o dono parou (ao lado de Najat), o cão deitou-se, com solenidade, a seus pés.

Tudo recaiu em silêncio. Não bolia o mais leve sussurro.

— Liatakalam az-zauj al-aual! (Que fale o primeiro marido!) — ordenou o “justo cádi” (13) com voz serena.

O jovem do rosto avermelhado, para atender o juiz, passou a mão pelo queixo, ajeitou a cinta, cuspiu para o lado, relanceou um olhar de ódio ao rival e assim falou, desenvolto, de semblante iroso:

— Chamo-me Hassã Rida e sou natural de Oran, (14) onde, ainda em Djelfa, em trabalhos de estrada, conheci Najat, filha de Jamil, (15) o carpinteiro. Casamo-nos. Fomos muito felizes. Juntamente com seus pais, levei-a, mais tarde, para Blida; (16) de Blida fomos para Argel. Nessa cidade conheci vários mercadores gregos. Desejoso de viajar pelo mundo e enriquecer depressa, coloquei-me a serviço dos aventureiros gregos e parti, em grande veleiro, para Kubros. (17) Deixei Najat aos cuidados de minha sogra. Não fui feliz nessa viagem. Ocorreu uma desgraça. O nosso navio, em alto-mar, foi atacado por piratas turcos e incendiado. Juntamente com vários companheiros fui aprisionado pelos piratas e vendido, como escravo, em Constantinopla. Passei três anos sofrendo todos os horrores do cativeiro. Durante a minha longa e involuntária ausência, a mãe de minha esposa fez constar, entre amigos e parentes, que eu havia perecido em naufrágio. Preocupada em abiscoitar o dote que esse velho oferecia, concedeu-lhe Najat (falsamente viúva) em casamento. A culpada de tudo foi minha detestável sogra. Lanat — Allah alaiha! (Que o castigo de Deus caia sobre ela!) Volto agora, ó justo cádi, e venho reclamar minha esposa. Procurei-a loucamente, por várias cidades; andei como um chacal pelos oásis; sofri fome e sede no deserto e vim, afinal, encontrá-la aqui, nesta terra hospitaleira. Sou o marido legítimo de Najat, e esse homem — apontou para o rival — não a quer deixar. Não a quer deixar.

Calou-se, neste ponto, o primeiro marido. Fios de baba desciam-lhe lentos aos cantos da boca.

— Desejo ouvir agora o segundo marido — declarou o justo cádi Rafik ben-Najm. E tamborilava com os dedos da mão direita sobre a capa do Alcorão.

Ao ouvir a intimação do juiz, o segundo marido, depois de ligeiro salam, (18) começou, esboçando um sorriso descorado:

— Tomo Alá como testemunha de minhas palavras (19). Chamo-me Chahin Nadli Hanoun. Dedico-me ao comércio de joias e disponho de casa bem instalada em Argel, mas resido, atualmente, nesta cidade, por motivo de saúde. Tendo ido, certa vez, a Ain-Taya (20) adquirir joias e antiguidades, conheci, no mercado, essa jovem Najat, filha de Jamil. Enamorei-me dela. Informado de que se tratava de uma viúva, cujo marido perecera em naufrágio, falei ao respeitável Jamil, seu pai, e pedi-a em casamento. Obrigou-me Jamil a pagar o dote; não fiz a menor objeção a tal exigência, e entreguei ao pai de minha noiva o dobro da quantia exigida. O nosso casamento realizou-se em Argel, perante o cádi e cinco testemunhas. Sou, portanto, diante da lei, o marido legítimo de Najat, filha de Jamil.

Proferidas tais palavras, inclinou-se, com simplicidade, e acariciou a cabeça do majestoso cão, que já dormitava a seus pés.

Ouvida a narrativa do segundo marido, o digno magistrado voltou-se para a jovem e interpelou-a com mansidão, em tom natural e conciliador:

— E tu, Najat, filha de Jamil, o carpinteiro, que dizes diante de tudo isso? Queres continuar com o teu atual esposo, Chahin Nadli Hanoun, ou preferes voltar para a companhia de Hassã Rida, o teu primeiro marido?

— Justo cádi — respondeu a moça com voz cheia de meiguice, envolvendo suas palavras num sorriso de simpatia —, nada posso resolver. Não desejo, neste momento, decidir do meu destino. O generoso Sidi (21) Chahin é bom, extremamente delicado para mim; vivo bem em sua companhia. — Aqui fez ligeira pausa. E concluiu com candura: — Hassã jura, pela sombra da Caaba, que me quer também…

— Por Alá, justo cádi — acudiu o segundo marido com veemência, apontando para o rival com um meio sorriso, sem expressão: — Eu sei muito bem por que ele a quer. Eu sei muito bem, ó venerável ulemá! (22) Najat é bondosa; é diligente; é meiga; é prestativa. Esse moço julga-se poeta e escreve, todos os dias, versos e mais versos. Najat, para agradá-lo, lia com paciência os versos e decorava os poemas. É por isso que ele a quer!

— Perdão, justo cádi! — revidou asperamente o primeiro marido, transbordante de ódio. — Eu sei muito bem por que esse velho a quer! Najat é boa dona de casa; quieta e modesta; prepara com perfeição os pratos mais finos. Um cabrito assado, com recheio, temperado pelas mãos hábeis de Najat, é uma delícia; o kichk (23) preparado por Najat pode ser servido em palácio, ao sultão do Marrocos! Najat não esquece as plantas e as flores da casa, e cuida até do cão de Sidi Chahin. É por isso que ele a quer, justo cádi! É por isso!

E repetiu, num gesto de repulsivo nojo:

— É por isso que ele a quer, ó justo cádi!

— Está bem — atalhou o juiz, encerrando o debate. — Está bem! Já ouvi todos os interessados. Cumpre-me resolver esse caso de acordo com a lei, sem esquecer a delicada situação de constrangimento dessa jovem reclamada por dois maridos que, em tudo e por tudo, diferem profundamente um do outro.

Fez-se profundo silêncio na Tenda da Justiça. Ficaram todos imóveis. Não se ouvia o mais leve sussurro. O árabe agigantado, do turbante amarelo, com os braços cruzados, aguardava, impassivelmente, a sentença. Só o cão de Sidi Chahin, despertado com os gritos do primeiro marido, agitava sua longa cauda avermelhada.

Nesse momento, senti que me puxavam, com força, pelo braço. Era um dos beduínos de Maalif.

— Venha depressa! — segredou-me nervoso, aflito. — Venha depressa!

O xeique (24) Abd el-Rahmã, seu patrão arreliento, já se encontra, lá fora, à sua espera. Está furioso! Por Alá! Depressa! O xeque quer falar-lhe agora mesmo.

A situação era grave. Algo de anormal havia ocorrido com os nossos rebanhos. Roubo? Baixa de preço? Deixei (debaixo de novos empurrões e novas pragas) o tribunal e, impossibilitado de ouvir a sentença do cádi, corri ao encontro de meu chefe, o rancoroso Abd el-Rahmã. Retornamos, na mesma hora, para o oásis de Maalif.

Na tarde desse mesmo dia, segui, por ordem do xeque, para Saida, e de Saida fui, com mercadores de fumo, para Oran. Viajei mais tarde para a Europa. Passei cinco meses no Havre vigiando os embarques e desembarques de mercadorias. De quando em vez, a curiosidade remordiame o coração:

— Como teria o justo cádi, naquele dia, na Tenda da Justiça, resolvido o caso da jovem que dois maridos disputavam? Teria decidido a favor do apaixonado Hassã, o primeiro marido? Teria dado ganho de causa ao velho e generoso Sidi Chahin?

Dois anos depois, vi-me forçado a percorrer vários centros comerciais de Marrocos. Essa viagem delongou-se por cinco semanas. Na volta, resolvi visitar Tlemcen, a cidade mais curiosa da Argélia. Embora pareça incrível, sob o céu de Tlemcen fui conhecer inesperadamente o surpreendente desfecho da singular aventura dos dois maridos de Najat.

