domingo, 20 de novembro de 2011

Mark Twain (A Célebre Rã Saltadora)


De acordo com o pedido de um amigo meu, que me escrevera do Leste, fui visitar o bondoso palrador que é o velho Simon Wheeler, e, como me fora pedido, perguntei-lhe por Leonidas W. Smiley, amigo de um meu amigo; e aqui conto do resultado. Tenho uma secreta desconfiança de que Leonidas W. Smiley é um mito; que o meu amigo jamais conheceu tal personagem; e que apenas conjeturou que, se eu perguntasse ao velho Wheeler por ele, isso lhe lembraria o seu infame Jim Smiley e faria com que ele me ocupasse e me aborrecesse mortalmente com alguma diabólica recordação do outro, tão enfadonha como inútil para mim. Se era essa a sua intenção, o caso surdiu efeito.

Encontrei Simon Wheeler dormindo junto ao fogão da sala do bar da velha e arruinada taberna do antigo campo mineiro de Angel; reparei que era gordo e calvo e que havia uma expressão de cativante gentileza e simplicidade nas suas feições tranqüilas. Despertou e cumprimentou-me. Disse-lhe que um amigo meu me encarregara de fazer algumas investigações acerca de um companheiro querido de sua infância, chamado Leonidas W. Smiley – Rev. Leonidas W. Smiley, - um jovem sacerdote de quem ele ouvira dizer que em tempos residira em Angel Camp. Acrescentei que, se Mr. Wheeler me pudesse dar algumas informações acerca desse Rev., lhe ficaria muito grato.

Wheeler fez-me recuar para um canto bloqueou-me ai com a sua cadeira, depois fez-me sentar e desenrolou a monótona narrativa que se segue a este parágrafo. Nunca sorriu, nunca franziu as sobrancelhas, nunca a sua voz mudou do tom suave e cheio com que, de princípio, a afinara, nunca mostrou o mais ligeiro sinal de entusiasmo; mas, através da infindável narrativa, havia um impressivo ardo e uma sinceridade que claramente me mostravam nem pela imaginação lhe passar que houvesse qualquer coisa de ridículo ou cômico na sua história; considerava-a como um assunto importante e encarava seus dois heróis como talentos de especial fineses. Para mim o espetáculo de um homem desfiando serenamente uma história tão original, sem nunca sorrir, era estranhamente absurdo. Como já disse, pedi-lhe que me contasse o que sabia do Rev. Leonidas Smiley e ele respondeu-me como se segue. Deixei-o prosseguir como bem quis, sem o interromper uma vez sequer.

Houve aqui um sujeito de nome Jim Smiley, no inverno de 49 – ou talvez na primavera de 50 – não me recordo bem, mas o que de qualquer forma me fez lembrar que foi ou em um ou em outra é porque me lembro que o grande canal ainda não estava terminado quando vim a primeira vez para aqui; mas, fosse como fosse, ele era o homem mais interessante que havia por essas bandas, sempre a apostar qualquer coisa que aparecesse, desde o momento que pudesse arranjar alguém que apostasse pela parte oposta; e, no caso de não poder, mudava ele de parte. O que conviesse ao adversário, convinha-lhe a ele – de qualquer forma ficava satisfeito, desde o momento que pudesse apostar. Apesar disso, tinha muita sorte, uma sorte invulgar – ganhava sempre. Estava sempre pronto a espera de uma oportunidade. Qualquer coisa a que nos referíssemos, esse homem oferecia-se logo para apostar nisso, dando-nos o partido que mais nos agradasse, como já tive ocasião de dizer. Se havia uma corrida de cavalos, no final ou o víamos cheio de dinheiro ou, então, arruinado; se havia um combate de cães, ele apostava; apostava se havia um combate de galinhas; até mesmo se dois pássaros estivessem pousados em uma cancela, apostava qual deles levantava vôo primeiro; ou, se havia uma reunião no campo de mineiros, lá estava para apostar no Padre Walker, que ele considerava a criatura com maior poder de persuasão dos arredores, o que ele era em verdade e, além disso, um bom homem. Se visse um percevejo partir para qualquer lugar, apostaria consigo próprio quanto tempo levaria ele para chegar ao seu destino e, se aceitasse a aposta, seguiria o bicho até o México, sem saber para onde se dirigia nem quanto tempo gastaria na viagem. Muitos dos rapazes aqui conheceram o Smiley e podem contar-lhes coisas acerca dele. Nada lhe importava – apostava em qualquer coisa, o raio do homem. A mulher do padre Walker esteve doente durante bastante tempo e parecia já não poder salvar-se; mas, uma manhã, Smiley encontrou-o e perguntou-lhe como ela estava. “Louvado seja o Senhor pela sua infinita misericórdia, melhorou tão rapidamente que se porá boa em um instante”; e Smiley, sem pensar, disse: “Pois bem, aposto dois dólares e meio como ela não melhorará”.

Ora, este Smiley tinha uma égua – os rapazes chamavam-lhe uma pileca, mas de brincadeira, porque ela na verdade, era melhor do que isso – e ganhava dinheiro com aquele animal, embora tivesse asma, tuberculose ou outra qualquer doença. Costumavam dar-lhe duzentas ou trezentas jardas de avanço e, depois, a ultrapassavam. Mas, quase no fim da corrida, a égua excitava-se e, desesperada, vinha por aí fora atabalhoadamente, levantando uma poeira tremenda e fazendo uma barulheira com a tosse e os espirros – e o caso é que ganhava sempre por uma cabeça.

E tinha um cachorro buldogue que, ao olharmos para ele, parecia não valer meio tostão e que dir-se-ia servir apenas para vaguear por aí, a espera de uma oportunidade para roubar qualquer coisa. Mas logo que se apostava nele, tornava-se um cão diferente; o maxilar inferior distendia-se como castelo de proa de um navio e os dentes brilhavam como navalhas. E um cão qualquer podia desafiá-lo, e persegui-lo, e mordê-lo, e virá-lo de costas duas ou três vezes que Andrew Jackson – assim se chamava o cachorro – não se enfurecia; mostrava, mesmo, satisfação, como se não esperasse outra coisa. Dobradas e quadruplicadas as apostas, logo que todo o dinheiro estivesse apostado, o cachorro, de repente, agarrava-se à perna traseira do outro cão e não a largava – não dava dentadas, compreende, apenas o filava, e ali ficaria um ano, se fosse preciso, se não atirassem a esponja ao sr. Smiley, que sempre ganhou com aquele cachorro, até que um dia apostou contra um cão ao qual faltavam as pernas traseiras, que haviam sido cortadas por uma serra circular. Depois dos habituais preparativos e do dinheiro estar todo apostado, o cachorro, como era costume, tentou filar o adversário; mas de repente, viu que tinha sido intrujado e que o outro cão estava, por assim dizer, rindo dele. Dando mostras de muito surpreendido e desencorajado, já não tentou sequer ganhar a luta, tendo ficado bastante miltrado. Olhou para Smiley, para lhe dizer que se lhe despedaçava o coração e que a culpa era dele por lhe ter apresentado um cão a que faltavam as pernas traseiras, seu principal trunfo em um combate e, depois, coxeando durante um bocado, deitou-se e morreu. Era um bom cachorro aquele, e havia de tornar-se famoso se tivesse vivido, porque tinha qualidades para isso; era um gênio, tenho a certeza, embora ele nunca tivesse a oportunidade para falar nisso; mas, se assim não fosse, era impossível que um cão pudesse lutar como ele lutava. Sinto-me sempre triste quando penso no seu último combate e na maneira como decorreu.

Ora bem, esse Smiley tinha cães rateiros, e galos, e gatos, uma grande quantidade de bichos, que não deixava ninguém descansar e era a maneira de ele sempre ter qualquer coisa em que apostar. Um dia apanhou uma rã, levou-a para casa e disse que ia educá-la; e durante três meses não fez outra coisa, no pátio de sua cada, que não fosse ensiná-la a saltar. E, na verdade, ensinou-a bem. Dava-lhe um pequeno piparote, e era vê-la girar no ar, dar um salto mortal, ou mesmo dois, se tivesse tomado balanço e cair de pé, como se fosse um gato. Ensinou-a a apanhar moscas e mantinha-a em prática constante, de maneira que, mal ela via uma mosca, a caçava logo. Smiley dizia que uma rã do que precisava era de educação para fazer tudo o que quisesse – e eu acredito. Pois se vi por Daniel Webster aqui no chão – Daniel Webster era o nome da rã – e gritar “moscas, Daniel, moscas” e, mais depressa do que você leva a pestanejar, ela saltava e apanhava uma mosca ali no balcão, e tornava a pular para o chão, tão segura como se fosse um pedaço de lama, coçando o lado da cabeça com a pata traseira, tão indiferente como se estivesse convencida de que o que fazia era o que todas as rãs faziam. Nunca se vira uma rã assim; tão modesta, tão obediente, embora tão habilidosa. E, então, quando se tratava de saltar uma superfície lisa, podia ir mais longe, em um simples salto, do que qualquer outro animal da sua espécie. Saltar em terreno liso era a sua especialidade, compreende? E, quando era esse o caso, Smiley apostava nela todo o dinheiro que tinha. Smiley tinha um orgulho enorme desta rã e, diga-se de passagem, com razão, pois que pessoas viajadas diziam que ela batia todas as rãs que tinham visto.

Ora, Smiley guardava o animal numa gaiola e costumava trazê-lo aqui, à espera de apostas. Um dia, um estranho foi ter com ele e disse-lhe: “Que tem você nesta caixa?”

E Smiley respondeu com indiferença: “Podia ser um papagaio, um canário, mas não é – é apenas uma rã.”

E o homem agarrou na gaiola e voltando-a de um e outro lado, observou o bicho cuidadosamente e disse: “Hum... pois é. Mas para que ela serve?”

– Ora, aí está – disse Smiley – para uma coisa serve ela, julgo eu, consegue saltar mais do que qualquer outra rã da cidade de Calaveras. O homem tornou a pegar a gaiola, pôs-se a olhar muito tempo e, com cuidado, devolveu-a e disse, intencional:

– Não vejo nada nesta rã que a torne melhor do que qualquer outra.

– Talvez – disse Smiley – você entenda e rãs, ou não; talvez tenha tido experiência, talvez não passe de um amador. Seja como for, fico na minha e aposto quarenta dólares em como ela pode saltar mais do que qualquer rã de Calaveras.

– Eu, aqui, sou apenas um estranho e não tenho rã, mas se tivesse uma, apostava – disse o homem depois de pensar um minuto.

Ao que Smiley respondeu:

– Não faz mal; se você me segurar a caixa, vou buscar-lhe uma rã. O homem segurou, então, na caixa, pôs quarenta dólares no lado dos de Smiley, sentou-se e esperou.

