Essa visão transfiguradora se incorporou para sempre à literatura e aos estudos, constituindo um dos elementos centrais da nossa educação e do nosso ponto de vista sobre as coisas. Em meados do século XVIII veio juntar-se a ela uma concepção até certo ponto nova que representa, nas idéias em geral, a influência das correntes ilustradas do tempo; a literatura do Classicismo de inspiração francesa e do Arcadismo italiano. Sem anular as tendências anteriores, as correntes então dominantes no gosto e na inteligência apresentam caracteres diversos. Poderíamos esquematizá-las dizendo:
1) que a confiança na razão procurou, senão substituir, ao menos alargar a visão religiosa;
2) que o ponto de vista exclusivamente moral se completou — sobretudo nas interpretações sociais — pela fé no princípio do progresso;
3) que, em lugar da transfiguração da natureza dos sentimentos, acentuou-se a fidelidade ao real. Em suma, formou se uma camada mais ou menos neoclássica, rompida a cada passo pelos afloramentos do forte sedimento barroco.
Aproximadamente com tais características, ocorreu no Brasil uma pequena Época das Luzes, que se encaminhou para a independência política e as teorias da emancipação intelectual, tema básico do nosso Romantismo após 1830. Historicamente, ela se liga no pombalismo, muito propício ao Brasil e aos brasileiros, e exemplo do ideal setecentista de bom governo, desabusado e reformador. Para uma colônia habituada à tirania e carência de liberdade, pouco pesaria o despotismo de Pombal; em compensação, avultaram a sua simpatia pessoal pelos colonos, que utilizou e protegeu em grande número, assim como os planos e medidas para o nosso desenvolvimento. Algo moderno parecia acontecer; e os escritores do Brasil se destacam no ciclo do pombalismo literário, com o Uraguai, de Basílio da Gama, justificando a luta contra os jesuítas; O desertor, de Silva Alvarenga, celebrando a reforma da Universidade; O reino da estupidez, de Francisco de Melo Franco, atacando a reação do tempo de D. Maria I. Isto, sem contar uma série de poemas ilustrados de Cláudio Manuel da Costa e Alvarenga Peixoto, formulando a teoria do bom governo, apelando para as grandes obras públicas, louvando o governante capaz: Pombal, Gomes Freire de Andrada, Luís Diogo Lobo da Silva.
Daí resultou incremento do nativismo, voltado, agora, não apenas para a transfiguração do país, mas para a investigação sistemática da sua realidade e para os problemas de transformação do seu estatuto político. As condições econômicas eram outras, impondo-se a libertação dos monopólios metropolitanos — sobretudo o do comércio — num país que sofrerá o baque do ouro decadente e necessitava maior desafogo para manter a sua população. As revoluções norte-americana e francesa, o exemplo das instituições inglesas, o nascente liberalismo oriundo de certas tendências ilustradas completariam o impacto do pombalismo, formando um ambiente receptivo para as idéias e medidas de modernização político-econômica e cultural, logo esboçadas aqui com a presença da Corte, a partir de 1808. No Brasil joanino conjugaram-se as tendências e as circunstâncias, tornando inevitável a autonomia política.
Estas considerações visam sugerir que, no período em questão, houve entrosamento acentuado entre a vida intelectual e as preocupações político-sociais. As diretrizes respectivas — conforme as entreviam os nossos homens de então nos modelos franceses e ingleses — se harmonizavam pela confiança na força da razão, considerada tanto como instrumento de ordenação do mundo, quanto como modelo de uma certa arte clássica, abstrata e universal. A isto se juntavam:
1) o culto da natureza, que favoreceu a busca da naturalidade de expressão e sinceridade de emoção, contrabalançando a sua eventual secura;
2) o desejo de investigar o mundo, conhecer a lei da sua ordem, que a razão apreendia;
3) finalmente, a aspiração à verdade, como descoberta intelectual, como fidelidade consciente ao natural, como sentimento de justiça na sociedade.
No caso brasileiro, estes pendores se manifestaram frequentemente pelo desejo de mostrar que também nós tínhamos capacidade para criar uma expressão racional da natureza, generalizando o nosso particular mediante as disciplinas intelectuais aprendidas com a Europa. E que havia uma verdade relativa às coisas locais, desde a descrição nativista das suas características, até a busca das normas justas, que deveriam pautar o nosso comportamento como povo.
