quinta-feira, 16 de abril de 2009

Carlos Drummond de Andrade (Poesias Além da Terra, Além do Céu)


O TEMPO PASSA? NÃO PASSA

O tempo passa? Não passa
no abismo do coração.
Lá dentro, perdura a graça
do amor, florindo em canção.

O tempo nos aproxima
cada vez mais, nos reduz
a um só verso e uma rima
de mãos e olhos, na luz.

Não há tempo consumido
nem tempo a economizar.
O tempo é todo vestido
de amor e tempo de amar.

O meu tempo e o teu, amada,
transcendem qualquer medida.
Além do amor, não há nada,
amar é o sumo da vida.

São mitos de calendário
tanto o ontem como o agora,
e o teu aniversário
é um nascer a toda hora.

E nosso amor, que brotou
do tempo, não tem idade,
pois só quem ama escutou
o apelo da eternidade.
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A BRUXA

Nesta cidade do Rio
De dois milhões de habitantes
Estou sozinho no quarto
Estou sozinho na América.

Estarei mesmo sozinho?
Ainda há pouco um ruído
Anunciou vida a meu lado.
Certo não é vida humana,
Mas é vida. E sinto a Bruxa
Presa na zona de luz.

De dois milhões de habitantes!
E nem precisava tanto...
Precisava de um amigo,
Desses calados, distantes,
Que lêem verso de Horácio
Mas secretamente influem
Na vida, no amor, na carne.
Estou só, não tenho amigo,
E a essa hora tardia
Como procurar amigo?

E nem precisava tanto.
Precisava de mulher
Que entrasse nesse minuto,
Recebesse esse carinho
Salvasse do aniquilamento
Um minuto e um carinho loucos
Que tenho para oferecer.

Em dois milhões de habitantes
Quantas mulheres prováveis
Interrogam-se no espelho
Medindo o tempo perdido
Até que venha a manhã
Trazer leite, jornal, calma.
Porém a essa hora vazia
Como descobrir mulher?

Esta cidade do Rio!
Tenho tanta palavra meiga,
Conheço vozes de bichos,
Sei os beijos mais violentos,
Viajei, briguei, aprendi
Estou cercado de olhos,
de mãos, afetos, procuras

Mas se tento comunicar-me,
O que há é apenas a noite
E uma espantosa solidão

Companheiros, escutai-me!
Essa presença agitada
Querendo romper a noite
Não é simplesmente a Bruxa.
É antes a confidência
Exalando-se de um homem.
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A HORA DO CANSAÇO

As coisas que amamos,
as pessoas que amamos
são eternas até certo ponto.
Duram o infinito variável
no limite de nosso poder
de respirar a eternidade.

Pensá-las é pensar que não acabam nunca,
dar-lhes moldura de granito.
De outra matéria se tornam, absoluta,
numa outra (maior) realidade.

Começam a esmaecer quando nos cansamos,
e todos nós cansamos, por um outro itinerário,
de aspirar a resina do eterno.
Já não pretendemos que sejam imperecíveis.
Restituímos cada ser e coisa à condição precária,
rebaixamos o amor ao estado de utilidade.

Do sonho de eterno fica esse gosto ocre
na boca ou na mente, sei lá, talvez no ar.
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ALÉM DA TERRA, ALÉM DO CÉU

Além da terra, além do céu
no trampolim do sem-fim das estrelas,
no rastros dos astros,
na magnólia das nebulosas.
Além, muito além do sistema solar
até onde alcançam o pensamento e o coração,
vamos!
vamos conjugar
o verbo fudamental essencial
o verbo transcendente, acima das gramáticas
e do medo e da moeda e da política,
o verbo sempreamar
o verbo pluriamar,
razão de ser e viver.
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AS SEM RAZÕES DO AMOR

Eu te amo porque te amo.
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no elipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.
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CANTIGA DE VIÚVO

A noite caiu na minh'alma,
fiquei triste sem querer.
Uma sombra veio vindo,
veio vindo, me abraçou.
Era a sombra de meu bem
que morreu há tanto tempo.

Me abraçou com tanto amor
me apertou com tanto fogo
me beijou, me consolou.

Depois riu devagarinho,
me disse adeus com a cabeça
e saiu. Fechou a porta.
Ouvi seus passos na escada.
Depois mais nada...
acabou.
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CONFIDÊNCIA DO ITABIRANO

Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.

A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.

De Itabira trouxe prendas diversas que ora ofereço:
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa...
Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!
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MEMÓRIA

Amar o perdido
deixa confundido
este coração.

Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.
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O AMOR BATE NA PORTA

Cantiga de amor sem eira
nem beira,
vira o mundo de cabeça
para baixo,
suspende a saia das mulheres,
tira os óculos dos homens,
o amor, seja como for,
é o amor.

Meu bem, não chores,
hoje tem filme de Carlito.

O amor bate na porta
o amor bate na aorta,
fui abrir e me constipei.
Cardíaco e melancólico,
o amor ronca na horta
entre pés de laranjeira
entre uvas meio verdes
e desejos já maduros.

Entre uvas meio verdes,
meu amor, não te atormentes.
Certos ácidos adoçam
a boca murcha dos velhos
e quando os dentes não mordem
e quando os braços não prendem
o amor faz uma cócega
o amor desenha uma curva
propõe uma geometria.

Amor é bicho instruído.

Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que escorre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem,
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.

Daqui estou vendo o amor
irritado, desapontado,
mas também vejo outras coisas:
vejo corpos, vejo almas
vejo beijos que se beijam
ouço mãos que se conversam
e que viajam sem mapa.
Vejo muitas outras coisas
que não posso compreender...
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POEMA PATÉTICO

Que barulho é esse na escada?
É o amor que está acabando,
é o homem que fechou a porta
e se enforcou na cortina.

Que barulho é esse na escada?
É Guiomar que tapou os olhos
e se assoou com estrondo.
É a lua imóvel sobre os pratos
e os metais que brilham na copa.

Que barulho é esse na escada?
É a torneira pingando água,
e o lamento imperceptível
de alguém que perdeu no jogo
enquanto a banda de música
vai baixando, baixando de tom.

Que barulho é esse na escada?
É a virgem com um trombone,
a criança com um tambor,
o bispo com uma campainha
e alguém abafando o rumor
que salta de meu coração.
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Nilto Maciel (Como Surgiram Palma e seus Habitantes)

Igreja de Santa Luzia (Baturité/CE)
Quase todas as minhas narrativas longas têm como cenário a fictícia cidade de Palma. E também alguns contos. Palma seria Baturité. Não sei se a omissão do nome real da cidade se deveu à vontade de me esconder, me sentir mais livre para criar ou de não parecer tão real, não ser um cronista. Para substituir Baturité, inventei primeiro Jeriquitiba. Depois Tamboaçu.

O topônimo Palma apareceu primeiro nos contos “A Beata de Palma”, “As Pontas da Estrela” e “Tony River”, do livro Babel, publicado em 1997, mas escrito logo após Itinerário, entre 1975 e 1976. Originalmente, no entanto, nas três peças eu ainda não denominava Palma a cidade de minha ficção. Assim, a segunda dessas narrativas intitulava-se “O Menino com uma Estrela na Testa” e se passava em Tamboaçu, tal como a primeira. Este nome perdurou talvez até 1982, quando passei a reescrever meus contos publicados em jornais e revistas.

Como disse, Jeriquitiba é o primeiro nome da cidade de minhas histórias. Apareceu apenas uma vez, em “História da Selvagem Batalha das Cruzes em Jeriquitiba e na Estrada que a Liga ao Resto do Mundo”, escrito em junho de 75, reformulado em julho de 85 e transformado em “Calvário”.

“A Beata de Palma” se inicia assim: “Quando o trem parou na estação, o sol acabava de se esconder”. Em outros contos e romances se verá a estação de trens, comum a diversas cidades do interior. Maria Efigênia é o nome da protagonista, que reaparece em “As Pontas da Estrela”. As beatas também estão presentes em histórias deste e de outros livros. Na verdade, tencionava escrever um romance. A beata seria uma das personagens.