E ali esteve durante muito tempo a pensar e repensar; depois tirou a rã para fora, abriu-lhe a boca, agarrou uma colher de chá e encheu-a de grãos de chumbo – encheu-a quase até os queixos – e pô-la no chão. Smiley tinha ido ao pântano e por lá andou a mexer na lama um bom pedaço, até que, por fim, apanhou uma rã; trouxe-a, deu-a ao homem e disse:

– Agora, se você está de acordo, eu a coloco aqui ao lado de Daniel, com as patas dianteiras na mesma linha e dou o sinal de partida. Atenção: Um, dois, três, salta! E ele e o outro tocaram nas rãs, e a nova rã saltou, mas Daniel fez um esforço, contorceu-se toda, encolheu os ombros como um francês, mas nada, nada se podia mexer; estava ali pregada, como se fosse uma bigorna; era como se estivesse ancorada. Smiley ficou mui admirado e bastante desgostoso, mas, claro está, não fazia idéia alguma da razão daquilo.

O outro recebeu o dinheiro e afastou-se, ao chegar a porta, apontou o dedo para Daniel – assim – tornou a dizer:

– Não vejo nada nessa rã que a torne melhor do que qualquer outra.

Smiley ali ficou, coçando a cabeça e olhando para Daniel durante algum tempo, até que por fim, disse:

Mas que diabos é que teria acontecido à rã? Terá ela qualquer coisa? Parece estar muito inchada! Agarrou Daniel pelo pescoço, levantou-a e disse:

- Diabos me levem se ela não pesa, pelo menos, cinco libras!

E, voltando-a de cabeça para baixo, viu-a vomitar uma porção de escumilha. Quando viu o que aquilo era, ficou furioso, pousou a rã e foi atrás do outro, mas não chegou a apanhar. E...

Nesta altura, Simon Wheeler ouviu que o chamavam, e levantou-se para ver o que era. Voltando-se para mim, enquanto andava, disse:

– Deixe-se ficar onde está, descansando, que eu não me demoro um segundo.

Mas, com vossa licença, não achei que a continuação da história do empreendedor vagabundo Jim Smiley fosse de molde a fornecer-me grandes informações a respeito do Rev. Leonidas e, por isso, levantei-me para sair.

À porta encontrei o afável Wheeler, de volta; agarrou-me por um botão do casado e recomeçou:

– Ora, este Smiley tinha uma vaca amarela, só com um olho, sem cauda, ou, antes, só com um toco, como se fosse uma banana, e...

– Ora, diabos levem o Smiley mais as atribuições da sua candice eu, jovialmente, e, despedindo-me do velho, fui-me embora.

Reinaldo Pimenta (Origem das Palavras 5)


ARRASTAR A ASA
Arrastar a asa para uma mulher é tentar conquistá-la com galanteios, fazendo charme. É o que o galo faz para conquistar uma galinha. Por isso, o galo capenga, de asa arriada, morre cedo: overdose de sexo.

BABAU!
Há três versões para a origem da interjeição indicativa de coisa perdida para sempre, o leitor escolhe:
(a) é uma onomatopéia (palavra imitativa de som, como tiquetaque, zunzum...);
(b) veio do quimbundo (língua africana) babau, que significa "foi-se";
(c) veio de baba, com o argumento de que a exclamação é freqüentemente acompanhada do gesto de passar as costas da mão do pescoço ao queixo e estendê-la aberta em frente ao rosto, indicando que a pessoa babou e não comeu.
O troféu criatividade vai para a última concorrente.

BAGULHO
O latim baga (baga) originou o português baga, fruto carnoso com sementes (como o tomate, a uva, o mamão) ou, por semelhança, gota. Baga é a origem de (a) bagaço, com a terminação aumentativa e pejorativa -aço e (b) bagulho, com a terminação diminutiva e depreciativa -ulho. Bagulho é o nome que se dá à semente (carocinho) da uva e de outros frutos. Por analogia e extensão ganhou o sentido de objeto usado ou de má qualidade, ampliado depois para coisa, troço.
Voltando ao latim baca, daí veio o italiano bagatelia (coisa sem valor), que deu o português bagatela, com o mesmo sentido. Depois, o uso popular, por ironia, deu-lhe o sentido oposto (quantia exagerada), com que aparece hoje mais freqüentemente - "o carro custou a bagatela de US$80 mil".
Baga foi para o masculino e ficou bago, com o significado inicial de cada fruto de um cacho de uvas; depois vieram outros sentidos, por analogia: qualquer fruto parecido com a uva, conta de rosário.

BAITOLA
A palavra teria surgido durante a construção da primeira estrada de ferro do Ceará. O chefe da obra, um engenheiro inglês, afetadíssimo para os padrões locais, vivia advertindo os trabalhadores para terem cuidado com a "baitola", que era como ele pronunciava a palavra bitola (a distância entre os trilhos). Então, alguns trabalhadores, convictos de que afetação não é coisa de macho, criaram baitola para designar o homossexual passivo.
E aí está o leitor a torcer o nariz. Tudo bem, tem cheiro de historinha, mas, até hoje, os etimólogos só encontraram essa explicação para a origem da palavra.

BANAL
Do francês banal. O sentido original da palavra banal, tanto em francês como em português, surgiu na época do Feudalismo: banal era tudo aquilo que pertencia ao suserano (o senhor) e era utilizado pelos vassalos (seus súditos). Assim, um moinho de um feudo, utilizado por todos os habitantes, era um moinho banal, sinônimo de comunitário. A partir daí, a palavra, nos dois idiomas, teve seu sentido ampliado para o de comum, vulgar.
O francês banal veio de ban, a proclamação do senhor feudal em seu território. Depois ban ganhou o sentido de comunidade formada pelos vassalos e seus semelhantes sob o comando do mesmo suserano. Como o espaço em que o suserano exercia esse comando era afastado e ficava fora das muralhas de seu feudo, recebeu em francês o nome de banlieue (ban + lieue, légua), palavra que hoje significa arredores, subúrbio.
O francês antigo ban também gerou a palavra bandon, autoridade, poder. Daí veio abandonner -a + bandon + (n)-er-, com o sentido literal de deixar alguém sob seu próprio e exclusivo arbítrio, origem do português abandonar.

Fonte:
PIMENTA, Reinaldo. A casa da mãe Joana 2. RJ: Elsevier, 2004

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Marquês de Rabicó II – O Pedido de Casamento


Narizinho estava no seu quarto conversando com a boneca.

— Senhora condessa, acho que é tempo de mudar de vida. Precisa casar, se não acaba ficando tia. Amanhã vem cá um distinto cavalheiro pedir a mão de Vossa Excelência.

Emília andava bem de saúde, gorda e corada. Tia Nastácia havia enchido de macela nova a perninha que fora saqueada no passeio ao reino das Abelhas e Narizinho havia consertado uma das suas sobrancelhas de retrós, que estava desfiando. Além disso, pintara-lhe nas faces duas rodelas de carmim, bem redondinhas.

Emília não se mostrava disposta a casar. Dizia sempre que não tinha gênio para aturar marido, além de que não via lá pelo sítio ninguém que a merecesse.

— Como não? — protestou a menina. E Rabicó? Não acha que é um bom partido?

A boneca ficou indignada e declarou que jamais se casaria com um poltrão como aquele. O fiasco feito na viagem à terra das Abelhas não era coisa que merecesse perdão.

A menina riu-se e explicou:

— Você está enganada, Emília. Ele é porco e poltrão só por enquanto. Estive sabendo que Rabicó é príncipe dos legítimos, que uma fada má virou em porco e porco ficará até que ache um anel mágico escondido na barriga de certa minhoca. Por isso é que Rabicó vive fossando a terra atrás de minhocas.

Emília ficou pensativa. Ser princesa era o seu sonho dourado e se para ser princesa fosse preciso casar-se com o fogão ou a lata de lixo, ela o faria sem vacilar um momento.

— Mas você tem certeza, Narizinho?

— Tenho certeza absoluta! Quem me revelou toda essa historia foi justamente o pai de Rabicó, o senhor Visconde de Sabugosa, um fidalgo muito distinto que vem fazer o pedido de casamento.

— Visconde? — repetiu Emília, desconfiada. — Então o pai desse príncipe é Visconde só? Eu quero casar com príncipe filho de rei.

— Você é uma bobinha que não sabe nada. O Visconde finge de Visconde, mas na realidade é rei e muito bom rei de um reino lá atrás do morro. Quando ele vier, repare na cabeça dele e veja que tem um sinal de coroa em redor da testa. Para esconder esse sinal ele usa cartola, que não tira nunca, nem na igreja. Desse modo, como ninguém vê o sinal da coroa, ninguém desconfia.

Emília pensou, pensou, pensou e disse:

— Pois bem, aceito! Mas desde já vou dizendo que não saio daqui. Caso-me, mas não vou morar com Rabicó enquanto ele não virar príncipe novamente.

— Muito bem! — concluiu Narizinho. — Nesse caso, vá preparar-se para receber o Visconde, que não deve tardar. Ele já está a caminho. Vista aquele vestido de pintas vermelhas e ponha mais ruge na cara, ouviu?

Enquanto a boneca se vestia, a menina correu ao pomar em procura de Pedrinho, que estava ocupado em chupar laranjas-lima.

— Depressa, Pedrinho! Arranje-me um bom Visconde de sabugo, bem respeitável, de cartola na cabeça e um sinal de coroa na testa, e venha com ele pedir Emília em casamento. Enganei-a que Rabicó é filho desse Visconde, o qual é um grande rei de um reino lá atrás do morro. Os dois, pai e filho, foram encantados por uma fada, só devendo se desencantarem no dia em que Rabicó descobrir uma certa minhoca com um certo anel mágico na barriga.

— E a boba acreditou?

— Acreditou piamente e declarou que nesse caso aceitará Rabicó como esposo, embora não vá morar com ele enquanto não virar príncipe novamente.

Pedrinho fez como Lúcia pediu. Arranjou um bom sabugo, ainda com umas palhinhas no pescoço que fingiam muito bem de barba, botou-lhe braços e pernas, fez cara com nariz, boca, olhos e tudo – e não esqueceu de marcar-lhe a testa com um sinal de coroa de rei.

Depois enterrou-lhe na cabeça uma cartolinha e lá foi com ele à casa da boneca.

— Toc, toc, toc, bateu.

— Quem é? — indagou de dentro a voz da menina.

— É o ilustre senhor Visconde de Sabugosa que vem fazer uma visita à senhora condessa de Três Estrelinhas e pedi-la em casamento para o seu ilustre filho, o senhor marquês de Rabicó.

— Esperem um minutinho que já abro — respondeu a menina.

