sábado, 19 de dezembro de 2015

Silvana da Rosa (A mulher escritora e personagem nos contos de fadas) Parte IX

A partir do Renascimento, em âmbito literário, percebe-se que a mulher começou a ser vista sob um novo prisma, porém, em nível social, ela continuou a ser mero objeto, passiva e obediente a atitudes paternais. Aliás, essa visão social e, diga-se generalizada, ultrapassa a Antiguidade e prolonga-se até fins da Idade Média. E somente com a chegada do Renascimento é que a mulher principia a renascer, transformando-se em sujeito da ação. Novaes Coelho sustenta que:

É só compararmos o registro histórico com o registro literário das relações Homem/Mulher, nas cortes medievais, e compreendermos a enorme distância que ia da realidade dos fatos à idealização dos valores. Ao nível da História, vê-se tais relações marcadas pela violência e pela promiscuidade mais rude, mostrando que o respeito pela mulher era  praticamente nulo, pois ela era apenas uma peça útil ou inútil no jogo dos interesses pelo poder. Enquanto, ao nível literário, se impunha a idealização mais absoluta, que transformava a Mulher, do ser inferior e dominado que era na vida real, em um valor superior e precioso a ser atingido por todo homem que procurasse sua realização humana integral [...] (COELHO,1991, p. 50, grifos da autora)
                     
De outro modo, no século XX, Marina Warner destaca que a personagem feminina, outrora passiva, transformou-se em sujeito de ações más. De certa forma, inclusive Walt Disney, através dos filmes Branca de neve e os sete anões e Cinderela, contribuiu para que a crueldade feminina se acentuasse através da madrasta e da bruxa má, as quais roubaram a cena dos protagonistas príncipes e princesas. Tem-se a impressão de que quem assiste a essas produções artísticas mal pode esperar o momento para que a maldade entre em ação.

Os dois filmes [Branca de Neve e os sete anões e Cinderela] se concentram com prazer exuberante na madrasta perversa e violenta, com seus cabelos negros como as penas de um corvo e as garras de uma ave de rapina; nem mesmo os poderes inventivos de Disney conseguiram salvar os príncipes de uma banalidade sem expressão e as heroínas de um sentimentalismo açucarado. O poder autêntico emana das mulheres más, e a fada-madrinha gorducha e simpática, em Cinderela, parece não ser páreo para elas. A visão de Disney afetou a idéia que todos faziam dos próprios contos de fadas: até que escritores e antologistas reabrissem os olhos, heroínas passivas e infelizes e mulheres mais velhas, vigorosas e perversas,pareciam características genéricas [...] (WARNER, 1999, p. 239)

Em consonância com o aspecto estereotipado da figura feminina, presente nos contos, a mulher era descrita, enquanto malvada, feia, poderosa e representada pela bruxa, pela fada ruim, pelas irmãs invejosas, pela rainha má. Enquanto bondosa, obediente, irresoluta, angelical, bela, era caracterizada como princesa, filha órfã, fada.

Atualmente, as características más da mulher são amplamente discutidas, tanto que o assunto mereceu uma reportagem da revista Época (2004). Nessa reportagem é apresentada a obra de Shelley Klein, uma vez que a autora desvendou o universo das más, perfilando as quinze mulheres mais cruéis do ponto de vista histórico e não ficcional.

Martha Mendonça, a profissional responsável pela reportagem, introduz a temática em questão afirmando que:

Antinatural    ou não, a ficção    está    lotada de vilãs assustadoras,  definitivamente mais marcantes que os homens. Elas povoam os contos de fadas, novelas e clássicos do cinema. As madrastas de Branca de Neve e Cinderela são ícones dessa idéia: aquelas que deveriam estar no lugar da mãe, mas, ao contrário, são perversas e competitivas com suas pobres enteadas. (MENDONÇA, 2004, p. 68-69)

De certa forma, é necessária uma análise mais detalhada quando Martha Mendonça afirma que as vilãs são mais marcantes que os homens na ficção, visto que há narrativas repletas de homens incomparavelmente cruéis, e o Barba-Azul, já citado anteriormente, é um deles.