Tudo se passou assim, Maktub! (Estava escrito!)

Uma tarde, sentindo-me bem-disposto, julguei que seria acertado levar algumas peças de roupa a uma tinturaria que ficava no fim da rua Kaldoum. Ao entrar na tinturaria, dei de cara com o tal guitarrista de Argel, chamado Saliba ou Taliba (não me lembro bem), admirador fervoroso do justo cádi Rafik ben-Najm.

— Por Alá, meu amigo! — exclamou o argelino. — Sabes quem está morando agora aqui, em Tlemcen? Aquele famoso cádi, o sábio, que fazias tanto empenho em conhecer. Sim — confirmou risonho o guitarrista. — O honrado e benquisto Rafik ben-Najm.

Ora, o guitarrista argelino não era homem inclinado a rir-se das coisas sérias. Exultei, pois, com a notícia. Colhi, no mesmo instante, todas as informações precisas. O justo cádi instalara-se em pequeno prédio, de janelas verdes, que ficava na rua Ora, dois quarteirões à direita, além da mesquita.

No dia seguinte, depois da prece da tarde, dirigi-me à residência do cádi. Era uma casa simples, mas bem-arranjada e distinta. O pátio interno era um primor pelas plantas viçosas e raras que o adornavam. Homem fino, o justo cádi!

Recebeu-me, atencioso, com vivas demonstrações de simpatia. Contei-lhe que o havia conhecido na Tenda da Justiça, em Khalfallah, durante acidentado julgamento. Procurava-o, naquele momento (disse com a maior franqueza), impelido por uma curiosidade martelante: como havia resolvido aquele interessante e delicado litígio dos dois maridos que pretendiam a mesma esposa?

— O caso da jovem Najat, filha de Jamil?

— Esse mesmo! — confirmei.

— Vou informá-lo da minha sentença — tornou o justo cádi, com alegre sombra. — Antes, porém, vamos saborear uma taça de delicioso café!

Naquele mesmo instante vi surgir, na sala, uma criatura encantadora, elegantemente vestida; trazia nas mãos graciosas (pintadas de hena) (25) larga bandeja de prata com duas xícaras de café de Adem! (26)

Foi, para mim, indescritível surpresa. Logo a reconheci. Era a formosa Najat!

O cádi encarou-me risonho e apresentou, com certo entono vaidoso:

— Eis, ó mercador, a minha esposa! É Najat, a filha de Jamil!

Fitei-o assombrado. Sim, assombrado como o homem que custa a crer no que vê e não se atreve a dizer o que sente. Najat sorriu para mim e proferiu com graça e simplicidade (sua voz tinha a claridade suave do luar):

— Ahla ua Sahla! (Bem-vindo sejas a esta casa, ó mercador!) Rafaaka as Saad! (Que a felicidade seja a tua sombra!)

Tão perturbado fiquei ao ouvir aquela delicada saudação árabe que não soube retribuí-la. Inclinei apenas a cabeça à maneira dos nômades do Saara. Retirou-se Najat. Sentia-se no ar, pela sala, invadindo tudo, o perfume inconfundível de sua encantadora presença.

— Quer saber qual foi naquela tarde, em Khalfallah, a minha sentença? — volveu o cádi. — Vou contar-lhe como tudo se passou.

Feita ligeira pausa, o ilustre magistrado, muito sereno, sem uma sombra no olhar, assim começou:

— Naquele tempo eu era viúvo e pensava seriamente em escolher nova esposa. Tinha, porém, receio de errar. Dada a minha situação, a minha carreira, o divórcio seria desastroso. Quando Najat apareceu, naquele dia, acompanhada dos dois maridos, achei-a muito simpática. O seu ar era simples, mas distinto. Parecia até deslocada naquele meio. Um dos maridos, querendo ferir o seu rival — lembra-se? —, elogiou-a: “É bondosa; é diligente; é meiga; é paciente. Muito hábil e inteligente. Lê versos, aprecia os belos poemas.” O outro marido exaltou-a como dona de casa: “É quieta; é modesta. Um cabrito assado, com recheio, temperado pelas mãos de Najat, é uma delícia! Najat faz um kichk digno do sultão; Najat se desvela em cuidar de tudo aquilo que interessa ao esposo!” Citou até as atenções que ela dispensava ao belíssimo cão de Sidi Chahin. Então eu disse para mim mesmo: “Eis a mulher ideal. Eis a esposa que me convém.” Como resolver, porém, com inteira justiça, aquele caso? Declarei nulo o primeiro casamento de Najat, pois o marido passara mais de 1.001 dias ausente, fora do lar. Chariat! (É da lei!) O segundo casamento (realizado em Oran) também era nulo (de acordo com a lei), pois fora efetuado antes que o primeiro tivesse sido legalmente anulado. Ditadas as duas sentenças, e lavrado oficialmente o ato, Najat ficava livre dos dois maridos. Levantei-me, então, e dirigindo-me ao público (xeques e beduínos que se comprimiam na tenda) declarei: “A jovem Najat, de Djelfa, está livre. Pode escolher, agora, sem o menor constrangimento, o marido que quiser. Se algum dos presentes for candidato, e pretender, também, a mão dessa jovem, queira colocar-se ao lado de Sidi Chahin Hanoun, o segundo marido.” As minhas palavras causaram forte impressão. Correu pela tenda prolongado sussurro de espanto. Ninguém poderia admitir ou imaginar que um juiz, em pleno deserto, promovesse aquele concurso de noivado. Mas, afinal, dois homens menos irresolutos destacaram-se do grupo e apresentaram-se como candidatos. O primeiro, já meio pesado no corpo e na idade, era o dono de grande oficina de ferreiro. Chamava-se Bechara. (27) Não seria exagero dizer que era obeso e disforme. A sua apresentação, como terceiro pretendente, foi recebida com risos deleitados. Acercou-se da noiva bamboleando-se nas pernas. O outro era um belo rapaz, alto, moreno, insinuante, filho de Sidi Omar Wahid, riquíssimo vendedor de goma de mascar. Ostentava no pescoço três ordens de ouro.(28) Era antipático, não obstante suas feições corretas. Foram esses dois os únicos. Vendo que ninguém mais se apresentava — direi melhor: ousava se apresentar —, deixei o meu lugar de cádi, entreguei o Alcorão a um dos secretários e fui colocar-me no extremo da fila, como sendo o quinto e último pretendente. E assim falei: “Que cada candidato dirija um apelo à noiva. Ela, no fim, decidirá.” Coube ao primeiro marido, o jovem Hassã Rida, a oportunidade de iniciar aquele singular torneio sentimental. Erguendo o busto, numa atitude desafiadora, ele disse:

“Querida, não me abandones.” O segundo marido, depois de passar a mão pela testa, proferiu, com arrebatamento: “Najat, meu amor, não posso viver sem ti.” O noivo rotundo, sem sentir o ridículo da situação, um pasmo idiota na face, gaguejou contrafeito: “Prometo, ó formosa Najat, fazer-te feliz!” O rapaz moreno, erguendo a mão, em cujos dedos cintilavam vários anéis, formalizou-se, com ostentação de ricaço, naquele concurso oral de galanteria: “Farei de ti a mulher mais ditosa do mundo.” Cabia-me, afinal, a vez de falar. Procurei ser simples e sincero, e disse apenas: “Najat, minha filha, segue, segue os ditames de teu coração!” A jovem meditou durante um rápido instante. A ansiedade era geral. Qual dos cinco noivos teria a preferência da ex-esposa dos dois maridos? Afinal, estendendo o braço, apontou para mim e declarou resoluta: “É a ti, ó justo cádi, que eu escolho para esposo. Foi o único que me honrou com o tratamento de ‘minha filha’. Espero que sejas, para mim, mais do que um marido: um dedicado companheiro e protetor.” Casamos. Vivemos felizes. Najat tem qualidades que os dois primeiros maridos não chegaram a perceber: é econômica, é leal, extremamente asseada e goza de perfeita saúde. É mãe exemplar…

— Mãe?