E voltando-se para a boneca:

— Vê, Emília? Além de príncipe ele ainda é marquês. De modo que se você casar-se com ele começa já a ser marquesa e um dia virará princesa. Não pode haver futuro mais bonito para uma coitadinha que nasceu na roça e nem em escola esteve. Você vai ser a Gata Borralheira das bonecas!...

Emília deu três pulinhos de alegria e foi correndo botar mais um pouco de pó de arroz. Enquanto isso o Visconde entrou.

Narizinho fez-lhe uma respeitosa reverência e respondeu, sem dar a entender que estava falando com um rei disfarçado:

— Muito prazer, senhor Visconde! Puxe uma cadeira e sente-se no chão. Creia que fico muito satisfeita de saber que seu filho é marquês. E como vai a senhora Viscondessa?

— Sou viúvo — respondeu o Visconde, suspirando profundamente.

— Meus pêsames! E a senhora sua mãe, dona Palha de Milho?

O Visconde suspirou de novo.

— Coitada! Faleceu num horrível desastre...

— Como? Conte-nos isso — exclamou Narizinho, fingindo grande aflição.

— Pois é. Foi comida pela vaca mocha — explicou o Visconde, enxugando nas palhinhas de milho do pescoço duas lágrimas, uma de cada olho.

— A pobre! — murmurou a menina muito triste. — Eu sinto bastante, Visconde, mas o mundo é isto mesmo. Um come o outro. A vaca mocha come as donas Palhas e a gente come as vacas. A vida é um come-come danado! Estou aqui apostando que também os seus filhos foram comidos pela senhoras galinhas...

O Visconde arregalou os olhos como se não soubesse que tinha mais filhos além do marquês.

— Sim — explicou Narizinho. — Os grãos de milho que Vossa Excelência já teve pregados pelo corpo, creio que podem ser chamados seus filhos.

— Ah, sim, é verdade! Foram comidos pelo galo índio há duas semanas.

Nisto Emília apareceu à porta, no seu vestidinho de chita com pintas vermelhas.

— Senhor Visconde — disse a menina — tenho o prazer de lhe apresentar a sua futura nora, a senhora condessa de Três Estrelinhas. Veja como é galante!...

O Visconde levantou-se para saudar a boneca e por “distração” tirou a cartola, deixando que Emília visse o sinal de coroa em sua testa.

— Tenho a mais subida honra de receber no seio de minha família esta nobre condessa — disse ele. — Pelo que vejo é a mais linda criatura destes arredores! Acho-a ainda mais bonita que a franguinha pedrês de tia Nastácia...

Emília fez uma cortesia para agradecer a amabilidade, embora torcesse o nariz àquela comparação com a franguinha pedrês.

— E não é só isso — interveio Narizinho. — Bonita e prestimosa como não há outra! Sabe fazer tudo. Cozinha na perfeição, lava roupa e lê nos livros que nem uma professora. Emília é o que se chama uma danada.

— Muito bem! Muito bem! — ia exclamando o Visconde.

— Também toca lindas músicas na vitrola, mia como gato, arrebenta pipocas e tem muito jeito para modista. Esse vestidinho de pintas, por exemplo, foi todo feito por ela.

Emília, que ainda não sabia mentir, interrompeu-a, dizendo:

— Não fui eu, foi tia Nastácia quem o fez. A menina deu-lhe um beliscão sem que o Visconde percebesse.

— Não repare, Visconde. Emília é muito modesta. Faz as coisas mas não quer que se diga. Esse vestido ela o fez sozinha, sozinha. Ela mesma escolheu a fazenda, ela mesma cortou e coseu. E olhe como ficou bem assentado nas costas. Levante-se, Emília, e vire-se de costas para o Visconde ver.

Emília levantou-se da cadeira e deu umas voltas pela sala.

— Não está dos mais elegantes mas serve – continuou Narizinho. — Emília nasceu aqui na roça e nunca foi à cidade, nem aprendeu costura. Para uma criatura nessas condições não acha que está bem feitinho?

O Visconde olhou, olhou e disse:

— Eu, a falar a verdade, não entendo de modas. Mas acho muito bom. Só que a saia me parece um tanto curta...

— Eu também acho e já o disse a ela; mas Emília como tem perna grossa, anda com mania de mostrá-la. Só usou saia comprida durante o tempo da perna seca — e contou ao Visconde o caso do ouro-macela. Depois, mudando de assunto, pediu informações a respeito do gênio de Rabicó.

— Ele tem muito bom gênio — disse o Visconde. — Não é briguento, nem provocador. Possui belas qualidades. Quanto ao mais, gosta muito de dormir ao sol e fossar a terra para descobrir minhocas.

Nesse ponto a menina piscou para a boneca, querendo referir-se à história de certo anel que ele andava procurando dentro de certa minhoca, e Emília convenceu-se de que Rabicó era mesmo um príncipe encantado.

— O único defeito que tem — continuou o Visconde — é comer tudo quanto encontra. Rabicó não respeita coisa nenhuma!

Emília fez carinha de nojo e foi cuspir à janela. Depois, metendo-se na conversa, disse:

— Pois se se casar comigo só há de comer coisas gostosas e cheirosas. Não consinto que meu marido ande comendo o que encontra.

— Apoiadíssimo, Emília! — exclamou a menina. — Também penso desse modo e acho que você faz muito bem de exigir isso dele. Mas agora só resta saber se você aceitou ou não aceita o senhor marquês de Rabicó como esposo. Vamos lá. Resolva...

Emília ficou meio aflitinha de ter de decidir por si mesma uma questão de tal gravidade como essa de escolher um esposo e olhou Narizinho interrogativamente, como quem pede auxílio. Mas a menina não quis intervir, porque não desejava ficar com a responsabilidade.

— Não devo dar opinião, Emília. Você tem que decidir por si mesma. Casamento não é brincadeira.

A boneca pensou, pensou, pensou e afinal, tentada pela idéia de começar marquesa e um dia virar princesa, resolveu-se.

— Pois quero!

Narizinho bateu palmas.

— Bravos! Está tudo resolvido. Senhor Visconde, abrace a sua nora, a futura marquesa de Rabicó...

O Visconde ergueu-se bastante comovido. Abraçou a boneca e deu-lhe um beijo na face.

Emília, muito vermelhinha, foi correndo para o quarto.
––––––––
Continua... O Noivado de Emília

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 400)

Selma Patti Spinelli (São Paulo), A. A. de Assis (Maringá) e Carolina Ramos (Santos)
Uma Trova Nacional

Felicidade é uma bola,
que a gente, em tola disputa,
corre atrás enquanto rola
quando para, a gente chuta!
–PEDRO ORNELLAS/SP–

Uma Trova Potiguar

Velhas cortinas listradas
em veludo multicor,
inda mantêm bem guardadas
nossas lembranças de amor
–DJALMA MOTA/RN–

Uma Trova Premiada

2009 - Nova Friburgo/RJ
Tema: SAUDADE - 3º Lugar

Se o meu tempo está marcado
e da saudade eu disponho,
invento alguém ao meu lado,
cerro meus olhos e sonho...
–MÍLTON NUNES LOUREIRO/RJ–

Uma Trova de Ademar

Descobri no envelhecer,
em meus momentos tristonhos,
que eu não tive, em meu viver,
nada mais além de sonhos!...
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Termina a noite estrelada...
E por estranha magia,
vejo as mãos da madrugada
abrindo as portas do dia...
–ABIGAIL RIZINNI/RJ–

Simplesmente Poesia

Instinto
CARLOS LÚCIO GONTIJO/MG

O cachorro late no quintal
Pode ser um ladrão maroto
Um gato vadio
Um rato de esgoto
Uma sombra evanescente
Ou um latido inocente do vira-lata
Que vendo a lua em esquecimento
Entoou instintiva serenata.

ESTROFE DO DIA

Eu te vi, tu me viste, nós nos vimos,
eu te amei, tu me amaste, nos amamos,
eu te olhei, tu me olhaste, nos olhamos,
eu sorri, tu sorriste, nós sorrimos;
eu senti, tu sentiste, nós sentimos
os encantos de um sonho promissor,
ter você ao meu lado aonde eu for
é da vida a ventura que mais quero,
eu te amo, te adoro e te venero,
só a morte separa o nosso amor.
–DIMAS BATISTA/PE–

Soneto do Dia

Não me Fales
–LUIZ ANTONIO CARDOSO/SP–

Não me fales mais nada sobre as dores
de minha amada, pois meu coração
tão triste, já cansado de ilusão,
não mais suporta tantos dissabores.

Não me fales sobre atos incolores
que inundam o universo da paixão!
A vida é muito mais: - é imensidão
de aromas, de beleza e de sabores!

Seu mundo poderia ser coberto
de abraços, de carinhos infinitos...
mas eis que segue pelo rumo incerto!

Por isso não me fales nunca mais,
do amor... nem dos tropeços inauditos,
daquela que não hei de ter jamais!

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

sábado, 19 de novembro de 2011

Trova Ecológica 47 - Wagner Marques Lopes (MG)

Carlos Drummond de Andrade (O Poeta Singrando Horizontes XIII)


DESTRUIÇÃO

Os amantes se amam cruelmente
e com se amarem tanto não se vêem.
Um se beija no outro, refletido.
Dois amantes que são? Dois inimigos.

Amantes são meninos estragados
pelo mimo de amar: e não percebem
quanto se pulverizam no enlaçar-se,
e como o que era mundo volve a nada.

Nada. Ninguém. Amor, puro fantasma
que os passeia de leve, assim a cobra
se imprime na lembrança de seu trilho.

E eles quedam mordidos para sempre.
deixaram de existir, mas o existido
continua a doer eternamente.

DOMICÍLIO

... O apartamento abria
janelas para o mundo. Crianças vinham
colher na maresia essas notícias
da vida por viver ou da inconsciente

saudade de nós mesmos. A pobreza
da terra era maior entre os metais
que a rua misturava a feios corpos,
duvidosos, na pressa. E de terraço

em solitude os ecos refluíam
e cada exílio em muitos se tornava
e outra cidade fora da cidade
na garra de um anzol ia subindo,
adunca pescaria, mal difuso,
problema de existir, amor sem uso.

DURAÇÃO

O tempo era bom? Não era.
O tempo é, para sempre.
A hera da antiga era
roreja incansavelmente.

Aconteceu há mil anos?
Continua acontecendo.
Nos mais desbotados panos
estou me lendo e relendo.

Tudo morto, na distância
que vai de alguém a si mesmo?
Vive tudo, mas sem ânsia
de estar amando e estar preso.

Pois tudo enfim se liberta
de ferros forjados no ar.
A alma sorri, já bem perto
da raiz mesma do ser.