Mendonça cita ainda o que o psicanalista Lindenberg Rocha salienta sobre a questão:“A madrasta da Branca de neve, linda de um lado e bruxa do outro, é um símbolo fortíssimo desse poder de vida e morte da mulher, essa matriz da humanidade” (2004, p. 69). Além disso, Martha Mendonça acrescenta a visão do Mauro Alencar, uma vez que este acredita que “as más enfeitiçam as platéias, são a mola propulsora da trama, mais que as mocinhas” (2004, p. 70).

De acordo com Marina Warner, o ódio da mulher mais velha em relação à mais jovem – outra característica negativa da mulher - presente nos contos, representa a sua fragilidade e dependência quanto aos cuidados e atenção que a família poderia lhe proporcionar:

o ódio da mulher mais velha e a disputa entre gerações podem ser frutos não apenas da rivalidade, mas também da culpa diante dos fracos e dependentes. O retrato da sogra ou madrasta tirana pode esconder sua própria vulnerabilidade, pode oferecer uma desculpa para os maus-tratos que receberia. (WARNER, 1999, p. 260)
                     
(Nota: Como exemplo, observa-se o retrato apresentado pela França, após a Revolução, uma vez que a sociedade não era nada propícia à mulher que perdia todos os bens após a morte de seu esposo, falecido principalmente em combate na guerra, tendo ela que viver à custa de parentes. Devido a isso, criava-se uma acentuada rivalidade entre mulheres jovens e mais velhas, sendo que as viúvas é que enfrentavam perigos reais, uma vez que se tornavam vulneráveis ao estarem desacompanhadas. A presença masculina era fundamental e indispensável para a constituição familiar e, mais especificamente, para a própria sobrevivência feminina.)

No conto A Bela e a Fera, provavelmente originário de Amor e Psiquê, obra de Apuleio, a figura feminina é testada em sua confiança e obediência, assim como em Barba-Azul, de Perrault. Sendo assim, faz-se pertinente ressaltar que a maldade estava presente, num primeiro momento, na mente masculina, parecendo que qualquer ato feminino era digno de desconfiança. E os contos realmente identificam o que as mulheres vivenciavam em sociedade, ou seja, seus companheiros consideravam-se donos de suas vidas e corpos e as tratavam como suas escravas, tornando-se, às vezes, verdadeiros monstros para elas. Essa temática é evidenciada nas obras de madame d’Aulnoy, Murat e Jeanne-Marie Beaumont, escritoras que vivenciaram esses tempos difíceis, em que essa posição masculina era dominante.

Na versão apresentada pela Walt Disney, a Fera é representada de uma forma mais humana e suas atitudes com a Bela são bastante carinhosas e prestativas. Evidentemente que esse homem-animal mostrou-se impiedoso e cruel ao exigir a filha do mercador como pagamento de dívida.

Por sua vez, o pai de Bela (assim como de Cinderela, de Bela adormecida e de Branca de neve) fez-se ausente, fraco, incapaz de assumir a sua verdadeira paternidade, a ponto de entregar a própria filha à Fera. Nessa situação, tanto a Fera quanto o pai de Bela apresentaram atitudes inquestionáveis quanto à crueldade. De outro modo, até mesmo as figuras femininas assemelham-se em Cinderela e Branca de neve. As heroínas, representadas por mulheres mais novas, são vítimas de inveja e de crueldade de madrastas de mais idade, que ora figuram como bruxas.

Além disso, comprovando-se “a malignidade masculina”, naturalmente traço cultural, observa-se, no conto Pele de asno, de Perrault, que o pai é bastante presente, embora no sentido de assediar sua filha. Tanto que a princesa, vestida de mendiga e usando uma pele de asno, foge das garras do mesmo. É sabido que em povos antigos, que viveram antes da Idade Média, o incesto era permitido, uma vez que a filha mais velha deveria assumir as obrigações do lar e com seu pai, desde que sua mãe tivesse falecido. A partir da Idade Média esse conto passou a revelar e, até certo ponto, condenar, a atitude do pai incestuoso.

continua…

Fonte:
Silvana da Rosa. Do tempo medieval ao contemporâneo: o caminho percorrido pela figura feminina, enquanto escritora e personagem, nos contos de fadas. Dissertação de Mestrado em Letras. Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), 2009

sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

Olivaldo Júnior (A flor na montanha)

O rapaz amava aquela flor. Tanto que, dia após dia, subia a montanha mais alta do vilarejo onde morava, só para regá-la e dar a ela os cuidados que o Pequeno Príncipe dava a sua rosa.
 
