domingo, 19 de junho de 2022

Carlos Drummond de Andrade (Trem de Contos) Vagões 65, 66 e 67


BOM TEMPO, SEM TEMPO


Não chovia, meses a fio. Ou chovia demais. As plantas secavam, os animais morriam, os moradores emigravam. As plantas submergiam, os animais morriam, as pessoas não tinham tempo de emigrar. Assim era a vida naquele lugar privilegiado, onde medrava tudo para todos, havendo bom tempo. Mas não havia bom tempo. Havia o exagero dos elementos.

O mágico chegou para reorganizar a vida, e mandou que as chuvas cessassem. Cessaram. Ordenou que a seca findasse. Findou. Sobreveio um tempo temperado, ameno, bom para tudo, e os moradores estranharam. Assim também não é possível, diziam. Podemos fazer tantas coisas boas ao mesmo tempo que não há tempo para fazê-las. Antes, quando estiava ou chovia um pouco — isto é, no intervalo das grandes enchentes ou das grandes secas —, a gente aproveitava para fazer alguma coisa. Se o sol abrasava, podíamos fugir. Se a água vinha em catadupa, os que escapavam tinham o que contar. Quem voltasse do êxodo vinha de alma nova. Quem sobrevivesse à enchente era proclamado herói. Mas agora, tudo normal, como aproveitar tantas condições estupendas, se não temos capacidade para isto?

Queriam linchar o mágico, mas ele fugiu a toda.
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CARTA EXTRAVIADA

Por que a sua carta ao ministro da Agricultura foi parar em Wagra, no emirado de Catar, de onde a devolveram a ele, remetente, com a declaração de que o destinatário era desconhecido, ou coisa que o valha?

Evidente que não podiam conhecê-lo, pois o ministro despachava em Brasília. E o endereço estava bem claro. Ou antes, esteve. O envelope voltou tão cheio de anotações, riscos, caracteres indecifráveis, carimbos, pequenas etiquetas, que não se distinguia mais o que fora escrito inicialmente.

Ia reclamar do correio, mas lembrou-se que dois meses antes lera a notícia do assalto a um carro postal, de onde foram retiradas as malas. Certamente alguém tirara de uma delas a sua carta e divertira-se mandando-a para Catar. De que modo? Ora, viajara para lá, ou a dera a um portador, que a postou em Wagra.

Abriu o envelope, e qual não foi a sua surpresa ao deparar, não com a sua carta, mas com uma do ministro da Agricultura de Catar: “Meu caro senhor Filipe, considerei com a maior simpatia a sua proposta de venda de camelos para transportes de passageiros e cargas na região árida. Lamento não poder aceitá-la, pois já temos nosso sistema de transportes funcionando satisfatoriamente. No mais, venha visitar nossas ruínas fenícias”.
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CASOS DE BALEIAS

A baleia telegrafou ao superintendente da Pesca, queixando-se de que estava sendo caçada demais, e a continuar assim sua espécie desapareceria com prejuízo geral do meio ambiente e dos usuários.

O superintendente, em ofício, respondeu à baleia que não podia fazer nada senão recomendar que de duas baleias uma fosse poupada, e esta ganhasse número de registro para identificar-se.

Em face dessa resolução, todas as baleias providenciaram registro, e o obtiveram pela maneira como se obtêm essas coisas, à margem dos regulamentos. O mar ficou coalhado de números, que rabeavam alegremente, e o esguicho dos cetáceos, formando verdadeiros festivais no alto oceano, dava ideia de imenso jardim explodindo em repuxos, dourados de sol, ou prateados de lua.

Um inspetor da Superintendência, intrigado com o fato de que ninguém mais conseguia caçar baleia, pôs-se a examinar os livros e verificou que havia infinidade de números repetidos. Cancelou-se o registro, e os funcionários responsáveis pela fraude, jogados ao mar, foram devorados pelas baleias, que passaram a ser caçadas indiscriminadamente. A recomendação internacional para suspender a caça por tempo indeterminado só alcançará duas baleias vivas, escondidas e fantasiadas de rochedo, no litoral do Espírito Santo.

Fonte:
Carlos Drummond de Andrade. Contos plausíveis. Publicado em 1981.

Baú de Trovas L


O mundo precisa crer
num Deus que se chama Amor.
Se essa crença não valer,
nada mais terá valor!
A. A. de Assis
Maringá – PR
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Velho trem me faz lembrar
os meus tempos de menino,
em que eu me punha a cismar
qual seria o meu destino…
Amilton Maciel Monteiro
São José dos Campos – SP
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Felicidade é encanto
que se vive por um triz,
mas celebro, por enquanto,
apenas o que Deus quis.
Antonio Cabral Filho
Jacarepaguá – RJ
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Em noites frias, sem lua,
quando meus versos componho,
eu cubra verdade nua
com meu casaco de sonho.
Antônio Juraci Siqueira
Belém – PA
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Quando esta mágoa me invade,
meu peito em dor se resume,
e eu percebo que a saudade
também usa o teu perfume.
Arlindo Tadeu Hagen
Juiz de Fora – MG
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Já velhinho, sonha ainda,
mantendo o brilho no olhar,
que a juventude só finda
quando é impossível sonhar!
Carolina Ramos
Santos – SP
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Voltas… e eu acho tão triste
a emoção de disfarçar,
que, por mim, já que partiste,
nem precisavas voltar…
Divenei Boseli
São Paulo – SP
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O nosso amor escondido,
sem papel, sem aliança,
tem o sabor proibido
da fruta da vizinhança
Domitila Borges Beltrame
São Paulo -SP
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Mesmo que a Terra se mude
e os montes vão para os mares,
Deus é refúgio e quietude
na angústia em que te encontrares.
Dorothy Jansson Moretti
Três Barras/SC, 1926 – 2017, Sorocaba/SP
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Vive a coroa adoentada,
com o esposo desnutrido:
de dia… tome gemada!
de noite…tome gemido!
Edmar Japiassú Maia

Nova Friburgo – RJ
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Meu beijo tem a fragrância
dos perfumes da amizade,
mas.. dado assim à distância
tem mais sabor de saudade!
Elisabeth Souza Cruz
Nova Friburgo – RJ
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È certo, é pura verdade,
que se diz do casamento:
Que só, se tem liberdade,
com um mal comportamento!
Fabiano Wanderley
Natal – RN
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Nos trigais do sentimento que
contra o vento eu transponho,
cozi o pão sem fermento
no forno quente de um sonho.
Francisco José Pessoa de Andrade Reis
Fortaleza/CE, 1949 - 2020
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Na rapidez da informática
meu sonho dura um segundo,
numa proposta automática:
paz, ponto com, ponto mundo.
Francisco Neves de Macedo  
Natal/RN, 1948 – 2012
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O mar é o mais doce amante
pois não cansa de beijar,
num lirismo alucinante,
toda praia que encontrar!
Gislaine Canales  
Herval/RS, 1938 – 2018, Porto Alegre/RS
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Dupla festa eu preconizo,
para noites de luar:
A festa do teu sorriso,
na festa do meu olhar!…
Hermoclydes S. Franco   
Niterói/RJ, 1929 – 2012, Rio de Janeiro/RJ
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Me esculpindo a cada dia,
vendo no Mestre o padrão,
tento chegar – que utopia! –
mais perto da perfeição.
Jessé Nascimento
Angra dos Reis – RJ
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Uma chave carregamos,
porta de um mundo melhor,
entretanto não largamos
a muleta de um pior.
José Feldman
Campo Mourão – PR
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Bendigo a lágrima doce
da chuva que cai lá fora.
Bom seria se assim fosse
o pranto que a gente chora!
José Valdez C. Moura
Pindamonhangaba – SP
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Se não me dás teu carinho,
se não me queres amar,
sou barco triste e sozinho,
que já não quer navegar.
Luiz Carlos Abritta
Cataguases/MG, 1935 – 2021, Belo Horizonte/MG
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A distância, o céu aberto,
não podem mudar o amor,
que, embora longe está perto,
como a raiz junto à flor.
Maria Thereza Cavalheiro
São Paulo/SP , 1929 – 2018
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Minhas trovas são singelas,
sem marcas nem pedantismo,
pois eu faço, assim, com elas,
arautos do romantismo.
Maurício Norberto Friedrich
Porto União/SC, 1945 – 2020, Curitiba/PR
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Se a saudade não consegue
destruir meu dia a dia,
quero, ao menos, que carregue
esse tédio, essa agonia!
Messody Ramiro Benoliel
Rio de Janeiro - RJ
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Enquanto espero a velhice
eu passo a vida trovando,
pois sei que é muita burrice
passá-la só lamentando.
Nei Garcez
Curitiba – PR
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Teu amor que me enternece,
que acaba todo meu pranto,
da sobra faço uma prece,
e ainda sobra outro tanto.
Professor Garcia
Caicó – RN
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Na ansiedade das demoras,
quando chegas e me encantas,
mesmo sendo às tantas horas,
as horas já não são tantas…
Rodolpho Abbud  
Nova Friburgo/RJ, 1926 – 2013    
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O belo na juventude
traz orgulho, por costume.
Mas beleza sem virtude
é qual rosa sem perfume…
Ruth Farah Nacif Lutterback
Cantagalo/RJ, 1932 – 2017
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Nas cartas, sê verdadeiro!
Cuida bem tudo o que dizes:
pois cartas são travesseiro
nas noites dos infelizes.
Selma Patti Spinelli
São Paulo – SP
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Por mais que o progresso iluda,
deturpe e inverta valor,
o que Deus fez ninguém muda:
amor será sempre Amor.
Vanda Fagundes Queiroz
Curitiba – PR
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Anjos brancos, as fumaças
dos casebres, no sertão,
aos céus sobem, dando graças
pelo almoço no fogão.
Yedda Patrício
São Paulo – SP