ELEGIA

Ganhei (perdi) meu dia.
E baixa a coisa fria
também chamada noite, e o frio ao frio
em bruma se entrelaça, num suspiro.

E me pergunto e me respiro
na fuga deste dia que era mil
para mim que esperava
os grandes sóis violentos, me sentia
tão rico deste dia
e lá se foi secreto, ao serro frio.

Perdi minha alma à flor do dia ou já perdera
bem antes sua vaga pedraria?
Mas quando me perdi, se estou perdido
antes de haver nascido
e me nasci votado à perda
de frutos que não tenho nem colhia?

Gastei meu dia. Nele me perdi.
De tantas perdas uma clara via
por certo se abriria
de mim a mim, estela fria.
As árvores lá fora se meditam.
O inverno é quente em mim, que o estou berçando,
e em mim vai derretendo
este torrão de sal que está chorando.

Ah, chega de lamento e versos ditos
ao ouvido de alguém sem rosto e sem justiça,
ao ouvido do muro,
ao liso ouvido gotejante
de uma piscina que não sabe o tempo, e fia
seu tapete de água, distraída.

E vou me recolher
ao cofre de fantasmas, que a notícia
de perdidos lá não chegue nem açule
os olhos policiais do amor-vigia.
Não me procurem que me perdi eu mesmo
como os homens se matam, e as enguias
à loca se recolhem, na água fria.

Dia,
espelho de projeto não vivido,
e contudo viver era tão flamas
na promessa dos deuses; e é tão ríspido
em meio aos oratórios já vazios
em que a alma barroca tenta confortar-se
mas só vislumbra o frio noutro frio.

Meu Deus, essência estranha
ao vaso que me sinto, ou forma vã,
pois que, eu essência, não habito
vossa arquitetura imerecida;
meu Deus e meu conflito,
nem vos dou conta de mim nem desafio
as garras inefáveis: eis que assisto
a meu desmonte palmo a palmo e não me aflijo
de me tornar planície em que já pisam
servos e bois e militares em serviço
da sombra, e uma criança
que o tempo novo me anuncia e nega.

Terra a que me inclino sob o frio
de minha testa que se alonga,
e sinto mais presente quanto aspiro
em ti o fumo antigo dos parentes,
minha terra, me tens; e teu cativo
passeias brandamente
como ao que vai morrer se estende a vista
de espaços luminosos, intocáveis:
em mim o que resiste são teus poros.
Corto o frio da folha. Sou teu frio.

E sou meu próprio frio que me fecho
longe do amor desabitado e líquido,
amor em que me amaram, me feriram
sete vezes por dia, em sete dias
de sete vidas de ouro,
amor, fonte de eterno frio,
minha pena deserta, ao fim de março,
amor, quem contaria?
E já não sei se é jogo, ou se poesia.

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 399)


Uma Trova Nacional

Ao casar, perdeu a fala
o pobre do Manoel,
achando a sogra na mala
em plena lua de mel...
–ANTÔNIO COLAVITE FILHO/SP–

Uma Trova Potiguar

Lá na granja do Zé Novo
foi montada a sentinela...
O galo que não faz ovo
vai pro fundo da panela.
–DJALMA MOTA/RN–

Uma Trova Premiada

1988 - Inter Sedes/RJ
Tema: COROA - Venc.

Tenho coroa no dente.
Sendo assim, não beijo à-toa...
coroa de beijo quente
derrete qualquer coroa...
–ALOÍSIO ALVES DA COSTA/CE–

Uma Trova de Ademar

A mulher por malandragem,
desfila com um “tampão”!
Fecha a porta da garagem
mas não empata a visão!...
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Vive o Domingos feliz
sem o trabalho enfrentar,
que os "domingos" - ele diz –
são feitos pra descansar...
–CARLOS GUIMARÃES/RJ–

Estrofe do Dia

Querosene numa lata,
Pão guardado num caixote,
Solda preta e cocorote,
Pentide, pasta, e batata,
Sola pra fazer chibata,
Melhoral e formicida,
Tem mercúrio pra ferida,
Um balconista gaiato;
Uma bodega no mato
De muita coisa é sortida!
–HÉLIO CRISANTO/RN–

Soneto do Dia

Consagração
–PEDRO MELLO/SP–

Cansado do "jejum" que a sua idade
lhe impôs à atividade sexual,
o vovô se animou com a novidade
de que o Viagra não faria mal...

Cheio de amor pra dar e de Ansiedade,
Alfredo foi pular o Carnaval...
E na Sapucaí, uma beldade
fá-lo sentir-se forte e jovial...

Mas na hora "H"... seu coração se abate...
Alfredo é posto fora de combate,
mas sucumbe feliz nosso ancião:

É velado com grande galhardia
e, escondendo o "tamanho" da alegria,
flores a mais enfeitam seu caixão...

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Urda Alice Klueger (No Tempo das Tangerinas)


Romance narrado em 3ª pessoa. Regionalismo alemão - histórico e ficcional. É a história de Guilherme Sonne, neto de Julius Sonne, filho de Julius Humberto Sonne, descendentes do 1º colonizador alemão vindo para Blumenau no século XVIII. Humberto Sonne é protagonista do romance Verde Vale; No Tempo das Tangerinas é, portanto, uma seqüência da colonização de Blumenau.

O livro se inicia com a bela descrição da paisagem local, da família Sonne, o pai, a mãe Lucy, que teria vindo para o Brasil fugindo da 1ª Guerra Mundial, e seus 10 filhos: Humberto-Gustavo, Guilherme, Wilhelm, Julius, Arnaldo, as irmãs Margeritha, Emma, Anneliese, Priscila e a temporã Kátia.

É neste cenário que a família recebe notícias de uma 2ª Guerra Mundial, que seguem ouvindo informações pela emissora alemã. Blumenau ainda era extensão da Alemanha, falavam a mesma língua, tinham as mesmas tradições; a diferença é que lá reinava a miséria, a doença, aqui a fartura.

No mês de maio, as tangerinas carregavam as árvores dos morros e exalavam um aroma inesquecível por gerações; para lá que as crianças se dirigiam, faziam suas brincadeiras e discutiam as dificuldades da guerra.

Com o ingresso do irmão mais velho no Exército, Guilherme fará os serviços mais pesados; Cristina, bisneta de Humberto Sonne, viria para o Brasil fugindo da guerra, e Guilherme nutrirá paixão platônica pela prima até se apaixonar por Terezinha, descendente de italianos, provinda de Biguaçu, motivo de rejeição da mãe por considerá-la miscigenada.

Também foi por racismo que Guilherme não soube do parentesco com o mulato Alex Westarb, seu primo, fruto da união do tio Reno e Elisa, uma mulata brasileira. Lucy se abate ao saber que o navio Bismarck fora afundado e não via a hora de a Alemanha se reerguer e ser vingada (lembrou-se da 1ª Guerra). Guilherme servirá o Exército e saberá da gravidez de sua mãe, seu décimo irmão, na verdade Kátia, uma irmã.

No serviço, Emma o substituirá e, com tino para os negócios, prosperará. Em janeiro de 1942 o Brasil rompe relações com o Eixo - Alemanha, de ameaça passará para a condição de inimiga para os brasileiros, motivo de muita dor para quem tinha dupla nacionalidade. Soldados brasileiros invadem a casa dos Sonne e o Brasil declara guerra à Alemanha.

Humberto-Gustavo será obrigado a ir para a guerra, mas Guilherme, na véspera, contrairia malária, o que o poupou de ir a campo e o medo de perder o filho, fez Lucy aceitar seu namoro com Terezinha.A guerra continuava assustadora, Emma é presa por estar falando Alemão com outras moças. Guilherme e Terezinha se casam, mas quando é novamente convocado para se alistar, a febre reaparece, salvando-o.

Humberto volta da guerra, marcado por granadas, deixa para trás os companheiros Klaus e Dirceu. Nasce em 1945, Lucy Maria Sonne, filha de Guilherme e Terezinha. 30 anos após a guerra, o herói está amadurecido, perceberia que a guerra não acabava nunca e que o tempo das tangerinas, marca de sua infância e inocência, voltava sempre, fazendo-o esquecer, com seu aroma, as dificuldades do dia-a-dia.

Fonte:
http://www.livrosgratis.net/categoria-resumos/43/Resumos/

Paraná em Trovas Collection - 6 - Apollo Taborda França (Curitiba/PR)

Emiliano Perneta (Ilusão) Parte 5


CORRE MAIS QUE UMA VELA...

Corre mais que uma vela, mais depressa,
Ainda mais depressa do que o vento,
Corre como se fosse a treva espessa
Do tenebroso véu do esquecimento.

Eu não sei de corrida igual a essa:
São anos e parece que é um momento;
Corre, não cessa de correr, não cessa,
Corre mais do que a luz e o pensamento...

É uma corrida doida essa corrida,
Mais furiosa do que a própria vida,
Mais veloz que as notícias infernais...

Corre mais fatalmente do que a sorte,
Corre para a desgraça e para a morte...
Mas eu queria que corresse mais!

***

QUADRAS

À memória do Albino Silva

Eu de certo não sei, se venho d’um gorila,
Ou se venho talvez do paraíso terreal...
Em todo caso pó, e quando muito argila...
Achei-me um dia aqui; quem sabe por meu mal!

Eu não sei d’onde vim; mas viesse d’onde viesse,
Da poeira ou da luz, do gorila ou de Adão,
Toda a minha ânsia é de subir como uma prece,
Toda a minha ânsia é de brilhar como um clarão.

Para onde vou? Não sei. Qual é o meu destino?
Também não sei. Porém desejo caminhar
Por essa estrada além, bem como um peregrino,
E o meu instinto é como um pássaro a voar!...

***

DONA MORTE

entrando num albergue:
......................................................................

– Mãe, que és tão pobre e não tens leite,
Ó dor crescente! ó Lua cheia!
Vida – candeia sem azeite,
Olha-me, vê, não sou tão feia!
Pé ante pé,
Queres? olé !

Glacial, esguia, num momento,
Eu entro, sopro essa candeia...
Queres? olá !
Quem foi? quem foi?
– o norte, o vento...
Ah! ah! ah! ah! ah! ah! ah! ah!
…………………....……………………

***

INCOERÊNCIA

Quando eu aperto assim mais leve que uma pluma,
Ó meu desejo bom, ó minha flor-de-lis,
Esse teu seio nu, de carne que perfuma,
Em abraços, em beijos loucos e febris,

Não sei dizer por que, mas vem-me à fantasia,
Que em vez de estar aqui, abraçando-te nua,
Por sobre este peplum de seda, eu poderia
Andar inquieto aí, pelo meio da rua,

Exposto ao vento, à chuva, à neve, ao frio, ao lodo,
Pálido de suor, carregado de tédio,
A procurar em vão, nervoso e quase doido,
Para um irmão, que morre, um extremo remédio !