A primeira descrição da cidade está também naquele conto: “Por pouco não me perdi naquele labirinto de ruelas, becos sem saída, florestas de árvores nas praças, coretos, igrejas, capelas. Sim, além da majestosa igreja matriz, outras dez se espalhavam pela cidade”.

As cercanias de Palma podem ser vistas em “Calvário” (a estrada, a poeira levantada pelo caminhão, a cruz fincada no chão) e “O Fim do Mundo de Sinhá” (o sitiozinho, a choupana velha, a roça), bem como a própria cidade (“A Noite das Garrafadas”).

A nomenclatura dos logradouros de Palma, no entanto, surgirá somente com a novela A Guerra da Donzela, escrita entre 1976 e 1977.

Em Tempos de Mula Preta, segundo livro de contos publicado, porém escrito logo após os de Babel, o nome Palma só aparece em “Impossível Contar a História de Palma”, de abril de 78. Entretanto, em outros contos há referências a nomes de logradouros e à sua arquitetura e geografia, como em “Ave-Marias” (“Pela 7 de Setembro, Isidoro cavalga o jipe a toda. Esporeia, chicoteia, upa, upa, bicho danado. À porta do Café Portuguez, uma rodinha ri, gesticula, cabriola em redor do Dr. Pinheiro”.(...) “Pela Dom Bosco, o jipe pula, relincha, peida, em tempo de voar”. (...) “A moça continua debruçada à janela, olhos voltados para o namorado que caminha no rumo da Matriz”. (...) “Montado no jipe, Isidoro escramuça pelos becos do Potiú. A poeira vermelha o persegue”.); em “As Sete Onças de Neo” (“Eu até me lembrei do sobradão do Dr. João Ramos, com suas cem janelas”.); em “Cavalos de Tróia” (“No telhado do Caffe Portuguez pombos arrulhavam. Um casal se beliscava sobre um dos jacarés. O alto-falante cantarolava uma valsa”.); e em “O Castigo de Deus”, escrito em fevereiro de 78, (“Sim, o fogo devoraria tudo, coisas e pessoas. A menos que fôssemos todos para o meio da rua, as praças. Ou para a igreja matriz. Lá o fogo não entraria. Na casa de Deus a salvação. Quando o mar invadisse a terra, no dilúvio do fim do mundo, quem quisesse se salvar, buscasse abrigo no interior da igreja. As águas não passariam dos degraus do patamar, enquanto o mundo estaria alagado”.)

Palma e seus personagens são relativamente antigos. Quando a ditadura Vargas chegava ao fim, no Ceará ainda mandava Francisco de Meneses Pimentel, no poder desde 1935. Em 1937 tornou-se interventor, sendo demitido em 28 de outubro de 1945. Em Baturité ainda dominava o Comendador Ananias Arruda, apesar de ter exercido o cargo de prefeito até maio de 1943, nomeado em 1935 e eleito no ano seguinte.

Meu pai, Luiz Maciel Filho, nasceu no distrito de Guaramiranga, termo de Pacoti, comarca de Baturité, em 7 de dezembro de 1908, sendo filho de Luiz Fernandes Maciel e Raimunda Nunes Maciel, e faleceu em 10 de janeiro de 1988, em Fortaleza. Minha mãe, Francisca Alves Maciel, filha de Luiz Alves Pereira e Francisca Alves Pereira, nasceu em 11 de abril de 1908 e faleceu em 14 de julho de 1995, em Fortaleza. Casaram-se na Matriz de Baturité em 18 de setembro de 1930.

Morávamos numa casa comprida e estreita da Avenida Dom Bosco. Papai comerciava. Exportava produtos da região. Vivia bem, tinha prestígio, viajava para Fortaleza, vestia-se como rico. Mamãe cuidava da casa e dos filhos: Alda, Amadeu, José, Lúcia, Izeida e Ailton. Todos os partos devem ter sido assistidos por parteira. No ano seguinte nasceu Edinardo. Dois ou três filhos morreram bebês.

A Avenida Dom Bosco, chamada vulgarmente “calçamento”, era revestida de pedras. O asfalto viria muito mais tarde. No meio, dividindo-a em duas, havia árvores, que depois foram criminosamente eliminadas.

O batismo da tal avenida deve datar de 1939 ou mais adiante. Pois é dessa época a edificação do Ginásio Domingos Sávio, dos Padres Salesianos, construído em amplo terreno à margem dela. Nele estudei nos anos de 1957 e 1959 a 1961.
***

Desde muito cedo me apaixonei por futebol. Recortava fotos de times e jogadores estampadas em jornais e colava num velho livro mercantil. Do futebol avancei para outros assuntos: atrizes e atores do cinema, carros, aviões, cidades, arranha-céus, montanhas. Embora proibido de levar jornais para casa, todo dia visitava a mercearia de papai e tio Quincas. Passava horas e horas lendo e vendo os jornais. Um dia descobri os suplementos literários. Minha curiosidade se voltou para a literatura. Lia todos os suplementos. Contos, crônicas, poemas, artigos de Braga Montenegro, Fran Martins, Moreira Campos, Otacílio Colares, Otacílio de Azevedo, Eduardo Campos, Artur Eduardo Benevides, João Clímaco Bezerra, Milton Dias, João Jacques, Francisco Carvalho e tantos outros.

Adolescente, cioso de ser também rebelde, descuidei-me dos estudos. Porém lia tudo: as antologias, não somente aquelas de minha série escolar, jornais, revistas, almanaques. Lia poemas, contos, trechos de romances. Portugueses quase todos; alguns brasileiros. Nada dos modernistas ainda. Lia antes do dia da lição, com muita antecedência, por curiosidade e prazer. Enquanto ria da cara do professor de geografia, lia, com sisudez, trechos de Garret, Herculano, Camilo e outros. E compunha sonetos líricos. Mais tarde, li os livros de Amadeu, que se dizia poeta e escrevia e copiava, diariamente, sonetos de poetas brasileiros. Todos falavam de amores não correspondidos. Num caderno grande, desses para comércio, de anotações mercantis. Um desses poemas se iniciava assim: “Ser feliz! Ser feliz estava em mim, Senhora...” Muito mais tarde, encontrei-o em Juca Mulato, de Menotti Del Picchia.

Por influência dos irmãos Ailton e Amadeu, engendrei sonetos, durante algum tempo. Apesar de não amar ainda, eu também me pus a chorar de infelicidade amorosa. Preocupava-me, porém, apenas com a forma e a rima. Um desses sonetos, anos mais tarde, 1964, tive a ousadia de enviar a um jornal de Fortaleza. Publicou-se, talvez por obra de Otacílio de Azevedo, com algumas modificações: “Ser poeta é ter no peito a tormentosa/ Chaga funesta em ânsias retratada.../ É ver em tudo a forma mais formosa/ E num sonho incensar a coisa amada!”

Minha primeira leitura de livro parece ter sido Três Figuras: o Frade Poeta, o Padre Voador e o Frade Preceptor. Li-o durante um retiro no colégio dos salesianos, em setembro de 61. Convidado a conhecer a biblioteca do colégio e a retirar um livro para leitura, depois de alguns minutos de pesquisa, interessei-me pelas três figuras. Talvez por se tratar de um dos poucos livros mais ou menos profanos da pequena biblioteca.

Amadeu embarcou, em 1957, para o Planalto Central, onde se construía Brasília, e deixou alguns livros. Um deles, Pussanga, contos de Peregrino Júnior. Lido este, folheei um romance obsceno, A Mulher do Caixeiro-Viajante, de autor desconhecido, certo Alcides Vaz. Livro recomendado para maiores de 18 anos. Puro erotismo. Deste período é também a leitura de Os Sertões, de Euclides da Cunha, que me pareceu obscuro, sobretudo a primeira parte. Mesmo assim, não tive, em nenhum momento, vontade de desistir da leitura. A pequena biblioteca doméstica eu a devorei nos anos seguintes, até 1963.