Nilto Maciel (Incêndio)

Carlinhos brincava no quintal. Olhou para o chão e viu uma sombra deslizar, correr. Cheiro de coisa queimada. Depois o mormaço. Ergueu a cabeça. Talvez a nuvem prenunciasse chuva. O sol quase o cegou. Levou as mãos à testa e correu para junto da mãe, que lavava roupa próxima ao tanque. Nem sequer deu atenção ao menino. Fosse brincar na sala e não lhe desse mais sustos.

Carlinhos atravessou o corredor e chegou à porta da rua. Às janelas, mulheres debruçavam os olhos para as bandas do céu. Mexericavam medos antigos de fogos vindos do alto para castigo dos pecadores. Nas calçadas, esquecidas pelos meninos, castanhas de caju se assavam. Pés descalços não suportavam a quentura do chão. Evolava-se dele uma fumaça espessa.

— Incêndio, minha gente, incêndio!

O homenzinho parecia aflito, suava muito e fedia a cachaça. Talvez fugisse para a Serra. O jumento, no entanto, mostrava-se manso, sem a mínima vontade de andar. Com certeza, sentia-se cansado de conduzir a carga de bugigangas nos caçuás. E olhava o chão, imune ao medo.

— Incêndio, meu povo, incêndio!

À falta de ouvintes para sua notícia, o homem vibrava o chicote no ar, como a alertar o animal. O fogo devorava a fábrica de descaroçar algodão. E ninguém ia apagar as chamas? O jumentinho dava um passo, catava capim, resfolegava. Olhos fitos na fumaça que passeava sobre todas as coisas, mais e mais pessoas saíam às ruas. Ninguém ia apagar o fogo?

Apavorado, Carlinhos voltou ao quintal. Acocorou-se ao pé de uma bananeira. A terra úmida lhe molhava os pés e o confortava. No alto, porém, a fumaça corria e, de vez em quando, fazia sombra. Parecia até nuvem de chuva. O homem e seu jumento talvez já tivessem ido embora. Carlinhos olhou para o muro. Não fossem os cacos de vidro, poderia ver as ruas, a fábrica, o incêndio. Línguas vermelhas lambiam o céu azul e branco. E as casas, toda a cidade. Sim, o fogo devoraria tudo, coisas, pessoas, animais. A menos que fossem todos para o meio da rua, das praças. Melhor para a igreja matriz. Lá o fogo não chegaria. O padre dizia que, quando o mundo pegasse fogo, só as igrejas seriam poupadas. E quando o mar invadisse a terra, no dilúvio final, quem quisesse se salvar, buscasse abrigo no interior das igrejas. As águas não passariam dos degraus do patamar. O resto do mundo estaria todo alagado.

— O mundo vai se acabar.

E, se não fosse pela água, seria pelo fogo. Por que não corriam todos para a igreja?

— Vamos, mãe.

Fazer o que na igreja àquela hora do dia? Deixasse de besteiras, fosse brincar.

Obediente, Carlinhos atravessou de novo a casa, aos pulos. Da janela avistou o jumentinho, a comer o capim da rua, conformado com sua carga, manso como antes. O homem, no entanto, falava mais alto e gesticulava muito, cercado de curiosos. No céu, a fumaça negra fazia sombras enormes no chão.

Aflito, o menino buscou refúgio no quarto de dormir e se ajoelhou diante do santuário. Deus o protegeria. Olhou para o teto: a telha de vidro servia de claraboia. No entanto, a luz do sol quase não penetrava no quarto. E seu pai, onde estaria? Correu mais uma vez para perto da mãe. Ela saberia do pai.

— Está para chegar.

Precisava ter certeza daquilo. Numa carreira medonha, atravessou a cozinha, a sala de janta, e chegou à sala.

— O que é isso, meu filho?

O homem tirou o chapéu da cabeça e se dirigiu aos fundos da casa. Estava salvo do fogo.

Mais longe, o jumento não parava de mastigar. Onde andaria o homenzinho suado? Carlinhos esticou o pescoço — o desgraçado apareceu à porta de uma bodega e cuspiu.

Fonte:
Nilto Maciel. Pescoço de Girafa na Poeira. Brasília/DF: Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, 1999.
Livro enviado pelo autor.

sábado, 18 de junho de 2022

Filemon Martins (Paleta de Trovas) 7

 

Mia Couto (A morte, o tempo e o velho)

O homem se via envelhecer, sem protesto contra o tempo. Ansiava, sim, que a morte chegasse. Que chegasse tão sorrateira e morna como lhe surgiram as mulheres da sua vida. Nessa espera não havia amargura. Ele se perguntava: de que valia ter vivido tão bons momentos se já não se lembrava deles, nem a memória de sua existência lhe pertencia? Em hora de balanço: nunca tivera do que fosse dono, nunca houve de quem fosse cativo. Só ele teve o que não tinha posse: saudade, fome, amores.

Como a morte tardasse, decidiu meter-se na estrada e caminhar ao seu encontro. Tomou a direção do oeste. Na sombra desse ponto cardeal, todos sabemos, se encontra a moradia da morte.

Iniciou a sua excursão rumo ao poente sem que de ninguém se despedisse. Os adeuses são assunto dos vivos e ele se queria já na outra vertente do tempo.

Caminhava há semanas quando avistou um homem alto, com rosto de enevoados traços. Trazia pela trela um bicho estranho, entre cão e hiena. Animal mal aparentado, com ar maleitoso.

— Esta é a Morte. — disse o homem apontando o cão. E acrescentou: — Sou eu que a passeio pelo mundo.

— E você quem é?

— Eu sou o Tempo.

E explicou que caminhavam assim, atrelados um no noutro, desde sempre.

Ultimamente, porém, a Morte andava esmorecida, quase desqualificada. Razão de que, entre os viventes, se desfalecia agora a olhos vistos, por dar cá nenhuma palha. Morria-se mesmo sem intervenção dela, da Morte.

O velho, desiludido, explicou ao Tempo a razão da sua viagem. Ele vinha ao encontro da morte:

— Eu queria que ela me levasse para o sem retorno.

— Vai ser difícil.

— Lhe imploro: fiz todo este caminho para ela me levar.

— Veja como ela anda: desmotivada, focinho pelo chão.

— Mas eu queria tanto terminar-me!

– Impossível, insistiu o Tempo.

E para comprovar, soltou o animal. O bicho se afastou, arrastado e agônico, para o fundo de uma valeta. Ali se enroscou, decadente como um pano gasto. O velho se condoeu e perguntou ao bicho:

— O que posso fazer por si?

— Eu só quero beber.

Não era de água a sua sede. Queria palavras. Não dessas de uso e abuso, mas palavras tenras como o capim depois da chuva. Essas de reacender crenças.

O velho prometeu garimpar entre todos seus vocabulários e encontrar lá os materiais de reanimar o mais perdido fôlego. Urdia seu secreto plano: iria ao sonho e de lá retiraria uma porção de palavras.

Na manhã seguinte, foi de encontro à besta moribunda. O bicho estava agora mais hiena que cão. Uma baba amarela lhe escorria pelo focinho. Apenas revirou os olhos quando sentiu o homem se aproximar.

— Trouxe?

Ele lhe entregou o sonho, as palavras, mais seu inebriamento. O animal sugou tudo aquilo com voracidade. Seus olhos eram os de uma criança sorvendo estória antes do sono.

E assim se seguiu durante umas manhãs. Em cada uma, o velho se anichava e confiava seus elixires. De cada vez, o bicho se animava mais um pouco. No final, a Morte se recompôs com tais pujanças que o velho ganhou coragem e lhe apresentou o pedido, seu anseio de que o mundo se lhe fechasse. A Morte escutou o pedido de olhos fechados.

— Amanhã vou cumprir o meu mandato. — anunciou ela.

Nessa noite, o velho nem dormiu, posto perante a sua última noite. Sentindo se derradeirar, passou em revista a vida. Nos últimos anos, ele tinha perdido a inteira memória. Mas agora, naquela noite, lhe revieram os momentos de felicidade, toda a sua existência se lhe desfilou. E sentiu saudade, melancolia por não poder revisitar amigos, terras e mulheres. Até lhe assaltou a ideia de escapar dali e reganhar aventuras no caminho da vida. Para não ser atacado por mais recordações — com o risco do arrependimento — ele foi ao rio e caminhou ao sabor da corrente. Andar no sentido da água é o modo melhor para nos lavarmos das lembranças.

No dia seguinte, o velho foi à valeta onde encontrou a Morte. Ela estava cansada, respiração ofegante. E disse:

— Já matei.

— Matou? Matou quem?

— Matei o Tempo.

E apontou o corpo desfalecido do homem alto. A hiena, então, estendeu a trela ao velho e lhe ordenou:

— Agora, leva-me tu a passear!

Fonte:
Mia Couto. Na berma de nenhuma estrada e outros contos. Publicado em 2001.

Luiz Otávio (Um coração em ternura…) 9

A “COR” DO OLHAR

("Eu não sei de que cor é seu olhar…”)

Repare bem e veja, meu amigo,
se não há um matiz em cada olhar…
Bem sei que há fantasia no que eu digo;
porém não custa nada reparar...

Vamos ficar os dois observando,
nesse banco de pedra à beira-mar;
assim, de qualquer um que for passando,
eu lhe direi a cor de seu olhar…

Aí vem... Repare aquela ali no meio.
Traz um sorriso... é jovem... vaporosa...
"Sou toda amor..." — no seu olhar eu leio…
No seu olhar que é todo cor de rosa...

Eis que aparece em lúbricos volteios,
um corpo esguio pelo sol tostado...
Vermelha a boca... dois nervosos seios…
e um rubro olhar repleto de pecado!

Vem atrás, em contraste, distraída,
uma formosa e virginal criança...
— Estão seus olhos muito além da Vida!
Trazem no olhar as cores da esperança,

E aquela como vem toda taful...
Vai encontrar alguém... Quanta ansiedade!
— Eis um olhar profundamente azul!...
Vem transbordante de Felicidade!...

E agora adeus, pois se aproxima alguém,
cujos olhos eu vivo a analisar...
— É meu amor... e ainda não sei bem
a indecifrável cor do seu olhar...
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DEVANEIO

Uma casinha escondida,
entre montanhas... além...
Longe do Mundo... da Vida...
Perto do Céu, com meu bem...

Uma fonte de água pura...
Flores... Aves... Pinheirais,
Poesia... Amor… e Ternura
Silêncio… Ventura… Paz...
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NATAL SERTANEJO
Para Angelí e Silvia Lúcia

A Noite toda estrelada!
E a pequena e humilde aldeia,
totalmente iluminada,
pois no Céu há lua cheia!

E a igreja pequenina,
com sinos a repicar,
lá do topo da colina
convida o povo a rezar...

Pois é Noite de Natal,
noite de Paz e de Amor,
em que se evoca o nascer
de Jesus, Nosso Senhor...

Passam velhinhos na Estrada…
Um galo põe-se a cantar…
E a igreja, pouco a pouco,
vai ficando sem lugar…

Depois da Missa do Galo,
a Festança... a consoada...
Um vinho bom que é um regalo!
A castanha... a rabanada...

Vai dormir a criançada,
ansiosa para acordar,
pois o bom papai Noel
esta Noite irá passar...

E despede-se a família...
(Há filhos em profusão!)
— Ó Natal bem brasileiro
lá do fundo do sertão!...
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NEGLIGÊNCIA

Nós vivemos, tanto, tanto,
a sonhar com a Ventura,
a almejar um grande bem!...
Se um belo dia, no entanto.,
depois de luta e de pranto,
a Felicidade vem,
não sabemos desfrutar,
tampouco sentir também,
tudo o que ela pode dar,
tudo o que a Ventura tem...
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PRESENTE A PAPAI NOEL...

Papai Noel pode entrar...
Descansa da lida incerta!
Sê benvindo ao nosso Lar;
a nossa porta está aberta...

O nosso Lar é um Encanto,
tem muita Paz e Ternura...
Mas sabemos, que no entanto,
muitos sentem desventura...

Quando seguires caminho,
(se faz falta à Humanidade),
podes levar um pouquinho
da nossa Felicidade…
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VALERÁ?!

Ao pensar, meu grande amor
que sem menos esperar,
um dia virá a Morte,
nossas vidas separar...
Ao pensar, sinto um tremor,
e fico a conjecturar,
se teremos fé, vigor,
para tudo suportar,
e se vale tanta dor,
nossa ventura sem par...

Fonte:
Luiz Otávio. Um coração em ternura…: poesias. RJ: Irmãos Pongetti, 1947.

Irmãos Grimm (Os Trapaceiros)


Disse o galo à galinha:

- Chegou o tempo das nozes; vamos subir a montanha e comer à vontade antes que o esquilo as leve todas.

- Boa ideia! - respondeu a galinha. - Vamos, e nos divertiremos a valer.

Saíram juntos para a montanha e por lá ficaram até anoitecer.

Não sei se comeram demais ou se a fartura os tornou pretensiosos, o certo é que não quiseram voltar a pé para casa e o galo armou uma carruagem com a casca das nozes. Depois de pronta, a galinha acomodou-se nela e disse ao galo:

- Agora puxa o carro!

- Era só o que faltava! – exclamou ele. - Antes ir a pé do que atrelado. Concordo em ser cocheiro e me sentar na boleia, mas eu mesmo puxar? Isso é que não!

Enquanto estavam discutindo, uma pata se aproximou, grasnando:

- Ladrões! Quem lhes deu licença para entrar no meu nogueiral? Esperem, vocês vão me pagar caro!

E, de bico aberto, lançou-se sobre o galo. Este, sem perda de tempo, atacou a pata com toda a força que tinha e tanto lhe meteu os esporões que ela acabou pedindo misericórdia, deixando-se atrelar à carruagem, como castigo. O galo sentou-se na boleia, fazendo as vezes de cocheiro, e lá se foram eles em disparada.

- Corre, pata, o mais que puderes!

Percorrido um trecho do caminho, encontraram dois pedestres. Eram um alfinete e uma agulha de costura, que lhes gritaram:

- Parem! Parem!

Os dois queriam uma carona, pois conforme alegaram, logo estaria escuro como piche e não poderiam dar mais um passo, e também porque havia muito barro na estrada. Vinham da taverna do alfaiate, onde se tinham atrasado tomando cerveja. Como se tratava magros que não ia ocupar muito espaço, o galo mandou que embarcassem, recomendando, porém, que não pisassem nos seus pés nem nos da galinha.

Tarde da noite, chegaram a um albergue e, como não quisessem viajar no escuro e também porque a pata não era boa andarilha, resolveram entrar. A principio o estalajadeiro opôs-se, dizendo que não havia mais lugar na casa, pois decerto pensou que aqueles hóspedes não eram muito distintos. Afinal, diante da conversa comprida que eles fizeram, prometendo-lhe o ovo recém posto pela galinha e mais o da pata, que punha um todos os dias, o estalajadeiro concordou em dar-lhes pousada por aquela noite. Mandaram, então, servir uma mesa bem farta e regalaram-se com o que havia de bom e de melhor.

Pela madrugada, quando todos ainda dormiam, o galo acordou a galinha, trouxe o ovo, quebrou lhe a casca a bicada e ambos o saborearam; a casca, jogaram ao fogão. Depois foram onde estava agulha, que ainda dormia, pegaram-na pela cabeça e a espetaram na almofada do estalajadeiro; o alfinete, enfiaram na sua toalha de rosto. Feito isto, partiram sem mais aquela. A pata, que gostava de dormir ao livre e ficara no pátio, ouviu quando os dois se afastavam. Espanejou-se, saiu do seu canto e logo encontrou um arroio, pelo qual escapou a nado.

Só depois de alguma horas é que o estalajadeiro saiu da cama. Lavou-se e, ao enxugar na toalha, o alfinete lhe arranhou rosto, fazendo-lhe um risco vermelho de orelha e a orelha. A seguir dirigiu-se à cozinha com a intenção de acender o seu cachimbo, mas quando se aproximou do fogão as cascas do ovo lhe saltaram nos olhos.

- Esta manhã tudo me sai às avessas! - disse, aborrecido, e deixou-se cair na cadeira de balanço. Mas no mesmo instante ergueu-se de  um salto e berrou: "Ai"!

A agulha o espetara ainda mais do que o alfinete...e não no rosto! Tomando de fúria, começou  a desconfiar dos hóspedes que haviam chegado tão tarde no dia anterior. Saiu a procurá-los, mas já se tinham ido. Jurou, então, que nunca mais acolherá em sua casa gente trapaceira, que muito come, não paga e, ainda por cima, em agradecimento, faz uma porção de patifarias.