Fizesse sol, fizesse chuva, de sua flor mais cara cuidava. Dava gosto àquele jovem a textura das pétalas, o verdinho das folhas, o pólen mais fresco da flor na montanha, sua amada flor.
 
Sua família o criticava ao vê-lo chegar do trabalho e correr para o alto da montanha em que a flor, calada, sem aparente expressão, esperava seu doce jardineiro, seus carinhos.

Quando ficava bem tarde, dava um beijo em sua flor e, sozinho, ligeiro (pois, para baixo, todo santo ajuda), voltava para casa e, em sua cama, sob as cobertas, sonhava com sua querida.
No sonho, era um pé de flor ao lado da sua e, quando o vento batia, encostava-se na amada e, contente, vertia seu pólen sobre ela, que, sorrindo, ficava mais linda e mais cheirosa, viva.

Sua rotina vinha de muito. Era menino quando, com o pai, subiram a montanha e, de repente, lá estava ela: uma flor arroxeada, de pétalas viçosas, tão bonita que o encantou.

Tudo estaria bem se não fosse um triste fato que ele vinha percebendo. Sua amada vinha murchando, ficando sem cor e sem o mesmo perfume de outrora. Não sabia o que lhe faltava.

Certo dia, ao voltar para casa, vindo do trabalho, trocou de roupa e sentiu uma dor. Não sabia o que era. Ficou sem graça, sem jeito, sem ânimo, mas, como sempre, subiu a montanha.

Durante a subida, foi ficando mais velho, e os fios de barba em seu rosto foram miraculosamente crescendo, suas costas se envergando um pouco, era um homem. Sua flor morrera.

Fontes:
O Autor
Imagem - http://www.horoscopovirtual.uol.com.br

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Cecy Barbosa Campos (Poemas Escolhidos)



MENINO DE RUA
 .
Asfalto. Pés descalços, sorrateiros,
deslizando no frio da calçada
procuram abrigo, no canto se escondendo
da chuva de verão, que é traiçoeira.
Com molhados braços nus e pernas finas,
a criança que nunca teve infância,
vai esperando do sol o surgimento
enquanto sonha com amanhãs que nunca chegam
sem esquecer os ontens que perduram.
O menino, adulto prematuro,
contempla palavras de neon relampejando
nos céus dos edifícios que o cercam,
sem compreender aquilo que elas dizem.
Olha, então, as vitrines reluzentes -
adornos natalinos, brilhos, árvores, presentes,
os símbolos de uma vida que não vive.
 .
 CENA CREPUSCULAR
.
O céu, ensanguentado,
derramava-se no horizonte
enquanto pequenos raios
brincavam de esconde-esconde
atrás dos montes.
As árvores se vestiam de sombras
qual amantes fugitivas.
A noite acendia suas velas
e iluminava o firmamento.
 .
CENA FINAL
 .
Não quero escutar a tua despedida
nem receber teu olhar indiferente.
Prefiro assistir tua partida silenciosa
sem palavras inúteis ou falsas desculpas.
Não quero teu abraço desprovido de emoção
e cheio de mentiras.
Não quero que me olhes da fotografia
fazendo-me lembrar o que já não existe.
As molduras vazias do meu porta-retrato
são menos dolorosas que a saudade
de ver o teu sorriso, a cada noite,
iluminando a penumbra do meu quarto.
 .
CENA FUGAZ
 .
O meu corpo mergulha no teu corpo
e busca o ancoradouro dos teus braços.
Engalhados os dois, em semeadura
de flores que transbordam em nossos beijos,
percorremos distâncias infinitas.
Do silêncio da noite que nos cerca,
ouvimos sons de alegrias inaudíveis,
até que trevas espessas nos encubram
e este frenesi louco se dissipe.
A morte pouco a pouco se aproxima
transformando nosso afã em letargia
e da fugacidade de um momento,
só resta o tédio, desamor e nostalgia.
 .
CENA INDIFERENTE
 .
Minha alma nada vê.
De olhos vazios
contemplo o nada.
Meu coração nada sente
nas profundezas do ser,
pulsando inerte.
 .
CENA MATINAL
 .
A lua tentava escapar
do mar que, impetuoso,
lançava-se sobre ela
e inundava de azul
as montanhas atrevidas.
A cerração encobria o vale
escondendo as casas
e os pensamentos dos homens.
As árvores brotavam das nuvens
e se despiam da névoa
soltando suas longas cabeleiras verdes.
O sol as beijava,
lascivamente,
escorregando, afoito,
por seus membros molhados de orvalho.
Aquele êxtase se transmitia por toda a natureza
no surgimento do dia que nascia.
 .
CENA MELANCÓLICA
 .
Quando olho o meu retrato
vejo o que resta de mim.
Lembro sonhos antigos que se tornaram
passado.
Lembro coisas que já não existem
e pessoas que não são mais.
Tento reacender, inutilmente,
a chama da vela
que se esvai dentro de mim.
Sinto um vento gelado que sopra
penetrando em minha alma,
exaurindo pouco a pouco
fragmentos de um ser que quase não é.
 .
CENA MUDA
 .
Você olhou pra mim
e lançou um sorriso complacente.
Complacente… ou indiferente?
Olhei pra você
e mandei de volta o mesmo sorriso.
Como é triste não ter o que dizer…
 .
CENA NATALINA
 .
Na mesa adornada,
iguarias perfumadas
aguçam o apetite
para a festa gastronômica.
Fitas vermelhas
enfeitam presentes
em embalagens prateadas.
Garrafas de champanhe
espocam nas salas
misturadas aos risos
e aos abraços.
Na árvore natalina
com bolas coloridas,
sininhos dourados
tintinabulam a cada instante.
Na efusividade do momento,
ninguém se lembra
do aniversariante.
 .
CENA TRISTE
 .
O sol frio
colore o silêncio
através da janela
de olhos vazios.
Lembranças
preenchem espaços
indevassáveis.
Sonhos,
compulsórios, necessários,
harmonizam os tons
na desarmonia da vida.

Poemas obtidos no livro da poetisa, “Cenas”. Juiz de Fora: Editar Editora Associada, 2010.

Cecy Barbosa Campos

Cecy Barbosa Campos, é natural de Juiz de Fora (MG), Bacharel em Direito e licenciada em letras (inglês) pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Especialização em Teoria Literária e diversos cursos de aperfeiçoamento em inglês nos Estados Unidos e na Inglaterra. Professora de Literatura Inglesa e Norte-Americana, aposentada em 1991 na UFJF. Leciona nos cursos de graduação e pós-graduação do Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora. Desenvolve pesquisas sobre escritores afro-descendentes.
Tem artigos de pesquisa literária publicados em revistas especializadas e anais de congresso e trabalhos em prosa e verso premiados em concursos.
Entidades a que pertence
Academia Juizforana de Letras. Academia Granberyense de Letras, Artes e Ciências. Academia de Letras Rio-Cidade Maravilhosa; Academia Rio Pombense de Letras, Ciências e Artes. Academia de Letras e Artes de Fortaleza, Clube de Escritores de Piracicaba. Academia de Letras do Brasil/ Mariana. Academia de Letras do Brasil/Seccional Suiça. Ateneu Angrense de Letras e Artes. Associação Brasileira de Literatura Comparada. Academie Mérite et Dévouement Français. Divine Academia des Arts, Lettres et Culture Française
Publicações:
The Iceman Cometh: a carnavalização na tragédia ; O Reverso do Mito e outros ensaios ; Recortes da Vida: contos e crônicas ; Cenas (poemas) ; Crepusculares (aldravias) ; Caleidoscópio (poetrix)
Participações:
– Coleção Prosa e Verso, do Grupo Sul-mineiro de Poesia e Academia Varginhense de Letras; - Modernos Contos Brasileiros; - Antologia da Academia Dorense de Letras; - Antologia Letras Contemporâneas; - Prêmio Missões; - Antologia del`Secchi; – Antologia da Academia Chapecoense de Letras; – Antologia Lumens (prêmio Walmir Ayala, 2012); – A Écrivains contemporains du Minas Gerais (França); – Livro das Aldravias (Portugal), etc.. Capítulo A Poética de Conceição Evaristo, no livro Um Tigre na Floresta dos Signos: estudos sobre poesia e demandas sociais no Brasil (2010), organizado por Edmilson de Almeida Pereira.