Em 1962 li, pela primeira vez, um romance, um grande romance: Quo Vadis?, de Henryk Sienkiewicz. Contava 17 anos de idade e acabava de chegar a Fortaleza, pela segunda vez.
Já preparado para leituras mais agudas, logo me aproximei de A Besta Humana, de Émile Zola. Durante e logo após a leitura, senti profunda repugnância pela nossa espécie. Então éramos aquilo? Causou-me verdadeira comoção. Pois eu me tinha acostumado aos românticos e me defrontava com um naturalista. Por muitos dias, o céu me pareceu mais escuro, sombrio, baixo, como se fosse chover muito, desabar tempestades duradouras. As ruas, de uma tristeza inexplicável; nas casas escondiam-se assassinos em potencial; as pessoas tramavam, em silêncio, bestialidades inomináveis. Permaneci doente por longo período. No entanto, outros livros me dariam um pouco de alegria, como Agulha em Palheiro e Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco.

Lida a pequena biblioteca doméstica, onde encontrar outros livros? Nas livrarias nem pensar, porque não dispunha de dinheiro. Eu deixava de merendar ou assistir a filmes para comprar livros. E, sem nenhuma orientação, comprava quase sempre bons livros. Adquiri, então, o gosto pelo livro velho, usado.

Eu tinha sede de conhecimento, de leitura. Lia tudo o que via. Pedia livros por empréstimo. Mas não me bastavam. Restavam-me as calçadas das ruas Guilherme Rocha e Liberato Barroso, onde camelôs vendiam livros usados, velhos, antigos, cheios de traça e mofo, roídos de traças, sujos, páginas amarelecidas, rasgadas, anotadas. Alguns nem capas tinham mais. Havia livros de todos os gêneros, dos mais variados autores. Nenhum deles, porém, eu conhecia. Passava horas a folheá-los. Nada daqueles nomes das antologias escolares. Nada de Camões, Machado de Assis, Herculano, Alencar, Bilac e outros citados e analisados em sala de aula. Então quem seriam aqueles dos livros das calçadas? Seriam bons escritores? Valeria a pena ler aqueles livros tão antigos? Os nomes não me eram familiares, todos ingleses, franceses, alemães. Folheava um volume, lia um trecho, apanhava outro, espirrava, tanto era o pó acumulado em suas páginas ao longo dos anos. Depois de algum tempo, perguntava o preço de um volume grosso, capa vermelha, título curioso. E ia comprando e lendo romances góticos, novelas de cavalaria, contos fantásticos, misteriosos.
***

Aos 18 anos de idade, me dediquei à política. A Revolução Cubana, a renúncia de Jânio Quadros, a resistência ao golpe militar em 1961 me levaram aos livros e periódicos socialistas. Eu, Ailton e Edinardo chegamos a nos fazer vendedores da do Partido Comunista. Líamos o jornal do Partido, assim como A Liga, de Chico Julião, e outras gazetas esquerdistas.
Nunca chegamos a nos entender. Tornei-me, aos poucos, um pró-chinês, depois da divulgação dos crimes cometidos por Stalim. Ailton se dizia socialista, mas contra o “comunismo” da China e da URSS. Um amigo, Joatan, se dizia democrata. Mais tarde, eu e Edinardo estivemos juntos no mesmo grupo trotskista.

Como todos os jovens de minha geração, fui “educado” para ser anticomunista. Inicialmente pelos padres e os católicos de Baturité. Só falavam no “perigo comunista”. O jornal A Verdade, fundado por Ananias Arruda em 1917 (vejam a data), de circulação semanal ou mensal, trazia sempre artigos de teor anticomunista. Vi filmes contra a Revolução Cubana, li a revista Readers Digest e uma porção de livros desse nível.

Tudo isso acabou em 1º de abril de 1964. Joatan até fugiu de Fortaleza. Deve ter se embrenhado na Serra de Baturité.

Em pleno regime ditatorial, só restava ler. E me voltei de novo para a literatura. Dediquei-me a escrever ou rabiscar poemas e contos. Entre outubro de 65 e setembro de 67, li dezenas livros: O Amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos; Jóias do Conto Ídiche; Quem Perde Ganha, de Graham Greene; A Tragédia de Zilda, de Menotti Del Picchia; A Volta ao Mundo em 80 Dias; A Brasileira de Prazins; Sete Palmos de Terra; Iracema; Ubirajara; O Gaúcho; Senhora. Cinco ou seis anos depois, reli Iracema. Passaram-se mais dez anos para reler os dois primeiros de Alencar nesta relação e pela primeira vez conhecer O Guarani e O Sertanejo. Li também O Moço Loiro; Eurico, o Presbítero; O Vinagre e a Sede, de Sinval Sá, meu professor de português; Clara dos Anjos; Memórias Póstumas de Brás Cubas; Memorial de Aires; Quincas Borba; As Relações Perigosas, de Choderlos de Laclos; A Mortalha de Alzira, de Aluísio Azevedo; Poemas, de Verlaine; Pensamentos, de Pascal; umas novelas do Marquês de Sade; Os Vegetarianos do Amor, de Pitigrilli; Contos Escolhidos, de Machado; Ascânio, de Alexandre Dumas; e outros. Lembro-me também de dois romances, em edições antigas, que mantive comigo durante muito tempo: A Última Encarnação de Vautrin, de Balzac, e A Fossa, de Alexandre Kuprin. Li também Cleo e Daniel, de Roberto Freire.

Em 1967, estudante do Colégio Municipal de Fortaleza, voltei à militância política. Apesar disso, não deixei de lado as leituras. Tomava uns tragos de cachaça, antes de entrar no colégio. Durante o dia, trabalhava numa pequena mercearia de um cunhado. Trabalhava pouco e lia muito. E tentava imitar os clássicos estrangei¬ros. Numa dessas imitações, um conto, havia um personagem copiado do Capote de Gogol.

Da biblioteca do colégio retirei, por empréstimo, grossos volumes de contos e romances, como a série “Maravilhas do conto moderno”: norte-americano, italiano, russo, brasileiro, fantástico, etc. Fascinou-me nesses livros a oportunidade de conhecer o melhor da literatura universal. Ora, em pouco tempo conheci Guimarães Rosa, D’Annunzio, Trilussa, Pitigrilli, Moravia, os russos, todos os pilares da ficção curta.

Muitos e muitos livros lidos naqueles anos eu não lembro nem sequer os títulos. Não sei precisar quantos. Recordo, no entanto, de ter vendido mais de quinhentos volumes, todos lidos, a um comprador de livros velhos, talvez um daqueles vendedores da Rua Guilherme Rocha.
***

Não gostava dos ficcionistas brasileiros, especialmente dos nordestinos. Nem de Machado e Alencar. Outros nunca consegui ler. Como Érico Veríssimo e Jorge Amado. De ambos devo ter lido um ou dois livros apenas.

Quando descobri Graciliano, li-o de uma vez. Mas já depois de 77. Estava em Brasília e queria “conhecer” o Nordeste. Nostalgia, talvez.