— Sim, já temos um filhinho. É um encanto de criança. Dentro de alguns instantes ele voltará do jardim, onde foi passear com a sua ama francesa.

Ao ouvir aquele singular relato, exclamei, sinceramente emocionado:

— Não creio, ó ilustre e justo cádi, que possa haver, sob o céu que envolve o mundo, juiz mais sábio, mais esclarecido e mais liberal! Podendo, na Tenda da Justiça, com o prestígio de sua autoridade, com as regalias do cargo, ter tomado logo posse da jovem, submeteu-se a um concurso livre de títulos e provas, democraticamente, com vários candidatos! Isso é notável!

Respondeu o justo cádi:

— Grato sou, ó mercador, pelo elogio que acabo de ouvir. Acredito que és sincero, pois não me iludo com a música das belas frases.

E rematou:

— Todos os dias, nas minhas preces, imploro a proteção e a misericórdia de Deus! Louvado seja Alá, que fez da boa mulher a esposa perfeita, e da esposa perfeita a companheira ideal! Alá seja louvado!
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Notas
1 Saida = Cidade da Argélia. Não confundir com Saida (Sídon), do Líbano.

2 Cádi = Em árabe pronuncia-se cáadi. Quer dizer juiz.

3 Ben-Najm = filho de Najm. Se “Najm” fosse uma tribo ou uma família, seria: Iben-Najm.

4 Beduíno = Habitante do deserto.

5 Livro de Alá =Trata-se do Alcorão. Alá é Deus. Portanto, refere-se ao Livro de Deus ou Livro da Lei. No início de certas suratas (ou capítulos) apresenta o Alcorão letras misteriosas para as quais os exegetas mais sábios não acharam explicação.

6 Khalfallah = Cidade da Argélia.

7 Irmão dos árabes = Tratamento carinhoso.

8 Maalif = Lugarejo perto de Khalfallah.

9 Raque = Haste fina; muito forte. Serve de palito.

10 Najat = Nome árabe feminino. Leia-se Najá. Significa: “aquela que foi salva.” No Líbano existe “Saidá te — Anajá”, que significa “Nossa Senhora da Salvação”.

11 bint-Djelfa = Natural (filha) de Djelfa.

12 fustam = Vestido, traje feminino.

13 justo cádi = O árabe não se refere a um cádi sem preceder esse honrado título do qualificativo “justo”.

14 Oran = Cidade da Argélia.

15 Jamil = significa belo.

16 Blida = Cidade da Argélia.

17 Kubros = Chipre, ilha do Mediterrâneo.

18 Salam = Saudação árabe.

19 Tomo Alá como testemunha de minhas palavras = Essa expressão equivale à seguinte: “Juro por Deus que é verdade tudo aquilo que vou dizer.”

20 Ain-Taya = Pequeno porto de Argel.

21 Sidi = Senhor. Homem de prestígio pela idade ou pela fortuna.

22 Ulemá = Sábio. Homem douto.

23 kichk = Prato árabe, feito de trigo, carne e coalhada.

24 Xeique = Chefe, pessoa de prestígio. No Líbano e na Síria (antes da guerra) era o título concedido aos que não pagavam impostos.

25 hena – As mulheres árabes, de fino trato, pintam de henna (trato especial) as unhas, as palmas das mãos e os pés.

26 Café de Adem – Café Moca.

27 Bechara = Significa “boa notícia”.

28 Ordens de ouro = Colares.


Fonte:
Malba Tahan. Novas Lendas Orientais.

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Varal de Trovas n. 346

 

Moacyr Scliar (Zap)


Não faz muito que temos esta nova TV com controle remoto, mas devo dizer que se trata agora de um instrumento sem o qual eu não saberia viver. Passo os dias sentado na velha poltrona, mudando de um canal para outro - uma tarefa que antes exigia certa movimentação, mas que agora ficou muito fácil. Estou num canal, não gosto - zap, mudo para outro. Não gosto de novo - zap, mudo de novo. Eu gostaria de ganhar em dólar num mês o número de vezes que você troca de canal em uma hora, diz minha mãe. Trata-se de uma pretensão fantasiosa, mas pelo menos indica disposição para o humor, admirável nessa mulher.

Sofre, minha mãe. Sempre sofreu: infância carente, pai cruel etc. Mas o seu sofrimento aumentou muito quando meu pai a deixou. Já faz tempo; foi logo depois que nasci, e estou agora com treze anos. Uma idade em que se vê muita televisão, e em que se muda de canal constantemente, ainda que minha mãe ache isso um absurdo. Da tela, uma moça sorridente pergunta se o caro telespectador já conhece certo novo sabão em pó. Não conheço nem quero conhecer, de modo que - zap - mudo de canal. "Não me abandone, Mariana, não me abandone!" Abandono, sim. Não tenho o menor remorso, em se tratando de novelas: zap, e agora é um desenho, que eu já vi duzentas vezes, e - zap - um homem falando. Um homem, abraçado à guitarra elétrica, fala a uma entrevistadora. É um roqueiro. Aliás, é o que está dizendo, que é um roqueiro, que sempre foi e sempre será um roqueiro. Tal veemência se justifica, porque ele não parece um roqueiro. É meio velho, tem cabelos grisalhos, rugas, falta-lhe um dente. É o meu pai. É sobre mim que fala. Você tem um filho, não tem?, pergunta a apresentadora, e ele, meio constrangido - situação pouco admissível para um roqueiro de verdade -, diz que sim, que tem um filho, só que não o vê há muito tempo. Hesita um pouco e acrescenta: você sabe, eu tinha de fazer uma opção, era a família ou o rock. A entrevistadora, porém, insiste (é chata, ela): mas o seu filho gosta de rock? Que você saiba, seu filho gosta de rock? Ele se mexe na cadeira; o microfone, preso à desbotada camisa, roça-lhe o peito, produzindo um desagradável e bem audível rascar. Sua angústia é compreensível; aí está, num programa local e de baixíssima audiência - e ainda tem de passar pelo vexame de uma pergunta que o embaraça e à qual não sabe responder. E então ele me olha. Vocês dirão que não, que é para a câmera que ele olha; aparentemente é isso, aparentemente ele está olhando para a câmera, como lhe disseram para fazer; mas na realidade é a mim que ele olha, sabe que em algum lugar, diante de uma tevê, estou a fitar seu rosto atormentado, as lágrimas me correndo pelo rosto; e no meu olhar ele procura a resposta à pergunta da apresentadora: você gosta de rock? Você gosta de mim? Você me perdoa? - mas aí comete um erro, um engano mortal: insensivelmente, automaticamente, seus dedos começam a dedilhar as cordas da guitarra, é o vício do velho roqueiro, do qual ele não pode se livrar nunca, nunca. Seu rosto se ilumina - refletores que se acendem? - e ele vai dizer que sim, que seu filho ama o rock tanto quanto ele, mas nesse momento – zap - aciono o controle remoto e ele some. Em seu lugar, uma bela e sorridente jovem que está - à exceção do pequeno relógio que usa no pulso - nua, completamente nua.

Fonte:
Moacyr Scliar. Contos reunidos. Publicado em 1995.

A. A. de Assis (Maringá Gota a Gota) Doutor Luiz, Um Homem Justo


Segunda metade da década de 1960. O prefeito era o Doutor Luiz Moreira de Carvalho, médico, nascido mineiro em Divisa Nova, pioneiro maringaense aqui chegado em 1949. A prefeitura funcionava ainda no prédio antigo, na esquina das avenidas Getúlio Vargas e 15 de Novembro.

Num certo dia lá chegou solicitando audiência com o prefeito um famoso ator que na época fazia sucesso no cinema e nas primeiras produções da televisão brasileira. Virou festa o paço. Funcionários e outras pessoas que no momento estavam no local se alvoroçaram pedindo autógrafos. Doutor Luiz foi informado, mandou o moço entrar e o recebeu com as devidas honras.