1a. Edição da Coletânea CULTURA (Prazo: 30 de agosto)


Edital de participação


A Academia Luso-Brasileira de Letras do Rio Grande do Sul – ALBL/RS, em parceria com a Editora Alternativa e com apoio do Instituto Cultural Português, lança a primeira edição da Coletânea CULTURA.

A ALBL/RS tem a satisfação de convidar os escritores Acadêmicos e seus convidados de todo o Brasil a participarem deste momento ímpar da literatura nacional. Esta histórica edição confirmará o destaque dos escritores independentes no panteão da literatura luso-brasileira de todas as regiões dos países.

A Coletânea CULTURA publicará poemas, contos, crônicas, artigos e trabalhos visuais, como pinturas ou imagens, revelando e ampliando a pujança e diversidade de nosso universo literário.

Escreva ∞ Participe ∞ Publique

Para participar, envie seu texto (poesia, crônica, conto, artigo ou ilustração) para o e-mail contato@editoralternativa.com, juntamente com uma biografia resumida e uma fotografia em boa resolução.

Cada página publicada possibilitará o recebimento de dois exemplares da obra, por um investimento de R$ 100,00 cada página, sem limite de páginas por escritor.

A temática da coletânea é livre, podendo conter textos originais ou já publicados anteriormente. Também será possível encomendar exemplares extras antes da impressão, por R$ 35,00 a unidade.

O prazo para o envio dos textos é até 30/08/2022.

As opções de pagamento serão pela emissão de boleto (+ R$ 3,00 por unidade), PIX ou depósito bancário.

A sua participação é essencial para a qualidade e diversidade da obra, expressando a força da literatura nacional.

Coordenador
João Riel de Oliveira Brito
Presidente da ALBL/RS
 
Organizador
Milton José Pantaleão Junior
Editora Alternativa


Fonte:
email da Editora Alternativa

quinta-feira, 16 de junho de 2022

Silmar Böhrer (Gamela de Versos) 22

 

Manuel Du Bocage (Sonetos) IX

Lá onde o Fado impenetrável mora,
Voa o menino Amor entre os Amores:
Loureja a trança, que matizam flores,
Cintila o facho, que a Razão devora :

Entra, saúda o nume, ao nume implora
Que de Marília os olhos tentadores
Vejam sempre ante as Graças, e os Louvores
De seus anos gentis surgir a aurora:

Fronte rugosa vezes três sacode
O deus, cujo poder tudo atropela,
E às súplicas de Amor destarte acode:

"Escape às minhas leis Marília bela,
seja, seja imortal ; durar não pode,
o mundo sem amor, amor sem ela".
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Quantas vezes , Amor, me tens ferido?
Quantas vezes, Razão, me tens curado?
Quão fácil de um estado a outro estado
O mortal sem querer é conduzido!

Tal, que em grau venerando, alto e luzido,
Como que até reagia a mão do fado,
Onde o sol, bem de todos, lhe é vedado
Depois com ferros vis se vê cingido:

Para que o nosso orgulho as asas corte,
Que variedade inclui esta medida,
Este intervalo de existência à morte!

Travam-se gosto, e dor ; sossego, e lida;
É da lei da Natureza ,é lei da sorte
Que seja o mal e o bem matriz da vida.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Eu me ausento de ti, meu pátrio Sado,
Mansa corrente deleitosa, amena,
Em cuja praia o nome de Filena
Mil vezes tenho escrito, e mil beijado:

Nunca mais me verás entre o meu gado
Soprando a namorada e branda avena,
A cujo som descias mais serena,
Mais vagarosa para o mar salgado:

Devo enfim manejar por lei da sorte
Cajados não, mortíferos alfanges
Nos campos do colérico Mavorte;

E talvez entre impávidas falanges
Testemunhas farei da minha morte
Remotas margens, que umedece o Ganges.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Camões, grande Camões, quão semelhante
Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!
Igual causa nos fez perdendo o Tejo
Arrostar c’o sacrílego gigante:

Como tu, junto ao Ganges sussurrante
Da penúria cruel no horror me vejo;
Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,
Também carpindo estou, saudoso amante:

Ludibrio, como tu, da sorte dura
Meu fim demando ao Céu, pela certeza
De que só terei paz na sepultura:

Modelo meu tu és... Mas, oh tristeza!...
Se te imito nos transes da ventura,
Não te imito nos dons da Natureza.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

Adeja, coração, vai ter aos lares,
Ditosos lares, que Gertrúria pisa;
Olha, se inda te guarda a fé mais lisa,
Vê, se inda tem pesar dos teus pesares:

No fulgor dos seus olhos singulares
Crestando as asas, tua dor suaviza,
Amor de lá te chama, te divisa,
Interpostos em vão tão longos mares:

Dize-lhe, que do tempo o leve giro
Não faz abalo em ti, não faz mudança,
Que ainda lhe és fiel neste retiro:

Sim, pinta-lhe imortal minha lembrança;
Dá-lhe teus ais, e pede-lhe um suspiro,
Que alente, coração, tua esperança.

Fonte:
Manuel Maria Barbosa Du Bocage. Soneto e outros poemas. SP: FTD, 1994.

Rachel de Queiroz (Isabel)

SEMPRE DIZIA QUE NÃO se casara por amizade: casara por “iludição”. Para vestir vestido branco, ir ao Quixadá na garupa do cavalo, ser mulher casada, ter seus filhos, a sua cozinha, o seu terreiro.

Agora era aquela a sua vida. A casa isolada guardava a extrema da terra, numa capoeira deserta, na seca ribeira do Sitiá. No verão, ali, quase não há água, e a pouca que há tem piranha. A terra é pedregosa; aqui e além uns campestres bonitos de capim-panasco — mas que adianta ao pobre a pastagem bonita? Pasto é para o gado, e o gado é do dono da terra. O marido ganhava uns vinténs no corte de lenha — e ela ia se arrastando entre a fadiga, a preguiça e os desgostos. Um roçado pequeno, quase no quintal da casa: era como roça de bugre; fazia-se com o caco da enxada um buraco do tamanho do covo da mão, atirava-se nele a semente, e o milho e o feijão iam crescendo como podiam, furando a terra dura, recobrindo os tocos mal queimados da coivara. Um pé de jerimum, um pé de melancia e, rodeando tudo, a ramada de garranchos, tão precária que as cabras das redondezas comiam mais do legume do que o dono do roçado.

Nos fundos da casa, o galinheiro velho — e já há dias a raposa carregara o galo, último sobrevivente de um terno de galinhas que Isabel deveria criar de meia com uma comadre. Do lado esquerdo o chiqueiro, onde ainda restava uma pouca de criação: duas cabras velhas e um cabritinho novo, que sempre berrava, aflito, no meio da noite. E aquele balido do animal arrepiava ainda mais os nervos cansados de Isabel, que, de cócoras no canto da cozinha, com as lambadas do chiqueirador ainda lhe doendo nas costas, ia curtindo o seu pavor e o seu ódio, enquanto lá na camarinha escura o marido curtia a bebedeira, atirado no jirau de varas. Aquela “cama” — quatro forquilhas de palmo e meio de altura, dois caibros fazendo as barras e a estiva de varas servindo de enxerga — ela mesma a preparara com suas mãos, quando o filho estava para nascer. Era serviço de homem, sim, mas contava ela com homem?

Naquelas varas duras, mal-cobertas por uns trapos, penou durante todo o resguardo — o frustrado resguardo do menino morto, que nasceu já roxo, com o corpinho mole e nem sequer chorou. A vizinha, que a acudira, batizara a criança, assim mesmo morta — mas todos lhe diziam que um batizado desses não tinha virtude e era até pecado o que haviam feito.

Agora, em vez de um anjo no céu que rezasse por ela, Isabel sabia que pusera apenas mais um pagão no limbo, sofrendo inocente pelo pecado original de que não pudera ser remido.

Lá na cozinha, onde estava, ouvia o roncar do marido; um ronco estertorado, aflitivo, que mais parecia o cirro de um moribundo. Ronco de bêbedo. O braço pendia da cama e a mão quase tocava, no chão, o chiqueirador de cabo de jucá, tendo na extremidade a longa fita de relho cru ensebado e cortante.

Isabel continuava de cócoras, sem ânimo de se erguer e armar a rede, sem ânimo de tirar a roupa e passar arnica pelas costas magoadas, como às vezes fazia. Mantinha-se quase imóvel, a cabeça encostada nos joelhos magros, a barra da saia tocando uma poça de água que pingara no alguidar rachado; e murmurava baixinho, num soluço trêmulo: “Desgraçado, desgraçado!”

Ali mesmo dormiu. E no sono parecia uma criança açoitada, que dorme ainda chorando. De vez em quando suspirava, estremecia, dava um soluço curto, e se encolhia mais ao canto da parede.