Antes disso, devo ter lido apenas trechos dessa literatura em antologias. Sentia ojeriza por tudo quanto cheirasse a sertão, mato, interior. José Américo, Rachel de Queiroz, José Lins do Rego não passavam de contadores de histórias sertanejas. E eu queria escrever como Machado de Assis, uma prosa de ficção sem cheiro de mato, urbana, nacional, universal. Eu não conhecia a lição da aldeia e do universal ou não a compreendia. Queria personagens universais, atemporais, criaturas sem nenhuma semelhança comigo mesmo. Nada de românticos, naturalistas e realistas. Escrevi então contos alegóricos, filosóficos talvez, reunidos no volume Itinerário. Exemplo disso também é o conto publicado em O Saco nº 1 (abril de 1976): “Em que deu a sabedoria do homem que transformava estátuas em seres vivos”, depois reescrito em forma de auto versificado e intitulado “Juízo Final”. Os personagens chamavam-se Homthues e Estrangeiro. Essa fase logo chegou ao fim. Em vez de alegóricos Brucutus, Cônegos, Jeovás, Platões, Pompéias, inventei um João aleijado e ensandecido por anos de prisão, um José Cristiano suicida, e mesmo um Ele e uma Ela que se unem e separam. Em fevereiro de 1977 fiz publicar um conto de linhagem totalmente diversa daquela: “Detalhes interessantes da vida de Umzim”, história de retirantes nordestinos. Minha literatura “regionalista” não nasceu, porém, depois de 77. Pois “Umzim” saiu no Saco, em 76. Creio que Carlos Emílio tem alguma “culpa” nisso, apesar de muito mais novo. Ele só falava do Ceará, do Brasil, apesar de ler Joyce e outros “ingleses” no original. Falava muito de Guimarães Rosa, também. São desse período os personagens nordestinos do segundo e terceiro volumes de contos, embora em alguns deles a geografia e o tempo sejam imprecisos, como em “O Grande Jantar”, situado numa corte européia logo após a descoberta da América.
Enquanto lia, escrevia, ou tentava compor histórias, contos, rascunhos de romance. Em 69 guardava na gaveta dezenas dessas narrativas, escritas a partir de 65. Algumas delas foram reunidas em livro em 74. As demais eu as rasguei.

A primeira tentativa de escrever um romance se deu em 62. Pareceu-me, porém, realista em demasia, e eu já (ou sempre) buscava o avesso do realismo ou o fantástico, o alegórico, o picaresco.

Outras tentativas de romance surgiram, esboços vários. Eu queria o romance novo, partindo de Alencar: índios, sertanejos, rebeliões, matanças, Conselheiro, cangaço, até às cidades grandes, o cosmopolitismo, a selva urbana, a violência nas cidades, o caos.

Publicado o primeiro livro, conheci alguns escritores novos, como Renato Saldanha, Gerim Cavalcante, Carlos Emílio, Airton Monte, Gilmar de Carvalho, Paulo Veras, Yehudi Bezerra. E continuei a escrever contos e a enviá-los para jornais, a partir de 1976. Alguns deles reuni em Tempos de Mula Preta, outros em Punhalzinho Cravado de Ódio. Quase todos foram reescritos, depois de publicados em jornais e revistas. Alguns receberam outros títulos.
***

Minha mudança para Brasília (saudade da terra natal, da família, dos amigos) talvez tenha servido para sedimentar em mim o ânimo de escrever uma literatura regional. São desse tempo os primeiros contos baturiteenses, cearenses, extraídos da memória: “Cavalos de Tróia”, “Romos”, “O castigo de Deus começou ao meio-dia” (depois apenas “O Castigo de Deus”) e “Impossível contar a história de Palma”, verdadeira confissão de incapacidade ou impossibilidade de escrever a história de minha terra.

Em carta de 24 de abril de 77, Carlos Emílio me dizia: “Precisamos, portanto, duma recapturação de nossa pré-história (é isso que eu estou fazendo), reinaugurar a cosmovisão do índio, dos seres desaparecidos e que viveram nessa terra muito antes de nós, os invasores, um retorno às fontes populares (cordel, autos, histórias narradas oralmente, os mitos da terra, da água, do ar e do fogo do povo” (...)

Essa fase baturiteense é também a fase das novelas ou romances, iniciada com A Guerra da Donzela. Na verdade, o primeiro projeto de um romance indianista surgiu em 1976 e contaria a guerra entre brancos e nativos no decorrer dos séculos XVII e XVIII, travada nos sertões nordestinos e especialmente no Ceará. O personagem principal seria um escritor que planeja escrever o romance dos índios de Baturité. Um romance dentro de outro. Esse romance teve várias versões, sofreu cortes, modificações profundas, e nunca vingou. Dele surgiu, de forma resumida, Os Guerreiros de Monte-Mor. O enredo é simples: Em meados do século XIX inicia-se mais um movimento nativista no Brasil. Semelhante à Inconfidência Mineira, à Conjuração Baiana, à Confederação do Equador. O palco dessa nova rebelião é a Serra de Baturité, no Ceará. Forma-se um exército revolucionário, composto de apenas três soldados: João da Silva Cardoso e seu neto José, ambos descendentes dos índios jenipapos, e um nativo da tribo xocó. Suas armas mais poderosas são morcegos das cavernas. A intenção do grupo é criar um novo país. Talvez um império. Ou uma república de índios. O romance é a história jocosa desses rebeldes. Seus planos, suas lutas, seus fracassos. Não se trata, porém, de um romance histórico. Melhor chamá-lo de romance picaresco. Porque seus personagens principais – o Regimento Cardoso – são bufões. Aventureiros imaginários de um período de muitas aventuras, farsas, bufonarias. O século XIX brasileiro, e cearense em particular, é cheio disso. Inicia-se com a chegada do naturalista Feijó às terras do Ceará. Sua missão: achar salitre para a fabricação da pólvora portuguesa.

A primeira aventura político-militar, no entanto, se dá em 1817, com a Revolução Nativista de Pernambuco, similar nordestina da Inconfidência Mineira. O movimento se estendeu por outras províncias do Norte. Na vila do Crato, mais tarde relegada a segundo plano com o aparecimento do Padre Cícero de Juazeiro, José Martiniano de Alencar (pai do romancista), Tristão Gonçalves e outros heróis e farsantes proclamam uma república, que dura uma semana e resulta no enforcamento dos primeiros republicanos do Brasil.

Em 1822 dá-se a grande farsa da aclamação de Pedro I. Dois anos depois, o imperador dissolve a Constituinte e faz irromperem novos focos de rebelião. No Ceará instaura-se a segunda república, que adere à Confederação do Equador, ou República do Equador, também de curta duração. Alguns aventureiros e farsantes ditos nativistas e republicanos esquecem as aventuras e voltam ao palco para as farsas da monarquia. Uns são conservadores, apelidados de caranguejos; outros, liberais, alcunhados de chimangos ou ximangos. E brigam pelos papéis principais. Em meio a tantos aspirantes a chefes, surgem aqui e ali truões, como o lendário padre Alexandre Francisco Cerbelon Verdeixa, chamado de Canoa Doida, por andar um pouco caído para diante, a cabeça baixa pendendo para os lados, passadas curtas, mas muito rápidas, como informa João Brígido.

***

Para chegar ao nome Palma, levei anos de leituras. Como se sabe, Baturité surgiu da aldeia ou missão jesuítica de Nossa Senhora da Palma. A atual cidade de Baturité, situada a cerca de cem quilômetros de Fortaleza, foi também palco dos acontecimentos do resumo de linhas atrás, quando ainda se chamava vila de Monte-mor o novo d’América. Antes de 1764, no entanto, denominava-se simplesmente Missão da Serra de Baturité, onde foram reunidos índios das tribos Canindés, Paiacus, Jenipapos e Quixelôs, todos Tarairiús, uma das famílias de tronco independente dos Tupis e Gês (a outra era a dos Cariris) que habitava o território cearense. A formação da missão se deveu, sobretudo, a uma solicitação feita em 1739 às autoridades de Pernambuco pelo capitão-mor dos Jenipapos, Miguel da Silva Cardoso. Em 1858 a vila passou a cidade e no ano seguinte aportava em Fortaleza a barca francesa Splendide, procedente de Argel, trazendo 14 dromedários, a seguir conduzidos a Baturité, onde resistiram algum tempo. Outra farsa imperial.

Como levar a sério uma História tão repleta de farsas e bufonarias? Assim também esta história, com seus personagens tão bufões quanto os bufões reais (ou imperiais).
***

Outro projeto de romance contaria as histórias de diversas gerações de caboclos (descendentes de índios) da Serra de Baturité, desde a eliminação da aldeia até o século XX. Seria um romance longo. Um roman-fleuve. Desmembrado, esse projeto deu origem a quase todas as novelas e romances, como A Guerra da Donzela, A Busca da Paixão, Os Varões de Palma e Os Luzeiros do Mundo.