***

SOLIDÃO

Ao J. H. de Santa Rita

Desde os mais tenros anos, Solidão,
Que adivinhei que eu era teu irmão.

Onde quer que eu, andando, te encontrasse,
Ó sombra, ó sonho, ó ilusão falace,

Fosse na imensidade azul do mar,
Todo num fim de luz crepuscular,

Ou na deserta e solitária praia,
Quando o vento soluça e a onda desmaia,

Sempre que te enxergava, em vez de ter
Medo, como outros têm, tinha prazer.

Tinha um secreto gozo, uma alegria,
Tão esquisita que eu não definia.

Era como se acaso visse alguém
Que conhecesse, que quisesse bem...

Tal a misteriosa afinidade
Que havia entre nós dois, ó Soledade!

Entretanto, não sei que sucedeu,
Não foste minha, e nem pude ser teu.

E era, bem compreendo, era no meio
Desse florido e aveludado seio,

Que eu devera passar a vida, e não
Como a passei, aqui, ó Solidão,

Entre enganos cruéis e desenganos,
Dias e dias e anos e anos!

Era em teu seio, sim, como um enfermo,
Teu seio triste, e vasto, e nu, e ermo...

Era em teu coração, que para mim
Foi sempre aberto em flor, como um jardim...

Inda tenho, porém, frescuras d’alma,
Lírios e rosas, violeta e palma...

Inda te posso amar, ó minha flor,
Com a mesma graça, com o mesmo ardor,

Com o mesmo gesto, a mesma inquietude,
Com que eu amei na flor da juventude...

Pois serei teu, e tu, a embriaguez
De quando amei pela primeira vez.

E teu somente, ó flor silenciosa,
Coroada de mirtos e de rosa,

Nós fugiremos, pombos ideais,
Longe destes abutres e chacais,

Para o fundo dos vales e dos montes,
Ao pé dos lírios, em redor das fontes,

Enlaçados no mesmo abraço pois,
No mesmo beijo luminoso os dois,

Ó doce paz, ó meu dourado asilo,
De um azul melancólico e tranquilo,

Ó ilusão, ó mãe das ilusões,
Filosofias e religiões,

Mãe de tudo que é belo e que irradia,
Mãe do Silêncio e da Sabedoria!

Dezembro – 1907

Fonte:
Emiliano Perneta. Ilusão e outros poemas. Re-edição Virtual. Revista e atualizada por Ivan Justen Santana. Curitiba: 2011

Reinaldo Pimenta (Origem das Palavras 4)


AMIGO DA ONÇA
Amigo da onça é o amigo hipócrita, falso.
A expressão surgiu quando um caçador mentiroso contava mais uma de suas histórias: acuado por uma onça, sem nenhuma arma ou objeto para se defender e sem caminho para escapar, ele deu um berro tão forte, que a onça fugiu apavorada. Um ouvinte deu um risinho de mofa e comentou que isso era impossível. O caçador, indignado, retrucou: "Afinal de contas, você é meu amigo ou amigo da onça?".

AMIGO URSO
Outro amigo falso. A expressão veio da fábula de La Fontaine em que um homem e um urso ficam amigos. Um dia o urso vê o homem dormindo com uma mosca pousada no nariz. Para espantá-la, o urso atira vigorosamente uma pedra que bate no meio da testa do homem e o mata. Moral da fábula: um inimigo inteligente é menos perigoso que um amigo ignorante.

ANTÁRTICA
O indo-europeu rksos, urso, originou árktosem grego eursusem latim (daíurso). Em grego, árktos gerou arktikós, relativo ao urso. Foram os gregos que batizaram de Árktos as constelações de Ursa Maior e de Ursa Menor, ambas próximas ao pólo norte. Assim, o pólo norte é o pólo ártico (do latim arcticu), e o pólo sul, o oposto, é o pólo antártico (do latim antarcticu, que veio do gregoantarktikós, formado de anti, oposto + arktikós, ártico).
Por isso, o nome correto do continente que fica no pólo oposto é Antártica (e não "Antártida", já que não existe, opostamente, uma região "ártida"). Por lembrar grosseiramente a forma de uma carroça puxada por bois, a constelação de Ursa Maior, que tem sete estrelas, era chamada pelos romanos de septem triones (sete bois). Das palavras latinas daí derivadas septentrione e septentrionale vieram setentrião (o pólo norte) e setentrional (situado no Norte).

ANTEPASTO
EM PORTUGUÊS, A PALAVRA PASTO (do latim pastu, pasto, sustento, alimento) pode significar (a) terreno onde o gado se alimenta, (b) alimento, comida. Daí, antepasto é o que se serve nas refeições antes do primeiro prato, antes do pasto, sem necessidade de mugir.

APANHEI-TE, CAVAQUINHO!
Expressão usada quando se surpreende alguém num flagrante. Ficou popularizada graças a uma polca, com esse título, do grande compositor Ernesto Nazareth (1863-1934). Nazareth exclamou a frase quando, depois de muito esforço, conseguiu transcrever uma composição. Nazareth era um homem muito educado.

ARÁBIAS
Antigamente, alguns nomes de países eram empregados no plural em razão de suas divisões políticas ou naturais: as Itálias, as Espanhas. Dizia-se as Arábias, porque a Arábia se dividia em três partes: a pétrea (noroeste), a desértica (centro) e a feliz (sul) - essa divisão assim aparece em "Os lusíadas", de Camões (canto IV, LXIII).
Uma pessoa das arábias é uma pessoa espantosa, excêntrica, incompreensível, tal como era a Arábia para navegantes e escritores, na época das grandes navegações.

Fonte:
PIMENTA, Reinaldo. A casa da mãe Joana 2. RJ: Elsevier, 2004

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Marquês de Rabicó I – Os Sete Leitõezinhos


Eram sete leitõezinhos. Bem sei que sete é conta de mentiroso, mas eram mesmo sete, todos ruivos, com manchas brancas pelo corpo. Quando a mamãe deles saía a passeio, os sete leitõezinhos acompanhavam-na em fila — rom, rom, rom...

O tempo foi passando e os leitões foram crescendo, e à medida que iam crescendo iam entrando...

— Para a escola, já sei!

— Sim, para a escola do forno.

— Que horror!

— Pois é verdade. Vida de leitão no sítio do Pica-pau Amarelo não é das mais invejáveis. Está o lindo animalzinho brincando no terreiro, feliz, gordo como uma bola. Dona Benta olha e diz:

— Tia Nastácia, a prima Dodoca vem jantar hoje aqui. Acho bom pegar “aquele um”! e aponta para o coitado.

A negra vai ao paiol, toma uma espiga de milho e grita no terreiro — xuque, xuque, xuque!

Os bobinhos ouvem e vêm correndo atrás do milho que ela começa a debulhar, e comem, comem, comem. De repente a malvada se abaixa e — nhoc! segura pela perna o tal “aquele um”. E pode o coitadinho espernear e berrar quanto queira! Não tem remédio. Vai arrastado para a cozinha, onde é assassinado com uma faca de ponta.

E se fosse só isso! Depois de assassinado é pelado com água fervendo, é destripado, temperado e, afinal, assado ao forno.

Na hora do jantar reaparece na mesa, mas muito diferente do que era. Vem num grande prato, rodeado de rodelas de limão, com um ovo cozido na boca. E ninguém lamenta a sorte do coitadinho.

Todos tratam mas é de cortar o seu pedaço e comê-lo gulosamente, dizendo:

— “Está delicioso!”.

E ainda por cima lambem os beiços, os malvados!... Foi esse o triste destino daquela irmandade de sete leitões. Da irmandade inteira menos um, o Rabicó, assim chamado porque só possuía um toquinho de cauda. Rabicó salvou-se porque Narizinho costumava brincar com ele desde bem pequenino e acabaram amigos.

— Fique sossegado que não deixo “ela” te assassinar, tinha-lhe dito a menina. “Ela”, sem mais nada, queria dizer tia Nastácia.

Uma tarde Narizinho ouviu dona Benta dizer à preta:

— Amanhã, dia dos anos de Pedrinho, temos de dar um jantar melhor. Há ainda algum leitão no ponto?

— Só Rabicó, sinhá, mas esse Narizinho não quer que mate. É o ai Jesus dela.

— Sim, mas você dá um jeito. Mata escondido, sabe — e piscou para a negra. As duas velhas eram danadas para se entenderem.

A menina, entretanto, ouvira a conversa e fora correndo em procura do leitãozinho. Encontrou-o no pasto, fossando a terra como sempre — rom, rom, rom. Agarrou-o ao colo e disse-lhe ao ouvido:

— Vovó deu ordem a tia Nastácia para assassinar você amanhã. Mas eu não deixo, ouviu? Vou escondê-lo, bem escondido, num lugar que só eu sei, até que o perigo passe.

E assim fez. Levou-o para o tal lugar que só ela sabia, amarrou-o pelo pé a uma árvore; depois trouxe-lhe várias espigas de milho, uma abóbora e uma lata d’água.

— Fique aí bem quietinho. Nada de berreiros, se não tudo está perdido. Quando não houver mais perigo, virei soltá-lo.

Chegada a hora de pegar o leitão, tia Nastácia revirou o sítio inteiro de pernas para o ar. Procurou-o como quem procura agulha; por fim veio dizer a dona Benta que com certeza algum ladrão o havia furtado, ou alguma onça o tinha comido.

— Que maçada! — exclamou a velha. — Nesse caso mate uma galinha bem gorda. E Rabicó fica para o Ano Bom, se aparecer.

No dia seguinte, assim que todos se levantaram da mesa depois de comido o “jantarzinho melhor”, a menina correu ao lugar que só ela sabia e soltou o leitão.

— Está salvo por uns tempos — disse-lhe. – Mas na véspera do Ano Bom tenho de prender você aqui outra vez, porque “ela” promete coisas para esse dia.

Dali a pouco, muito serelepe, como se nada houvesse acontecido, Rabicó surgiu no terreiro, rom, rom, rom. Chegando à porta da cozinha para lambiscar umas cascas que a negra havia botado fora.

— Ué! — exclamou tia Nastácia, admirada. — Olhe quem está aqui! Rabicó em pessoa!... Você escapou desta vez, seu maroto, mas de outra não me escapa. Uma semana antes do Ano Bom já te tranco no paiol e quero ver!...