A passagem a esta nova maneira de ver é clara na diferença entre dois grêmios, que se sucederam na segunda metade do século XVIII. A Academia dos Renascidos, fundada na Bahia em 1759 por um grupo de legistas, clérigos e latifundiários, abordava temas literários e históricos, — de uma história lendária e próxima à epopéia, ou de uma crônica mais ou menos ingênua de acontecimentos. Dela resultaram os Desagravos do Brasil, de Loreto Couto, a História militar, de José Mirales, as Memórias para a história da capitania de São Vicente, de frei Gaspar da Madre de Deus. A Academia assinala um instante capital na formação da nossa literatura, ao congregar homens de letras de várias partes da colônia, num primeiro lampejo de integração nacional.
A Academia Científica, fundada no Rio em 1771 por médicos, e reformada sob o nome de Sociedade Literária em 1786, para durar intermitentemente até 1795, propagou a cultura do anil e da cochonilha, introduziu processos industriais, promoveu estudos sobre as condições do Rio e acabou criticando a situação da colônia, com base em Raynal e inspirações também em Rousseau e Mably.
Nos escritores deste período encontramos os que representam uma passagem, ou mistura, de Barroco e Arcadismo; os que manifestam diferentes aspectos de um nativismo que vai deixando de ser apenas extático para ser também racional; os que procuram superar a contorção do estilo culto por uma expressão adequada à natureza e à verdade; os que passam da transfiguração da terra para as perspectivas do seu progresso.
Muito interessantes como sintoma são os Diálogos político-morais (1758), de Feliciano Joaquim de Sousa Nunes, ou antes a sua introdução, onde vem claramente expresso o tema do ressentimento dos intelectuais brasileiros, que desejavam ser reconhecidos a par dos metropolitanos e se apegavam, como defesa, à teoria de que o critério da avaliação deveria ser o mérito, não as circunstâncias de naturalidade ou posição social.
Esta atitude ocorre também em Cláudio Manuel da Costa (1729-1789), escritor de transição entre o cultismo e as novas tendências, representando de algum modo o início de uma atividade literária regular e de alta qualidade no seu país. Contemporâneo dos fundadores da Arcádia Lusitana (1756), que empreendeu a campanha neo-clássica em Portugal, reajustou conforme os seus preceitos a forte vocação barroca, encontrando a solução numa espécie do Neoquinhentismo — parecendo um novo Diogo Bernardes pela síntese da simplicidade clássica e certo maneirismo infuso. Há muita beleza nas suas éclogas, apesar da eventual prolixidade; mas nos sonetos está o melhor do seu estro, como forma e elaboração dos dados humanos.
Apegado à terra natal, é visível nele a impregnação em profundidade dos seus aspectos típicos, naturais e sociais: rocha, ouro, mineração, angústia fiscal. Neste sentido, empreendeu cantar numa epopéia a vitória das normas civis sobre o caos da zona pioneira de aventureiros, narrando a história da capitania de Minas. O resultado foi mau, não chegando a publicar o referido poema — VILA RICA — embora o tivesse aprontado antes de 1780.
Seu amigo Inácio José de Alvarenga Peixoto (1744-1793) deixou obra pequena, próxima da sua pela forma e as preocupações políticas, e igualmente embebida na realidade mineira. Com Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), companheiro de ambos em Ouro Preto, o Arcadismo encontrou no Brasil a mais alta expressão. Na sua obra há um aspecto de erotismo frívolo, expresso principalmente nas poesias de metro curto, anacreônticas em grande parte, celebrando a namorada, depois noiva, sob o nome pastoral de Marília. Mas ela vale sobretudo pelas de metro longo, voltadas para a expressão lírica da sua própria personalidade. Nelas, com admirável simplicidade e nobreza, traça um roteiro das suas preocupações, da sua visão do mundo e, depois de preso, do seu otimismo estóico. A ele se tem atribuído cada vez mais a autoria das famosas Cartas chilenas, sátira violenta contra um governador de Minas, verberando desmandos administrativos e revelando costumes do tempo, em verso enérgico e expressivo.
Estes três poetas se envolveram na Inconfidência Mineira, mas parece que apenas Alvarenga Peixoto desempenhou nela papel militante. De qualquer modo, foram duramente castigados e representam no Brasil o primeiro e até hoje maior holocausto da inteligência às idéias do progresso social.