Criada Palma, outras histórias foram escritas, porém já sem nenhuma ligação ideológica com o projeto inicial, como O Cabra que Virou Bode, A Rosa Gótica, A Última Noite de Helena e Carnavalha. Quase todas escritas até 1990.

É desse período minha paixão pelos temas indígenas, sobretudo a História dos povos primitivos do Nordeste e do Ceará, em particular. Escrevi, então, contos como “Santa Sekiki”, em 1979.
Passada a euforia indianista, voltei-me para a recriação ou a invenção de Palma e seus habitantes. Aqui e ali, aproveitei um fiapo de memória, como em A Rosa Gótica. Agarrado a esses fiapos, eu me deixava embalar pela imaginação, como em Os Luzeiros do Mundo. Na verdade, quase tudo o que escrevi vem da imaginação, é invenção pura.

A fase de leituras dos clássicos estrangeiros e brasileiros acabou cedo, talvez em 1980, embora desde os anos 1970 eu viesse lendo escritores contemporâneos. Julgando-me escritor feito, pouco escrevi depois de 1990. Passei a ler a pedido dos amigos ou escritores novos. Recebia livros quase que diariamente. E foram ficando para trás muitas e muitas obras fundamentais da literatura universal. Escritas mais de duzentas narrativas curtas, uma dezena de narrativas médias, dezenas de poemas, resta-me reescrevê-las e publicá-las.
Fortaleza, fevereiro de 2006.

Fontes
http://literaturasemfronteiras.blogspot.com
Imagem = http://www.hotelmais.com.br

Juvenal Bucuane (Poesia de Moçambique)


Escritor moçambicano, nascido a 23 de Outubro de 1951, em Xai-Xai, dividiu-se entre a poesia e a prosa. No entanto, os seus primeiros livros, A Raiz e o Canto (1985) e Requiem-Com os Olhos Secos (1987) , são de poesia. Em 1989 publicou, em prosa, Xefina e O Segredo da Alma . Em 1992 deu à estampa um novo volume de poemas, Limbo Verde . Bucuane foi diretor e secretário administrativo da revista literária Charrua (1984) e é membro efetivo da Associação de Escritores Moçambicanos.
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O minuto que vem

Há medo
leio-o
nos rostos dos homens
medo do minuto que vem (?)
Que grande desgraça traz
o minuto que vem?
................................................................
Leio medo
nos rostos dos homens,
rostos que não falam,
mas têm nessa voz muda
o latejar do enigma que emprenha o minuto que vem!
................................................................
Criemos uma canção, homens,
criemos uma canção de luta e de amor
que será de triunfo
no minuto que vem,
sobre o medo e a resignação!
...............................................................
Cantemos sobre o medo
do minuto que vem!
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O Húmus do homem novo

Não quero que vejas
nem sintas
a dor que me amargura;
Não quero que vejas
nem virtas
as lágrimas do meu pranto.
Deixa que eu chore
as mágoas e as desilusões;
deixa que eu deambule;
deixa que eu pise
a calidez do chão desta terra
e o regue até com o meu suor;
deixa que me toste
sob este sol inóspito
que me dardeja o lombo sempre arqueado...
Este penar
é o resgate da esperança
que em ti alço!
Este penar
é a certeza do amanhã que vislumbro
na tua ainda incipiente idade!
Não quero que vejas
nem sintas
o meu tormento
ele é o húmus do Homem Novo
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Juvenal Galeno (Poesia Cearense)



A Moda

O que eu desejo, senhoras,
É que se cumpra o rifão:
— Cada terra com seu uso,
Cada roca com seu fuso: —
Eis a minha opinião!

Mas, vestir-se o brasileiro
Como lhe ordena o francês...
Não acho isso direito!
Viver o povo sujeito
Aos figurinos do mês!

É mesmo falta de brio,
É fazer-se manequim;
Dizem que somos macacos...
Pois antes trajarmos sacos,
Do que servir de saguim!

Devemos ter nossa moda,
Tenha a sua o japonês;
Vista o prusso à prussiana,
Ande o russo a russiana,
Ninguém roube a do chinês.

Cada qual conforme o clima
De sua terra natal;
Que se o Norte tem calores,
No sul existem rigores
Da viração glacial.

Mas ornar-se quem tirita
Como quem sopra... é de mais!
Se trajamos nos estios
Como a França nos seus frios,
Não somos racionais!

E que roupagem ridícula
Nos impõe o tal Paris!
Que não levem... rabos tais!
Às damas puseram rabo! —
Pois não é um menoscabo
A esta terra infeliz? —
(...)

Batinas e polonaise,
Hoje, bico — amanhã, não;
Muitas trouxas, muitos regos,
Babados e repolegos,
Arregaços... confusão!

E franjas, fitas e penas!
No meio dessa babel,
A mulher desaparece...
Nem o marido a conhece
Nequele horendo pastel!
(...)

E é tamanha a tirania,
Que aqui não sabe ninguém
Como andará pela rua,
Ou consorte ou filha sua,
Em dias do mês que vem!

Já disse o suficiente...
Às damas peço perdão!
Apenas bato o abuso...
Cada terra com seu uso...
Esta é minha opinião!
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Os Barões
I

Eu não canto os barões assinalados
Por atos de virtude ou de heroismo...
Mas espertos e torpes titulados,
Egrégios na baixeza e no cinismo!
Que os primeiros são tão raros
Nesta terra em que nasci,
Ao passo que dos segundos
Mais de um cento conheci!
E deles cada qual o mais tratante,
Mais néscio e mais servil...
Em fidalgos ruins já ninguém vence
Por certo o meu Brasil!
E se alguém duvidar ponha a luneta
E o passado examine dos barões...
Empurre no presente uma lanceta
E verá o que sai... que podridões!
Ou procure, que tenho na gaveta,
Alguns apontamentos ou borrões...
Mas trabalho é demais... ninguém se meta,
Antes leia estes traços a crayons.

(...)

III

Que ativo contrabandista
Foi outrora, — e ainda o é —
Aquele esperto Fulgêncio,
O barão do Gereré!...

Quem mais ligeiro no ofício?...
Sagaz!
Por entre as trevas da noite...
Trás... zás!

As cousas vinham dos barcos,
Sem o fisco examinar...
Pelas artes de berliques,
Passavam todas no ar;

E por artes de berloques,
Nunca as poderam pegar!
E as que vinham pelo fisco
Mudavam de condição...
Popelinas despachadas
Por fazenda de algodão!

E desse modo Fulgêncio
Depressa se f'licitou...
Passando mil contrabandos
Em pouco tempo enricou,
E para não ser Fulgêncio,
Um baronato arranjou!

Hoje é fidalgo...
Dos nobres é:
Barão exímio
Do Gereré!...

(...)
======================

O Caipora
— No meio da mata, menino, não corras,
Que o vil caipora
Agora,
Nesta hora
Passeia montado no seu caititu;
E arteiro e malino
Se encontra o menino...
Ai dele! que o leva no seu grande uru!

Menino, não corras
Na mata a brincar,
Que o vil caipora
Te pode levar.

Seus olhos pequenos são negros, e feros,
Quais d'onça, luzentes,
Ardentes...
E os dentes
São como os do mero, ferinos, cruéis;
E o duro cabelo,
Assim, como o pêlo
Dos bravos queixadas, que são-lhe fiéis.

Menino, não corras
Na mata a brincar,
Que o vil caipora
Te pode levar.

Qu'ousado e valente o tal caboclinho,
De penas coberto,
Esperto...
Decerto
Se vê-te quer fumo, pedir-t'o lá vem;
Se acaso lh'o negas,
Se não lh'o entregas,
Quem é que te salva? Lá vais ao moquém!

Menino, não corras
Na mata a brincar,
Que o vil caipora
Te pode levar.

Se acaso te encontra... lá vais para a grota
Debalde lutando,
Gritando,
Chorando,
Na embira amarrado do seu grande uru!
Não corras menino,
Que o índio malino
Na mata passeia no seu caititu!