Rabicó não ligou a mínima importância àquelas palavras. Tratou mais foi de encher a barriguinha com as cascas, deitando-se depois ao sol para uma daquelas sonecas gozadas que só porco sabe dormir.
––––––––
Continua... O Pedido de Casamento

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 398)


Uma Trova Nacional

Ter amor é coisa boa
por alguém que está presente,
pois indo embora a pessoa...
Leva um pedaço da gente.
–ROBERTO TCHEPELENTYKY/SP–

Uma Trova Potiguar

Voam meus sonhos querendo
um mundo justo e bonito
e voando vão batendo
pelas portas do infinito.
–RODRIGUES NETO/RN–

Uma Trova Premiada

2009 - Baurú/SP
Tema: LIMITE - Venc.

Sou vaso, às vezes quebrado...
mas, cada vez, Deus permite
que eu volte a ser restaurado,
com Seu amor sem limite!
–VANDA FAGUNDES QUEIROZ/PR–

Uma Trova de Ademar

Se a vida é apenas passagem
quero que me façam jus;
na minha última viagem
deixem que eu veja Jesus!
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Não sei porque, quando canto,
por mais alegre a canção,
tem uma gota de pranto
que vem do meu coração.
–ADELMAR TAVARES/PE–

Simplesmente Poesia

Nossos Olhos
–FRANCISCO MACEDO/RN–

Meus olhos nos teus olhos...
... Uma viagem sem custos.
Sinto-me em voos rasantes,
desdenho da vida,
das horas
da dor.

Seus olhos nos meus olhos...
Ponte,
encontro
mergulho...

De repente, a unidade, unanimidade...
Uma miríade de sonhos
risonho
transponho
componho!...

Estrofe do Dia

Dê uma volta no carro da amizade
puxe oitenta quilômetros de amor,
se desvie da estrada do rancor
dê banguela descendo a humildade
e acenda os faróis da caridade,
ilumine a estrada de um irmão,
baixe o vidro da porta e dê com a mão;
esse gesto é tão simples mais conforta:
amizade é a chave que abre a porta
do castelo onde mora o coração.
–ANTONIO FRANCISCO/RN–

Soneto do Dia

O Protesto do Rio
–CAROLINA RAMOS/SP–

Quando Deus fez surgir, do nada, o mundo,
recortou-o de rios que, em Seu plano,
tinham valor imenso e tão profundo
quanto o fluxo arterial do corpo humano!

A terra floresceu! O amor, fecundo,
povoou lares. E o homem, sempre ufano,
o Éden, que recebeu, tornou imundo,
semeando em cada canto o desengano!

Ar e água poluiu e, os próprios veios,
com seus desmandos, vícios e mazelas!...
-Hoje, os rios, ocultam nos seus seios,

as angústias das vozes sufocadas
pelos surdos gemidos das sequelas,
num protesto de artérias enfartadas!

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Trova 209 - Francisco Pessoa Reis (CE)

Carlos Drummond de Andrade (O Poeta Singrando Horizontes XII)


O AMOR ANTIGO

O amor antigo vive de si mesmo,
não de cultivo alheio ou de presença.
Nada exige nem pede. Nada espera,
mas do destino vão nega a sentença.
O amor antigo tem raízes fundas,
feitas de sofrimento e de beleza.
Por aquelas mergulha no infinito,
e por estas suplanta a natureza.
Se em toda parte o tempo desmorona
aquilo que foi grande e deslumbrante,
o antigo amor, porém,
nunca fenece e a cada dia surge mais amante.
Mais ardente, mas pobre de esperança.
Mais triste?
Não.
Ele venceu a dor,
e resplandece no seu canto obscuro,
tanto mais velho quanto mais amor.

O ANO PASSADO

O ano passado não passou,
continua incessantemente.
Em vão marco novos encontros.
Todos são encontros passados.

As ruas, sempre do ano passado,
e as pessoas, também as mesmas,
com iguais gestos e falas.
O céu tem exatamente
sabidos tons de amanhecer,
de sol pleno, de descambar
como no repetidíssimo ano passado.

Embora sepultos, os mortos do ano passado
sepultam-se todos os dias.
Escuto os medos, conto as libélulas,
mastigo o pão do ano passado.

E será sempre assim daqui por diante.
Não consigo evacuar
o ano passado

O ARCO

Que quer o anjo? Chamá-la
O que quer a alma? perder-se
Perder-se em rudes guianas
para jamais encontrar-se

Que quer a voz? encantá-lo.
Que quer o ouvido? Embeber-se
de gritos blasfematórios
até que dar aturdido.

Que quer a nuvem? raptá-lo,
Que quer o corpo? solver-se,
delir memória de vida
e quanto seja memória.

Que quer a paixão? detê-lo.
Que quer o peito? fechar-se
contra os poderes do mundo
para na treva fundir-se.

Que quer a canção? erguer-se
em arco sobre os abismos.
Que quer o homem? salvar-se,
ao permeio de uma canção.

O AMOR BATE NA AORTA

Cantiga de amor sem eira
nem beira,
vira o mundo de cabeça
para baixo,
suspende a saia das mulheres,
tira os óculos dos homens,
o amor, seja como for,
é o amor.

Meu bem, não chores,
hoje tem filme de Carlito.

O amor bate na porta
o amor bate na aorta,
fui abrir e me constipei.
Cardíaco e melancólico,
o amor ronca na horta
entre pés de laranjeira
entre uvas meio verdes
e desejos já maduros.

Entre uvas meio verdes,
meu amor, não te atormentes.
Certos ácidos adoçam
a boca murcha dos velhos
e quando os dentes não mordem
e quando os braços não prendem
o amor faz uma cócega
o amor desenha uma curva
propõe uma geometria.

Amor é bicho instruído.

Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que corre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem,
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.

Daqui estou vendo o amor
irritado, desapontado,
mas também vejo outras coisas:
vejo beijos que se beijam
ouço mãos que se conversam
e que viajam sem mapa.
Vejo muitas outras coisas
que não ouso compreender…

O BOI

Ó solidão do boi no campo,
ó solidão do homem na rua!
Entre carros, trens, telefones,
entre gritos, o ermo profundo.
Ó solidão do boi no campo,
ó milhões sofrendo sem praga!
Se há noite ou sol, é indiferente,
a escuridão rompe com o dia.
Ó solidão do boi no campo,
homens torcendo-se calados!
A cidade é inexplicável
e as casas não têm sentido algum.
Ó solidão do boi no campo!
O navio-fantasma passa
em silêncio na rua cheia.
Se uma tempestade de amor caísse!
As mãos unidas, a vida salva...
Mas o tempo é firme. O boi é só.
No campo imenso a torre de petróleo.

O DEUS DE CADA HOMEM

Quando digo “meu Deus”,
afirmo a propriedade.
Há mil deuses pessoais
em nichos da cidade.

Quando digo “meu Deus”,
crio cumplicidade.
Mais fraco, sou mais forte
do que a desirmandade.

Quando digo “meu Deus”,
grito minha orfandade.
O rei que me ofereço
rouba-me a liberdade.

Quando digo “meu Deus”,
choro minha ansiedade.
Não sei que fazer dele
na microeternidade.

Carlos Drummond de Andrade (Drink)


A poetisa traz-nos seu primeiro livro, porém não o entrega logo. Fica. estudando nossa expressão fisionômica antes de confiar-nos a suma de tantas vivências. Fala de coisas vagas, que se tornam mais vagas ainda pela indecisão da frase. Certa amiga comum nos manda lembranças. Podemos fornecer o endereço de mestre Fulano?? Parece que é difícil encontrá-lo em casa. Qual a melhor hora? As informações são prestadas, enquanto, por nossa humilde vez, inspecionamos a poetisa. Usa vestido elegante, sob capa elegante. É alta, morena, jovem. Um adjetivo clareia, com espontaneidade de espelho: bonita. Parece que clareou em nosso olhar, pois ela baixa a cabeça e contempla uma formiguinha no linóleo, onde - é claro - não passa nenhuma formiguinha. O livro continua preso na mão esquerda,sem que possamos desvendar-lhe o título: pudicamente, só aparece a brancura da contracapa. Não que haja figura ou dizeres obscenos a ocultar. A poetisa oculta sua poesia, nesse primeiro contato com o exterior. Passamos à ofensiva:

- Que é isso que você tem aí?

- Isso, quê?

- O livro.

- Nada, não. É um livro.

- Deixe ver, se não é segredo de estado!!

Não era, mas o inimigo contemporiza:

- Daqui a pouquinho.

O leitor, que acaso nos segue, achará a moça demasiado tímida ou esperta; com o nosso relativo conhecimento da alma literária, diremos que ela, ciente e emocionada, simplesmente retardava um momento irreparável: o momento em que seu livro deixaria o regaço materno para expor-se à condição de artigo-do-dia, olhado, pegado, comentado sem amor. Por isso a moca nos sondava antes de efetuar a doação. Acabou admitindo que publicara um livro; que trazia consigo um exemplar; que esse exemplar nos era destinado; mas não lhe pusera dedicatória e, conforme fosse a recepção, voltaria com a autora. Quisemos saber a razão de tamanha reserva. Desconversou, mas somos praça velha, e ouvimos o conto:

- Levei um exemplar ao Barata, colunista da “Folha”.

- Então?

- Me convidou para um “drink”.

- Que mal tem nisso, minha filha?!

- Bom... Nem olhou para o livro, olhou só para mim. Entende??

Entendíamos. - Mas o Barata, - ponderamos - não é propriamente crítico literário, e, como observa o prof. Afrânio Coutinho, há uma “big” diferença entre “reviewer” e crítico.

- Pois, sim. O Lessa é crítico e também me convidou para um “drink”. Sem abrir o livro. Será que hoje é moda beber com o autor antes de ler??

Não soubemos explicar à poetisa, e preferimos indagar se porventura os “drinks” lhe flagelam o fígado. Ela sorriu. - Eu adoro um “alexander”, um “cuba libre”. Mas pensei que não fosse preciso tomá-lo para merecer um julgamento ou uma notícia.

Tranqüilizamo-la a nosso respeito: não escrevemos sobre livros, não freqüentamos bares, não a convidaríamos a drincar. Parece que a assustou um pouco nossa austeridade romana, se é que não vislumbrou nisso um truque novo. Afinal, o braço moveu-se, o livro foi entregue. Sem dedicatória.

- Não vai escrever nada?? perguntamos-lhe.

- Que gostaria que eu escrevesse?

- Ah! isso você não era capaz de escrever.

Queria oferecer-nos louvores suaves, mas temia que a interpretássemos de outro jeito; queria ser seca, não podia; natural, não podia. Então, deu-nos o livro sem dedicatória e, rapidamente, convidou-nos a tomar um “drink”.