O ator estava na cidade para apresentar uma peça de teatro e queria um favorzinho, não me lembro se um patrocínio ou isenção de algum imposto ou taxa. O prefeito perguntou se o espetáculo seria público ou em recinto fechado, com ingresso pago. Sim, o ingresso seria pago, explicou o galã.

Doutor Luiz coçou os fartos bigodes, deu um sorriso meio encabulado, pegou a garrafa térmica na mesa ao lado, serviu um cafezinho ao visitante. Em seguida, com aquele vozeirão de Herón Domingues, caprichou na diplomacia: “Pois é, meu jovem, sou um admirador seu, aprecio muito o seu talento artístico, porém lamento não poder atendê-lo. Como o senhor sabe, lido com dinheiro do povo, que como tal só pode ser gasto quando em benefício da coletividade”.

Continuou: “Se o senhor fosse um artista amador residente em Maringá, e sua apresentação fosse feita com entrada livre, tudo bem. Mas o senhor é um ator profissional e vai receber justa remuneração pelo seu belo trabalho; portanto, como qualquer outro profissional, estará sujeito às normas fiscais vigentes no município. Desse modo, peço que me desculpe, mas não tenho como deferir seu pedido”.

O moço se levantou, deu um abraço no prefeito, respondeu: “Doutor, o senhor acaba de me dar uma grande lição de civismo. Não vou jamais esquecer isso. O senhor tem toda a razão e quem pede desculpa sou eu. Se me permite, vou lhe deixar dois ingressos de cortesia. Será uma honra enorme tê-lo na plateia, juntamente com sua esposa”.

Doutor Luiz agradeceu: “Aceito com alegria, mas faço questão de pagar, como qualquer outro espectador”.

Puxou a carteira, fez o pagamento e pediu um autógrafo do ilustre.
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(Crônica publicada no Jornal do Povo – Maringá – 9-7-2020)

Fonte:
Texto enviado pelo autor.

Fabiano Wanderley (Baú de Trovas)


Ao homem, na sua essência,
diante a sua fraqueza,
deu-lhe Deus, com sapiência,
por amparo a fortaleza!
- - - - - –

Ao ver a morte estampada,
na face de uma criança,
vê-se, ali, riste, ceifada,
para sempre uma esperança.
- - - - - –

Até mesmo o passarinho,
deixa a seca, a região,
para formar novo ninho,
onde houver fartura em grão
- - - - - -

Cansado, depois da lida,
no campo, ao anoitecer,
nos dá uma lição de vida,
o pobre aprendendo a ler.
- - - - - –

Com frases que vem do peito,
meu coração se declara
ao verso mais que perfeito:
— A trova, esta joia rara!
- - - - - -

Como que por acalanto,
descerra a noite o seu véu.
Cobre a terra, com seu manto,
expondo estrelas no céu!
- - - - - –

Desista, irmão dessa guerra,
abrace a paz benfazeja,
pois, a vida, enfim se encerra,
onde o combate sobeja.
- - - - - –

Desisti das minhas lutas,
nos sufrágios, com cautelas,
vou votar nas prostitutas,
me cansei, dos filhos delas...
- - - - - –

Deus com sua sapiência,
rima pra Mãe não criou,
preservando, em sua essência,
a pureza ao seu louvor.
- - - - - –

Eis a serra majestosa!
Na natureza, um painel...
— Imponente, imperiosa,
altiva, buscando o céu!
- - - - - –

Ela vem com seu achaque,
nossa paz ela degreda,
a sogra é que nem conhaque:
— Aos poucos ela embebeda!
- - - - - –

Em noite de lua cheia,
envolto a tanto esplendor,
um poeta galhardeia,
versando trovas de amor.
- - - - - –

É uma alegria, incontida,
o nascer do filho amado,
que pelo amor, fez-se vida,
no seio mater, gerado.
- - - - - -

Gaivota! Um doce voar.
Com tua excelsa beleza,
quando pairas, frente ao mar,
és eterna realeza!
- - - - - -

Não podia acontecer!
Do verbo, qual seu conceito?
Diz Juquinha, sem temer:
— Preservativo imperfeito!
- - - - - –

Na roça, o suor do rosto,
mostra todo o ardor da lida.
e nesse cansaço, exposto:
— Uma esperança de vida!
- - - - - –

No plenilúnio, na noite,
do aconchego dos seus ninhos,
vem a lua como açoite,
aclarar os passarinhos!
- - - - - –

No voo, a linda craúna,
com graça e simplicidade,
entoa, por sobre a duna,
seu canto de liberdade.
- - - - - –

O bombeiro, seu Clemente,
no boteco faz seu jogo.
Lá se apaga na aguardente,
combatendo o próprio fogo!
- - - - - –

O fogo traz, seus horrores,
queimada, é devastação,
onde havia vida e cores,
há tristeza e solidão.
- - - - - -

O jardim perdeu as cores,
todo o belo feneceu;
as rosas, sem seus olores,
tal qual o destino meu...
- - - - - -

Para que tenhamos paz,
devemo-nos dar as mãos,
Na vida, nunca é demais,
o afago amigo, um irmão!
- - - - - -

Pelos caminhos da lida,
quantos castelos ergui...
— E esses sonhos, pela vida,
com trabalho os consegui!

Por ser um real tormento,
indefinível ao pintor
e um sublime sentimento:
– A saudade não tem cor!
- - - - - –

Por volúpia ou por feitiço,
todo amor se faz mister,
no encantamento e no viço,
dos braços de uma mulher.
- - - - - –

Quando a lua prateada,
resplandece na amplidão,
faz da trova uma morada,
em forma de inspiração.
- - - - - –

Quando a queimada ameaça
a vida, sem complacência,
a mata, pela fumaça,
vai aos céus pedir clemência.
- - - - - –

Quantas vezes, eu criança,
teus versos, Pai, eu ouvia;
hoje eu guardo a tua herança:
— O régio dom da poesia.
- - - - - –

Relógio que sempre atrasa
e um homem que não garanta,
de nada servem pra casa,
nenhum dos dois, adianta!
- - - - - –

Se a vida, traz cicatrizes
por algo, que nos aporte,
pelos meus dias felizes,
agradeço a Deus, a sorte,
- - - - - –

Se os bons ventos são bem vindos,
por trazer-nos, sempre o bem,
que levem após, advindos,
os nossos males também...
- - - - - –

Só a idade evidencia,
os anos da nossa essência,
nos dando a sabedoria,
consolidando a existência.
- - - - - –

Tendo a trova, como canto,
o poeta, em oração,
põe em versos, todo encanto,
da mais sublime expressão!
- - - - - –

Tens meiguice e sedução,
tens, oh! Mãe, tanta bondade,
és de Deus a criação,
que concebe a humanidade.
- - - - - –

Uma nasce pra titia,
outra varre os assoalhos.
Mulher feia e ventania,
só servem pra quebra-galhos.

Fonte:
Fabiano de Cristo Magalhães Wanderley. Versos Di Versos. Natal/RN, 2014.

Figueiredo Pimentel (O Afilhado do Diabo)

 
O sr. Aleixo Pitada era um homem honrado e bom, estimado, por todos que o conheciam, e vivendo sozinho, num recanto, com sua mulher e seus numerosos filhos. O pobre velho trabalhava na roça todo o santo dia, plantando legumes e tratando das frutas, e, aos domingos, vinha com o tabuleiro de quitanda, à cidade, para vender a sua mercadoria.

A mulher, que se chamava Engrácia, fazia o serviço da casa; ia ao mato cortar lenha, e à noite ainda ajudava o marido, descascando o feijão e amarrando os molhos de vagens. Apesar de trabalharem assim, tanto, passavam mal, viviam na maior miséria, e nunca tinham dinheiro para comprar o que precisavam, havendo até dias que nem tinham pão para os filhos.