E o louco menino
Não quis escutar;
Fugindo de casa
Não pôde voltar.
–––––––––––––––––
Fontes:
GALENO, Juvenal. Folhetins de Silvanus. A machadada. Fortaleza: Ed. Henriqueta Galeno.
GALENO, Juvenal. Lendas e canções populares, 1859/1865. Fortaleza: Casa de Juvenal Galeno.

Juvenal Galeno (1836 – 1931)



Juvenal Galeno da Costa e Silva (Fortaleza, 27 de setembro de 1836 — Fortaleza, 7 de março de 1931) foi um poeta brasileiro, de grande destaque nas letras cearenses.

Filho de José Antônio da Costa e Silva, proeminente agricultor, fez seus primeiros estudos em Pacatuba e Aracati, e cursou Humanidades no Liceu do Ceará, em Fortaleza, formando-se em 1854.

O pai desejava que ele trabalhasse na área agrícola e por isso o manda para o Rio de Janeiro estudar "assuntos de lavoura", com o objetivo de observar a cultura cafeeira.

Conta-se que ao se tornar amigo de Paula Brito, proprietário de uma famosa tipografia na época, Juvenal chegou a conhecer Machado de Assis, Quintino Bocaiuva e Joaquim Manuel de Macedo. Foi nesta altura que iniciou sua colaboração literária na revista Marmota Fluminense, a mesma em que Machado de Assis escrevia.

Em seu retorno ao Ceará, Juvenal Galeno traz o seu primeiro livro de poemas, impresso às suas custas, na Tipografia Americana, Prelúdios Poéticos, publicado em 1856.

Seguiram-se A Machadada (1860), Porangaba (1861), Lendas e Canções Populares (1865), Canções de Escola (1871), Lira Cearense (1872) e Folhetins de Silvanus (1891), entre outros.

Tornou-se Deputado Estadual em 1859, em Fortaleza; no mesmo ano, iniciou amizade com Gonçalves Dias, então integrante da Comissão Científica de Exploração em visita ao Ceará.

Em 1887 tornou-se membro-fundador do Instituto Histórico do Ceará. Foi ainda Diretor da Biblioteca Pública de Fortaleza, entre 1889 e 1906.

Juvenal Galeno foi um dos fundadores do instituto da Ceará, Patrono da Cadeira nº 23 da Academia Cearense de Letras.

O poeta ficou cego em 1906, por causa de glaucoma. Em 1919, com ajuda de sua filha, Henriqueta Galeno, sua residência tornou-se um lugar de promoção cultura, com a criação da Casa de Juvenal Galeno. Faleceu de uremia aos 95 anos de idade, em Fortaleza, no dia 7 de março de 1931.

Juvenal Galeno pertence à segunda geração do Romantismo. Suas obras foram admiradas por grandes escritores do período, como José de Alencar, que escreveu, sobre Lira Cearense: "creia-me, livro tão original ainda não se escreveu entre nós e o Ceará deve lisonjear-se de ter quem lhe dê na literatura pátria um lugar que não têm outras províncias mais ricas e adiantadas em progresso material."

Fontes:
http://pt.wikipedia.org/
http://www.astormentas.com/

terça-feira, 14 de abril de 2009

Gonçalves Dias (O Gigante de Pedra)



O guerriers! ne laissez pas ma dépouille au corbeau!
Ensevelissez-moi parmi des monts sublimes,
Afin que l'étranger cherche, en voyant leurs cimes,
Quelle montagne est mon tombeau!
V.Hugo.Le Géant.

I
Gigante orgulhoso, de fero semblante,
Num leito de pedra lá jaz a dormir!
Em duro granito repousa o gigante,
Que os raios somente puderam fundir.

Dormido atalaia no serro empinado
Devera cuidoso, sanhudo velar;
O raio passando o deixou fulminado,
E à aurora, que surge, não há de acordar!

Co'os braços no peito cruzados nervosos,
Mais alto que as nuvens, os céus a encarar,
Seu corpo se estende por montes fragosos,
Seus pés sobranceiros se elevam do mar!

De lavas ardentes seus membros fundidos
Avultam imensos: só Deus poderá
Rebelde lançá-lo dos montes erguidos,
Curvados ao peso, que sobre lhe 'stá.

E o céu, e as estrelas e os astros fulgentes
São velas, são tochas, são vivos brandões,
E o branco sudário são névoas algentes,
E o crepe, que o cobre, são negros bulcões.

Da noite, que surge, no manto fagueiro
Quis Deus que se erguesse, de junto a seus pés,
A cruz sempre viva do sol no cruzeiro,
Deitada nos braços do eterno Moisés.

Perfumam-no odores que as flores exalam,
Bafejam-no carmes de um hino de amor
Dos homens, dos brutos, das nuvens que estalam,
Dos ventos que rugem, do mar em furor.

E lá na montanha, deitado dormido
Campeia o gigante, — nem pode acordar!
Cruzados os braços de ferro fundido,
A fronte nas nuvens, os pés sobre o mar!

II
Banha o sol os horizontes,
Trepa os castelos dos céus,
Aclara serras e fontes,
Vigia os domínios seus:
Já descai p'ra o ocidente,
E em globo de fogo ardente
Vai-se no mar esconder;
E lá campeia o gigante,
Sem destorcer o semblante,
Imóvel, mudo, a jazer!

Vem a noite após o dia,
Vem o silêncio, o frescor,
E a brisa leve e macia,
Que lhe suspira ao redor;

E da noite entre os negrores,
Das estrelas os fulgores
Brilham na face do mar:
Brilha a lua cintilante,
E sempre mudo o gigante,
Imóvel, sem acordar!

Depois outro sol desponta,
E outra noite também,
Outra lua que aos céus monta,
Outro sol que após lhe vem:
Após um dia outro dia,
Noite após noite sombria,
Após a luz o bulcão,
E sempre o duro gigante,
Imóvel, mudo, constante
Na calma e na cerração!

Corre o tempo fugidio,
Vem das águas a estação,
Após ela o quente estio;
E na calma do verão
Crescem folhas, vingam flores,
Entre galas e verdores
Sazonam-se frutos mil;
Cobrem-se os prados de relva,
Murmura o vento na selva,
Azulam-se os céus de anil!

Tornam prados a despir-se,
Tornam flores a murchar,
Tornam de novo a vestir-se,
Tornam depois a secar;
E como gota filtrada
De uma abóbada escavada
Sempre, incessante a cair,
Tombam as horas e os dias,
Como fantasmas, sombrias,
Nos abismos do porvir!

E no féretro de montes
Inconcusso, imóvel, fito,
Escurece os horizontes
O gigante de granito.
Com soberba indiferença
Sente extinta a antiga crença
Dos Tamoios, dos Pajés;
Nem vê que duras desgraças,
Que lutas de novas raças
Se lhe atropelam aos pés!

III
E lá na montanha deitado dormido
Campeia o gigante! — nem pode acordar!
Cruzados os braços de ferro fundido,
A fronte nas nuvens, e os pés sobre o mar!...

IV
Viu primeiro os íncolas
Robustos, das florestas,
Batendo os arcos rígidos,
Traçando homéreas festas,
À luz dos fogos rútilos,
Aos sons do murmuré!
E em Guanabara esplêndida
As danças dos guerreiros,
E o guau cadente e vário
Dos moços prazenteiros,
E os cantos da vitória
Tangidos no boré.

E das igaras côncavas
A frota aparelhada,
Vistosa e formosíssima
Cortando a undosa estrada,
Sabendo, mas que frágeis,
Os ventos contrastar:
E a caça leda e rápida

Por serras, por devesas,
E os cantos da janúbia
Junto às lenhas acesas,
Quando o tapuia mísero
Seus feitos vai narrar!

E o germe da discórdia
Crescendo em duras brigas,
Ceifando os brios rústicos
Das tribos sempre amigas,
— Tamoi a raça antígua,
Feroz Tupinambá.
Lá vai a gente impróvida,
Nação vencida, imbele,
Buscando as matas ínvias,
Donde outra tribo a expele;
Jaz o pajé sem glória,
Sem glória o maracá.

Depois em naus flamívomas
Um troço ardido e forte,
Cobrindo os campos úmidos
De fumo, e sangue, e morte,
Traz dos reparos hórridos
D'altíssimo pavês:
E do sangrento pélago
Em míseras ruínas
Surgir galhardas, límpidas
As portuguesas quinas,
Murchos os lises cândidos
Do impróvido gaulês!

V
Mudaram-se os tempos e a face da terra,
Cidades alastram o antigo paul;
Mas inda o gigante, que dorme na serra,
Se abraça ao imenso cruzeiro do sul.

Nas duras montanhas os membros gelados,
Talhados a golpes de ignoto buril,
Descansa, ó gigante, que encerras os fados,
Que os términos guardas do vasto Brasil.

Porém se algum dia fortuna inconstante
Puder-nos a crença e a pátria acabar,
Arroja-te às ondas, o duro gigante,
Inunda estes montes, desloca este mar!
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Liane Niremberg (Teia de Poesias)


Instantes

Eu queria voltar no tempo.
No instante do teu olhar intenso
Das tuas loucas fantasias quando me fitavas
Eu percebia
Lembras como eu te queria?
Não apenas nos beijos
Nas carícias plenas
Mas no teu todo estar
Queria encontrar teu sorriso
Beijar-te as palavras
Espiar teu sono
Te dar minha alegria, te roubando a tristeza.
Ser-te amiga constante
Companheira leal
A amante intensa
Alma na paralela, uma paz sem igual
Só que não é mais possível
Pois o instante do tempo passou

Mas tu lembras como eu te queria
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O Momento...
Há esse momento quase bruma
nunca esquecimento.
Quando tudo parece finalmente
se aquietado distante sereno...
Um prepotente segundo se faz.
Há então um quase tormento
de lembranças que atormentam...
São instantes vícios antigos
retornando pra ficar.
Permanecem tão constantes
tão risonhos...
Ah quem dera fossem sonhos!
Mas não.
São segundos... Intenção.
Tudo se agita trocando de lugar
lágrimas risos tristezas alegrias...
Ao comando da saudade
que não encontra seu lugar.
Há sim esse momento...!
E por mais suspirado seja o grito
no vazio se desfaz...
Então aos poucos o pensar toma razão.
Cantando melodia fim de dia
sorri olhar tímido apaixonado...!
E pra esperança estende a mão...
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Último Pensamento

esse vazio
que me fita agora
deixa-me trêmula
pois percebo nele
um sentimento estranho
transformação de perda
tento alcançá-lo
ainda uma vez
mas ele se queda
assim paralelo
seus olhos fixados
insistentemente penetrantes
não conseguem me fazer par
desvio o olhar
respiro profundamente
mas meu pensamento
coloca-o em mim
novamente
então fecho os olhos
e me deixo encarar
não sem tristeza
pois que à mim
é assim que acontece
uma mágoa sentida
tão fácil seria
não deixá-la entrar
mas me deixei levar
confundindo
momentos
espaços
ternura
talvez provocada
apenas desejos
foi esse meu erro
confiei demais
em mim mesma
esquecendo
não se pode brincar
fingir faz de conta
sentimento maior
nunca se descuida
ele sempre acaba
por nos machucar
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QUASE...

Sentires e pensamentos
de mim destoam
Numa busca quase ilógica
do tanto que já me sei
Por vezes fito meu próprio espanto
pois não pareço ser mais puro encanto
dos sonhos que já sonhei
Realidade doce até mesmo crua
atinge-me imprevisível
Mostrando-me sempre a cada instante
atitudes insanas, desnecessárias
Revestem-se apenas por segundos
da minha outra metade
Talvez tão escondida
nem a mim reconheceu
Agora ambas encontram-se
Triste me é perceber
mais uma vez fui vencida
Teimosia perversa amiga
veio à mim receber
Prepotente
em gesto sarcástico
fitou-me olhar triunfante
Eu
simplesmente ousada
sorrindo lhe agradeci
Sensação de aconchego envolveu-me
novamente esperança
Enfim por sentir-me encantos
dessa feita feliz parti
–––––––––––––––––
A Autora por ela mesma
Nasci em Porto Alegre. Tenho concluído apenas o segundo grau, já que a faculdade de psicologia não pude concluir. Queria muito fazer formação psicanalítica pois sou fascinada pelo pensar do outro. Sou freudiana por excelência... Estou sempre percebendo o outro, tentando me colocar no seu lugar para tentar compreendê-lo e quem sabe então ajudá-lo.
A música entrou na minha vida através de meu pai, que cantava com uma voz linda para mim, fazia-me adormecer em seu colo cantando músicas em Inglês e em Português, nunca cantigas de ninar, sempre músicas diferentes, mas belas...
Minha mãe sempre me ensinava tudo com versinhos, como se portar à mesa e por aí adiante. Então os versinhos entraram na minha vida através dela. E aí eu decorava versos e declamava, meu pai os gravava... Eu já havia entrado para o maravilhoso mundo dos sonhos através da música e dos versos e nem sabia…
Membro Construtor do Armazém Literário desde 07 de junho de 2001.

Fontes:
http://www.lunaeamigos.com.br/liane/liane.htm
Dados = http://www.armazem.literario.nom.br/

Lucilene Machado (Van Gogh, eu e algumas reflexões)

Aniversário outra vez. E já foram tantos os “abris” que me repito por condicionamento. Esboço o mesmo sorriso diante dos gestos carinhosos e dos cumprimentos efusivos, respondo mensagens de amigos distantes e até dos que não são tão amigos, mas se dão ao trabalho de me enviar um cartão online, uma frase pronta... como diz o poeta, tudo vale a pena se a alma não é pequena. E a alma cresce nesse período, corre atrás de um colo para se deitar. Quer se aquietar. Talvez seja para se renovar. A alma sempre necessita um renovo. Precisa se aliviar do passado, desprender-se dos fardos antigos para recomeçar. É a hora em que nos deparamos com escolhas cruciantes: “o que devo guardar e o que devo refugar?” é o famoso balanço existencial. Não sei se alguém é capaz de passar por esse período sem essas reflexões. Para mim é impossível. Sempre sou surpreendia pela voz da consciência a interrogar: “o que fez de relevante no ano que passou?”

A contabilidade é inevitável. A princípio, tento evitar as comparações com anos anteriores e suprimir do balancete, a coluna de saldos. Nada de contabilizar ganhos ou perdas. A vida além de cumulativa sempre parecerá mal resolvida. Um ano de vida cabe em uma gaveta. Textos, fotos de viagens, bilhetes, uma rosa seca, CDs, poesias que escrevi num exercício de libertação, um frasco de perfume vazio, um anel torto, um sabonete que ganhei de uma amiga, um dente-de-leite de minha sobrinha, uma declaração de carinho, um amor que ainda não dei nome e saudades, muitas saudades. Remexo no fundo da gaveta e encontro uma madeixa de meus cabelos que eram longos em abril passado, como mudamos no decorrer de um ano! Tecemos a vida com um fio tão frágil e aí vem o tempo, implacável, e rompe tudo. O tempo é assim, cruel. Faz-nos sentir perdedores neste balanço. Que importa? O mundo está cheio de perdedores que eu admiro. Há coisa mais elegante que saber perder? Nessas ocasiões recordo Van Gogh e sua loucura amarela. Como alguém tão torturado pôde usar o amarelo daquele jeito? Como alguém tão detonado pela vida pôde pintar quadros tão alegres? Um suposto perdedor sem a mínima idéia de dimensão da própria obra.

Eu queria um quadro de Van Gogh pendurado na parede interna da minha sala para não esquecer que a loucura tem uma beleza glamourosa. Mas não sei como reagiria se ao invés disso olhasse para o retrato do autor faltando parte da orelha. A realidade choca, mas não é o que conta hoje. O que ficou foi a sensibilidade e suas variantes. A ótica da racionalidade põe limites concretos e ásperos. Admiro os racionais, mas não é a lógica que administra as atitudes humanas. A lógica se flexiona mediante a força da intuição. A intuição é automática, não precisa justificar seus mecanismos. E os artistas se permitem gerenciar pela intuição. Abstratos. A abstração do raciocínio é o que nos liberta da realidade. O que não vemos, é o que de fato está à nossa frente. E é melhor que não vejamos. As coisas se limitam a ser o que são quando as olhamos de frente. Nunca olho uma questão pela frente e, na hora amarela do dia entro no meu quarto como se entrasse no mar e respondo, intuitivamente, ao vendaval de perguntas que se enroscam nos meus cabelos, já não tão longos. Mas tenho ainda as orelhas perfeitas e ouço os rumores do universo desafiando-me com o vazio da eternidade. A vida é muito mais do que colocamos em balanço. Lembro-me do amor que se manifestou, de várias formas e intensidade, durante o ano; das boas conversas, dos rostos que encheram minhas noites, das palavras que me visitaram. Tive tanto, nem sei se tenho o direito de pedir mais. Se tivesse, pediria como Salomão, sabedoria. Sabedoria simples que me permita chorar assistindo ao filme “A bela e a fera” por já ter concluído que os olhos são enganosos, o coração também.

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Sobre a autora

Lucilene Machado (1965), é cronista no jornal Correio do Estado - MS, membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras e da UBE-MS, Tem dois livros publicados, um de poesia, outro de literatura infantil. Possui artigos publicados na Itália, Espanha e Venezuela. Professora do Departamento de Letras da Universidade do Estado do Mato Grosso.

Fonte:
Crônica enviada por e-mail.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Carlos Frydman (Asfalto)


Quando andares cabisbaixo
com a carga de um dia... de dois dias...
de não sei quantos dias...
ou com a carga de uma vida,
vê o asfalto como fala
e compartilha...

Fala claro seu negrume
calado, mas premente,
de ecléticos vestígios
passados e presentes,
civilizados e degradantes,
rolando ao vento,
deleitando os fatalistas,
os retardatários e fatigados,
os impelidos, os submissos e os contrafeitos
pelo impacto compacto;
enquanto,
ao mesmo compasso
descompassado do tempo,
nas mesmas ruas
com itinerários diferentes,
marcham seres em seus caminhos,
amando, acreditando,
na escolha emaranhada
de seus destinos,
embora para todos
o asfalto é negro,
submisso e prestadio.
Quando tiveres sede de paisagens
e te faltar a gênese do horizonte,
especialmente num dia chuvoso,
vê como o asfalto apanha e enriquece
os sensacionalistas clarões dos fosforescentes,
e faz numa só sequência
um guache trêmulo, refletido,
deixando as lágrimas da chuva
arrastarem a lama;
e a vida prevalece
em seu elaborado destino.

Solidão... vazio...
quanta esperança... quanto estio
em teu negrume
— asfalto amigo,
que Mário soube tragar
da "Paulicéia Desvairada"
e onde muito me apaixonei.

(...)

Minha Paulicéia novaiorquina, moscovita,
plagiadora londrina,
colmeia universal,
expressão nítida do advento,
rosário de alegria e de luto,
que me fizeste amante
e companheiro consequente.

Asfalto,
amo tua noite onde rondam
desolações e aconchegos
em teu negro seio.

Incansavelmente te perpassam
mágoas na agitação afogadas,
multidões nostálgicas,
alegrias ilusórias em correntezas diluídas,
homens cavalgando semelhantes
e calafetados contra a verdade;
e homens destemidos no prisma da esperança,
mesmo quando a bruma
parece fechar o caminho em cada esquina.

(...)
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Carlos Frydman (1924)


Carlos Frydman, nascido em Varsóvia, Polônia, em 15 de novembro de 1924. Fez curso de Contabilidade, como ouvinte, na Fundação Álvares Penteado, no início dos anos 1950 mas não chegou a concluí-lo. Foi membro do Partido Comunista Brasileiro entre 1942 e 1958, o que lhe custou prisão política.

Em 1956 viajou pela Europa (passando por países como: Polônia, França, Itália, Checoslováquia e Hungria) com o Teatro Popular Brasileiro, dirigido pelo poeta Solano Trindade.

Nas décadas de 1950 e 1960 publicou poemas nos jornais Notícias de Hoje (SP) e Imprensa Popular (RJ).

Entre 1968 e 1994 foi diretor do Instituto Cultural Israelita Brasileiro, em São Paulo (SP).

Participou, em 1990, do “Terceiro Encontro de Escritores Judeus Latino-Americanos”, realizado na cidade de São Paulo .

No período de 1992 a 1994 foi segundo Vice-Presidente da União Brasileira de Escritores.

Atualmente é diretor da União Brasileira de Escritores. Idealizador e coordenador do Mutirão Cultural da UBE. Publicou Trilogia das Buscas, pela Editora Perspectiva. Fazem parte de sua obra poética os livros Os Caminhos da Memória (1965) e Sintonia (1990).

Influência da poesia de Augusto de Campos, Baudelaire, Bertolt Brecht, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Cesar Vallejo, Cláudio Manoel da Costa, Cruz e Sousa, Fernando Pessoa, Gabriela Mistral, Gregório de Matos, Haroldo de Campos, Henriqueta Lisboa, João Cabral de Melo Neto, Lêdo Ivo, Maiakovski, Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Murilo Mendes, Pablo Neruda, Raul Gonzales, Thiago de Mello, Tomás Antônio Gonzaga, Vinicius de Moraes

Convivência com Afonso Schmidt, Astrogildo Pereira, Caio Prado Júnior, Carlos Burlamaqui Kopke, Fábio Lucas, Graciliano Ramos, Henrique L. Alves, Ibiapaba Martins, Lourdes Bernardes, Mário Schenberg, Solano Trindade

ATIVIDADES LITERÁRIAS/CULTURAIS

1956 - Polônia, França, Itália, Checoslováquia e Hungria - Viagem com o Teatro Popular Brasileiro, dirigido pelo poeta Solano Trindade
1956c./1964 - São Paulo SP - Publicação de poemas nos jornais Notícias de Hoje (SP) e Imprensa Popular (RJ)
1968/1994 - São Paulo SP - Diretor do Instituto Cultural Israelita Brasileiro
1979/1994 - São Paulo SP - Colaborador esporádico em O Artista, jornal da UBE
1990/1994 - Piracicaba SP - Publicação de poemas e artigos no jornal Linguagem Viva
1990 - São Paulo SP - Participação no Terceiro Encontro de Escritores Judeus Latino-Americanos
1992/1994 - São Paulo SP - Segundo Vice-Presidente da União Brasileira de Escritores
2000/2007 - São Paulo SP - Diretor da União Brasileira de Escritores

LEITURAS CRÍTICAS
"Carlos Frydman propõe, em seus poemas, um fluxo de confissões íntimas ajustado a um vasto apelo à solidariedade humana. Daí a oscilação que seus versos apresentam entre o tom menor do lirismo amoroso, da expressão confidencial, e a proclamação sonora ou eloqüente dos grandes valores sociais. Os temas oceânicos inspiram-lhe viagens que são, por sua vez, sintomas de uma busca infinita das razões mais profundas do ser. Quando acolhe temas urbanos, os seus olhos se voltam mais para os deserdados. Daí a invocação dos transeuntes do Viaduto do Chá ou dos habitantes das vilas, com seu carnaval revestido de pobreza e misticismo (...). Dotado de veia lírica, não poderia escapar a Carlos Frydman a celebração de duas forças da alma que potenciam a perfeita comunicação: o amor e a amizade. Ambas instauram tal intercâmbio entre os homens que sempre as duas partes intervenientes se enriquecem na troca, locupletam-se. O proveito recíproco marca o amor e a amizade." Lucas, Fábio, pref. [1990]. In: Frydman, Carlos. Sintonia: poesia.

Fonte:
http://www.ube.org.br/