Igualmente progressistas e muito estritamente pombalinos (como ficou dito) foram dois outros contemporâneos, que formam um par separado: José Basílio da Gama (1741-1795) e Manuel Inácio da Silva Alvarenga (1749-1814).
O Uraguai (1769), do primeiro (porventura a mais bela realização poética do nosso Setecentos), classificado em geral como epopéia, é na verdade um curto poema narrativo de assunto bélico, visando ostensivamente atacar os jesuítas e defender a intervenção pombalina nas suas missões do Sul. Visivelmente atrapalhado por um material polêmico que não teria tempo, ou disposição de elaborar, o poeta relegou-o para as notas o mais que pôde. No corpo do poema resultou a simpatia pelo índio, esmagado entre interesses opostos; e a fantasia criadora elaborou um admirável universo plástico, descrevendo a natureza e os feitos com um decassílabo solto de rara beleza e expressividade, nutrido de modelos italianos. Graças a isto, o Uraguai se tornou um dos momentos-chave da nossa literatura, descrevendo o encontro de culturas (européia e ameríndia), que Inspiraria o Romantismo indianista, para depois se desdobrar, como preocupação com o novo encontro entre a cultura urbanizada e a rústica, até Os sertões, de Euclides da Cunha, o romance social e a sociologia. No tempo de Basílio, tratava-se de optar, neste processo, entre a tradicional orientação catequética e a nova direção estatal, colocando-se ele francamente ao lado desta.
Na mesma linha se pôs seu amigo Silva Alvarenga, que veio para o Rio depois de formado, enquanto ele permanecia em Portugal. Silva Alvarenga, no poema herói-cômico O desertor (1774), apoia a reforma da Universidade, atacando os velhos métodos escolásticos; e, pela vida afora, mesmo após a reação que sucedeu à queda de Pombal, continuou fiel à sua obra e às tendências ilustradas, em poemas didáticos e, sobretudo, pela já referida atuação na Sociedade Literária, de que foi mentor e lhe valeu quase quatro anos de prisão. O seu papel foi muito importante no Rio dos últimos decênios do século XVIII, pois influiu, como professor, na geração de que sairiam alguns próceres da Independência, — o que faz do velho árcade um elo entre as primeiras aspirações ilustradas brasileiras e a sua consequência político-social.
Como poeta, entretanto, é sobretudo o autor de Glaura (1799), que contém uma série de rondós e outra de madrigais. Os primeiros são uma forma poética inventada por ele com base numa estrofe de Metastasio e constituindo, apesar da monotonia, melodioso encanto em que perpassam imagens admiravelmente escolhidas para denotar o velho tema da esperança e decepção amorosa. Os madrigais, mais austeros como forma, mostram a capacidade clássica de exprimir os sentimentos em breve suma equilibrada. Dentre os árcades, é o mais fácil e musical dos poetas, já que Domingos Caldas Barbosa (1740-1800) é antes um modinheiro cujas letras têm pouca força sem a partitura.
Para encerrar este grupo de homens superiormente dotados, falta mencionar frei José de Santa Rita Durão (1722-1784), que fica à parte pela decidida oposição à ideologia pombalina e fidelidade à tradição camoniana. A sua cultura escolástica e o afastamento dos meios literários, mais a influência de cronistas e poetas que se ocuparam do Brasil no modo barroco (Vasconcelos, Rocha Pita, Jaboatão, Itaparica), fazem dele, sob muitos aspectos, prolongamento da visão religiosa e transfiguradora atrás mencionada, levando-o a avaliar a colonização do ângulo estritamente catequético. Mas a época e o talento fizeram-no buscar, superando a falsa e afetada epopéia pós-camoniana, um veio quinhentista mais puro, para celebrar a história da sua pátria no Caramuru (1781). Resultou um poema passadista como ideologia e fatura, mas fluente e legível, com belos trechos descritivos e narrativos, devido à imaginação reprodutiva e à capacidade de metrificar as melhores sugestões das fontes que utilizou. Ele representa uma posição intermediária importante, por ter atualizado a linha nativista de celebração da terra, abrindo caminho para a sua florescência no século XIX.