Igual àquela noite muitas noites houvera antes, muitas noites houve depois, Isabel ia ficando mais velha, mais magra, com um olhar estranho e escorraçado. Raramente punha uma toalha à cabeça e ia à casa da sua comadre, que ficava a meia légua de distância. E lá pouco falava, deixava se ficar no canto da cozinha, assistindo à lida da outra, escutando a algazarra da criançada. Comia um bocado escasso, bebia um gole de café, tornava a pôr o pano à cabeça e voltava para o seu desterro. Mas não se queixava nunca, só aquele olhar fundo, vidrado, gritava mágoas; a boca de lábios finos quase não falava — mal dava um boa-tarde ou um bom-dia.

Certo sábado, era boquinha da noite quando o marido chegou em casa, tombando pela vereda. Trazia pendurada no dedo, por um cordão, a garrafa de querosene. Só por milagre não a quebrara.

— Tá aí o gás... Depois ainda se queixe...

Isabel foi encher a lamparina e consertar o pavio velho, aproveitando o resto de claridade do dia; e enquanto, junto à porta, acocorada segundo o seu costume, ela torcia entre os dedos a mecha de algodão, lá na cozinha o marido enfiava o quengo do côco no pote, em busca de água, e reclamava:

— Água salobra; essa peste nem coragem tem pra ir buscar água na cacimba do riacho... E o fogo apagado... isso não é mulher, é um castigo de Deus... Não tem um caroço de feijão pra se comer... não tem uma galinha no terreiro... não tem um canteiro com um pé de coentro pra remédio... não me remenda uma roupa... não costura, não faz renda, não planta nada, não cria nada...

Isabel entrara segurando a lamparina, e procurava uma caixa de fósforo no caritó da parede da sala, debaixo da estampa de são Sebastião. O marido foi de mansinho, apanhou atrás da porta o chiqueirador, instrumento da sua justiça; esperou que Isabel riscasse o fósforo, pendurasse a lamparina no prego, de onde um cone preto de fuligem subia até a palha do teto. E habilmente, com um virtuosismo de domador, enrolou a mulher com o relho, que sibilou no ar, com um silvo de cobra. Isabel deu um grito, correu em direção à porta — mas três vezes o relho ainda a apanhou durante a fuga.

O marido não a perseguiu, viu-a atravessar o terreiro, esconder-se na moita de mofumbo (planta da caatinga brasileira), que ainda estava florida e cheirosa em pleno mês de julho. Ficou encostado ao portal com o açoite na mão, resmungando coisas, com um riso mau; depois recuou uns passos, fechou a porta, desceu a taramela e falou satisfeito:

— Vai dormir no mato, cachorra... vai dormir com as jararacas, tuas parceiras...

E atirou-se à rede que lá estava, a um canto — pois Isabel já não se dava o trabalho de a desarmar pela manhã. E o homem dormiu, sem sequer retirar as alpercatas, sem desapertar o cinturão.

Alta noite, saiu Isabel da moita onde se abrigara. Seriam mais de dez horas talvez; uma lua tardia já se erguera no céu limpo.

Caminhou até a porta da frente, empurrou-a: trancada. Rodeou a casa, entrou pela cozinha, que ele não se lembrara de fechar. Foi direto à sala: lá estava ele dormindo, bem estirado de seu, dono da rede, a boca aberta, o fartum de cachaça ao redor. Esteve algum tempo a olhar a criatura. Depois se dirigiu ao quarto, apanhou o balaio onde guardava a roupa velha e os remendos. Tirou uma agulha grossa, um fio forte — bem comprido, de mais de braça.

Devagarinho — tão devagar, tão silenciosa, que parecia até mais lenta e mais calada do que a sua grande sombra projetada pela luz da lamparina na parede de barro — chegou junto à rede. O adormecido deitara-se de través, com os pés meio de fora. Isabel, com a mão tão leve quanto a da mãe que muda a posição do filhinho adormecido, soergueu os pés do marido e os colocou dentro da rede. Depois, ele próprio a ajudou — talvez inconscientemente estimulado pelo gesto dela; virou-se, emborcou a cara contra o pano e ficou deitado a fio comprido, a cabeça mais embaixo, os pés pertinho do punho. Era uma rede grande, listada de vermelho e verde, que comportava bem todo o corpo do homem; e, como o espaço entre os dois armadores era pequeno, ela ficava baixinha, arrastando pelo chão a varanda rala de crochê.

Isabel tirou a agulha que enfiara no peito do casaco. E rapidamente costurou uma contra a outra, as duas beiradas da rede, do punho direito ao esquerdo, envolvendo, prendendo o homem no cartucho de pano, como um bicho-da-seda no seu casulo. Depois foi ao terreiro dos fundos e veio rolando o pilão, cozinha adentro, atravessou com ele a sala, rolou-o mais um pouco até debaixo da rede, e o pôs, como um cepo, sob a cabeça do marido — que não deixara de roncar.

Deu nova viagem à cozinha, trouxe a mão de pilão, pesada, feita de aroeira rija. E lentamente, com a mesma força cadenciada com que pilava o milho, malhou a cabeça que a rede envolvia e o pilão amparava por baixo.

A primeira pancada talvez não acertasse em cheio — e o homem estrebuchou, sacudindo-se com força na prisão de pano. Mas aos poucos foi ficando imóvel, e a mão de pilão descia sempre, provocando, ao cair, um ruído surdo de coisa quebrada, como uma cuia que se esmaga.
 
Isabel continuou batendo, batendo ritmicamente, até perder a força no braço. Aí descansou a mão de pilão, foi à camarinha, juntou alguns panos numa trouxa, cobriu a cabeça; atravessou a cozinha e, já do lado de fora, cerrou a porta, que quase nunca se fechava, abriu o chiqueiro da criação, para que as cabras não morressem de fome e sede, e sumiu-se no caminho que se perdia caatinga adentro.

Quando levantou urubu na casa, foi que os vizinhos descobriram o morto. Já fazia tantos dias, o estrago fora tão grande que, se o identificaram, foi porque o sabiam morador daquela casa; e, ademais, num dos pés, ainda calçados na alpercata, uma velha vizinha reconheceu o coto amputado de um dedo comido de piranha — acidente sofrido por ele em criança e que ela própria benzera para não arruinar.

Enterraram-no ali mesmo no terreiro, com rede e tudo; em cima puseram uma cruz — e o lugar ficou mal-assombrado.

Quanto a Isabel, não se soube dela. Alguns pretendem que caminhou até o açude de Cedro, distante de lá três léguas, e se atirou do paredão abaixo. A comadre por sua vez recordava que a ouvira falar certo dia na vontade que tinha de fugir, arranjar uma passagem de trem com uma alma caridosa e ir pedir esmolas bem longe, na estação de Baturité, por exemplo.

De qualquer forma, afogada ou mendiga, nunca mais ninguém a viu.

Fonte:
Rachel de Queiroz. A casa do Morro Branco: crônicas. RJ: J. Olympio. Publicado em 1999.

quarta-feira, 15 de junho de 2022

Dorothy Jansson Moretti (Album de Trovas) - 8

 

Olivaldo Júnior (Poemas Escolhidos) VI

A FLOR DO PEQUENO PRÍNCIPE


Sou pequeno, mas não príncipe.
Antes, reino em minha vida
como se fosse senhor de mim,
como se fosse a luz e a lida
de alguém que espera enfim
quem lhe seja o jardineiro.

Sou pequeno, mas não príncipe,
cara flor que esfalfa os dias
em que me pego sendo assim,
sabiá sem laranjeira, poesias
que ninguém lê, nem no fim
de um periódico brasileiro...

A flor do Pequeno Príncipe
se precipita em meu colo,
afoita pelo melhor de mim,
como se eu fosse o solo
em que suas raízes, sem fim,
me diriam: és o primeiro.
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AMOR, DEIXA QUE EU CHORE...

Amor, deixa que eu chore
minhas penas ante o rio
que os afluentes da ilusão
fazem nascer, crescer
e tomar corpo
em prol do mar,
que nem conhecem...

Amor, deixa que eu siga
a estrela-guia de Belém,
ainda que faltem meses
para o Cristo vir à Terra...

Amor, deixa que eu seja o Cristo,
o próprio Cristo à beira,
à margem do mundo inteiro
renascido e, novamente,
tenha a chance de não ser
crucificado...

Amor, deixa que eu seja a cruz,
a velha cruz a sugerir
que a vida é feita de empecilhos,
de tormentas, para
que, um dia, o Céu seja nosso,
todo nosso,
Adão e Eva
que terão mais uma chance...

Amor, deixa que eu tenha
a chance de estar no mar
de tua estrela, teu Jesus
que não nasceu,
tua cruz que, leve, leve,
paire sobre ti
sem te tocar,
até que o rio das penas
que ora choro
te faça sentir pena
de um poeta
ribeirinho de si mesmo.
= = = = = = = = = = = = = = = = = = = = = =

A PELE DO ADEUS

O adeus é uma forma de trocar de pele
e criar uma nova.
Uma nova?! Uma ova!
O adeus é uma forma de lavar a alma
e forjar sua calma.

Calma, que o adeus
é luva de pelica
que nos fere o rosto,
nos acerta um soco,
mas nos retifica.

Aplica-se ao nosso eu,
que nos leva ao nós,
que norteia o 'Romeu'
sem a Julieta, a sós,
só adeus, o puro breu.

O breu é uma forma de trocar os óculos
e criar uma aurora.
Uma aurora?! Uma abóbora!
O adeus é uma forma de ser Cinderela
e dançar no castelo.

Cego, que o adeus
é pele de cordeiro
que nos cobre o corpo,
nos encobre um lobo,
mas nos purifica.
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A VELHA DO RIO

Porque a vida é uma forma inconstante

Naquela curva do rio,
entre as dúvidas e as dádivas,
uma velha, estranha,
estranha e sábia,
se assenta.

Não sabe quando vai chover,
nem quando o sol
nem nunca vai brilhar,
mas, velha,
é honrada por todos.

Muitos vêm de longe,
muito longe, só para vê-la:
novelo nas mãos,
amor em seus olhos
e um xale de lã,
tão descuidado, nas costas...

Tem hora que, só de vê-la,
só de olhá-la assim,
tão absorta em si mesma,
se lembram
nem sabem ao certo
de quê,
mas, talvez por isso,
talvez por isso mesmo,
sarem, se recuperem
de ser
e apenas, apenas por isso,
aprendam
a estar.
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DAS FLORES

"Vou plantar um milhão de flores!",
disse a mãe, toda ofegante,
como se a vida dependesse disso,
de algum quintal com flores.

Assim, separou as sementes,
escolheu o lugar e, de posse de si,
cavou, escavou e escalavrou
a cara da terra com as suas mãos
de mãe, de avó e de mulher.

Não sabia se dentro de sua alma
crescia uma rosa, uma dália,
ou uma porção de "primas veras",
mas, mesmo assim, plantava.

Ao fim, após um bom tempo,
uma boa chuva, eis o amor:
nasceu derredor da jardineira
um milhão de seres flóreos,
com suas pétalas enoveladas
em bastões de verde sólido,
a dizer que, das flores, nasce,
cresce, surge, aparece Deus.
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SÃO TRÊS GATOS

São três gatos lá em casa,
cada um com seu jeitinho,
que, com jeito, nos abrasa,
dando à gente seu carinho.

Tem a Alzira, a “delicada”;
o Peludo, o “rei de tudo”,
e o bichano que da escada
do jardim faz seu escudo.

Nessa data tão singela,
cada gato merecia
sua própria poesia!

Um versinho da janela
de que os gatos dia a dia
sonham pulos de alegria!

Fonte:
Poemas enviados pelo autor.

Aparecido Raimundo de Souza (A tristeza secreta do Lápis Preto)

Palavras com * e negritadas, veja vocabulário no final do texto.
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INTERVALO DAS AULAS, todos os estudantes saem para o refeitório. É hora do recreio. O Lápis Preto está num canto da carteira, amuado. A Borracha se achega à ele, a passos curtos e um carinho indescritível no rosto de maçãs salientes, a pele de porcelana. Fala. A sua voz é pausada, meiga e adocicada:

— Quer me contar o que está acontecendo?

Lápis Preto oferece à recém chegada uma cadeira e ela se acomoda, não sem antes repetir a indagação que acabara de fazer: “Quer me contar o que está acontecendo?”.  

— Não está acontecendo nada, Borracha.

— De uns dias para cá vejo você como agora, pelos cantos, cabisbaixo, não fala com ninguém. Perguntei ao Lápis Vermelho se sabia de alguma coisa, mas nada me esclareceu. Nem seu amigo, o Lápis Roxo quis me dar trela. Por fim, achei melhor vir falar diretamente com você. Vamos, abra seu coração.

— Ele está aberto. Nunca se fechou.

— E o dono dele?

— Só um pouquinho triste...

— E o motivo da tristeza?

— Nada sério que me afaste de meu estado normal.

— Não é o que seus olhos demonstram. Lápis Preto, sou sua amiga. Nos conhecemos de longa data. Nossa amizade vem desde quando morávamos nas prateleiras do shopping. Olhe para mim. Desabafe. Pela sua carinha, percebo que falta por aqui somente os instrumentos para que alguém o torture e o faça desabafar:  

— Por que acha que preciso desabafar?

— Porque a sua ausência dos demais da roda de amigos é muito acentuada. Seu enclausuramento no estojo, se faz distinto e marcante. Você passa horas sem falar uma palavra sequer. Olhe à sua volta. Seus outros companheiros de caixa estão todos unidos, tagarelando. E você aqui, jogado às traças, em cima desta carteira. O Apontador também pensa o mesmo que eu.

— E o que ele pensa?

— Muitas coisas. Que você pode estar doente, uma vez que anda meio macambúzio, literalmente desleixado... faz dias que não escreve nada, nem desenha. Segundo soube pela Régua, o menino Moisés, seu dono, está mais aberto ao Lápis Roxo. Até bem pouco tempo, você não largava do Lápis Marrom Terra. Vivia enrabichado com o Rosa Claro e com o cotoco do Amarelo Canário. Assim, do nada, debandou? Preste atenção. A Cola que gosta tanto de você, até ela, foi deixada de lado.

— Engano de vocês. Estou bem. Só um pouco cansado.

— Todos nós estamos. As aulas diárias nos deixam em petição de miséria, os nervo em frangalhos... porém...

—... Porém?

— Eu me preocupo com você, Lápis Preto. De verdade. Vivo por aí apagando as coisas tortas, invalidando os erros grosseiros, esvaecendo os garranchos, mandando para o lixo os desenhos sem pé nem cabeça que o menino Sucupira, meu dono faz. Contudo, apesar de todas estas loucuras do nosso catemerino*, aqui na escola, e, mesmo fora dela, não deixo de reparar em sua pessoa. A sua melancolia, por exemplo... a megera está estampada, gritante e esbugalhada em seu semblante de uma forma forte e deveras transparente, tão desanuviada e distinta, que não estou vendo como fazer para arranjar uma forma de sumir de vez com ela.

— Melancolia?

— Sim. Uma melancolia intrigante e declarada...

— Intrigante e declarada?

— Por certo, muito intrigante. “Intrigadérrima” para ser mais precisa. Chega a ser pesada e desgastante. Lápis Preto, sou sua amiga. Desabafa comigo.

O Lápis Preto, de repente, começa a chorar. A Borracha se levanta e o abraça com meiguice, como se ele fosse um filho seu:

— Põe para fora tudo o que está lhe fazendo mal...

Lápis Preto cede às súplicas da Borracha. Se recosta no ombro dela como se o céu tivesse caído por sobre a sua cabeça. Toma fôlego numa breve pausa e então  explana seu relato:

— De uns dias para cá, ando percebendo que os lápis de outras carteiras próximas vêm me repudiando vituperadamente*. Até o menino Moisés, que não ficava um dia sem me ver e me usar, me jogou para escanteio. Me trocou pela Caneta Azul. Estou me sentindo um lixo. Escutei o Clips tagarelando com o Papel Almaço, ainda a pouco. Insinuavam que uns caras iriam me tirar da coleção da caixinha onde moro com meus demais consanguíneos*.

— Meu Deus! E qual o motivo?

— O ponto “xis” da questão é o que está me matando aos poucos, numa lentidão enervante. Tudo por causa da minha cor. Sou preto, minha amiga. O preto não é bem visto em lugar nenhum. A coisa está tão profundamente enraizada, que disseram, não sei se procede a informação, parece que os fabricantes de lápis estão pensando seriamente em tirar de linha a produção dos lápis pretos, e, por consequência, os já existentes no mercado.

Lápis Preto retira do bolso um lenço e limpa os olhos, como se tentasse arrancar  deles algum cisco inexistente:

— Nós, os negros, somos vistos com ódio e repugnância. Existe uma coisa degradante lá fora, que acabou chegando e atingindo o centro nevrálgico de nossos ossos. A discriminação racial. Por conta, se alguma coisa acontece dentro de outros estojos próximos, de alguma carteira, bolsa, mochila, ou até mesmo na caixinha onde moro, vem logo a tragédia anunciada. Virou um despautério*: “Isso é coisa do Lápis preto... mancharam o caderno de “A”, ou de “B”, um infame logo apregoa*: “aposto que foi coisa de um Lápis Preto”. Enfim, essa carga malévola contra a nossa cor, surge do nada. Resumindo a história de todos os meus aparentados, amiga Borracha, ou os não nascidos brancos, saiba que eles carregam nos costados as manchas do preconceito. Grudado nele, o artifício da insensatez, grosso modo, dos que vieram ao mundo com as peles alvas. Por conta, padecemos e sentimos na carne os horrores impostos por esses dissidentes. O Preto, em dias de agora, é o vilão grosseiro, o maldoso inurbano*, o rurícula* asqueroso. Acredito que, em breve, nós os lápis pretos seremos as bolas da vez — as cartas fora dos baralhos...

A Borracha ouve em silêncio, atenta, compenetrada, sem interromper. Ao derradeiro, se agiganta numa exultação contagiante. Toma entre as suas as mãos de Lápis Preto e sem mais delongas coloca para fora o que lhe vai no mais profundo do intimo:

— Lápis Preto, você pode até pensar o contrário. É um direito seu achar que as demais cores não gostam de você. Eu, como sua amiga incondicional, entendo que tudo isso que está acontecendo com você é uma tolice, uma espécie de incidente repulsivo e avarento que deve ser deixado definitivamente de lado. Olhe em volta. Você é essencial, insubstituível, necessário, especial. Um elo basilar* e dominante como todos os demais pretos existentes fora do nosso mundinho de materiais escolares. O preto é o oposto do branco, a noite silenciosa, a escuridão necessária que nos acalanta a alma, o respeito ao isolamento quando queremos estar a sós. Sem a cor preta seria uma chatice ser e ver tudo hialino* ou diáfano*. O preto está no luto que vela os mortos, se faz sutil na noite angelical nos deixando ver as estrelas, a lua, e o mais importante: a grandiosidade dos olhos do Criador depois que o dia se recolhe à descansar.

A Borracha se cala, respira pausadamente, acaricia o rosto de Lápis Preto e segue com o que precisa acabar de ser dito:

— O preto, meu querido, se faz bonito e elegante. Perceba: se notabilizou nos quadros de pintores renomados, como Estevão Silva, Jacob Lawrance. Não parou ai. Se imortalizou nos escritores Carolina Maria de Jesus e Machado de Assis, sem contar que se fez inimitável nos artistas Grande Otelo e Gilberto Gil. Enfim, meu amado, você é parte integrante da sociedade em que vivemos.

— Borracha, minha princesa, desse jeito você me deixa sem palavras. Vou acabar me desmoronando numa tempestade de lágrimas...

— Essa é a ideia. Chore. Ponha para fora o que lhe maltrata o mais profundo do seu chão impenetrável. Quero lembrar que a sua cor é tão magnânima e indispensável, que para encerrar nosso bate papo, eu diria que a sua pessoa ou melhor dito, a sua cor, virou celebridade...

— Como assim, Borracha?

— O que estou querendo sinalizar, meu lindo, é que o mundo inteiro e os seres viventes que nele habitam (fora das caixinhas de lápis de cores, mochilas, salas de aulas e alunos chatos) o amam. Você agora é a paixão do momento. É febre quarenta graus.  Se transformou no senhor Black Friday. Por conta, todos, sem exceção, esperam a sua chegada triunfante mergulhados numa ansiedade efusiva e impossível de ser medida e descrita.

— Borracha, quer, por favor, me explicar o que é esse tal de Black... Black o que, mesmo?

— Só cantarei a pedra, se você me pagar um café... antes que os alunos voltem para o segundo tempo da aula...

— Não só a bebida, minha linda. Tudo mais que você desejar. É só pedir...

Lápis Preto e Borracha deixam o estojo e caminham, igual passo, as mãos entrelaçadas em direção à cantina.
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VOCABULÁRIO

Apregoa: aquele que fala em voz alta, vocifera proclamando algo a outros.

Basilar: coisa básica, essencial, o primordial o necessário.

Catemerino: o mesmo que cotidiano, o dia a dia, o diário.

Consanguíneos: parentes ligados pelo vínculo do sangue parentesco natural, pai, filho, filho, neto.

Despautérios: grande disparidades, imensa tolice, insensato despropósito.

Diáfano: que permite a passagem da luz, que é transparente e límpido, puro, sem manchas.

Hialino: Tudo o que é transparente, translúcido e claro.

Inurbano: sujeito que não é urbano. Aquele que vive longe da cidade, afastado, pessoa descortês.

Rurícula: aquela pessoa que vive no campo, que cultiva o meio do mato.

Vituperadamente: repudiando afrontosamente, desaprovando de maneira a desabonar ou enegrecer.


Fonte:
Texto e vocabulário enviados pelo autor.

Estante de Livros (Viagem ao Oriente, de Hermann Hesse)


O livro é uma história mística contada por Herman Hesse, membro de uma confraria secreta que empreende uma viagem rumo ao Oriente com seus outros membros, que incluem filósofos, músicos, artistas. Mas para fazer parte da confraria é preciso ter um objetivo pessoal.

Viagem ao Oriente é na verdade uma viagem para dentro de si mesmo. Daquelas que todos nós ansiamos: o voltar para a 'casa', uma viagem puramente simbólica.

No caminho para o Oriente um membro do grupo, Leo, desaparece junto com algo muito importante, causando mal estar, dúvidas e discussões. O resultado é a fragmentação do grupo. E assim, Hesse se vê fora da Confraria, o qual julgara ter chegado ao fim. Mas algo permanece inquieto dentro do personagem e ele inicia uma empreitada de encontrar Leo e saber o que aconteceu de fato. É como se isso fizesse parte da sua história e o ajudasse a encontrar algo que ele mesmo também julgou perdido na vida dele.

Hesse encontra Leo e descobre que na verdade ele nunca deixou a Confraria, e sim o inverso. Assim ele será julgado por toda a comissão pelo seu abandono. Uma história emocionante, que reflete muita das nossas tentativas de reconstrução individual e na busca que empreendemos para conhecermos a nós mesmos. E geralmente aquilo que julgamos perdidos na verdade foi por nós negado, deixado de lado. E assim passamos um tempo procurando o que nós mesmos escondemos.

terça-feira, 14 de junho de 2022

Edy Soares (Manuscritos (Di)versos) 11: Depois da Lua

 

Leon Eliachar (Decisão)

Dona Gertrudes quase caiu pra trás quando a filha lhe disse:

— Estou apaixonada pelo Zacarias, mamãe.

— Mas ele é casado, minha filha.

— E daí? Quem não é casado hoje em dia, mamãe?

Dona Gertrudes engasgou com a sopa, deixou cair o talher no chão:

— Que ideias são essas, minha filha? Onde é que você está aprendendo essas coisas?

— A senhora bem sabe o que penso do casamento.

Dona Gertrudes não tinha muita saída, diante do argumento decisivo da filha:

— Veja o seu caso, mamãe. A senhora não é casada com o papai e vive muito feliz com ele, não vive?

Dona Gertrudes tentou explicar:

— Mas o seu caso é diferente.

— Não há diferença alguma, quando duas pessoas se gostam.

Não houve jeito de demover a ideia da filha. Ela estava presa demais às suas convicções pra estar voltando atrás assim sem mais nem menos. Armando, o pai, ouvia o diálogo sem dizer uma palavra. Soprava a sopa, tranquilo, enquanto mãe e filha iam perdendo a calma.

— Não permitirei que você tenha ligação alguma com esse homem.

— Isso é o que a senhora pensa — respondeu, retirando-se da mesa.

Dona Gertrudes perdeu o apetite, trocou ideias com o companheiro. Nunca pensaram que isso fosse acontecer, logo à sua filha. Armando foi positivo:

— Quem sabe eles serão felizes, meu bem?

Dona Gertrudes ficou indignada:

— Até você, Armando? Onde é que você está com a cabeça? Já imaginou a sua filha “juntada” com um homem?

Armando calou a boca, preferiu não discutir. Chegou a pensar que sua companheira se sentisse infeliz por não ser casada com ele, com certidão e tudo. Para ele, bastava serem felizes, se compreenderem, se respeitarem, coisas que muito papel de cartório não dá a ninguém. Dona Gertrudes insistia:

— O que dirão os outros?

A filha voltou com duas maletas nas mãos, a tempo de rebater a última frase da mãe.

— Os “outros”, sempre os “outros”. Que é que os “outros” têm a ver com a minha vida?

Dona Gertrudes tentou convencê-la:

— Você não sabe o que está dizendo, minha filha. Nossas vidas sempre dependem mais dos outros do que de nós mesmos. Por mais que a gente se considere independente, temos sempre satisfações a dar aos “outros”. Não se esqueça de que vivemos numa sociedade e é ela quem dita as normas da vida.

A filha não quis ouvir tudo, deu um beijo na mãe, outro no pai, e foi saindo:

— Vou para um hotel. Sinto que não há mais clima pra mim dentro desta casa.

Dona Gertrudes enxugou uma lágrima. Seu Armando baixou a cabeça. Ninguém disse uma palavra. Quando ia saindo, a empregada entrou, como numa peça de teatro:

— Telefone pra senhora. É o Dr. Zacarias.

Correu pro telefone, falou quase quinze minutos, quando desligou estava com a fisionomia completamente mudada. Trouxe as maletas de volta:

— Zacarias vai viajar hoje para a Europa. Disse que vai passar lá dois anos, estão satisfeitos?

Dona Gertrudes e seu Armando correram para abraçá-la. A filha estava trêmula, não deu o braço a torcer:

— Vocês me aceitam de volta? Meu ponto de vista continua sendo o mesmo: marido pra mim, só homem casado.

— Está bem, minha filha, está bem. Mas por que você não foi com ele?

Caindo em prantos, ela respondeu:

— Ele foi com a mulher, mamãe. Fez as pazes com ela ontem à noite.

Um silêncio pesado caiu no ambiente e ficaram os três, calados, tomando a sopa fria.

Fonte:
Leon Eliachar. A mulher em flagrante. Publicado em 1965.

Ronnaldo de Andrade (Caderno de Trovas) – 5 -

Agora que tu és minha
e eu já sou todinho teu,
podemos, minha rainha,
enterrar o que morreu.
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Café na cama, beijinhos...
Sua mão e minha mão...
Somos no inverno peixinhos
nadando no meu colchão.
= = = = = = = = = = =

Cansei de ser passatempo,
seu brinquedo descartável.
Você foi um contratempo
para mim, incontestável.
= = = = = = = = = = =

Com as mãos postas no peito
declarei à minha amada,
meu amor mais-que-perfeito,
e morri sem ouvir nada.
= = = = = = = = = = =

Deixo em seu criado-mudo,
nossa foto de noivado;
nesse tempo eu era tudo
que você queria ao lado!
= = = = = = = = = = =

De maneira fria e crua,
covardemente e sem lógica,
você me tirou da sua
árvore genealógica.
= = = = = = = = = = =

É dureza amar a alguém
e não ser correspondido.
Às vezes, isso não tem,
nem faz o menor sentido.
= = = = = = = = = = =

És luz que brilha em meu céu,
linda, meiga e delicada;
pra santa te falta o véu,
linda luz de minha estrada.
= = = = = = = = = = =

Eu passo a noite cantando,
pra sufocar minha dor,
que aos poucos vai maltratando
meu coração sonhador.
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Eu sinto que estou amando
e esse amor muito me anima,
feito pássaro cantando
e uma trova toda em rima.
= = = = = = = = = = =

Lua que brilha no céu,
ilumina minha estrada,
para eu pegar o mel
nos lábios de minha amada.
(Trova em parceria com Brenda Lyn, minha filha)
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Meu corpo todo retalho,
e ela me diz: “– Não tem lógica,
só não lhe quero no galho
da árvore genealógica”.
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Minha tristeza é profunda,
quero tirar minha vida.
A minh'alma está imunda
e anda no mundo perdida.
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Não brinque assim! Não maltrate
o meu coração que é seu.
Nele vive, Amor, não mate
"o amor que, intenso cresceu...".
= = = = = = = = = = =

Não sai de minha memória
a nossa história de amor;
você, sua trajetória,
seu desejo abrasador...
= = = = = = = = = = =

Nosso amor é tocha acesa,
é mel que a gente consome;
geleia de framboesa:
tudo que nos mata a fome!
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Os olhos da noite estão
onde os seus não podem ver.
Pergunte ao seu coração
se ele sabe lhe dizer.
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Peço-lhe pra me perdoar,
mesmo se achar que é demência
o amor que eu quero lhe dar,
e que falo em reticência.
= = = = = = = = = = =

Por causa do teu ciúme
me afastei, fiquei distante;
porém isso não resume
quanto me foste importante.
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Preciso daquele amor,
aquele amor prometido
com graça e muito fervor,
antes de eu ser seu marido.
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Preciso de amor, carinho...
Gesto mais apaixonado,
pra não me sentir sozinho
tendo você a meu lado.
= = = = = = = = = = =

Procuro em minha memória,
um motivo e qual a lógica,
de não ter em nossa história
uma árvore genealógica.
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Solidão, não me judia
nem ria como os palhaços.
"Que dolorosa ironia"
ver quem amo em outros braços!
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Tarde fria! Chuva fina!
E essa saudade, a contento,
não deixa eu tirar, menina,
você do meu pensamento!
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Tenho ao meu lado a tristeza,
que você deixou um dia;
ela é melhor, com certeza,
do que a sua companhia.
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Tomou meu leme da vida
como fosse embarcação,
e partiu logo em seguida
do mar do meu coração!
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Você apareceu, querida,
toda altiva e majestosa,
e perfumou minha vida
com a fragrância de rosa.
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Volte aos meus braços, querida,
volte para o nosso lar;
e descubra enquanto há vida,
o valor do “perdoar”!

Fonte:
Trovas enviadas pelo trovador.

Sammis Reachers (As doces mangas – e o muro – do velho Lauro)

Como eu disse, uma das mais doces atividades da idade, figurada e literalmente, era apanhar frutas – dentro ou fora da legalidade, pois à época a fronteira entre tais picuinhas era muito sutil.

Em linhas paralelas, nosso pequeno sub-bairro era formado por apenas quatro longas ruas. A primeira, margeando o rio Alcântara, era a Manoel Bandeira, nosso terno e frágil poeta. Em seguida vinha a central e principal, honrando o grande Pastor Martin Luther King, e para cima as outras duas.

Me lembro de certa feita em que eu e Renato fomos em missão sigilosa até a última rua, que era pouco movimentada. Havia um terreno desocupado, protegido apenas por uma cerca de arame (ou seja: protegido pelo vento...) e, dentro dele, jazia solitária e imensa uma mangueira de manga espada. Ao lado do terreno ficava a casa do proprietário, essa medievalmente murada: era o irmão Lauro, por sinal pai de uma menininha que foi minha primeira paixão platônica.

Assim, vendo que o tempo era propício e as mangas convidativas, lá fomos nós naquela manhã surrupiar algumas delas. Eu e Renato já tínhamos certo know-how na área: na casa ao lado costumávamos roubar cajás... Rua deserta e silenciosa, penetramos no minifúndio e principiamos a tacar paus e pedras naquelas alturas, tentando derrubar algum favo daquele mel alaranjado, rainha das frutas vinda da Índia.

Em meio da faina naquela dura lavoura, nem percebemos quando o Lauro, um moreno com cabelos lisos como um índio, adentrando o clube dos obesos, “brotou” já dentro da cerca. O sexto sentido de Nato falhara, e nossa captura era iminente!

– Moleques safados, vou pegar vocês, vem cá! – e o brutamontes avançava, senhor de seu direito, afinal não pedíramos para colher os frutos.

Geralmente Renato percebia a presença hostil e imediatamente desabalava a correr em silêncio; jamais dizia sequer um “corre, Sammis”. Jamais! Eu que me virasse. Ou ficasse de boi pras piranhas. Mas neste dia ambos fomos pegos em perfeita surpresa, e corremos juntos para a única escapatória: o muro em tijolos nus que separava o terreno de Lauro da casa ao lado. Tal casa não possuía portão e o melhor, por seu quintal podiam ser acessadas duas ruas. Não era apenas a melhor rota de fuga, mas a perfeita, criada por Deus para isso.

Corremos em direção ao muro e pulamos – juntos, como símios habilitados em parkour, bem antes do parkour ser “fundado” em França. Eramos magricelas, mas o pedreiro que erguera aquele muro falhara em algo; assim que tocamos nossas mãos no alto do muro, de forma perfeitamente síncrona, algo divertidíssimo – ou triste no momento, mas hoje divertidíssimo – aconteceu. O muro começou a tombar com o nosso peso. Sim, nos agarramos no muro e ele “quebrou” quase ao meio. A sincronicidade dos moleques do balacobaco naquele dia foi elevada a nível olímpico, como de uma dupla de salto ornamental. Ainda no ar, caindo para trás com o muro, entendemos imediatamente que seríamos esmagados – nada que matasse, mas alguns ossos poderiam se quebrar e a fuga seria frustrada. Assim, em pleno ar, demos impulso com o pé de apoio no muro que caía, para que nos livrássemos de seu raio de impacto.

Amigos, caí em pé no chão, seguido pelo esboroar-se do muro, a coisa de apenas uns cinco centímetros de esmagar meus pés. E os de Renato, que caíra à mesma distância.

Pronto, subíramos de nível e já éramos Ninjas da Presepada.

Mas não era caso de comemorar o feito. Sem olhar para trás, pulamos por sobre os tijolos e o cotôco de muro que restara, enquanto o bom Lauro – poderia ter sido meu sogro! – multiplicava seu ódio ao perceber o prejuízo com o muro – muro que talvez ele mesmo tivesse erguido...

Aquela aventura não teve maiores consequências, pois o tal Lauro, ainda que conhecesse meus pais, aparentemente não me conhecia ou reconhecera, e nem a Renato, senão a notícia teria chegado lá em casa, como tantas chegaram, para alegria da vara de goiabeira e da sandália Havaianas de minha mãe, minhas inimigas figadais.

Fonte:
Sammis Reachers. Renato Cascão e Sammy Maluco: uma dupla do balacobaco. São Gonçalo/RJ: Ed. do Autor, 2021.
Livro enviado pelo autor.