Paraná em Trovas Collection - 5 - Andréa Motta (Curitiba/PR)

Eliana Ruiz Jimenez (Caderno de Trovas)


- 1 -
Nesta vida o encantador,
com maior significado,
dá-se ao cativar o amor
e ao render-se, cativado.
- 2 -
São forças da natureza,
não se pode fazer nada:
– fogo, vulcão, correnteza...
e a mulher apaixonada!
- 3 -
Quantas bênçãos recebidas
quando se caminha aos pares:
um ideal, duas vidas
dois corações similares.
- 4 -
Um amor que se alardeia
não passa de sonho vão:
é só castelo de areia
escorrendo pela mão.
- 5 -
Jaz latente enternecido
nas vertentes do meu ser
um amor adormecido
esperando efervescer.
- 6 -
A caridade amplifica
o sentimento Cristão
que tão bem se multiplica
quando é feita a divisão.
- 7 -
Criança muito levada,
que corre, chuta e sacode...
Que disciplina, que nada:
- Casa da vó tudo pode!
- 8 -
Por ser eterno esse amor
não amedronta a partida,
sendo Deus o condutor
não existe despedida.
- 9 -
Valorando o sem valor,
conjugando o verbo ter,
esqueceu-se quanto amor
num ranchinho pode haver.
- 10 -
Segredos engarrafados
boiando ao sabor do vento...
Corações despedaçados
para os quais não houve alento!
- 11 -
Paraíso, Liberdade,
Morumbi, Consolação:
- se for amor de verdade,
tanto faz a direção.
- 12 -
Pensamento irresolvido
remoendo a mesma história:
- um amor não esquecido
reticente na memória.
- 13 -
Bem no alto, aqui estou;
neste ápice, a conquista.
Mas de nada adiantou:
tu não estavas à vista...
- 14 -
Sentimento irresponsável
perturbando o coração:
- é o amor, força implacável
fez perder minha a razão.
- 15 -
Nos percalços dessa vida
já deixei muita pegada
como marca dolorida
dos revezes da jornada.
- 16 -
Voa passarinho, voa,
que gaiola é só maldade.
Livre, lá nos céus entoa
o cantar da liberdade.
- 17 -
Os mistérios da conquista,
como olhares, sedução,
são enigmas cuja pista
bem esconde o coração.
- 18 -
Não é o homem proprietário
nem senhor da criação;
é somente um usuário
que fez usucapião.
- 19 -
Como é que pode, hoje em dia,
um homem achar prazer
na farra da covardia
que é ver um boi padecer...
- 20 -
Vivo sempre a divagar,
no silêncio em que me abrigo:
- Ah que bom poder voltar,
a estar outra vez contigo!
- 21 -
Desfazendo a natureza,
vai o homem construtor
desconstruindo a certeza
de um futuro promissor.
- 22 -
Às vezes menina, ainda;
outras, mulher revelada.
Em tudo o que a vida brinda
Segue sempre apaixonada!
- 23 -
Uma vida sem amor
é qual comida sem sal:
em ambas falta sabor,
por ausente o principal.
- 24 -
Um segredo bem guardado
para assim permanecer
não deve ser partilhado
para nunca se perder.
- 25 -
Noite a dentro, sempre atento,
aliviando a minha dor,
da insônia eu encontro alento
com o meu computador.
- 26 -
O futuro do planeta
não é segredo a ninguém
preserve e se comprometa
que a vida assim se mantém.
- 27 -
Esse mundo feminino
De segredos permeado
É um gracejo do destino
Pelos homens odiado.
- 28 -
Sorria pra natureza
respeite e sempre preserve,
só assim teremos certeza
que o mundo assim se conserve.
- 29 -
Rede que volta vazia
traz tristeza ao pescador
que apesar da nostalgia
leva adiante o seu labor.
- 30 -
Pescador mais esportivo
deixa seu peixe escapar,
melhor solto que cativo,
para assim o preservar.
- 31 -
O mar de um azul profundo
e as montanhas esverdeadas,
são belezas desse mundo,
precisam ser preservadas.
- 32 -
Abra a porta, deixe a luz
resgatar seu coração.
Vá sem medo, faça jus
a viver nova paixão.

Fonte:
Eliana Ruiz Jimenez. Caderno de Trovas.

Ademar Macedo (Mensagens Poéticas n. 397)


Uma Trova Nacional

Desde o berço à sepultura
caminharei sem temor,
conduzindo esta ventura:
ter nascido Trovador.
–GILSON FAUSTINO MAIA/RJ–

Uma Trova Potiguar

Na realidade, o pecado
que me faz vagar a esmo,
foi na vida ter amado
outro alguém mais que a mim mesmo!
–MANOEL CAVALCANTE/RN–

Uma Trova Premiada

2000 - Barra do Piraí/RJ
Tema: CAMINHO - Venc.

Pelos caminhos, perdidos,
por causa de um desatino,
somos dois desiludidos
pisados pelo destino.
–ELIETTE PIMENTA RAMOS/RJ–

Uma Trova de Ademar

Fiz com Deus uma aliança
que somente um cristão faz:
ser soldado da esperança
numa guerra pela paz.
–ADEMAR MACEDO/RN–

...E Suas Trovas Ficaram

Felicidade, acredito
que nesta vida consistes
num simples nome bonito,
para consolo dos tristes...
–ORLANDO BRITO/MA–

Simplesmente Poesia

Sílaba Tônica.
–SUELY MAGNA NOBRE/RN–

Com maior vigor
Redimensiono as suas curvas
Minhas lutas e proezas,
Nem sempre se acentuam
Minhas inclinações
Declives e deslizes
Embora secundários
Ressoam com maior intensidade.

Estrofe do Dia

Por lembrar-me da terra onde nasci,
por jamais esquecer meu lugarejo,
por sentir no meu peito esse desejo
de voltar pro lugar onde vivi;
eu tentei esquecer não consegui
as paisagens da minha região,
pois quem migra pra longe do seu chão
todo dia voltar pra lá deseja;
por eu ser de origem sertaneja
não me esqueço das coisas do sertão!
–CARLOS AIRES/PE–

Soneto do Dia

Tributo ao Dicionário.
–FRANCISCO NEVES MACEDO–

O dicionário, qual mulher incrível,
e sempre para nós, indispensável,
numa entrega total, imensurável,
doando para nós, todo o possível.

Se o verso parecer quase impossível
por sua doação, fica viável
e neste conviver terno e saudável
torna a vida mais doce e mais sensível...

É você, meu amigo dicionário,
nosso caso de amor extraordinário
jamais terá divórcio, ele é moderno.

Vamos esparramar nossa poesia
em romântica e doce parceria...
Nosso caso de amor será eterno!

Fonte:
Textos enviados pelo Autor

Emiliano Perneta (Ilusão) Parte 4


ÉBRIOS...

Muito embora que vão alegres e cantando,
Causa terror assim pelo meio da estrada
Vê-los a caminhar, como um sinistro bando;
Eles têm o nariz vermelho, a face inchada...

Pelas vielas mais escuras, cambaleando,
Sem que queiram saber de nada, de mais nada,
Notâmbulos, senis, passam de quando em quando,
Mas como espectros, que fogem de madrugada...

Nada pior. É bem como uma Messalina,
Que já teve e não tem e anda cumprindo a sina
Misérrima... Porém eu vejo-me tão mal,

Que até chego a sentir saudade dos mendigos,
Da espelunca e dos meus camaradas antigos,
Que eu sei que hão de morrer num catre d’hospital!

***

ESSE PERFUME...

Esse perfume – sândalo e verbenas –
De tua pele de maçã madura,
Sorvi-o quando, ó deusa das morenas!
Por mim roçaste a cabeleira escura.

Mas ó perfídia negra das hienas!
Sabes que o teu perfume é uma loucura:
– E o concedes; que é um tóxico: e envenenas
Com uma tão rara e singular doçura!

Quando o aspirei – as minhas mãos nas tuas –
Bateu-me o coração como se fora
Fundir-se, lírio das espáduas nuas!

Foi-me um gozo cruel, áspero e curto...
Ó requintada, ó sábia pecadora,
Mestra no amor das sensações de um furto!

***

CONVALESCENTE

Ao coronel Joaquim Ignácio

Choveu durante largo tempo; dia
Sobre dia choveu, e ela, doente,
E ela, pálida e triste, em febre, via
Brumoso e feio o céu, continuamente.

E nem uma esperança mais! Chovia.
Mas melhora, e, olhando o céu em frente,
Vê que o céu fulge e se enche de alegria,
De uma alegria de convalescente!

E débil, de mansinho, abre a janela...
O sol casquilha, em ouro se derrama,
Fora na balsa, como uma risada...

E ela: “Que doce por aquela estrada
Pisar agora em luz! Feliz quem ama,
Como eu amo esta vida, que é tão bela!”

***

VERSOS DE OUTRORA

Fui bom. Mas a bondade é coisa trivial:
A infância, a infância fez-me uma guerra infernal.

Fui alegre e sincero. O mundo, a rir, em troco,
Abominavelmente achou que eu era um louco.

Ema, a teus pés caí, beijei-te as mãos, Ester!
Fiz tolices de quem não sabe o que é a mulher...

Com que olhar de altivez, com que fundo desprezo,
Chamastes-me coitado – olhar noutro olhar preso.

Numa ideia de forma esquisita, uma vez,
Aspirei com ardor a esplêndida nudez;

Gente que não entende um fino gozo d’arte,
Que eu era um imoral, disse-o por toda parte.

Indiferentemente eu agora caminho
Sobre rosas em flor ou sobre linho ou espinho;

Automático vou, sem pesar nem prazer;
Ora pois! vamos ver o que é que vão dizer...

Num País de Bárbaros.

***

METAMORFOSES

À Mme. Georgine Mongruel

Sei que há muita nudez e sei que há muito frio,
E uma voracidade horrível, um furor
Tão desmedido que, quando eu acaso rio,
Quantos não estarão torcendo-se de dor.

Conheço tudo, sim, apalpo, indago, espio…
Tenho a certeza que vá eu para onde for,
Como o escaravelho, hei de o ódio sombrio
Ver enodoar até o seio de uma flor.

Mas sei também que há mil aspirações estranhas,
Que havemos de subir montanhas e montanhas,
Que a Natureza avança e o Homem faz-se luz…

Que a Vida, como o sol, um alquimista louro,
Tem o dom de poder mudar a lama em ouro,
E em límpidos cristais esses rochedos nus!

***

NOITE. DEITO-ME AQUI...

Noite. Deito-me aqui ansiosamente, e deito
Este fardo de dor, e esta fadiga enorme.
Faz frio. A neve cai. O vento chora. O leito
Gela. Mas vou dormir, e feliz de quem dorme.

Realmente, a vida foi como um castelo informe,
Como um castelo no ar, como um castelo feito
De papelão, mas construído de tal jeito
Que eu fiz de marionete, ó Marion Delorme!