– Olha, Engrácia; não podemos dar sustento a nossos filhos, senão trabalhando mais que um boi de canga. Por conseguinte, se viermos a ter mais algum, levá-lo-ei para a cidade, um domingo, quando for vender quitanda, e dá-lo-ei a quem quiser aceitá-lo, mesmo ao diabo, se ele me aparecer.

– Não digas isso, Aleixo, olha, que não será mais uma boca que nos virá atrasar a vida.

– Já te disse, mulher; se nascer mais algum filho, dá-lo-ei a quem quiser. Até ao diabo, repito.

Meses após tiveram outro filho; e, no domingo seguinte, quando o homem foi levar a quitanda ao mercado, a mulher vestiu o pequeno e entregou-o ao marido. Assim que Pitada chegou à cidade, encontrou na entrada da rua que ia dar ao mercado um cavalheiro bem vestido, perguntando o que era aquilo no braço.

– É um filho que minha mulher teve há uma semana, meu nobre senhor, e eu trouxe o pequerrucho para ver se alguém quererá ficar com ele. Sou muito pobre, e não posso sustentar meus filhos. São tantos, que resolvi dar os que vierem a nascer a quem os quiser.

– Pois eu aceito o menino, bom homem. Se tens que o dar a outro, dá-me, que cuidarei bem dele.

O pai entregou a criança, e depois de vender toda a quitanda voltou para casa muito satisfeito por ter encontrado facilmente um homem, tão distinto, de tão belas maneiras, que lhe pedisse o pequerrucho.

Chegando a casa, contou tudo à esposa, que exclamou:

– Que Deus o proteja, e faça dele um bom cristão!
***

O cavalheiro que tinha tomado o menino para criar era o diabo, que ouvira toda a conversa do casal, e viera buscar a criança. O menino vivia muito contente no palácio de seu protetor, onde nada lhe faltava, divertindo-se bastante, porque passeava e brincava em todos os lugares.

Notava, porém, que seu padrinho (como, ele chamava Satã), nunca lhe havia mostrado três quartos existentes no palácio, que estavam sempre fechados, e nos quais nunca tinha entrado. Mas, como o respeitava muito, jamais desejou entrar naqueles aposentos, que tanto despertavam a sua curiosidade.

Uma vez o diabo, indo fazer uma viagem, chamou o menino, que então já tinha quinze anos, e disse:

– Vou dar um passeio, e como me demoro alguns dias, deixo contigo as minhas chaves. Podes correr o palácio todo à exceção destes três quartos onde não deves entrar, o que te proíbo expressamente.

Demorou-se Satã fora do palácio quase um mês; e quando voltou pediu as chaves ao menino, que as entregou sem receio, pois tinha cumprido fielmente ordens recebidas. Passado um tempo, fez uma segunda viagem e, antes de partir, entregou ao afilhado chaves com a mesma recomendação.

Mas o rapaz, desta vez não pôde conter a sua curiosidade, e supondo que o padrinho nunca viesse a sabê-lo, foi abrir os quartos. Descerrando a porta do primeiro, ficou deslumbrado. Era um quarto todo forrado de cobre, transformado numa estrebaria, também de cobre, onde se via um cavalo castanho muito lindo, e que corria muitíssimo.

Entrando no segundo aposento, mais deslumbrado ficou: viu outro quarto todo de prata, e uma estrebaria também de prata, onde comia um cavalo branco, mais bonito e mais veloz que o castanho, o primeiro.

Entrou no terceiro compartimento, e não pôde conter um grito de surpresa. Era todo ele de ouro, e também a estrebaria, na qual estava comendo um cavalo preto mais bonito ainda que os anteriores, e que não corria: voava.

Aqueles três cavalos eram encantados.

O castanho chamou-o, e disse-lhe que não tinha tempo a perder, porque o diabo ia chegar da viagem; e, se o encontrasse ali, era capaz de matá-lo.

O menino ficou com muito medo, mas o cavalo recomendou:

– Vá à cozinha e embrulhe um pedaço de sabão num papel, noutro alfinetes, ponha um pouco de água em um vidro e venha ter comigo depressa. Mas não se demore, senão não respondo por sua vida.

O mocinho fez tudo aquilo, e quando voltou, o animal tornou a falar:

– Agora entre no quarto de ouro, porque ao sair estará dourado, e monte em mim, que quero salvá-lo.

O diabo, ao chegar, não encontrou o afilhado. Correu para os quartos e não vendo o cavalo castanho, compreendeu que o menino fugira.

Montou no cavalo preto e, como havia vento, voou, avistando-o horas depois. Assim que o castanho se viu perseguido pelo seu dono, que já estava perto, disse para o menino:

– Depressa, jogue o papel com sabão!...

Apareceu imediatamente um morro de sabão muito alto, que o cavalo não podia subir, pois escorregava.

O diabo voltou para casa, aborrecido, mas de repente lembrou-se que, se tivesse levado uma faca, bastaria para cortar o sabão para poder passar. Montou novamente e, quando já o ia alcançando, o castanho disse:

– Depressa, jogue o vidro com água, senão estamos mortos!...

Transformou-se o vidro em grande lagoa, e Satã, vendo tanta água, voltou com medo de se afogar. Chegando à casa lembrou-se que com o poder que tinha, podia fazer desaparecer a lagoa.

Tomou de novo o cavalo e voou em perseguição do fugitivo, e quando lá chegou não encontrou mais lagoa alguma.

Foi voando, até que chegou a vê-los de novo.

O castanho, assim. que sentiu a aproximação do diabo, disse:

– Atire os alfinetes, senão estamos perdidos...!

O menino fez o que aconselhava o seu cavalo e viu ,formar-se atrás de si um espinheiro tão cerrado que ninguém podia passar. O diabo, na fúria de pegar a criança, quis romper à força o espinheiro, ficou preso, e de tanto se debater para sair, morreu todo espetado.
***

Os outros dois cavalos foram ao encontro do menino, e depois de andarem muito chegaram à capital do reino, onde governava um rei poderosíssimo. Este rei tinha uma filha chamada princesa Aurora.

Quando ela viu aquele moço dourado, ficou apaixonada, e foi dizer ao pai que se casaria com ele, custasse o que custasse. Sua Majestade recusou-se terminantemente, porquanto o moço não era filho de rei, nem mesmo fidalgo. E receando que Aurora ficasse ainda mais apaixonada ordenou que os soldados formassem um grande quadrado, o colocassem no centro e o fuzilassem.

A princesa, sabendo daquela ordem, pediu-lhe que não fizesse aquilo, porque seria a morte do mancebo, que não poderia escapar a tantas balas. O soberano recusou-se, e as suas ordens foram executadas fielmente.

O moço pediu, antes de entrar no quadrado, que o deixassem morrer montado no seu cavalo:

Deu-se a voz de preparar ... apontar... e partiram os tiros. Aurora, ouvindo aquele estampido, teve um ataque e desmaiou.

Assim que a fumaça se dissipou, viu-se o moço dourado montado no cavalo preto, voando, do outro lado do quadrado.
***

O monarca, em vista daquele caso extraordinário, verdadeiro milagre, estupendo, inaudito, consentiu no enlace, compreendendo que não tratava de uma pessoa vulgar. Assim, pouco depois celebrou-se o casamento e logo que o padre abençoou o casal, viram-se três pombos brancos voando pelo céu em fora.

Eram os três cavalos que iam para o céu, já que o moço dourado não precisava mais da proteção deles.

Fonte:
Alberto Figueiredo Pimentel. Histórias da Avozinha. Publicado em 1896.

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

Varal de Trovas n. 345

 

Aparecido Raimundo de Souza (Comédias da Vida na Privada) Parte Sete


QUESTÃO DE PURA LÓGICA

 

O PROFESSOR EVERALDO, da cadeira de matemática ergue com as duas mãos uma folha branca de papel, dessas A-4, e a exibe a seus alunos. Em seguida, pergunta para o Carlinhos, o guri sentado numa das carteiras logo à frente:

— Carlinhos, se eu dividir esta folha de papel em dois pedaços, com o que é que eu fico?

Carlinhos prontamente se levanta e responde:

— Com duas bandas ou duas metades, professor.

— Perfeito. Sandrinho, sua vez. Se eu dividir esta folha em quatro pedaços, com o que é que eu fico?

— O senhor ficará com quatro pedaços, ou quatro metades, professor.

— Ok. Toninho, a mesma indagação vai pra você. Se eu dividir esta folha que está aqui em seis pedaços, quantas partes terei?

— Seis partes, professor, ou seis metades.

— Muito bom, Toninho, muito bom.

O professor Everaldo pega uma segunda folha de papel igual a primeira e insiste na pergunta, agora ao menino Marcelinho:

— Marcelinho, e se eu dividir esta outra folha, ou melhor, se eu recortá-la com a tesoura. — Faz uma pausa, passa a mão na tesoura sobre a mesa — Repetindo, Marcelinho: se eu pegar esta folha e a dividir em oito pedaços iguais, quantos partes terei?

Marcelinho se levanta, pensa um pouco antes de responder:

— E então, Marcelinho, estou esperando. Qual é a sua resposta?

— Oito partes, professor, ou oito metades.

— Bravo, Marcelinho. Pode sentar. Estou vendo que meus alunos, a cada dia se esmeram em aprender a minha matéria. Estão mais confiantes, mais atenciosos. Para falar a verdade, estou gostando de ver.

Após estas palavras elogiosas, o professor volta a recortar a folha  em dez pedacinhos exatamente do mesmo tamanho:

— Bebel, minha linda, sua vez. Como pode ver, cortei a folha de papel em dez pedaços iguais. Vou repetir a pergunta que fiz anteriormente a seus coleguinhas. Pronto. Aqui está. Dez pedaços. Diga, minha princesa, com quantas partes fiquei?

Bebel se levanta de um salto e manda a primeira coisa que lhe vem à cabeça:

— Professor Everaldo, os cortes que o senhor fez aí são iguais?

O professor Everaldo estranha a pergunta, todavia, acha melhor esclarecer a dúvida trazida e deixar a menina em paz com a sua controvérsia:

— Claro, Bebel. Qual a sua dificuldade?

— É que olhando daqui, professor, essas tirinhas parecem diferentes umas das outras.

— Bebelzinha, são iguais.

— O senhor quer dizer, do mesmo tamanho?

— Sim, Bebel. Então, minha garotinha do coração: qual a sua resposta?

— Que resposta, professor?

— Com quantas partes eu ficarei?

— Bem, se o senhor está dizendo que a folha foi repartida em dez partes iguais, o senhor terá um total de dez partes, ou dez metades, ou dez oitavos.

O professor Everaldo sorri:

— Muito bem, Bebel, muito bem.

Assim, nessa ordem segue o professor repetindo idêntica aventura com as folhas A-4. Cada novo aluno chamado, subia o valor dos" despedaços". De posse de uma terceira folha, rasga-a em doze. Ato contínuo, em quatorze e dezesseis. Depois, cada vez em tirinhas menores, separa em dezoito, vinte, vinte e duas, vinte e quatro, vinte e seis, vinte e oito e, finalmente, dilacera em trinta fatias.

Chega a vez do pior aluno da turma. O Emanuelito Bocó. Emanuelito Bocó, além de chato e pedante, tedioso e sem noção, gosta de aparecer, o que faz o professor sair totalmente do sério, ficar irritado e terminar a aula abruptamente querendo mandar todo mundo para o inferno. Entretanto, Emanuelito Bocó faz parte da sua classe. Se não o chamar, terá problemas futuros não só com o Bocó, aluno, igualmente a galera da coordenação cairá feio sobre seus costados:

— Emanuelito, como pode ver, dividi esta A-4 em trinta partes. A pergunta que farei, se prestou atenção à minha aula é, sem tirar nem pôr, a que formulei aos seus demais coleguinhas aqui presentes. Consegui compartimentar na frente de todos esta folha em trinta pequenos estilhacinhos. Quase não consegui. Mas tudo bem. Aqui estão as trinta lasquinhas daquela folha de papel em branco. Com quantos quartos, ou com quantos oitavos eu fiquei?

— O senhor quer que eu fale só dos quartos?

— Por certo, Emanuelito.

— O senhor não vai perguntar depois, pelos banheiros, salas e cozinhas?

— Emanuelito, por favor. Não complique. Estamos tratando de quartos. Quartos!

Emanuelito Bocó, insiste, sorriso desdenhoso no rosto magro. Segue desafiando o pobre mestre:

— Eu sei professor. Mas onde tem quartos, costuma ter salas, varandas, dependências de empregada...

O professor Everaldo a partir daí começa a ficar perturbado e a tremer as mãos:

— Emanuelito, meu filho. Quartos. Piquei a folha A-4 em branco em trinta pedacinhos. Vamos lá. Com quantos quartos fiquei?

— Eu estou na dúvida, professor... Acho que até agora todo mundo aqui respondeu errado à sua pergunta.

— Emanuelito, vou ser mais claro. Esquece os seus coleguinhas, deleta os quartos, etc., etc. Vamos nos enveredar por outra ótica. Se eu rasgar, ou dito de forma mais objetiva, para você me entender... Se eu dividir esta folha em cem ou duzentos pedacinhos, o que terei?

Zombando descaradamente do professor, o moleque manda a pancada final:

— Bem, nesse caso, o senhor não terá nem quartos, nem salas, ou varandas. Menos ainda bandas, metades ou partes, ou pior oitavos. De onde o senhor e a Bebel tiraram o tal do oitavo?! No meu entender, se o senhor rasgar essa folha em trinta, ou cem, ou duzentos pedacinhos, não importa o número, terá sim um montão de papeizinhos picados pra jogar no lixo!

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. Comédias da vida na privada. RJ: Editora AMC-Guedes, 2020.
Texto enviado pelo autor.

José Lucas de Barros (Caderno Poético) II

 

CONSELHO DE AMIGO

Não lamentes, amigo, a sorte dura!
Solta esse copo e sai do botequim!
O amor é forte, mas também tem fim,
e um dia seca o lago da amargura.

Também já fui apaixonado assim!
Como tu, já sofri essa tortura...
Fui vítima também da desventura
de amar demais a quem sorriu de mim!

Minha amada também era morena...
Nos lábios tinha o riso da verbena
e um ninho de paixões ardendo ao peito.

Essa mulher traiu-me… E, por vingança,
eu tentei arrancá-la da lembrança,
mas nunca pude... E vivo satisfeito.

(Caicó/RN, 1956)
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MEU BEM-TE-VI


Do meu tempo de menino,
recordo saudosamente
um bem-te-vi que, contente,
improvisava seu hino
no juazeiro pequenino
que muito perto ficava
do mocambo onde eu morava
e escutava, com alarde,
o canto que toda a tarde
nos prados se derramava.

O tempo lerdo e ronceiro
foi passando, foi passando,
e eu feliz me deleitando
com a voz do belo troveiro;
porém houve um paradeiro
naquele terno cantar,
quando eu triste, a meditar,
perguntava até às relvas:
- Por que o músico das selvas
Deixou de me visitar?

Farto de sofrer sozinho,
mergulhei na mata um dia
para ver se ainda ouvia
o trinar do passarinho;
visitei ninho por ninho,
mas a esperança perdi
quando comprovei que, ali,
alguns meninos, em festa,
com mil flechadas de besta*
mataram meu bem-te-vi!

(Serra Negra do Norte/RN, 1955)
________________________________
(*) Besta (pronúncia aberta) é uma arma rústica formada de arco, cabo e
corda com que se disparam setas ou flechas.

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O ABORTO

Duas pessoas,
talvez se amando,
emocionadas
de tantos beijos,
cantam poemas
de encantamento,
e nem se lembram
que estão gerando
um novo ser
que também sonha
cantar um dia
o hino da vida,
como seus pais.
Só não se entende
que dos enlevos
de encantadoras
horas de amor
nasça depois
a ideia-crime
do triste aborto
que faz morrer
pobre inocente,
sem ter ainda
sequer nascido!

(Natal/RN, 1990)
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VIDA DE CIGANO


Vive o cigano a vagar
como eterno retirante,
um pobre judeu errante
sem esperança e sem lar;
não tem casa pra morar
durante um simples verão;
o seu travesseiro é o chão,
onde se estende arrasado...
Cigano velho cansado
Nas estradas do sertão!

Entre pedras e buracos
anda o pobre peregrino,
carregando, sem destino,
sua mobília de cacos;
na solidão dos barracos
inda existe o violão
que plange a triste canção
do trovador do passado,
cigano velho cansado
nas estradas do sertão!


Tem ele a pele tostada
do forte sol que o castiga;
na face, toda a fadiga
da longa e dura jornada;
já não ganha quase nada
numa leitura de mão.
É sempre a desilusão
que não sai mais de seu lado...
Cigano velho cansado
Nas estradas do sertão!


Montando a cavalgadura
que já não dá mais um trote,
só parece Dom Quixote
com sua triste figura;
se algum negócio procura
para conquistar o pão,
inda o chamam de ladrão,
de trapaceiro e safado,
cigano velho cansado
nas estradas do sertão!


Ao rigor da luta inglória
por desgraçados caminhos,
colheste muitos espinhos
sem os louros da vitória,
porém, nos anais da História,
desta civilização,
com certeza, meu irmão,
teu nome será lembrado,
cigano velho cansado,
nas estradas do sertão!


(Natal/RN, 1985)

Fonte:
José Lucas de Barros. Pelas trilhas do meu chão. Natal/RN: CJA Ed., 2014

Stanislaw Ponte Preta (Testemunha Ocular)


Ele estava no aeroporto. Acabara de chegar e ia tomar o avião para o Rio. Sim, porque esta história aconteceu em São Paulo. Ele acabara de chegar ao aeroporto, como ficou dito, quando viu um homem que se dirigia com passos largos, pisando duro, em direção à moça que estava ao seu lado, na fila para apanhar a confirmação de viagem. O sujeito chegou e não falou muito. Disse apenas:

— Sua ingrata. Não pense que vai fugir de mim assim não — e, no que disse isso, tacou a mão na mocinha. Essa não era tão mocinha assim, pois soltou um xingamento desses que não se leva para casa nem quando se mora em pensão. E lascou a bolsa na cara do homem. Os dois se atracaram no mais belo estilo vale-tudo e ele — que assistia de perto — tentou separar o belicoso casal. Houve o natural tumulto, veio gente, veio um guarda e a coisa acabou como acaba sempre: tudo no distrito.

Tudo no distrito, inclusive ele, que já ia tomar o avião, mas que teve de ir também, convocado pela autoridade na qualidade de testemunha ocular.

Em frente à mesa do comissário (um baixinho de bigode, doido para acabar com aquilo) o casal continuou discutindo e o homem mentiu, afirmando que fora agredido pela mulher. Ele — muito cônscio de sua condição de testemunha ocular — protestou:

— Não é verdade, seu comissário. Eu vi tudo. Foi ele que avançou para ela e deu um bofetão.

— CALE-SE!!! — berrou o comissário.

— Mas é que.. .

— CALE-SE!!! — tornou a berrar o distinto policial, com aquele tom educado das autoridades policiais.

Ele calou-se, já lamentando horrivelmente ter sido arrolado como testemunha ocular. Ficou calado, preferindo que todos se esquecessem de sua presença, e ia-se dando muito bem com esta jogada até o momento em que a mulher que apanhara apontou para ele e disse para o comissário:

— Se esse cretino não se tivesse metido, não tinha acontecido nada disto.

— Eu??? — estranhou ele, apontando para o próprio peito.

— O senhor mesmo, seu intrometido.

— Mas foi ele quem a agrediu, minha senhora.

— Mentira — berrou o homem. — Eu apenas fui lá para impedir o embarque dela para a casa dos pais. Tivemos uma briguinha sem importância em casa e ela, coitadinha, que anda muito nervosa, quis voltar para a casa dos pais. (Dito isto, abraçou a mulher que pouco antes chamara de ingrata e premiara com uma bolacha. Ela se aconchegou no abraço, a sem-vergonha.)

E ele ali, num misto de palhaço e testemunha ocular. Quis apelar para o guarda que o trouxera, mas este já retornara ao posto. Estava a procurá-lo com um olhar circulante pela sala, quando ouviu o comissário mandando o casal embora.

— Tratem de fazer as pazes e não perturbar em público.

O casal agradeceu e saiu abraçado, tendo a mulher, ao virar-se, lançado-lhe um olhar de profundo desprezo. E, quando os dois saíram, virou-se para o comissário e sorriu:

— Doutor, palavra de honra que eu...

Mas o comissário cortou-lhe a frase com um novo berro. Em seguida aconselhou-o a não se meter mais em encrencas por causa de briguinhas sem importância entre casais em lua-de-mel.

— Eu só vim aqui para ajudar — admitiu ele, com certa dignidade.

— CALE-SE!!! — berrou o comissário: — E some daqui antes que eu o prenda...

Não precisou ouvir segunda ordem. Apanhou a valise e saiu com ódio de si mesmo. "Bem feito" — ia pensando — "que é que eu tinha que entrar nessa encrenca?" Entrou em casa chateado, ainda mais porque perdera o avião e a hora em que tinha de estar no Rio para assinar as escrituras com o corretor. Tratou de afrouxar o laço da gravata e pedir uma ligação interurbana, a fim de dar uma explicação ao patrão.    

Somente no dia seguinte retornou ao aeroporto para fazer a viagem. Saiu de casa cedo e foi para a esquina apanhar um táxi. Foi quando houve o assalto. Ia passando por um café quando três sujeitos saíram lá de dentro, atirando a esmo, para abrir caminho. Ele — coitado — ficou entre os três, com a mão na cabeça sem saber se corria ou se encolhia. Os assaltantes entraram num carro que já os aguardava de motor ligado e sumiram no fim da rua. Logo acorreram pessoas de todos os lados, na base do que foi, do que não foi. Um guarda tentava saber o que acontecera, quando um senhor gordo, que parecia ser o dono do bar assaltado, apontou para ele e disse:

— Seu guarda, esse homem viu tudo. Os assaltantes passaram por ele.

O guarda se encaminhou para ele e perguntou:

— O senhor viu quando eles deram os tiros?

E ele, com a cara mais cínica do mundo:

— Tiros? Que tiros???

Fonte:
Stanislaw Ponte Preta. Dois amigos e um chato. Ed. Moderna, 1996

terça-feira, 11 de agosto de 2020

Luto em Família

 

Em virtude do falecimento do pai de minha "exposa", Aparecido Topan, em Ubiratã/PR,        aos 88 anos, não haverão postagens hoje.

Conto com vossa compreensão.

José Feldman


segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Varal de Trovas n. 344

 

Dorothy Jansson Moretti (Pra Ver a Banda Passar)


Tenho lido neste jornal colunas e editoriais que dizem que se pretende criar (ou recriar) a banda em Itararé.

Que alegre notícia! Em minha opinião as bandas são um grande encanto das cidades do interior. Conheci tantas! Morei treze anos em Sorocaba, famosa por suas extraordinárias corporações musicais, a cujos concertos nas praças jamais deixei de assistir.

Sempre adorei ver a banda passar. Recuo no tempo aos meus cinco ou seis anos de idade, quando o Professor Miguel, meu cunhado, era regente da Lira Itarareense. A banda era um espetáculo! Ele era muito competente, tinha muito bom gosto e dentre as belas peças que seus músicos executavam, destacavam-se muitas de suas lindas composições; marchas, foxes, valsas, mazurcas, polcas, sambas, chorinhos, batucadas, maxixes...

Fato pitoresco: quando ele namorava minha irmã Sílvia, a banda parava em nossa esquina para fazer serenata. Os músicos perfilavam-se de frente para a casa de Seu Durval, dando as costas à nossa casa, artifício para despistar e evitar encrencas com meu pai, futuro sogro que — como todo pai que se prezava naquela época — era uma "fera"!

Eu não perdia uma passada da banda. Ao ouvir os primeiros acordes, corria para a calçada c ficava olhando até ela desaparecer numa esquina, morrendo de vontade de juntar-me aos moleques que a seguiam, marchando atrás.  

Sob a regência de Seu José Melillo, já mocinha, eu assistia aos concertos no velho coreto. (Por que o tiraram de lá? Era tão tradicional, tão relíquia!)
 
Nunca esqueci de um 1. de Maio, em que minha mãe, Gustavo, Linéa e eu fomos acompanhar meu irmão Antônio à estação, onde ele ia tomar o trem, de volta à sua cidade. Era madrugada e a banda de Seu Melillo estava fazendo alvorada. Ao passar pela Rua Quinze, tocava uma linda marcha cujas primeiras notas eram;
MI-FÁ-SOL LA-SOL-MI RE-DO-MÍ...

Qual era o nome dessa marcha? Gostaria tanto de saber! Ficou gravada em minha memória para sempre.

Lembro-me também das Sextas-feiras Santas e das músicas lentas e fúnebres nas procissões. Na madrugada do encontro de Maria com Jesus, a gente acordava com a música. Abria-se a janela e ficava-se apreciando. Seria por isso que a Semana Santa naquele tempo tinha mesmo uma cara de Semana Santa ?!

Em todas as festas de escola, em todas as reuniões cívicas ou sociais, lá estava a banda para animar a gente e dar o seu toque festivo.

Tomara que esse novo (ou velho?) sonho de Itararé logo se concretize! Quero voltar à nossa cidade, e como nos bons tempos de outrora, quero correr para a calçada... PRA VER A BANDA PASSAR.

(Publicado na Tribuna de Itararé – 19/06/1985)

Fonte:
Dorothy Jansson Moretti. Instantâneos. São Paulo: Dialeto, 2012.
Livro enviado pela escritora.

Cláudio de Cápua (Quadrinhos) 1

Texto: Cláudio de Cápua
Desenho: Luis Antonio Adensohn

Publicado em “O Indianopolis” – 1979.


Fonte:
Cláudio de Cápua. Retalhos de Imprensa. São Paulo: EditorAção, 2020.
Livro gentilmente enviado pelo escritor.

André Kondo (A Casa de Banho)

 


É sempre difícil voltar. Acaso Kotaro tivesse retornado apenas alguns dias depois, não conseguiria chegar. O vilarejo de Kuroyu, encravado no coração da província de Akita, é inacessível quando o inverno chega antes.

Estranha sensação, andar por ruas tão percorridas e, mesmo assim, tão desconhecidas. Quem era aquele garoto que marcava suas pegadas na neve? Não seria a mesma pessoa, agora já adulta, que caminha com passos lentos em direção ao onsen, aos banhos termais? Kotaro avistou o vapor fugindo pelas frestas da construção de telhado rústico, como velhos fantasmas. A quem vieram assombrar?

Pendurado na frente do estabelecimento termal, uma fria mensagem: luto.

Um sinete pendurado no teto tocou, ao ser incomodado pelo abrir da porta que o despertou de seu descanso. Não havia ninguém na recepção. Na antessala, um tabuleiro de go e outro de shogi. Não havia jogadores. No canto, algumas tigelas de chá repousavam, emborcadas para baixo, sem ninguém para servi-las. A folhinha do calendário não havia sido virada. Ainda era ontem.

Por mais terríveis que sejam as lembranças, o que seria mais terrível do que não se lembrar? O pai havia morrido assim. Sem lembranças, todas devoradas pela doença. Talvez tenha sido melhor assim. De que adiantaria a Kotaro retornar a casa, se o pai não se lembraria dele? Que diferença faria? Nenhuma. Morto, muito menos. Definitivamente, não faria diferença. Além do mais, havia o passado. O pai não se lembraria, mas o filho sim. Kotaro se lembraria de como partiu. Lembraria de quão duras foram as palavras paternas, lembranças petrificadas, como pedras a atingir o peito. Porém, não eram essas as palavras a lhe ferir. O que o machucava eram as palavras que ele havia atirado em resposta contra o pai. O pai não se lembraria, mas o filho nunca se esqueceria. O filho, que não teve coragem de retomar para o funeral do pai, mas não conseguiu deixar de tentar retomar para o funeral da mãe.

Olhou à sua volta. As paredes de madeira, o acabamento rústico de uma casa nas montanhas. O velho estabelecimento seria a sua herança. Um punhado de água quente e vapor. Nunca gostou daquele lugar. Aliás, o seu "nunca" começou na adolescência, quando seus próprios vapores ansiavam por uma fuga. Assim, tão logo suas pernas cresceram o suficiente para sair dali, saiu. Os pais sempre quiseram que o filho tomasse gosto pelo lugar. Que tomasse conta dos negócios quando crescesse. Era a tradição da família. Em seguidas gerações, a casa de banho nunca havia sido fechada. No Japão, o onsen é mais do que um mero local de banho. É um lugar onde as pessoas se refugiam. Onde se aquecem da frieza da realidade lá fora. Onde se limpam de qualquer tristeza, com as lágrimas quentes que brotam do solo. Onde encontram paz...

Paz que o filho abandonou.

Foram duras as palavras do pai. Que Kotaro não retornasse se não fosse para tomar conta do onsen. Que não voltasse jamais. O filho obedeceu. Não voltou, até aquele dia.

Não havia velado o pai e também não chegou a tempo de velar a mãe. Por isso, resolveu velar o lugar. Percorreu caminhos sepultados, falecidas lembranças. Aos poucos, foi tomado de uma estranha nostalgia. Sentiu o cheiro de batata doce assada, fugindo de alguma casa que poderia ter sido a sua. Adorava quando a mãe assava as batatas nos dias frios. Aquecia até a alma, ela dizia ao filho. Em outro canto, reencontrou os peixes que nunca pescou, no riacho em que caminhava ao lado do pai. Ambos eram péssimos pescadores. Riam-se disso.

Quando criança, tudo lhe parecia tão grande. O riacho, as batatas doces em suas mãos... Só mais tarde, quando adolescente, descobriu que ele é quem tinha sido pequeno, por isso, a grandiosidade da infância havia sido uma farsa. Kotaro cresceu, tudo ficou tão pequeno. Não havia percebido que a sua ambição é que havia se tornado grande demais.

Partiu para conseguir uma vida maior, em uma cidade maior. Deixou para trás as coisas pequenas, como batatas doces assadas pela mãe ou leitos de riachos percorridos com o pai. Porém, com o luto, sentindo-se pequeno, retornava ás coisas pequenas. Reaprendia o valor das lembranças.

A cada passo em alguma esquecida rua, acabava se lembrando de algo. Da alegria quando colheu uma flor para a mãe. Da felicidade quando recebeu um doce do pai. Tanto tempo...

Mergulhado em seu passado, retornou ao velho onsen de seus pais. Tirou a roupa vagarosamente. Ali, não tinha mais pressa. Havia deixado para trás as coisas grandes da cidade grande. Limpou--se lentamente, antes de entrar na banheira. Com a nudez purificada, mergulhou devagar nas águas termais. Abraçou os joelhos, como um feto... Aos poucos, foi sentindo o abraço da água, como se fosse envolvido pelo amor dos pais... Assim, voltou ao calor do ventre materno. Voltou.

Amanhã, retiraria a placa de luto.

Amanhã, renasceria.

(3. lugar no Concurso Literário Cidade de Lins/SP)


Fonte:
André Kondo. Contos do Sol Renascente. Jundiaí/SP: Telucazu Ed., 2015.