Costumava-se abranger estes poetas sob o nome coletivo de Escola Mineira. Na verdade, formam, como vimos, três segmentos distintos no movimento arcádico, e a designação só se justificaria caso tomada como sinônimo do grupo brasileiro dentro do Arcadismo português, dada a circunstância de todos eles terem ou nascido em Minas, ou lá passado as partes decisivas da vida.
Fonte:
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9. ed. RJ: Ouro Sobre Azul, 2006.
1) que a confiança na razão procurou, senão substituir, ao menos alargar a visão religiosa;
2) que o ponto de vista exclusivamente moral se completou — sobretudo nas interpretações sociais — pela fé no princípio do progresso;
3) que, em lugar da transfiguração da natureza dos sentimentos, acentuou-se a fidelidade ao real. Em suma, formou se uma camada mais ou menos neoclássica, rompida a cada passo pelos afloramentos do forte sedimento barroco.
Aproximadamente com tais características, ocorreu no Brasil uma pequena Época das Luzes, que se encaminhou para a independência política e as teorias da emancipação intelectual, tema básico do nosso Romantismo após 1830. Historicamente, ela se liga no pombalismo, muito propício ao Brasil e aos brasileiros, e exemplo do ideal setecentista de bom governo, desabusado e reformador. Para uma colônia habituada à tirania e carência de liberdade, pouco pesaria o despotismo de Pombal; em compensação, avultaram a sua simpatia pessoal pelos colonos, que utilizou e protegeu em grande número, assim como os planos e medidas para o nosso desenvolvimento. Algo moderno parecia acontecer; e os escritores do Brasil se destacam no ciclo do pombalismo literário, com o Uraguai, de Basílio da Gama, justificando a luta contra os jesuítas; O desertor, de Silva Alvarenga, celebrando a reforma da Universidade; O reino da estupidez, de Francisco de Melo Franco, atacando a reação do tempo de D. Maria I. Isto, sem contar uma série de poemas ilustrados de Cláudio Manuel da Costa e Alvarenga Peixoto, formulando a teoria do bom governo, apelando para as grandes obras públicas, louvando o governante capaz: Pombal, Gomes Freire de Andrada, Luís Diogo Lobo da Silva.
Daí resultou incremento do nativismo, voltado, agora, não apenas para a transfiguração do país, mas para a investigação sistemática da sua realidade e para os problemas de transformação do seu estatuto político. As condições econômicas eram outras, impondo-se a libertação dos monopólios metropolitanos — sobretudo o do comércio — num país que sofrerá o baque do ouro decadente e necessitava maior desafogo para manter a sua população. As revoluções norte-americana e francesa, o exemplo das instituições inglesas, o nascente liberalismo oriundo de certas tendências ilustradas completariam o impacto do pombalismo, formando um ambiente receptivo para as idéias e medidas de modernização político-econômica e cultural, logo esboçadas aqui com a presença da Corte, a partir de 1808. No Brasil joanino conjugaram-se as tendências e as circunstâncias, tornando inevitável a autonomia política.
Estas considerações visam sugerir que, no período em questão, houve entrosamento acentuado entre a vida intelectual e as preocupações político-sociais. As diretrizes respectivas — conforme as entreviam os nossos homens de então nos modelos franceses e ingleses — se harmonizavam pela confiança na força da razão, considerada tanto como instrumento de ordenação do mundo, quanto como modelo de uma certa arte clássica, abstrata e universal. A isto se juntavam:
1) o culto da natureza, que favoreceu a busca da naturalidade de expressão e sinceridade de emoção, contrabalançando a sua eventual secura;
2) o desejo de investigar o mundo, conhecer a lei da sua ordem, que a razão apreendia;
3) finalmente, a aspiração à verdade, como descoberta intelectual, como fidelidade consciente ao natural, como sentimento de justiça na sociedade.
No caso brasileiro, estes pendores se manifestaram frequentemente pelo desejo de mostrar que também nós tínhamos capacidade para criar uma expressão racional da natureza, generalizando o nosso particular mediante as disciplinas intelectuais aprendidas com a Europa. E que havia uma verdade relativa às coisas locais, desde a descrição nativista das suas características, até a busca das normas justas, que deveriam pautar o nosso comportamento como povo.
A passagem a esta nova maneira de ver é clara na diferença entre dois grêmios, que se sucederam na segunda metade do século XVIII. A Academia dos Renascidos, fundada na Bahia em 1759 por um grupo de legistas, clérigos e latifundiários, abordava temas literários e históricos, — de uma história lendária e próxima à epopéia, ou de uma crônica mais ou menos ingênua de acontecimentos. Dela resultaram os Desagravos do Brasil, de Loreto Couto, a História militar, de José Mirales, as Memórias para a história da capitania de São Vicente, de frei Gaspar da Madre de Deus. A Academia assinala um instante capital na formação da nossa literatura, ao congregar homens de letras de várias partes da colônia, num primeiro lampejo de integração nacional.
A Academia Científica, fundada no Rio em 1771 por médicos, e reformada sob o nome de Sociedade Literária em 1786, para durar intermitentemente até 1795, propagou a cultura do anil e da cochonilha, introduziu processos industriais, promoveu estudos sobre as condições do Rio e acabou criticando a situação da colônia, com base em Raynal e inspirações também em Rousseau e Mably.
Nos escritores deste período encontramos os que representam uma passagem, ou mistura, de Barroco e Arcadismo; os que manifestam diferentes aspectos de um nativismo que vai deixando de ser apenas extático para ser também racional; os que procuram superar a contorção do estilo culto por uma expressão adequada à natureza e à verdade; os que passam da transfiguração da terra para as perspectivas do seu progresso.
Muito interessantes como sintoma são os Diálogos político-morais (1758), de Feliciano Joaquim de Sousa Nunes, ou antes a sua introdução, onde vem claramente expresso o tema do ressentimento dos intelectuais brasileiros, que desejavam ser reconhecidos a par dos metropolitanos e se apegavam, como defesa, à teoria de que o critério da avaliação deveria ser o mérito, não as circunstâncias de naturalidade ou posição social.
Esta atitude ocorre também em Cláudio Manuel da Costa (1729-1789), escritor de transição entre o cultismo e as novas tendências, representando de algum modo o início de uma atividade literária regular e de alta qualidade no seu país. Contemporâneo dos fundadores da Arcádia Lusitana (1756), que empreendeu a campanha neo-clássica em Portugal, reajustou conforme os seus preceitos a forte vocação barroca, encontrando a solução numa espécie do Neoquinhentismo — parecendo um novo Diogo Bernardes pela síntese da simplicidade clássica e certo maneirismo infuso. Há muita beleza nas suas éclogas, apesar da eventual prolixidade; mas nos sonetos está o melhor do seu estro, como forma e elaboração dos dados humanos.
Apegado à terra natal, é visível nele a impregnação em profundidade dos seus aspectos típicos, naturais e sociais: rocha, ouro, mineração, angústia fiscal. Neste sentido, empreendeu cantar numa epopéia a vitória das normas civis sobre o caos da zona pioneira de aventureiros, narrando a história da capitania de Minas. O resultado foi mau, não chegando a publicar o referido poema — VILA RICA — embora o tivesse aprontado antes de 1780.
Seu amigo Inácio José de Alvarenga Peixoto (1744-1793) deixou obra pequena, próxima da sua pela forma e as preocupações políticas, e igualmente embebida na realidade mineira. Com Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), companheiro de ambos em Ouro Preto, o Arcadismo encontrou no Brasil a mais alta expressão. Na sua obra há um aspecto de erotismo frívolo, expresso principalmente nas poesias de metro curto, anacreônticas em grande parte, celebrando a namorada, depois noiva, sob o nome pastoral de Marília. Mas ela vale sobretudo pelas de metro longo, voltadas para a expressão lírica da sua própria personalidade. Nelas, com admirável simplicidade e nobreza, traça um roteiro das suas preocupações, da sua visão do mundo e, depois de preso, do seu otimismo estóico. A ele se tem atribuído cada vez mais a autoria das famosas Cartas chilenas, sátira violenta contra um governador de Minas, verberando desmandos administrativos e revelando costumes do tempo, em verso enérgico e expressivo.
Estes três poetas se envolveram na Inconfidência Mineira, mas parece que apenas Alvarenga Peixoto desempenhou nela papel militante. De qualquer modo, foram duramente castigados e representam no Brasil o primeiro e até hoje maior holocausto da inteligência às idéias do progresso social.
Igualmente progressistas e muito estritamente pombalinos (como ficou dito) foram dois outros contemporâneos, que formam um par separado: José Basílio da Gama (1741-1795) e Manuel Inácio da Silva Alvarenga (1749-1814).
O Uraguai (1769), do primeiro (porventura a mais bela realização poética do nosso Setecentos), classificado em geral como epopéia, é na verdade um curto poema narrativo de assunto bélico, visando ostensivamente atacar os jesuítas e defender a intervenção pombalina nas suas missões do Sul. Visivelmente atrapalhado por um material polêmico que não teria tempo, ou disposição de elaborar, o poeta relegou-o para as notas o mais que pôde. No corpo do poema resultou a simpatia pelo índio, esmagado entre interesses opostos; e a fantasia criadora elaborou um admirável universo plástico, descrevendo a natureza e os feitos com um decassílabo solto de rara beleza e expressividade, nutrido de modelos italianos. Graças a isto, o Uraguai se tornou um dos momentos-chave da nossa literatura, descrevendo o encontro de culturas (européia e ameríndia), que Inspiraria o Romantismo indianista, para depois se desdobrar, como preocupação com o novo encontro entre a cultura urbanizada e a rústica, até Os sertões, de Euclides da Cunha, o romance social e a sociologia. No tempo de Basílio, tratava-se de optar, neste processo, entre a tradicional orientação catequética e a nova direção estatal, colocando-se ele francamente ao lado desta.
Na mesma linha se pôs seu amigo Silva Alvarenga, que veio para o Rio depois de formado, enquanto ele permanecia em Portugal. Silva Alvarenga, no poema herói-cômico O desertor (1774), apoia a reforma da Universidade, atacando os velhos métodos escolásticos; e, pela vida afora, mesmo após a reação que sucedeu à queda de Pombal, continuou fiel à sua obra e às tendências ilustradas, em poemas didáticos e, sobretudo, pela já referida atuação na Sociedade Literária, de que foi mentor e lhe valeu quase quatro anos de prisão. O seu papel foi muito importante no Rio dos últimos decênios do século XVIII, pois influiu, como professor, na geração de que sairiam alguns próceres da Independência, — o que faz do velho árcade um elo entre as primeiras aspirações ilustradas brasileiras e a sua consequência político-social.
Como poeta, entretanto, é sobretudo o autor de Glaura (1799), que contém uma série de rondós e outra de madrigais. Os primeiros são uma forma poética inventada por ele com base numa estrofe de Metastasio e constituindo, apesar da monotonia, melodioso encanto em que perpassam imagens admiravelmente escolhidas para denotar o velho tema da esperança e decepção amorosa. Os madrigais, mais austeros como forma, mostram a capacidade clássica de exprimir os sentimentos em breve suma equilibrada. Dentre os árcades, é o mais fácil e musical dos poetas, já que Domingos Caldas Barbosa (1740-1800) é antes um modinheiro cujas letras têm pouca força sem a partitura.
Para encerrar este grupo de homens superiormente dotados, falta mencionar frei José de Santa Rita Durão (1722-1784), que fica à parte pela decidida oposição à ideologia pombalina e fidelidade à tradição camoniana. A sua cultura escolástica e o afastamento dos meios literários, mais a influência de cronistas e poetas que se ocuparam do Brasil no modo barroco (Vasconcelos, Rocha Pita, Jaboatão, Itaparica), fazem dele, sob muitos aspectos, prolongamento da visão religiosa e transfiguradora atrás mencionada, levando-o a avaliar a colonização do ângulo estritamente catequético. Mas a época e o talento fizeram-no buscar, superando a falsa e afetada epopéia pós-camoniana, um veio quinhentista mais puro, para celebrar a história da sua pátria no Caramuru (1781). Resultou um poema passadista como ideologia e fatura, mas fluente e legível, com belos trechos descritivos e narrativos, devido à imaginação reprodutiva e à capacidade de metrificar as melhores sugestões das fontes que utilizou. Ele representa uma posição intermediária importante, por ter atualizado a linha nativista de celebração da terra, abrindo caminho para a sua florescência no século XIX.
Costumava-se abranger estes poetas sob o nome coletivo de Escola Mineira. Na verdade, formam, como vimos, três segmentos distintos no movimento arcádico, e a designação só se justificaria caso tomada como sinônimo do grupo brasileiro dentro do Arcadismo português, dada a circunstância de todos eles terem ou nascido em Minas, ou lá passado as partes decisivas da vida.
Fonte:
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9. ed. RJ: Ouro Sobre Azul, 2006.