Hoje, tudo rolou pelos abismos, tudo,
Esse orgulho feroz, essa lança, esse escudo,
As viagens a Citera, e esses brasões reais...

Eu vou dormir, porém. O sono não sei donde
Desce por sobre mim, como uma grande fronde...
Ah que bom de dormir e não acordar mais!

Maio – 1910

***

SONETO

Ao Azevedo Macedo

Que se escreveu, quando se acreditou que tendo dona Alba se ausentado por mui longes terras, nunca tornasse mais a dar novas de sua pessoa.

É noite. E o vento, como a folha d’uma espada,
Corta, sibila, espanca, e zurze, e dilacera,
E eu que vou, eu que vou, sozinho, pela estrada,
Eu não tenho por mim nem um raminho d’hera.

Eu não tenho por mim ninguém, não tenho nada.
Tenho a noite, este horror, esta cruel quimera,
A minha solidão, que a mim me desespera,
E o vento a soluçar, e a túnica gelada...

Mas, bruscamente, enfim, ao longe, ao longe se ergue,
Como um olho de sangue, embora, aquele albergue,
Oh! um espectro mau, que outrora eu conheci!

Dentro dele, eu bem sei, uma profunda vala...
É o covil da traição que envenena e apunhala...
Tenho sono, porém, e vou dormir ali!

Abril – 1905

***

PARA ELA

Quem um dia me vir, caído pelo chão,
Ferido pela dor, que é o teu punhal, Iago,
No meio do sangue, assim, no meio d’um lago,
Como um funâmbulo torcido, mas em vão...

Há de dizer que do meu destino aziago
A culpa teve mais minha imaginação,
Quando errava através da noite, como um vago,
Como um fantasma, só, como um ladrão.

Cada qual, cada qual, com um motivo diverso:
Este me dirá que foi a mania do verso
Que me veio a matar; aquele, outra qualquer...

Ao ver a minha face, em terra, friamente,
Muitos hão de pensar: coitado, era um doente...
Ninguém dirá, porém, que foi esta mulher!...

Fonte:
Emiliano Perneta. Ilusão e outros poemas. Re-edição Virtual. Revista e atualizada por Ivan Justen Santana. Curitiba: 2011

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) O Sítio do Picapau Amarelo XII – A Volta


Estavam todos prontos para a volta, exceto Emília. Narizinho refletia sobre o seu caso. Por fim pediu a opinião de Tom Mix sobre o melhor meio de a levar.

-Acho que temos de pôr a senhora condessa dentro dum dos ancorotes de mel.

— Que disparate, Tom! Emília ficaria toda melada !...

— Sim, mas há um vazio — respondeu ele. — Creio que ali irá mais comodamente do que na garupa do cavalinho pangaré.

Emília fez cara feia e protestou. O meio de sossegá-la foi permitir-lhe seguir na frente do bando, para que pudesse “ir vendo as coisas antes dos outros”. Estava nascendo nela aquele espírito interesseiro que a ia tornar célebre nos anais da ciganagem.

Puseram-se em marcha. Meia légua adiante Emília pôs-se de pé dentro do barrilzinho e gritou:

— Estou vendo uma coisa esquisita lá na frente! Um monstro com cabeça de porco e “peses” de tartaruga!

Todos olharam, verificando que Emília tinha razão. Era um monstro dos mais estranhos que possa alguém imaginar. Tom Mix puxou da faca e avançou, dizendo a Narizinho que não se mexesse dali. Chegando mais perto percebeu o que era.

— Não é monstro nenhum, princesa! Trata-se do senhor marquês montado num pobre jabuti! Vem metendo o chicote no coitado, sem dó nem piedade.

E assim era. Rabicó dava de rijo no pobre jabuti e ainda por cima o descompunha.

— Caminha, estupor! Caminha depressa, se não te pico de espora até a alma! — gritava ele.

Narizinho ficou indignada com aquilo. Era demais! Vendo-a assim, Tom Mix puxou do revólver e disse:

— Se quer, apeio aquele maroto com uma bala!

— Não é necessário — respondeu ela. — Eu mesma lhe darei uma boa lição. Deixe o caso comigo.

Nisto o marquês alcançou o grupo, e já estava armando cara alegre de sem-vergonha, quando a menina o encarou, de carranca fechada.

— Desça já do pobre jabuti, seu grandíssimo...

Muito espantado daquela recepção, Rabicó foi descendo, todo encolhido.

— E para castigo — continuou a Menina — quem agora vai montar é o senhor jabuti. Vamos, senhor jabuti! Arreie o marquês e monte e meta-lhe a espora sem dó!

O jabuti assim fez, e sossegadamente, porque jabuti não se apressa em caso nenhum, botou os arreios no leitão, apertou o mais que pôde a barrigueira, montou muito devagar e lept! lept! fincou-lhe o chicote como quem surra burro bravo.

— Coin! coin! coin! — berrava o pobre marquês.

— Espora nele, jabuti! — gritava a boneca. — Espora nesse guloso que me comeu os croquetes!

— E também uma boas lambadas por minha conta! — murmurou uma voz fina no ar.

Todos ergueram os olhos. Era a libelinha enganada, que ia passando, veloz como um relâmpago.

O caso foi que naquele dia Rabicó perdeu pelo menos um quilo de peso e pagou pelo menos metade dos seus pecados...

Depois desse incidente puseram-se de novo em marcha, só parando numa figueira de boa sombra, já pertinho do sítio.

— Ponto de almoço! — gritou Narizinho, que estava com uma fome tirana. Desde que saíra de casa só comera os bolinhos trazidos.

Apearam-se. Estenderam no chão uma toalhinha. Tom Mix abriu dois barriletes de mel. Narizinho remexeu no bolso a ver se ainda encontrava algum pedaço de bolo. Não encontrou nem o besouro. Tinha fugido, o ingrato! Puseram-se a manducar mel puro, único alimento que havia.

No melhor da festa — tzzsiu! um passarinho cantou na árvore próxima. A menina ergueu os olhos: era um tiziu.

— Emília — disse ela intrigada — não acha aquele tiziu com um certo ar de Pedrinho?

— Muito! E querem ver que é ele mesmo?

— Pedrinho! Pedrinho! Venha cá, Pedrinho! — gritou a menina, aflita.

O tiziu desceu da árvore, vindo pousar em seu ombro.

— Então que é isso, Pedrinho? Deixo você em casa feito gente e o venho encontrar virado em ave!...

— Assim é — disse ele. — Todos viramos aves lá em casa.

— Como? Explique isso! — gritou Narizinho ansiosa.

— Pois apareceu por lá uma velha coroca, de porrete na mão e cesta no braço. “Menino”, disse-me ela, “é aqui a casa onde moram duas velhas dugudéias em companhia duma menina de nariz arrebitado, muito malcriada?” Furioso com a pergunta, respondi: “Não é da sua conta. Siga seu caminho que é o melhor”. “Ah, é assim”? exclamou ela. “Espere que te curo”! E virou a mim em passarinho, virou vovó em tartaruga e tia Nastácia em galinha preta...

— Que horror! — foi o grito que escapou de Narizinho. — Que vai ser de nós agora? Já sei quem é essa velha! Não pode ser outra! Bem ela me disse que havia de vingar-se...

— Que foi que aconteceu, princesa? — indagou Tom Mix, já de mão no revólver.

— Não sei, Tom, se desta vez nos poderá valer! Você é invencível, mas só de igual para igual. Contra uma bruxa feiticeira, não sei... não sei... e contou o que havia acontecido.

— Deixe tudo por minha conta, princesa, e não duvide da minha arte de resolver situações complicadas. Siga viagem que eu vou dar volta pelos arredores a fim de apanhar essa velha. Juro que hei de trazê-la bem segura, para que desfaça o mal que fez...

— Os anjos digam amém! — suspirou Narizinho mais animada. E dando rédeas ao cavalo pangaré tocou para o sítio com o tiziu ainda pousado no ombro.

Que tristeza! Mal Narizinho apeou no terreiro e já ouviu uma galinha cacarejar lá dentro.

— É tia Nastácia, coitada! — suspirou com o coração apertado.

Entrou. Na sala de jantar viu sentada na rede, costurando, uma tartaruga de óculos.

— Vovó! — gritou a menina com desespero. — Não me conhece mais vovó?

A tartaruga, quieta, quieta...

— Veja, Emília, que desgraça! — gritou Narizinho em lágrimas.

Vovó é aquele bicho cascudo que está na rede! Nastácia é aquela horrenda galinha preta que mais parece urubu...

Emília olhou, olhou e também rompeu em choro, abraçando-se com a menina.

— A única esperança que nos resta é Tom Mix – disse Narizinho. — Mas este caso é tão estranho que receio que nem ele possa nos salvar...

Passaram-se dois dias. Narizinho, inconsolável, não podia conformar-se com a idéia da sua querida avó tartarugando na rede, nem de tia Nastácia volta e meia botando um ovo na cozinha.

— Sossegue, Narizinho. Tom Mix é um danado. De repente reaparece e conserta tudo, como no cinema — dizia a boneca para a consolar.

— Mas está demorando tanto, Emília!...

— Dois dias só. Você sabe que a conta para tudo é três...

Chegou afinal o terceiro dia. As duas amiguinhas, postadas à janela desde cedo, espiavam os horizontes, ansiosas. Nem uma poeira se erguia! Narizinho suspirou.

— Qual, Emília! Está tudo perdido... Se a velha tem o poder de virar os outros em bicho, também pode virar-se a si própria em pedra, árvore, tronco seco — e como há de Tom Mix saber?

— Paciência, Narizinho! Vai ver que de repente ele brota por aí com a velha na ponta da faca...

Palavras não eram ditas e um cachorrinho latiu no terreiro.

— Deve ser ele! — gritou Emília correndo para a porta.

E era mesmo. Era Tom Mix que voltava com dois revólveres apontando e a velha à frente, de braços erguidos.

— É agora! — berrou o cowboy no ouvido da bruxa. – Vais desfazer o mal que fizeste, se não te como os fígados, já neste momento...

Horrorizada com a feiúra da velha, Narizinho fechou os olhos.

Depois criou coragem e os foi abrindo devagarinho. E viu... sabem quem? Viu tia Nastácia a olhar para ela e a dizer:

— Acorde menina! Parece que está com pesadelo...

Narizinho sentou-se na cama, ainda tonta, esfregando os olhos.

— E vovó? — perguntou.

— Lá dentro, costurando.

— E Pedrinho?

— Fazendo uma arapuca no quintal.

— E... e Tom Mix?

— Deixe de bobagens e venha tomar o seu café que já está esfriando — rematou tia Nastácia.
––––––––
Continua... O Marquês de Rabicó – I – Os Sete Leitõezinhos

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa